FESTIVAL CONCRETO: grafite e mediação cultural em Fortaleza
FESTIVAL CONCRETO: graphite and cultural mediation in Fortaleza
Amanda Alcântara da Silva¹
Jefferson Veras Nunes²
Antônio Wagner Chacon Silv
¹ Bacharela em Biblioteconomia pela
Universidade Federal do Ceará (UFC).
E-mail: amandaalcantaraufc@gmail.com
² Doutor em Ciência da Informação pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho (UNESP). Professor do Departamento de
Ciências da Informação da Universidade Federal
do Ceará (UFC).
E-mail: jefferson.veras@yahoo.com.br
³ Doutor em Educação pela Universidade Federal
do Ceará (UFC). Professor do Departamento de
Ciências da Informação da Universidade Federal
do Ceará (UFC).
E-mail: ciberwagner@yahoo.com.br
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não há conflito de interesses.
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Recebido em: 19/11/2018.
Aceito em: 07/12/2018.
Revisado em: 11/12/2018.
Como citar este artigo:
SILVA, Amanda Alcântara da; NUNES, Jefferson
Veras; SILVA, Antônio Wagner Chacon. Festival
Concreto: grafite e mediação cultural em
Fortaleza. Informação em Pauta, Fortaleza, v. 3,
n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2018. DOI:
https://doi.org/10.32810/2525-
3468.ip.v3i2.2018.39647.99-120.
RESUMO
Trata sobre os grafites do Festival Concreto
como agentes de ressignificação urbana e
instrumento de mediação cultural. Apresenta um
panorama histórico, bem como as características
e suportes do grafite. Discute a forma como os
grafites do Festival Concreto têm sido utilizados
como embelezadores do espaço urbano e
instrumento de mediação cultural e
informacional. Para isto foi realizada uma
pesquisa exploratória de abordagem qualitativa,
utilizando-se como método a iconologia com o
objetivo de estudar o grafite como informação
estética e canal de comunicação. Foram
analisados grafites produzidos durante edições
do Festival Concreto. Concluiu-se que os grafites
idealizados pelo Festival não perderam o seu
caráter artístico, que traz beleza e cor para a
cidade, no entanto, mais do que isso, são
utilizados como canal de comunicação e
instrumento de mediação cultural entre homem
e cidade.
Palavras-chave: Mediação da informação.
Mediação cultural. Grafite. Arte urbana.
ABSTRACT
It treats on the graphite of Festival Concreto as
agents of urban resignification and instrument
of cultural mediation. It presents a historical
overview as well as the characteristics and
supports of graphite. It discusses how the
graphite of the Festival Concreto has been used
as embellishers of the urban space and
instrument of cultural and informational
mediation. For this, an exploratory research of
Inf. Pauta Fortaleza, CE v. 3 n. 2 jul./dez. 2018 ISSN 2525-3468
DOI: https://doi.org/10.32810/2525-3468.ip.v3i2.2018.39647.99-120
ARTIGO
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qualitative approach was carried out, using as
iconology method with the objective of studying
graphite as aesthetic information and
communication channel. The graphites produced
during editions of Festival Concreto were
analyzed. It was concluded that the graphite
idealized by the Festival did not lose their
artistic character, which brings beauty and color
to the city, nevertheless, more than that, they are
used as a channel of communication and
instrument of cultural mediation between man
and city.
Keywords: Mediation of information. Cultural
mediation. Graphite. Urban art.
1 INTRODUÇÃO
Nascido sob a influência de uma cultura caracterizada como marginal, o grafite
sofreu diversas transformações com o passar dos anos, quando deixou de representar o
dia a dia das tribos nas paredes das cavernas, para manifestar amor, ódio e opiniões
políticas nos trens e muros da cidade, chegando às galerias de arte e sendo produzidos,
inclusive, por artistas renomados.
Atualmente, o grafite possui o status de arte democrática, pois possibilita tanto
um embelezamento da urbe, como, também, é passível de suscitar, através das imagens e
textos que produz, reflexões sobre os modos de vida urbanos.
Dessa maneira, seja nas cavernas, nos trens, nos muros ou até mesmo nas galerias
de arte, o grafite se apresenta como um produto social, que é resultado, na maioria das
vezes, das vivências do próprio artista que o concebe a partir de sua relação com a
sociedade de determinada época.
