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A SISTEMÁTICA BRASILEIRA DE SEGURANÇA DA ATIVIDADE FINANCEIRA NO CIBERESPAÇO E A ATUAL (IN)APLICABILIDADE ÀS INITIAL COIN OFFERINGS (ICOs) E AOS SEUS ATIVOS VIRTUAIS
THE BRAZILIAN SYSTEM OF FINANCIAL ACTIVITY SAFETY IN CYBERSPACE AND THE CURRENT (IN)APPLICABILITY TO THE INITIAL COIN OFFERINGS (ICOs) AND ITS VIRTUAL ASSETS
LA SISTEMÁTICA BRASILEÑA DE SEGURIDAD DE LA ACTIVIDAD FINANCIERA EN EL CIBERESPAÇO Y LA ACTUAL (IN)APLICABILIDAD A LAS INITIAL COIN OFFERINGS (ICO) YA SUS ACTIVOS VIRTUALES
Contextus – Revista Contemporânea de Economia e Gestão, vol. 16, pp. 62-83, 2018
Universidade Federal do Ceará


Recepção: 05 Agosto 2018

Aprovação: 02 Setembro 2018

DOI: https://doi.org/10.19094/contextus.v0i0.33320

Resumo: Novas tecnologias no âmbito da economia digital, tais como a initial coin offering (ICO) e os seus ativos virtuais, os tokens e as criptomoedas, quando associadas a softwares que proporcionam anonimato em torno de suas transações, potencializam os riscos de criminalidade virtual, lavagem de dinheiro, financiamento ao terrorismo e até mesmo ciberataques ao sistema financeiro estatal. Tais riscos cibernéticos têm demandado dos governos o desenvolvimento de sistemas de segurança da atividade financeira no ciberespaço, envolvendo mecanismos de ciberdefesa, órgãos de fiscalização, bem como aparatos normativos para regular, prevenir e reprimir ciberataques. Tendo em vista esse panorama, esta pesquisa visou descrever a sistemática brasileira de segurança da atividade financeira no ciberespaço, analisando-a frente ao fenômeno da initial coin offering (ICO) e seus ativos virtuais, chegando-se à conclusão de que o atual sistema é inaplicável a tal fenômeno.

Palavras-chave: Segurança da atividade financeira, Oferta inicial de moeda, Sistema financeiro nacional, Risco cibernético, Cibersegurança.

Abstract: New digital economy technologies, such as the initial coin offering (ICO) and its virtual assets, tokens and crypto-currencies, when coupled with software that anonymizes their transactions, potentiate the risks of virtual crime, money laundering, terrorist financing, and even cyber-attacks on the state financial system. Such cybernetic risks have demanded from governments the development of security systems for financial activity in cyberspace, involving cyber-defense mechanisms, oversight bodies, as well as normative devices to regulate, prevent and suppress cyber-attacks. In view of this scenario, the purpose of this research was to describe the Brazilian system of financial security in cyberspace, analyzing it in the face of the initial coin offering (ICO) phenomenon and its virtual assets, arriving at the conclusion that the current system is inapplicable to such a phenomenon.

Keywords: Security of financial activity, Initial money supply, National financial system, Cyber risk, Cyber security.

Resumen: Nuevas tecnologías en el ámbito de la economía digital, como el initial coin offering (ICO) y sus activos virtuales, cuando se asocian a softwares que proporcionan anonimato en torno a sus transacciones, potencian los riesgos de criminalidad virtual, lavado de dinero, financiamiento al terrorismo e incluso ciberataques al sistema financiero estatal. Tales riesgos cibernéticos han demandado a los gobiernos el desarrollo de sistemas de seguridad de la actividad financiera en el ciberespacio, involucrando mecanismos de ciberdefensa, órganos de fiscalización, así como aparatos normativos para regular, prevenir y reprimir ciberataques. En vista de este panorama, en esta investigación se objetivó describir la sistemática brasileña de seguridad para la actividad financiera en el ciberespacio, analizándola frente al fenómeno de la initial coin offering (ICO) y sus activos virtuales, llegando a la conclusión de que el actual sistema es inaplicable a tal fenómeno.

Palabras clave: Seguridad de la actividad financiera, Oferta inicial de moneda, Sistema financiero nacional, Riesgo cibernético, Ciberseguridad.

1 INTRODUÇÃO

A e-conomia ou economia digital trouxe várias inovações, tais como plataformas de pagamentos com base em criptografia, a initial coin offering (ICO) e os ativos virtuais, a exemplo dos tokens (chaves de acesso) e das criptomoedas (moedas criptográficas). Por se associarem à possibilidade de transações anônimas na internet, essas inovações desencadearam graves problemas como criminalidade virtual, lavagem de dinheiro, financiamento ao terrorismo e prejuízos ao sistema financeiro estatal.

Tais riscos cibernéticos têm demandado dos governos e comunidades científicas o desenvolvimento de sistemas computacionais defensivos e de retaliação, mas também de aparatos normativos para regular, prevenir e reprimir ciberataques. Diante das novas práticas criminosas, esbarra-se na dificuldade de obter provas, identificar suspeitos e até mesmo aplicar a lei nacional em território estrangeiro onde se possam localizar os transgressores.

As chamadas blockchains consistem em protocolos básicos para a operacionalidade oferecida pelas ICOs, bastante detalhados por especialistas em redes, programação ou criptografia (WRIGHT; DE FILIPPI, 2015) e por engenheiros de hardware ou software (BUCHANAN; NAQVI, 2018) e de outras áreas correlatas (CROSBY et al. 2016). Os detalhes técnicos sobre seu funcionamento e suas vulnerabilidades não são objetos de análise nesta pesquisa, cujo foco recai sobre os riscos sociais decorrentes das atividades empreendidas e dos ativos transacionados pelas ICOs e sobre o interesse público em uma regulação estatal específica, em prol da segurança da atividade financeira no espaço cibernético.