Nesse sentido, apresentar o grafite enquanto um produto social que se traduz
também em canal de comunicação e meio de expressão é defender a necessidade
constante de criação de novos campos de estudo na Ciência da Informação (CI), uma vez
que, segundo Albuquerque (2004), o objeto do estudo da área costuma recair “[...] sobre
pontos muito delimitados pelos rigores acadêmicos que oficializam as temáticas
tradicionais em detrimento das alternativas”. Quer dizer, é romper com vieses não
consolidados, mas hegemônicos, que ambicionam reforçar as mesmas perspectivas de se
estudar a informação no âmbito da CI.
A escolha do tema deste artigo foi incitada pela admiração da obra de um
importante ativista do grafite contemporâneo o britânico Banksy. Seja através de sua
arte ou por meio de seus livros e documentários, percebe-se a aversão de Banksy aos
conceitos de permanência, autoridade, poder e indústria cultural, dentre outros,
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contestando, inclusive, a própria mercantilização da arte. Portanto, a partir do apreço
pelo trabalho de Banksy, especialmente pela forma com a qual o artista alia humor e
crítica, que as paisagens da cidade passaram a chamar cada vez mais a atenção dos
autores deste artigo.
O Festival Concreto, evento que ocorre em Fortaleza desde 2013, foi escolhido
como objeto de análise pela sua relevância no contexto da arte urbana, justamente por
tratar-se do primeiro evento internacional desse tipo de manifestação artística realizado
na região Nordeste, que reúne artistas de diferentes países. Recorrendo a instalações e
pinturas, o festival atua promovendo intervenções em vários bairros, marcando
presença em muros e prédios da orla marítima, do centro e das periferias, num convite à
ocupação e ressignificação da cidade.
Assim, a presente pesquisa tem como princípio norteador a seguinte questão: de
que maneira os grafites produzidos durante o Festival Concreto podem ser tomados
enquanto artefatos de mediação cultural acerca do cotidiano da cidade de Fortaleza?
Com base nesse questionamento, estabelece-se como objetivo analisar o potencial do
grafite enquanto elemento cultural de mediação entre homem e cidade, tomando como
objeto o Festival Concreto e como locus a cidade de Fortaleza.
2 MEDIAÇÃO E CULTURA
O conceito de mediação tem sido bastante discutido no campo da Ciência da
Informação nos últimos anos, especialmente por conta de seu potencial heurístico, como
demonstram Nunes e Cavalcante (2017, online), ao afirmarem que “a mediação se situa
naqueles quadros da Ciência da Informação (CI) que defendem, em primeiro lugar, uma
natureza interdisciplinar para a área [...]”, possibilitando, assim, “[...] uma abordagem
sociocultural de seu objeto, considerando os diversos contextos nos quais os indivíduos
estão inseridos como algo imprescindível ao estudo da informação”.
Nunes e Cavalcante (2017, online) defendem a ideia de que é possível apontar a
existência de uma epistéme mediacional” na CI, em virtude da “[...] composição de um
paradigma cada vez mais voltado aos estudos da mediação, especialmente no modo
como a área tem se configurado no Brasil”. Esse paradigma também reforça a discussão
em prol de uma estruturação da área fortemente sustentada no âmbito das Ciências
Sociais e Humanas.
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Contudo, antes da emergência de uma epistéme mediacional”, Almeida Junior
(2009, p. 92-93), em suas pesquisas, criticava o fato do conceito de mediação ser, por
vezes, considerado como desnecessário nas discussões da CI, justamente porque era
comum partir-se da ideia de que este seria intuitivamente assimilado, o que dispensaria
aprofundamentos teóricos no debate em torno dele. De acordo com o autor, “o senso
comum dos profissionais da área identifica a mediação da informação com a imagem de
uma ponte. Esta, como aquela, permite a relação entre dois pontos que, de alguma
forma, estão impedidos de interagir por obstáculos e empecilhos”. Nesse sentido, o
mesmo autor considera que a concepção de ponte não é apropriada para o conceito de
mediação, pois apresenta a idealização de algo estático onde não interferências
externas.
Para o autor, o conceito de mediação da informação se apresenta como:
Toda ão de interferência realizada pelo profissional da informação –, direta
ou indireta; consciente ou inconsciente; singular ou plural; individual ou
coletiva; que propicia a apropriação de informação que satisfaça, plena ou
parcialmente, uma necessidade informacional [...] tal mediação passa a se
constituir não como coadjuvante no âmbito da CI, mas interferindo em seu
próprio objeto (ALMEIDA JUNIOR, 2009, p. 92).