Buscou-se, portanto, através de uma pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa e baseada no método hipotético-dedutivo, descrever a sistemática de segurança da atividade financeira no Brasil e analisar a sua atual aplicabilidade ao fenômeno ICO e aos seus ativos virtuais. Inicialmente, contudo, no intuito de demonstrar a demanda global por tais sistemas de segurança e sem pretensão de um estudo comparativo sobre sistemas regulatórios, foram descritas decisões estatais, em torno de ICOs e das moedas criptográficas, tomadas por países com os sistemas financeiros mais desenvolvidos do mundo, assim classificados pelo Fórum Econômico Mundial (WORLD ECONOMIC FORUM, 2016): Hong Kong, em 1º lugar; EUA, em 2º; e Reino Unido, em 3º. Quanto às técnicas empregadas, a pesquisa é bibliográfica e documental, pois articula doutrinas sobre os sistemas financeiros nacionais e sobre as ICOs, mas também analisa normas relativas à segurança da atividade financeira no ciberespaço.

2 O ESFORÇO INTERNACIONAL REGULATÓRIO SOBRE A INITIAL COIN OFFERING (ICO), OS TOKENS E AS CRIPTOMOEDAS

O monopólio sobre a emissão de moeda não é inato ao governo, mas sim imposto pela ordem política vigente e executada com base em normas jurídicas. Os efeitos de tal monopólio sobre a moeda e a estrutura de crédito diferem significativamente dos que ocorreriam em um sistema bancário livre, sem ou com pouca intervenção do governo (ALMEIDA, 2016). É bem verdade que vários doutrinadores defendem a noção de moeda como “bem público” que precisa de estabilidade para possibilitar a melhoria do bem-estar dos indivíduos e que, por isso, deve ser controlada pelo Estado (ALMEIDA, 2016). Mesmo os defensores do liberalismo econômico extremo, em que o mercado deveria funcionar livremente e a interferência deveria ocorrer apenas para proteger os direitos de propriedade, também percebem a política monetária como forma de intervenção estatal menor do que a política fiscal (ALMEIDA, 2016).

Contudo, Hayek (2011), já havia previsto uma “desestatização” do dinheiro, alertando para um inevitável futuro “desastre” ocasionado pela centralização monopolista da emissão de moedas. Também o economista americano Milton Friedman, em uma entrevista realizada pela NTU/F, em 1999, já havia previsto a necessidade de um “dinheiro eletrônico” na “Era da Internet”, chegando a vislumbrar a hipótese de troca virtual de moedas, sem a necessidade de identificação das pessoas (FRIEDMAN, 1999).

Ora, na atual “sociedade em rede”, desenvolveu-se uma economia digital com dinâmica diferenciada, pautada em uma percepção libertária sobre o mercado financeiro, de forma que a emissão de moedas pelo Estado ganhou uma “concorrente”: a initial coin offering (ICO). Empresas que se denominam ICOs fazem emissões de tokens e coins. Os tokens, como ativos virtuais, são chaves para o ingresso em determinado software ou plataforma, cujo acesso retorna alguma recompensa, e o seu uso é fungível. Os tokens ofertados pelas ICOs normalmente servem para dar acesso a alguma blockchain (protocolo) de alguma criptomoeda e possuem quantidade limitada (HUMBERT; VALADARES, 2017). Por outro lado, as coins, também denominadas de criptmoedas, são ativos virtuais cujo valor pode ser correlacionado ao valor das moedas da economia real, denominadas, portanto, de moedas conversíveis. São baseadas em algoritmos criptográficos para proteger as transações submetidas e para controlar a criação de suas novas unidades. As criptomoedas distinguem-se das moedas virtuais fechadas que são utilizadas, por exemplo, em jogos sociais e programas de fidelidade, pois estas não possuem conexão com a economia real, não são conversíveis e, por isso, consideradas “moedas fictícias” (HUMBERT; VALADARES, 2017).

As ICOs prometem, em matéria de criptografia, um novo recurso, tecnologia ou blockchain, enfim, algo inovador que poderá ser rentável no mercado de criptomoedas. Então, lançam a oferta dessa novidade criptográfica buscando captar recursos e em troca emitem unidades de sua criptomoeda ou de um token de acesso à sua blockchain correlacionada ou à de outro. Os interessados aplicam os seus recursos (moedas reais, ou mesmo outras criptomoeda) nas ICOs, a título de investimento econômico, cujo retorno poderá ser futuramente alcançado através do uso do token ou da criptomeda adquirida. A ICO é, portanto, em termos amplos, uma forma de captar fundos para um projeto de criptografia, que faz “emissão inicial” de tokens e/ou de criptomoedas.

A primeira criptomoeda emitida através de uma ICO foi lançada em 2013, quando foi anunciada a proposta da rede de pagamentos de fonte aberta Ripple (XRP), onde poderiam ser aceitos todos os tipos de moedas virtuais. Com essa proposta, foram vendidos 100 bilhões de tokens XRP, e desenvolvida a plataforma Ripple, que atualmente vende os seus ativos digitais (as criptomoedas Ripple), que dão acesso ao seu sistema de pagamentos (LUCAS, 2018).