É importante ressaltar que a mediação vai além do processo de comunicação
entre emissor e receptor, pois se distancia de uma relação linear entre oferta e recepção,
uma vez que essa ideia negligencia a complexidade no processo de apropriação da
informação e das transformações que ela pode acarretar à vida das pessoas (FEITOSA,
2016). De acordo com Feitosa (2016), a expressão mediação da informação alude
principalmente à necessidade de se esquadrinhar epistemologicamente o conceito, de
modo a evitar render-se ao perigo que é a sua compreensão enquanto algo estritamente
relacionado à informação, […] como se mediação não fosse ela mesma um fenômeno
gregário da cultura” (FEITOSA, 2016, p. 103).
Isso sugere que a informação é reflexo da cultura, a qual pode atuar diretamente
na sua formação, produção e disseminação, ou seja, a informação está relacionada à
cultura, depende dela, sendo ambas capazes de expressar, em alguma quantidade e
qualidade, a dinâmica da sociedade. Muito se discute sobre cultura, apesar de não haver
uma definição consensual para o termo. Na perspectiva de Laraia (2001), cultura pode
ser entendida como a necessidade que o homem tem de atribuir sentido ao
desconhecido. Concordando com essa ideia, segundo afirma Feitosa (2016, p. 5), “[...]
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cultura é o processo através do qual o homem cria o algo onde antes imperava o nada.
Esse algo é toda complexidade de criações simbólicas, de sentidos e significados que
damos às coisas e ao mundo”. Percebe-se, assim, que, cultura está atrelada à construção
de sentidos pelo homem, constituindo-se parte imanente do próprio processo de
mediação.
Em complemento à definição de Laraia, cabe evocar Santos (1996), que propõe
duas concepções básicas de cultura. São elas:
A primeira dessas concepções preocupa-se com todos os aspectos de uma
realidade social. Assim, cultura diz respeito a tudo aquilo que caracteriza a
existência social de um povo ou nação [...] na segunda quando falamos em
cultura estamos nos referindo mais especificamente ao conhecimento, às ideias
e crenças assim como a maneira que eles existem na vida social (SANTOS, 1996,
p. 24-25).
As duas concepções se referem à realidade social de um povo e é o entendimento
dela que alimenta a visão por meio da qual a cultura é não percebida, mas, ainda,
sentida, o que possibilita a sua propagação na sociedade através das interações sociais.
De modo geral, tal ideia, em alguma quantidade ou qualidade, alude ao próprio processo
de mediação, que, conforme Feitosa (2016, p. 5), é, “[...] por excelência, cultural”.
Na discussão sobre mediação pode-se encontrar também a expressão mediação
cultural, frequentemente adotada para aludir a:
[…] Um campo amplo, no qual se inserem instituições como bibliotecas, museus
e teatros, além de uma rica variedade de espaços que venham a fomentar ações
no âmbito da cultura, visando proporcionar uma aproximação dos públicos com
obras de arte, livros, peças teatrais, exposições, espetáculos e demais atividades
reconhecidas como sendo de caráter cultural (NUNES; CAVALCANTE, online).
Ao ser entendida dessa forma, a mediação remete à composição de um locus no
qual o contágio entre “[...] as esferas da produção e da recepção dos signos”
(PERROTI, 2016, p. 09). Nesse sentido, Davallon (2007, p. 4) define mediação cultural
como algo que visa levar um público a um produto artístico-cultural e a sua atuação
funda-se em engendrar um campo de interação entre os universos do público e o do
artefato cultural, com o intuito de viabilizar uma apropriação deste por aquele. Seu
objetivo principal é oferecer entendimento sobre algo, facilitando a interação e a
apreensão do objeto por parte do público que, por vezes, recepciona e interage com as
obras a que tem acesso.
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Nessa perspectiva, pode-se compreender o grafite como manifestação cultural, a
qual expressa a arte de grupos tidos como marginalizados e que recorrem à cidade como
canal de comunicação e às paredes, muros, trens e placas como suporte para externar
sentimentos, opiniões e vivências. Dessa maneira, o grafite explora o espaço público
para promover complexas formas de mediação cultural e artística.
No graffiti ocorre, de forma peculiar, o estreitamento das relações entre
atividade estética, cidade, política e espaço sob a perspectiva de sujeitos que
vivem no próprio contexto da intervenção ou que nele se inserem para
inscrever-se no diálogo aberto com a cidade. Através das imagens e dos textos,
o graffiti propõe outra relação com o entorno urbano [...] (FURTADO; ZANELLA,
2009, p.1299).
Portanto, tendo a cidade como seu principal suporte, o grafite vem sendo
utilizado para construir relações entre o indivíduo e a urbe, sendo ele também fruto das
vivências do sujeito que o produz. O grafite, segundo Ramos (2007, p. 1267), “é um canal
de comunicação, sem conexão com fibra ótica ou cabo elétrico, é conectado diretamente
com a cidade, com o público, com o aqui e o agora”. Essa manifestação tem o poder de
instigar o questionamento das pessoas acerca de seus valores, sobre a ocupação da
cidade e seus ideais.
3 PANORAMA HISTÓRICO DO GRAFITE
O primeiro passo para entrar no universo artístico e dinâmico do grafite é
entender quando e onde ele surgiu. De acordo com Gitahy (1999), a palavra graffiti m
do italiano graffito, que significa inscrição ou desenhos de épocas passadas riscados em
rochas, paredes ou outros espaços. Graffiti é o plural de graffito. No singular, é usada
para significar a técnica (pedaço de pintura no muro em claro e escuro); e, no plural,
refere-se aos desenhos. No Brasil, o termo ganhou nacionalidade própria, sendo
chamado assim por grafite.
O hábito de fazer desenhos, escrever nomes e frases, manifestar-se
artisticamente em diversos lugares acompanha a história da humanidade. Os vestígios
mais antigos da passagem do homem pelo planeta estão gravados nas paredes das
cavernas e são os primeiros exemplos de grafite que encontramos na história da arte.
Nessa época, os materiais usados eram sucos de plantas, ossos fossilizados ou
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calcinados, misturados com água e gordura de animais. Nos dias atuais, os grafiteiros se
utilizam de spray, pincéis, tintas e giz, dentre outros materiais. Quanto aos desenhos,
não são expostos cervos e bisões, mas manifestam ideias que configuram a sociedade
atual, novas formatações estéticas, sugerindo novos objetivos políticos e aspirações
culturais, como ressaltam Furtado e Zanella (2009).
Conforme Gitahy (1999), o muralismo contemporâneo ficou marcado pelos
pintores mexicanos Diego Rivera, José Clemente Orozco e David Alfaro Siqueiros, que
foram convidados pelo intelectual revolucionário José Vasconcelos a utilizar as técnicas
da pintura mural. Em 1905, o pintor Bernardo Carnada (de pseudônimo Dr. AIL)
publicou um manifesto onde defendia a necessidade de uma arte pública. Após 15 anos,
Siqueiros publicou em Barcelona, um apelo aos artistas da América, proclamando a
necessidade de se promover uma arte capaz de falar ao povo.
O costume se popularizou no mundo inteiro e, com o tempo, a técnica que
recebeu o nome de pichação, graças ao picho material que era utilizado para escrita
nas paredes desde a Antiguidade –, passou a ser usada como forma de protesto. Depois
da Segunda Guerra Mundial e do grande avanço tecnológico que ela trouxe, iniciou-se a
fabricação de materiais em aerossol. Gitahy (1999) salienta que o uso do spray começou
a substituir as técnicas anteriores, proporcionando maior liberdade de movimentos e
maior rapidez, essenciais para uma prática ilegal à época.
Por ser considerada ilegal e subversiva, a atividade da pichação era executada
sempre à noite. Mesmo assim, essa prática foi se popularizando e perdendo seu
exclusivo caráter político. As pichações não pediam somente a cabeça desse
ou daquele governante, mas declaravam amor, faziam piadas ou simplesmente
exibiam o nome de seus autores (GITAHY, 1999, p. 21).
Tanto o grafite como a pichação usam o mesmo suporte a cidade e o mesmo
material (tintas). Assim como o grafite, a pichação interfere no espaço, subverte
valores, e é espontânea, gratuita e efêmera. Uma das diferenças entre o grafite e
a pichação é que o primeiro advém das artes plásticas e o segundo da escrita, ou
seja, o grafite privilegia a imagem: a pichação, a palavra e/ou letra.
(GITAHY,1999, p.19).
Apesar de tamanhas semelhanças, é bastante comum enxergar uma associação
entre ambos, mas de uma forma antagônica, as pessoas colocam o grafite e a pichação
como rivais, sendo o grafite tido como uma manifestação artística e a pichação
caracterizada como crime. Conforme Ramos (2007, p. 1260), “ainda que essas
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intervenções sejam transgressoras e semelhantes, os grafites e pichações apresentam
técnicas e políticas diferenciadas de acordo com o propósito de cada agente ou grupo em
seu tempo e espaço definidos”.
Ainda segundo Ramos (2007), a cidade de Nova Iorque foi tomada pelos
desenhos, frases e caligrafias elaboradas que passaram a circular nos trens
subterrâneos. Os grafites eram concebidos por pessoas de diferentes classes sociais e
das mais variadas nacionalidades, que iam de chineses, ucranianos, filipinos,
dominicanos, jamaicanos e nigerianos, sendo, a maioria, do sexo masculino e
pertencente à categoria etária da juventude.