Em 2014, o Ethereum foi fundado com a proposta de criar uma plataforma de contratos inteligentes descentralizados, contendo uma blockchain (protocolo) especial destinada a verificar ou implementar a negociação ou a execução de um contrato, tornando-o irreversível, permitindo interação entre carteiras de ativos virtuais (ETHERUM, s.d.). O Ether (ETH) é a criptomoeda utilizada na plataforma Etherum para rodar esses contratos inteligentes, sendo outro exemplo de criptomoeda expedida através de ICO.

Esses ativos emitidos através de ICOs possuem “fundadores” que precisam se identificar e demonstrar capacidade de desenvolver o produto criptográfico que lançam na “oferta inicial”. Apesar de focarem na descentralização, as ICOs possuem, em regra, uma “administração” de conhecimento público. Entretanto, há criptmoedas não provenientes de ICOs, a exemplo da Bitcoin (BTC) (NAKAMOTO, 2008), cujos fundadores e/ou administradores são desconhecidos. A BTC, a primeira criptomoeda independente, utiliza a tecnologia peer-to-peer (pessoa para pessoa), cuja “administração” da sua blockchain é feita de modo difuso, por qualquer pessoa que deseje ajudar a processar a rede Bitcoin conectando o seu computador ao sistema, podendo, inclusive, “minerar” microBitcoins para si (BITCOIN.ORG, s.d.). Seu preço é determinado pela oferta e demanda dos seus usuários.

Essa mineração é a forma primária de adquirir BTCs, mas de forma secundária é possível adquirir essa criptomoeda, assim como outras, através das exchanges – plataformas de negociação para compra e venda de criptomoedas – e também através de marketplaces: páginas eletrônicas que colocam usuários em contato para poderem comprar e vendê-las entre si ou trocá-las por outras moedas. A criptomoeda Litecoin (LITECOIN.ORG, s.d.), todavia, detém a mesma tecnologia peer-to-peer da BTC, mas possui um fundador conhecido: Charlie Lee, ex-funcionário do Google.

Quando se discute sobre a regulamentação de criptomoedas, esbarra-se na dificuldade de punir o seu emissor por eventuais atos ilícitos, ou danos decorrentes da atividade, uma vez que a administração, de modo geral, é difusa. Então, as pretensas regulações em torno da BTC, por exemplo, focam a questão da tributação sobre o ativo em si, ou sobre as plataformas de negociação. Por outro lado, quando se discute a regulamentação das ICOs, vislumbra-se a possibilidade de considerar os seus ativos como valores mobiliários e de submeter os seus emitentes, e os próprios ativos, às regras e à fiscalização dos órgãos estatais reguladores de valores mobiliários.

Além disso, as empresas que trabalham com câmbio e/ou negociação de moedas, geralmente consideradas como Money Service Business (MSB), são autorizadas ou licenciadas pelos respetivos Estados e não por organizações internacionais. Por isso, o maior impacto da regulação estatal sobre os ativos virtuais é o fato de que, ao incluí-los no sistema das MSBs, eles passariam a se submeter às normas de tal sistema, tendo que apresentar relatórios de atividades suspeitas, arquivar registros das transações e dos clientes, bem como adotar procedimentos de combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e a outras formas de crime financeiro, em conformidade com cada Estado regulamentador, o que poderia inviabilizar o seu funcionamento global, uma vez que teriam que se adaptar a instrumentos regulatórios diversos.

Mas a difusão e o aumento de valor econômico dessas criptomoedas, bem como os altos recursos mobilizados pelas ICOs, possuem como fundamento e estímulo justamente o anonimato no âmbito das respectivas transações e a escassa regulação a respeito. Em consequência, têm aumentado os alertas e as denúncias por parte de órgãos de investigação estatais e internacionais, apontando esses ativos virtuais e as suas respectivas plataformas, e transações realizadas na Dark Web, como mecanismos para a realização de atos ilícitos diversos (FOLHA DE S. PAULO, 2018).

Os ativos negociados pelas ICOs contabilizam cada vez mais altos valores em relação a moedas fiduciárias. Por exemplo, em fevereiro de 2018, a ICO da J Ventures levantou US$ 21 milhões em 55 horas, vendendo todos os seus 100 milhões de tokens na Tailândia. Em agosto de 2018,1 BTC alcançou o valor de US$ 7.028,6 (INVESTING.COM, 2018).

Trata-se, portanto, de um Poder Econômico que não pode ser subestimado, disponível para ser usado/desenvolvido/manipulado por hackers (particulares ou contratados pelo Estado). E, apesar de todos os protocolos de segurança criptográfica envolvidos, os seus próprios desenvolvedores admitem o risco de perdas financeiras e colapsos em questão de minutos. Por isso, tem sido grande o debate a nível mundial sobre como realizar uma supervisão da economia digital empreendendo um grau de regulamentação apropriado, levando em consideração que em algumas jurisdições haverá maior ou menor intervenção estatal por conta das múltiplas filosofias sobre o papel da regulação financeira pelo Estado, motivo pelo qual alguns dos próprios sistemas financeiros nacionais serem pouco regulados.

De toda forma, o problema da cibersegurança já surgiu como um assunto de interesse global, demandando intervenções transnacionais, ou pelo menos regionalmente cooperativas. As Nações Unidas, no âmbito do Departamento United Office on Drugs and Crime (UNODC), desde janeiro de 2011 mantém o Global Programme on Cybercrime, oferecendo assistência técnica concentrada em capacitação, prevenção e conscientização, cooperação internacional e análise do cibercrime, principalmente nos países em desenvolvimento (UNODC, 2018a). Inclusive, a UNODC mantém um banco de dados mundial de legislações, que lista 1.305 trechos legislativos sobre “cybercrime” (UNODC, 2018b).