O movimento que ganhou espaço nos trens da cidade surpreendeu a população; e
não satisfeitos em escrever seus nomes e desenhar imagens, os writers passaram a
escrever mensagens com suas assinaturas e percebendo a possibilidade de comunicação
através do grafite, começaram a ocupar espaços na cidade (RAMOS, 2007).
Pseudônimos, siglas, números invadiram os corredores de tráfico intenso.
O Muro de Berlim também conhecido como “Muro da vergonha” é, de acordo
com Ramos (2007), um dos espaços mais polêmicos quando se trata sobre o grafite na
contemporaneidade. Esse muro foi construído em 1961 no intuito de proibir as fugas
das pessoas que tentavam cruzar do Leste para o Oeste, em decorrência da divisão do
território alemão, após a Segunda Guerra Mundial, entre os Estados Unidos, o Reino
Unido, a França e a União Soviética. O muro simbolizava a bipolarização do mundo e
demarcava os limites territoriais dos regimes socialista e capitalista. Do lado Leste, o
muro mostrava cor nos incidentes de sangue; por sua vez, do lado Oeste, foi somente
depois de 15 anos que o muro começou a ganhar cores nas mais diversas manifestações
e apelos por sua derrubada.
O muro foi fisicamente derrubado em 1989, no entanto, a queda o significou o
seu fim. Muitas imagens dos grafites foram registradas em fotos e permanecem como
testemunha da história, compondo parte do patrimônio artístico de museus de arte
espalhados pelo mundo. Pode-se dizer que a partir daí se deu o boom do grafite na forma
como ele é atualmente conhecido nas metrópoles.
Em Berlim, no entanto, ainda conserva-se parte do muro, num trecho que mede
pouco mais de 1 km, sendo conhecido como East Side Gallery. Além de ser uma das
maiores galerias de arte ao ar livre, tal trecho abriga grafites de artistas de diferentes
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lugares do mundo, tendo como principal motivo, em várias das imagens, as mudanças
ocasionadas com o fim da divisão.
No Brasil, aponta-se que a popularização do grafite se deu por causa da
insatisfação de jovens com as políticas impostas à cidade e à arte nos anos 1980. Além
disso, com o intuito de lutar pela redemocratização do País, em tempos de Diretas ,
Ramos (2007) afirma que significativas intervenções com grafites começaram a ser
realizadas no campus universitário da USP, nas margens do rio Tietê e no Túnel
Rebouças.
É possível assinalar ainda que a ascensão do grafite no Brasil esteve diretamente
ligada ao movimento hip-hop, e segundo Rodrigues e Bessa (2015), no caso de Fortaleza
também não foi diferente. Embora, atualmente, o grafite não esteja mais restrito à
influência do movimento hip-hop, segundo as autoras, com o passar dos anos, foi
ganhando novos sentidos, temáticas e práticas. Os grafites pioneiros na cidade eram,
inicialmente, facilmente confundidos com pichações, pois durante muito tempo o termo
grafite era utilizado para denominar todos os rabiscos nos muros da cidade.
Os primeiros grupos a se lançarem no movimento, segundo Pereira (2012), foram
os coletivos ‘Grafiticidade’ e ‘Acidum’. A trajetória do Grafiticidade começou em 2002, de
acordo com Rodrigues e Bessa (2015), a partir de um projeto pautado em arte e
educação, promovido pela Prefeitura de Fortaleza, onde eram oferecidas oficinas sobre a
arte do grafite, especialmente nos bairros Centro e Benfica. o Acidum foi formado,
segundo Pereira (2012), por ex-alunos dos cursos de Artes do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia e por ex-bolsistas do Centro Dragão do Mar de Arte e
Cultura, em Fortaleza.
No que parece ser o lado oposto das técnicas empregadas pelos artistas plásticos,
estavam os grupos como o ‘Viciados em Tinta Spray’ (VTS) e o ‘Revolução Através dos
Muros’ (RAM) que acreditavam que o grafite era, antes de tudo, um instrumento de
protesto, que quanto mais próximo das artes plásticas, mais longe da cultura da
periferia. (RODRIGUES; BESSA, 2015).
Apesar do campo de tensões estabelecido pela rivalidade dos coletivos, o grafite
continuou em expansão até se tornar palco de um festival de arte urbana que serviu não
apenas como celebração de talentos locais, mas possibilitou o intercâmbio de saberes de
grandes artistas do grafite mundial.
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3.1 Sobre o festival
Em 2013 foi promovido em Fortaleza o primeiro grande encontro para se discutir
sobre arte urbana: o Festival Concreto. Idealizado e organizado pelo artista Narcélio
Grud, o evento proporcionou um intercâmbio cultural de arte urbana entre artistas e a
população da cidade. Dentre as atividades desenvolvidas pelo Festival, vale citar a
realização de várias [...] exposições, intervenções, workshops, oficinas e palestras,
técnicas e linguagens, como o muralismo, o grafite, a música e a dança. Fazendo uso da
cidade como principal suporte” (FESTIVAL CONCRETO)
i
.
Depois dessa primeira edição, aconteceram mais quatro edições nos anos de
2015, 2016, 2017 e 2018. A arte urbana, de maneira geral, possui uma grande
importância na construção da memória coletiva, seja através de mensagens de cunho
político, com um tom de resistência, ou com murais e pinturas que visam o
desenvolvimento artístico e estético.
Assim, pode-se dizer que a história da arte urbana em Fortaleza confunde-se com
a própria história da cidade, desde os murais produzidos por Chico da Silva, até as
esculturas modeladas por Sérvulo Esmeraldo.
Dos murais feitos a carvão pelo artista Chico da Silva nas ruas do Pirambu, às
esculturas públicas de Sérvulo Esmeraldo presentes por toda cidade, podemos
perceber as marcas de uma época. Com caráter efêmero ou não, muitos foram
os artistas que levaram para as ruas seus trabalhos nas últimas décadas e
marcaram gerações. Nos dias de hoje, ainda podemos encontrar obras públicas
de Zenon Barreto, Leonilson, Ademir Martins, Estrigas, para citar alguns das
gerações que já se foram, mas que continuam com suas obras presentes na
cidade de Fortaleza. (FESTIVAL CONCRETO)
ii
.
A arte urbana chegou a Fortaleza na década de 1990, trazendo consigo seu
caráter transgressor através das pichações. No decorrer dos anos 2000, após surgimento
de novos materiais, conceitos e termos sobre a arte urbana, indivíduos e grupos
artísticos passaram a apropriar-se dessas manifestações de ordem estética como meio
de adornar espaços, não somente embelezando, mas, também, atribuindo novos
significados a determinados pontos da cidade.
Com o advento das tecnologias de informação e comunicação, a propagação de
artistas e técnicas que fazem dos muros, postes, semáforos, prédios e lixeiras, suporte
para divulgação de sua arte, ganhou novas proporções, adquirindo, principalmente,
maior expressividade.
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Para Grud, criador do Festival Concreto,
A simples ão de inscrever meu nome nas paredes da cidade serviu de porta
por onde adentrei ao universo da arte urbana, me encontrei e após tempos de
labuta participei de alguns festivais em diversas cidades de diferentes países,
lugares onde pude fazer amigos, sentir e vivenciar inúmeras vezes a energia
empolgante de transformação que esses eventos propiciam. Surgiu daí o desejo
de fazer algo parecido na cidade onde vivo. A cidade de Fortaleza sofre com a
grande desigualdade social e a violência, sendo, assim, um ambiente propício e
necessitado de ações dessa natureza
iii
.
O Festival surge, assim, com a ideia de transformar o olhar do homem urbanus
sobre a sua própria cidade, engendrando um canal por meio do qual a população possa
se dar conta, sob uma perspectiva sensível, das diferenças e desigualdades sociais, do
modo de vida contemporâneo, dos acontecimentos cotidianos, de fatos políticos,
podendo tocar ainda em várias outras questões que sejam de interesse do artista.
4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A pesquisa teve caráter exploratório e recorreu à abordagem qualitativa que,
para Minayo (2001), lida com o universo de significados, motivações, crenças e valores,
voltando-se ao estudo de um universo que não pode ser quantificado, correspondendo
ao espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos. Na pesquisa
qualitativa um aprofundamento da compreensão de um fenômeno a partir de um
ponto de vista social.
Para proceder a análise dos dados, adotou-se o método da iconologia, que, de
acordo com Vicente (2014), referindo-se ao trabalho de Panofsky, permite ao
pesquisador realizar observações com maior acuidade sobre uma imagem do que as
análises feitas pela iconografia, inicialmente, tratando tanto do conteúdo, como do
significado. Nesse sentido, segundo Vicente (2014, p.150), “o método iconológico refere-
se à tradução vocabular, à decifração de códigos obscuros à primeira vista, pois a
familiaridade com as imagens é insuficiente para uma verdadeira análise”. Ou seja, busca
interpretar os significados de uma imagem.