Em 2013, o International Centre for Missing & Exploited Children (ICMEC) e a empresa multinacional Thomson Reuters criaram a Digital Economy Task Force (DETF), como uma força-tarefa para avaliar os riscos e as vantagens da economia digital, no intuito de oferecer para as principais partes interessadas, tais como os líderes privados na web, representantes de órgãos públicos, e juristas, informações e recomendações que proporcionem um debate político mundial sobre a economia digital (ICMEC, 2014).

Segundo o Fórum Econômico Mundial, Hong Kong, Estados Unidos da América (EUA) e Reino Unido são considerados os países detentores dos sistemas financeiros mais desenvolvidos do mundo e coincidentemente possuem claros posicionamentos a respeito das ICOs e dos ativos virtuais. Inclusive, os EUA e o Reino Unido são os maiores detentores de exchanges (casas de trocas) e wallets (carteiras) de criptomoedas do mundo, segundo o Global Cryptocurrency Benchmarking Study, realizado pela Universidade de Cambridge em 2017 (HILEMAN; RAUCHS, 2017).

2.1 Hong Kong

Após a postura radical adotada pela China, cujo banco central e regulador financeiro, o Banco Popular da China (PBoC), baniu em 2017 as ICOs, considerando-as uma prática ilegal de obtenção de fundos e uma ameaça à estabilidade do setor financeiro chinês, as ICOs que lá estavam migraram para Hong Kong e Cingapura.

Em Hong Kong, a Securities and Futures Commission (SFC) admite as ICOs, desde que estejam registradas no Collective Investment Scheme (CIS), como todos os emissores de valores mobiliários devem fazê-lo. Não há uma estrutura regulatória específica para ICOs, mas em 5 de setembro de 2017 (SFC, 2017), a SFC divulgou uma declaração estabelecendo o seu posicionamento sobre as ICOs, os tokens e as criptomoedas, esclarecendo as hipóteses em que os ativos digitais se enquadrariam na definição de um título (CIS), no qual se pretende que seja feito investimento, de forma que poderia ser registrado, regulado e supervisionado pela SFC (SFC, 2018).

Hong Kong acolheu várias ICOs nos últimos anos, incluindo a Gatcoin, que levantou US$ 14,5 milhões em janeiro de 2018, a AirSwap que levantou US$ 36 milhões em outubro de 2017 e a Fundação OAX, que levantou US$ 18 milhões em julho de 2017. A SFC, todavia, lança campanhas publicitárias tentando desestimular o investimento em ICOs, dizendo que é como uma “aposta em jogo de azar”. Comparamos as ICOs em Hong Kong, portanto, com a bebida alcoólica no Brasil: apesar das campanhas publicitárias do governo que declaram que é prejudicial à saúde, são licitamente comercializadas, inclusive em supermercados.

2.2 Estados Unidos da América (EUA)

Nos EUA, onde se encontram 34% das wallets e 12% das exchanges de criptomoedas do mundo (HILEMAN; RAUCHS, 2017) há um sistema regulatório e de fiscalização sobre a atividade financeira digital que, por ser abrangente, repercute efeitos nas operações das ICOs e nos ativos virtuais, com foco no combate aos atos ilícitos.

O U. S. Department of Treasury (USDT) preside os aspectos financeiros nos EUA, possuindo vários grupos de trabalho e forças-tarefas que lidam com a economia digital e os crimes financeiros. Conta com o Financial Crimes Enforcement Network (FinCEN), cuja missão é “salvaguardar o sistema financeiro do uso ilícito e combater a lavagem de dinheiro e promover a segurança nacional por meio da coleta, análise e disseminação da inteligência financeira e do uso estratégico das autoridades financeiras”. (FINCEN, 2018, p. 1).

O FinCEN coordena os relatórios das instituições financeiras dos EUA e analisa as informações financeiras dos particulares exigidas pela Lei Bank Secrecy Act (BSA), que buscam estabelecer uma trilha financeira para que os investigadores rastreiem criminosos e os seus ativos, no âmbito do combate à lavagem de dinheiro. Em nível internacional, o USDT atua junto aos G-8 e G-20, bem como a outras organizações internacionais, tais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o International Finance Corporation (IFC) e o Grupo Egmont (ICMEC, 2014).

O USDT também é membro do grupo internacional Financial Action Task Force (FATF), nomeado em francês de Groupe d’Action Financière (GAFI), conhecido pela sigla FATF-GAFI. Esse grupo, criado em 1989, tem como objetivo “estabelecer padrões e promover a implementação efetiva de medidas legais, regulatórias e operacionais para combater a lavagem de dinheiro, o financiamento do terrorismo e outras ameaças relacionadas à integridade do sistema financeiro internacional”. (FATF-GAFI, s.d., p. 1). O FATF-GAFI também monitora o progresso de seus membros na implementação das regulamentações, analisa as técnicas e contramedidas empregadas e propõe a implementação de medidas em nível global.

Nesse sentido, o FATF-GAFI elaborou recomendações que são reconhecidas como padrões internacionais que formam a base para uma resposta coordenada às ameaças contra a integridade do sistema financeiro (ICMEC, 2014). Essas recomendações foram publicadas pela primeira vez em 1990 e, para permanecerem atualizadas e relevantes, contaram com revisões em 1996, 2001, 2003 e 2012. Contudo, não abordam diretamente as transações digitais e os seus componentes, tais como os sistemas de pagamento digital, as ICOs, as criptomoedas e os tokens.

Mas, em junho de 2015, o FATF-GAFI publicou a “Orientação para uma abordagem baseada nos riscos das moedas virtuais”. O grupo reconheceu que as moedas virtuais atraíram investimentos em infraestrutura de pagamentos, apresentando riscos de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo, dentre outros crimes, e que tais riscos deveriam ser identificados e mitigados para proteger a integridade do sistema financeiro global, mesmo porque tais transações interagem com os serviços bancários tradicionais (FATF, 2015).

Os principais objetivos da “Orientação” são: explicar a aplicação da abordagem baseada no risco às medidas aplicadas no contexto das moedas virtuais; identificar as entidades envolvidas com os sistemas que envolvem as moedas virtuais; clarificar a aplicação das recomendações do FATF-GAFI ​​às exchanges de moeda virtual; ajudar às autoridades nacionais a compreender e potencialmente desenvolver respostas reguladoras, incluindo a necessidade de alterar as suas leis nacionais, a fim de abordar os riscos descritos (FATF, 2015).

A “Orientação”, inclusive, reconhece o uso legítimo da moeda virtual, admitindo o potencial de ela melhorar a eficiência de pagamentos e reduzir os custos das transações e das transferências de fundos, a exemplo da Bitcoin. Também reconhece que as moedas virtuais facilitam micropagamentos e remessas internacionais, assim como promovem a inclusão financeira (FATF, 2015).

2.3 Reino Unido

No Reino Unido, onde se encontram 15% das wallets e 18% das exchanges de criptomoedas do mundo (HILEMAN; RAUCHS, 2017), o departamento do tesouro anunciou o lançamento de uma força-tarefa composta pelo Bank of England (BOE) e pela Financial Conduct Authority (FCA) que regulará e apoiará tecnologias de moedas digitais. Inclusive, o governador do BOE, Mark Carney, declarou que as criptomoedas deveriam ser regulamentadas e mantidas com os mesmos padrões do sistema financeiro tradicional.

Em 2014, a European Banking Authority (EBA) emitiu um parecer sobre “moedas virtuais”, após uma análise dos riscos que estes novos produtos poderiam apresentar, caso não fossem regulamentados. Tal parecer destina-se aos legisladores da União Europeia (UE) e às autoridades nacionais de supervisão nos 28 estados-membros e baseia-se em recomendações de longo e de curto prazo com o fim de estabelecer uma abordagem regulamentar abrangente (FATF, 2015).

O Banco Central Europeu (BCE) aguardava que a regulamentação das criptomoedas fosse resolvida no encontro do G20 em Buenos Aires em março de 2018. Mas o debate apenas foi iniciado, de forma que o G20 voltou a reunir-se em abril, dessa vez em Washington DC, para iniciar a construção de um plano regulatório para o mercado de criptomoedas. Enquanto tal regime não é elaborado, o parecer da EBA de 2014 adverte que os riscos mais prementes identificados devem ser mitigados de outras formas e aconselha as autoridades nacionais a tornarem as instituições financeiras conscientes dos riscos, desencorajando-os de comprar, manter ou vender moedas virtuais (FATF, 2015), o que nos parece ser a postura adotada pelo Brasil, conforme descreveremos a seguir.

O Reino Unido, contudo, a partir de 31 de dezembro de 2020, não se submeterá mais à European Banking Authority (EBA), uma vez que sairá da União Europeia, conforme o acordo de transição (Brexit) pactuado para a sua saída definitiva (O POVO ONLINE, 2018).

3 A SISTEMÁTICA BRASILEIRA DE SEGURANÇA DA ATIVIDADE FINANCEIRA NO CIBERESPAÇO

Em 2003, foi criada a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) no Brasil, com o objetivo de coordenar e sistematizar as ações dos órgãos envolvidos, de forma a aperfeiçoar e otimizar os seus resultados, sendo a principal rede de articulação para a formulação de políticas públicas voltadas ao combate aos crimes enumerados em sua nomenclatura e aos correlatos.

Dentre os principais resultados alcançados pela ENCCLA, estão: o Programa Nacional de Capacitação e Treinamento no Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (PNLD); a Rede Nacional de Laboratórios contra Lavagem de Dinheiro (Rede-LAB); o Sistema de Movimentação Bancária (SIMBA); a iniciativa de padronização do layout para quebra de sigilo bancário e a posterior criação do Cadastro Único de Correntistas do Sistema Financeiro Nacional (CCS); e a proposição legislativa que resultou na Lei nº 12.683/2012, que modernizou a Lei nº 9.613/1998 (Lei de Lavagem de Dinheiro) (ENCCLA, s.d.).

Sob a coordenação do Ministério da Justiça, a ENCCLA é formada pela cooperação de oitenta e oito órgãos, dentre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, federais, estaduais e municipais, bem como do Ministério Público (ENCCLA, s.d.). São órgãos integrantes da ENCLLA diretamente relacionados à segurança da atividade financeira nacional: o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), que é vinculado ao Ministério da Fazenda; a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e o Banco Central (BC), que são subordinados ao Conselho Monetário Nacional (CMN) e também vinculados ao Ministério da Fazenda.

O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) foi instituído pela Lei 9.613, de 3 de março de 1998, como órgão colegiado vinculado ao Ministério da Fazenda, sendo também integrante da ENCLLA, “com a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas nesta Lei, sem prejuízo da competência de outros órgãos e entidades”, nos termos do artigo 14 da referida Lei.

O COAF atua como Unidade de Inteligência Financeira, coordenando a participação brasileira em organizações multigovernamentais de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo (PLD/FT). Seu plenário é presidido por um servidor indicado pelo ministro da Fazenda, e seus onze conselheiros são indicados pelos demais ministros de estado, devendo ser oriundos dos órgãos componentes do plenário, quais sejam: Banco Central do Brasil (BC); Comissão de Valores Mobiliários (CVM); Superintendência de Seguros Privados (SUSEP); Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional; Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB); Agência Brasileira de Inteligência (ABIN); Ministério das Relações Exteriores; Ministério da Justiça; Departamento de Polícia Federal (DPF); Ministério da Previdência Social; e Controladoria-Geral da União.