O método iconológico está fundamentado em três níveis de significado, a saber:
O primeiro, voltado ao significado primário ou natural, é o da descrição
préiconográfica. Esta descrição consiste na identificação de formas puras, bem
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como de objetos e eventos presentes na imagem. O segundo nível, voltado ao
significado secundário ou convencional, é o da descrição iconográfica. Diferente
do nível anterior, este consiste não somente na descrição pura e simples dos
objetos retratados, mas na ligação das composições da imagem com assuntos e
conceitos. O terceiro e último nível, voltado ao significado intrínseco ou
conteúdo, é denominado descrição iconológica. Esta descrição é definida pela
descoberta e interpretação dos valores simbólicos presentes na imagem
(PANOFSKY, 2011 apud UNFRIED, 2014, p. 3).
O primeiro nível é o nível mais básico, onde é feita uma descrição da imagem, sem
qualquer contexto conceitual, mas enfatizando-se uma identificação das formas. Por sua
vez, no segundo vel, além da descrição, são associadas às imagens conceitos,
conhecimento e ideias elucidativas. E, por fim, no terceiro nível, recorre-se à análise
subjetiva, onde se constroem relações entre obra, local, tempo e espaço com o repertório
do espectador da imagem.
Nesta pesquisa utilizaram-se os três níveis para a análise das imagens, porém,
optou-se por não recorrer aos expectadores dos grafites, uma vez que isto acarretaria
um tempo maior na seleção e coleta das percepções dos depoentes. Além disso, vale
ressaltar também que, como o segundo e o terceiro nível tratam de análises subjetivas,
decidiu-se uni-los, sendo, portanto, abordados como um só.
Os grafites selecionados para análise foram produzidos durante edições do
Festival Concreto projeto idealizado, como dito anteriormente por Narcélio Grud, com
o objetivo de promover uma aproximação entre a cidade e a população de modo geral. O
festival foi adotado como objeto de análise por se caracterizar como um importante
marco para o desenvolvimento da arte urbana em Fortaleza, de modo particular, e no
Nordeste, de modo abrangente. Além disso, no que se refere à amostra, cabe assinalar
que os grafites foram escolhidos tendo como base o acesso dos pesquisadores às
imagens, todavia, privilegiando-se aquelas que permaneceram visíveis nos muros e
fachadas dos prédios.
As intervenções artísticas do Festival tinham como objetivo demonstrar o papel
do grafite como um agente que vida nova à urbe, aproximando, muitas vezes,
questões e problemas locais a acontecimentos globais. Apesar do seu caráter de
resistência, com a realização do Festival Concreto, o grafite passou a ser visto pelos
gestores públicos como uma alternativa para embelezar a cidade. As intervenções
artísticas realizadas durante as edições do evento podem ser vistas em praticamente
todos os bairros da cidade. Todavia, devido à efemeridade característica do grafite, uma
ou outra já pode ter sumido.
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5 A CIDADE ENQUANTO SUPORTE DO GRAFITE
Nesta seção, almeja-se realizar a discussão acerca dos dados coletados,
apresentando os resultados obtidos através da análise de imagens.
O mural a seguir foi produzido pelo italiano NemO’s durante a 2ª edição do
Festival Concreto em 2015 e estava localizado no Centro Dragão do Mar de Arte e
Cultura. Em nível primário, tem-se a imagem de um homem, uma linha de costura, um
garfo e palavras. no nível secundário é possível identificar a frase “FOME ZERO”, que
entre aspas ganha o sentido de ironia, associada à imagem de um homem segurando um
garfo e uma agulha. O homem da imagem mantém a linha presa ao garfo que utiliza para
costurar a própria boca.
Figura 1 - Fome zero (NemO’s).
Fonte: Festival Concreto (2015).
Com base na concepção de Ramos (2007) de que o homem utiliza a informação
para modificar sua realidade social, identifica-se na obra de NemO’s a abertura de
possíveis questionamentos acerca dos objetivos, validade e da efetividade do programa
homônimo promovido pelo governo federal, que tinha como meta a erradicação da fome
no Brasil. No entanto, por meio do grafite, o autor sugere a ideia de que o programa
atuou apenas como um paliativo, não conferindo às populações condições mais efetivas
de emancipação.
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Silva; Nunes; Silva | Festival Concreto
Inf. Pauta, Fortaleza, CE, v. 3, n. 2, jul./dez. 2018 | ISSN 2525-3468
Ainda que, neste caso, o grafite opere com um instrumento de mediação entre
os indivíduos e o fato social, a construção desta reflexão depende completamente do
repertório dos envolvidos (COELHO NETTO, 1980), que o entendimento desse
contexto necessita de conhecimento prévio sobre políticas públicas, em especial acerca
do programa Fome Zero e do cenário social do Brasil antes e depois da execução do
projeto.