Dentre as vinte normas emitidas até a presente data pelo COAF, que são resoluções, portarias, cartas-circulares e instruções normativas, nenhuma versa sobre as pessoas ou atividades relacionadas às ICOs, wallets e exchanges negociadoras ou intermediadoras de ativos virtuais, nem sobre estes. Mesmo porque, a atuação do COAF gira em torno das “pessoas obrigadas” que são as pessoas físicas e jurídicas listadas no artigo 9º da Lei nº 9.613/1998, que devem adotar procedimentos em conformidade com a Resolução COAF nº 15, de 28 de março de 2007, que, dentre outras determinações, exige a comunicação imediata ao COAF sobre as operações realizadas ou os serviços prestados, ou as propostas para sua realização ou prestação, qualquer que seja o valor envolvendo Osama Bin Laden, membros da organização Al-Qaeda e membros do Talibã (COAF, 2017a).

As “pessoas obrigadas” devem se manter cadastradas em órgão regulador ou fiscalizador, ou no COAF, sob pena, conforme o artigo 12 da Lei nº 9.613/1998, de sofrerem Processo Administrativo Punitivo (PAIP) e penalizadas com: advertência; multa pecuniária variável; inabilitação temporária, pelo prazo de até dez anos, para o exercício de cargo de administrador das pessoas jurídicas obrigadas; cassação ou suspensão da autorização para o exercício da respectiva atividade, operação ou funcionamento da mesma.

No sistema eletrônico SISCOAF é mantida uma lista de “Pessoas Expostas Politicamente (PEP)”, como um dos recursos disponíveis para consulta pelas “pessoas obrigadas”. Conforme o §6° da Resolução COAF nº 29, de 7 de dezembro de 2017, a condição de pessoa exposta perdura até cinco anos contados da data em que findou o mandato ou deixou de ocupar os cargos listados na Resolução (COAF, 2017b).

O COAF compilou em uma obra bibliográfica (COAF, 2014) todas as normas brasileiras, totalizando 45 (quarenta e cinco), correlacionadas aos crimes de Lavagem de Dinheiro e Financiamento do Terrorismo, dentre as quais nenhuma menciona as ICOs, os ativos virtuais, criptomoedas e tokens, nem intermediadores, tais como as exchanges e os administradores de wallets.

3.1 A aplicabilidade do sistema brasileiro de segurança da atividade financeira ao fenômeno da initial coin offering (ICO) e aos seus ativos virtuais

A Constituição Federal de 1988 (CF/88), em seu artigo 164, determina que é competência exclusiva da União a emissão de moeda. E o Sistema Financeiro Nacional brasileiro conta com o Conselho Monetário Nacional (CMN), vinculado ao Ministério da Fazenda, como órgão normativo colegiado responsável pela supervisão das políticas monetárias, de crédito, orçamentária, fiscal e da dívida pública do Brasil.

Especificamente quanto à regulamentação da moeda no país, conforme o artigo 3º da Lei nº 4.595/1964, dentre outras atribuições, o CMN regula o valor interno da moeda, prevenindo ou corrigindo os surtos inflacionários ou deflacionários, as depressões econômicas e outros desequilíbrios, bem como regula o valor externo da moeda e o equilíbrio no balanço de pagamento do País, para a melhor utilização dos recursos em moeda estrangeira. Conforme o artigo 4º da referida Lei, o CMN regula a constituição, o funcionamento e a fiscalização das atividades de instituições monetárias, bancárias e creditícias, bem como a aplicação das penalidades previstas. É, portanto, o CMN o órgão supervisor das atividades do Banco Central do Brasil (BC) e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Seguindo as orientações do CMN, o Banco Central do Brasil (BC) emite papel-moeda e moeda metálica, autoriza o funcionamento e exerce a fiscalização das instituições financeiras, vigia a interferência de outras empresas nos mercados financeiros e de capitais e controla o fluxo de capitais estrangeiros no país. Já a CVM, criada pela Lei 6.385/1976, tem o objetivo de fiscalizar, normatizar, disciplinar e desenvolver o mercado de valores mobiliários no Brasil. Dentre outras atividades, registra as distribuições de valores mobiliários, credencia auditores independentes e administradores de carteiras desses valores, organiza o funcionamento e as operações das bolsas de valores, negocia e intermedia o mercado de valores mobiliários, administrando e custodiando tais valores.

Quanto ao fenômeno das ICOs, os tokens e as criptomoedas, não há nenhuma Resolução do CMN a respeito. O órgão tem se limitado a emitir posicionamentos através de curtos comunicados emitidos pelas autarquias sob a sua supervisão, o Banco Central (BC) e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

O Banco Central do Brasil (BC), no âmbito de sua competência fiscalizadora, detém poder legal para instaurar processo administrativo sancionador, podendo aplicar penalidades, medidas coercitivas e meios alternativos de solução de controvérsias apenas contra as instituições financeiras e contra as demais instituições por ele supervisionadas, nos termos da Lei nº 13.506, de 13 de novembro de 2017. As ICOs não se encontram sob a supervisão do BC, pois não se enquadram nas definições da referida Lei.

No âmbito do compromisso assumido pelo Brasil perante a comunidade internacional, via GAFI/FATF, o BC encontra-se na estrutura estatal de prevenção da lavagem de dinheiro e de combate ao financiamento do terrorismo, como uma das autoridades administrativas encarregadas de promover a aplicação da Lei 9.613/1998. Nesse intuito, edita normas (Leis, Circulares e Cartas-Circulares) para as instituições financeiras e demais instituições sob sua supervisão a respeito de cadastros de clientes, controles internos, movimentações de recursos, análise de atividades econômicas e capacidades financeiras dos usuários do sistema financeiro nacional etc. Nenhuma dessas normas dizem respeito às atividades das ICOs, ou mencionam as criptomoedas.

Em 19 de fevereiro de 2014, o BC emitiu o Comunicado nº 25.306, esclarecendo “sobre os riscos decorrentes da aquisição das chamadas moedas virtuais ou moedas criptografadas e da realização de transações com elas”. Através desse comunicado, o BC conceituou as “moedas eletrônicas” como “recursos armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitem ao usuário final efetuar transação de pagamento denominada em moeda nacional” (BC, 2014, p. 1), sendo, portanto reguladas pela Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013. Por outro lado, as “moedas virtuais” ou “moedas criptografadas” seriam “denominadas em unidade de conta distinta das moedas emitidas por governos soberanos, e não se caracterizam dispositivo ou sistema eletrônico para armazenamento em reais”. (BC, 2014, p. 1).

O BC alertou que as moedas criptografadas, não são emitidas, nem reguladas, nem garantidas por uma autoridade monetária, algumas não tendo sequer uma entidade responsável por sua emissão, nem possuem garantia de conversão para a moeda oficial e também não são garantidas por ativos reais de quaisquer espécies.

Porém, ao longo do comunicado, o BC insinua o caráter de ativo virtual às criptomoedas, cujo valor dependeria da credibilidade e da confiança que os agentes de mercado lhes conferem, restando o risco de sua aceitação nas mãos de seus usuários. Ou seja, não as considerou como objeto ilícito, mas alertou que uma vez que tais ativos pudessem ser utilizados em atividades ilícitas, o usuário ainda que realizando transações de boa-fé, poderia se ver envolvido em investigações conduzidas pelas autoridades públicas. E, por fim, declarou que o uso das criptomoedas ainda não teria se demonstrado capaz de oferecer riscos ao Sistema Financeiro Nacional (SFN).

Em 16 de novembro de 2017, o BC reafirmou o seu posicionamento a respeito das criptomoedas, através do Comunicado nº 31.379, alertando especificamente sobre os riscos decorrentes de operações de guarda e negociação das denominadas moedas virtuais. Como novidade, ressaltou que as operações com as criptomoedas e instrumentos conexos (os tokens, por exemplo), “que impliquem transferências internacionais referenciadas em moedas estrangeiras não afastam a obrigatoriedade de se observar as normas cambiais, em especial a realização de transações exclusivamente por meio de instituições autorizadas pelo Banco Central do Brasil a operar no mercado de câmbio”. (BC, 2017, p. 1).

O BC também declarou explicitamente que “[n]ão há, no arcabouço legal e regulatório relacionado com o Sistema Financeiro Nacional, dispositivo específico sobre moedas virtuais. O Banco Central do Brasil, particularmente, não regula nem supervisiona operações com moedas virtuais” (BC, 2017, p. 1) para as quais os organismos internacionais ainda não tenham identificado a necessidade de regulamentar e reiterou que no Brasil, por enquanto, não se observam riscos relevantes para o SFN.

Sobre este último Comunicado, interpretamos uma postura omissiva por parte do BC. Primeiramente, por afirmar que os organismos internacionais não teriam identificado a necessidade de regulamentar tais ativos, o que pelo exposto nas seções anteriores, verificamos ser uma afirmação, no mínimo, controversa. Em segundo, enquanto que no Comunicado anterior o BC declarou não haver “riscos” para o SFN, neste último declarou não haver “riscos relevantes”, o que demonstra a existência de riscos, porém não divulgados, quiçá objeto de ação normativa pelo referido órgão e outros competentes.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), por sua vez, em 11 de outubro de 2017, emitiu uma “nota” pública, definindo as ICOs como “captações públicas de recursos, tendo como contrapartida a emissão de ativos virtuais, também conhecidos como tokens ou coins, junto ao público investidor”. (CVM, 2017, p. 1).

Conforme a referida nota, esses ativos virtuais, dependendo do contexto econômico de sua emissão e dos direitos conferidos aos investidores, poderiam representar valores mobiliários, nos termos do artigo 2º, da Lei 6.385/1976, de forma que estariam sujeitos à legislação e à regulamentação relativas a tais valores. Além disso, esclareceu que as ofertas de ativos virtuais que se enquadrem na definição de valor mobiliário e estejam em desconformidade com a regulamentação, serão tidas como irregulares e, portanto, sujeitas às sanções e penalidades aplicáveis. Sobre as outras atividades de ICOs que não seja a oferta de valores mobiliários, a CVM esclareceu que não estão no âmbito de sua competência (CVM, 2017).

Por fim, a CVM alertou que os valores mobiliários ofertados por meio de ICOs não poderiam ser legalmente negociados nas virtual currency exchanges, pois estas não estavam autorizadas pela CVM a disponibilizar ambientes de negociação de valores mobiliários no território brasileiro. Além disso, divulgou que, até outubro de 2017, nenhuma ICO havia sido registrada nem dispensada de registro perante a CVM.

Em 27 de dezembro do mesmo ano, o Superintendente de Registro de Valores Mobiliários da CVM (SRE) enviou um Memorando ao Superintendente Geral (SGE) em exercício, com o fim de se posicionar a respeito do processo instaurado com o fim de verificar se a ICO da criptomoeda Niobium Coin (“Niobium”), relativa às atividades da denominada Bolsa de Moedas Digitais Empresariais de São Paulo – BOMESP (“Bomesp”), representava uma oferta pública de valores mobiliários e, assim, estaria sob a competência da CVM.

Segundo o parecer do Superintendente da SRE, o Niobium não poderia ser caracterizado como valor mobiliário, e, portanto, restaria afastada a competência da CVM em relação a sua oferta (RAWET, 2017). Esclareceu que o Parecer da Procuradoria Federal Especializada da CVM (PFE) corroborava com tal entendimento, uma vez que o Niobium seria um token utilitário e, portanto, não possuiria a natureza jurídica de valor mobiliário, na feição de Contrato de Investimento Coletivo. O processo foi retirado de pauta, para a realização de diligências adicionais.

Em 17 de janeiro de 2018, um parecer emitido por analistas da Gerência de Registros (GER) da CVM foi anexado ao referido processo, defendendo a possibilidade de Niobium ser considerada como valor mobiliário, pela viabilidade de lucro advindo da expectativa de sua valorização, o que seria caracterizada como o “direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros” (RAWET, 2017), conforme previsto no inciso IX do artigo 2º da Lei nº 6385/76. O referido processo, contudo, ainda não foi concluído.

Em 12 de janeiro de 2018, o Superintendente de Relações com Investidores Institucionais (SIN) da CVM já havia divulgado o Ofício Circular aos Diretores Responsáveis pela Administração e Gestão de Fundos de Investimento, esclarecendo que tendo em vista a indefinição a respeito das criptomoedas, estas “não podem ser qualificadas como ativos financeiros, para os efeitos do disposto no artigo 2º, V, da Instrução CVM nº 555/2014, e por essa razão, sua aquisição direta pelos fundos de investimento ali regulados não é permitida”. (BERNARDO, 2018, p. 1).

Assim, perante a CVM, permanece o entendimento de que os ativos virtuais emitidos pelas ICOs podem vir a ser considerados valores mobiliários, nos termos do artigo 2º, da Lei 6.385/1976, contudo, permanecem controvérsias técnicas a respeito das definições sobre tais ativos, especialmente quanto à diferença em torno do valor dos tokens em relação às criptomoedas, bem como entre estas quando emitidas originariamente por ICOs e aquelas emitidas difusamente por mineração.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após traçar um panorama sobre o sistema brasileiro de segurança da atividade financeira, especialmente quanto à cibereconomia, tendo por delimitação temática a regulação do fenômeno das ICOs e seus ativos virtuais, verificou-se a inaplicabilidade da atual sistemática sobre a matéria. Ou em decorrência da falta de especialização de seus agentes, ou por omissão, não se enfrenta no Brasil a problemática diretamente, nem mesmo para conceituar inequivocamente os elementos envolvidos em torno da tecnologia das blockchains, desde os produtos decorrentes de criptografia até os seus agentes financiadores, usuários e beneficiários.

Termos tais como exchanges, wallets, criptomoedas, tokens e ICOs não são mencionados no aparato legislativo brasileiro sobre segurança da atividade financeira no ciberespaço. E isso não ocorre pelo desconhecimento sobre os riscos, pois a comunidade internacional os tem reconhecido e divulgado amplamente, sendo os agentes estatais nacionais signatários e agentes cooperativos nas deliberações multigovernamentais a respeito da matéria.

No Brasil, há inclusive uma estrutura organizacional articulada para investigar e reprimir a criminalidade no ciberespaço, que segue recomendações do grupo FATF-GAFI, por exemplo, sobre o levantamento de “pessoas politicamente expostas” e distribuição de responsabilidades a “pessoas obrigadas”, conforme as respectivas normas correlacionadas, articuladas pelo COAF – a unidade de inteligência financeira nacional. Embora esteja claro o esforço brasileiro em criar um sistema integrado para a segurança da atividade financeira no Brasil, composto por vários órgãos fundamentais para a investigação, fiscalização e punição de crimes no âmbito do sistema financeiro, faltam normas articuladoras do sistema que enfrentem especificamente o fenômeno das ICOs, os seus ativos virtuais e as atividades financeiras correlacionadas.

A cautela (ou será omissão?), por parte da CVM e do BC, que reiteram em suas notas e comunicados não haver riscos para o Sistema Financeiro Nacional decorrentes das atividades desenvolvidas livremente no país em torno das blockchains, é contraditória aos interesses de defesa e segurança no ciberespaço e à própria dinâmica do sistema financeiro digital.

São muitos os desafios para desenvolver o aparato normativo tecnicamente hábil a empreender uma segurança da atividade financeira no ciberespaço, sobretudo quanto à capacitação dos agentes estatais especializados nos infratores que se pretendem identificar e reprimir. Mas é necessário avançar além de notas e comunicados, adotando uma perspectiva ampla que vislumbre os vários riscos cibernéticos. Fora enfrentar o problema do anonimato na Deep Web, é necessário posicionar-se a respeito das criptomoedas de modo geral e suas exchanges, uma vez que movimentam ativos que impactam o sistema financeiro.

Nesse sentido, o investimento em capacitação e aperfeiçoamento do pessoal especializado nos novos protocolos e aparatos criptográficos, mineradores e mobilizadores de altos recursos no espaço cibernético, bem como o conhecimento de normas e a participação nas discussões internacionais sobre a matéria, além da divulgação e melhoria do aparato regulatório nacional, são imprescindíveis se quisermos nos colocar em uma posição de antecipação aos riscos. O investimento em treinamento e integração entre a comunidade científica, em prol do desenvolvimento de pesquisas pautadas em abordagens inter- e transdisciplinares sobre a segurança das atividades criptografada e digital financeiras são pontos de partida essenciais.

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