Produzido pela artista argentina Hyuro, o mural a seguir também foi idealizado
durante a edição do festival Concreto. A imagem podia ser vista por quem transitava
pela Rua Juvenal Galeno, tendo sido desenhada em um dos prédios da Universidade
Federal do Ceará, no bairro Benfica.
Em primeiro plano, observa-se uma mulher envolta numa fita listrada, bastante
comum no uso de isolamento de área. no segundo plano, pode-se ser levado
diretamente ao significado das fitas de restrição em torno da mulher, como, por
exemplo, uma mulher restringindo a si mesma, seu corpo e suas vontades ou, também,
protegendo-se, impedindo a violação do seu espaço.
Figura 2 - Público/Privado (Hyuro).
Fonte: Festival Concreto (2015).
A informação, segundo Feitosa (2016), interfere no processo de cultura e a
complexidade de sua apropriação pode gerar transformações na vida do receptor. Uma
das vertentes do grafite idealizado por Hyuro representa a luta do movimento feminista,
que busca a igualdade entre os gêneros e traz consigo o despertar para uma reflexão
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sobre o ato de conferir maior poder à mulher e à libertação de seu corpo. Manifestos
como esse se apropriam da ideia de arte engajada que, conforme Coelho Netto (1980),
tem tanto poder para motivar decisões, quanto para promover mudanças efetivas em
comportamentos arraigados.
O título Público/Privado complementa a obra. Embora o corpo da mulher
pertença tão somente à própria mulher, diante de situações como aborto e estupro, as
decisões tomadas pelo Estado brasileiro acerca de quem tem direito a interromper uma
gestação se dão no âmbito da esfera pública.
Produzido pelo artista espanhol Borondo, o mural exibido a seguir, localizado
no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, ainda permanece colorindo as paredes do
lugar. Faz-se necessário salientar que ele ainda permanece porque uma das
características do grafite é sua efemeridade. Assim, idealizado durante a primeira edição
do festival em 2013, o grafite Maracatu, do artista Borondo, é um das poucas inscrições
que, dentre aqueles analisados aqui, mantiveram-se até os dias atuais.
Figura 3 - Maracatu (Borondo).
Fonte: Festival Concreto (2013).
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No primeiro nível, é possível identificar um homem de torso nu projetado à
frente de um fundo florido. No próximo plano, pode-se reconhecer traços do
regionalismo local, e é nele que se consegue construir uma associação entre a face
pintada de preto e o colorido das flores com o Maracatu, tradição cultural da cidade de
Fortaleza que conta a história de luta e resistência dos escravos negros durante a
colonização.
Como discutido aqui, o início do grafite esteve ligado a movimentos de cunho
político e social, como uma forma de protesto, modificando-se, contudo, em termos
estéticos através da inserção de novas técnicas com o passar dos anos (RODRIGUES;
BESSA, 2015). É possível compreender a obra de Borondo não como um protesto
somente, mas, ainda, como a manifestação do que o artista compreendeu sobre
importantes aspectos históricos da cultura local.
O desenho de Borondo vai ao encontro do que afirma Coelho Netto (1980) sobre
as possibilidades de significação geradas pela informação. O artista se apropriou de um
dos diversos elementos da cultura local e a partir dele fez leituras que deram origem a
uma nova obra, que também expressa algo peculiar da cultura local. Ou seja, foi a partir
de uma informação sobre elementos históricos da cultura local que Borondo conseguiu
construir novos significados utilizando-se de sua arte.
Localizado no Centro de Fortaleza, entre as ruas São Paulo e Barão do Rio
Branco produzido em novembro de 2015, o mural pintado pelo artista grego Ino
encerrou a segunda edição do Festival Concreto e também é uma das poucas
intervenções fruto do evento que ainda permanece viva na cidade de Fortaleza.
Em primeiro plano, consegue-se identificar uma criança com asas soltando um
beijo sobre um globo. No segundo plano, pode-se associar o menino com as asas a um
anjo, no entanto, dependendo do ângulo que a imagem é observada, as asas podem ser
percebidas como chifres. Levando em consideração as circunstâncias do período de luto
pela violência que a cidade se encontrava e o repertório informacional da cultura local, é
provável a associação do anjo com o bem, e do demônio com o mal; com isso, pode-se
interpretar que a intenção de Ino foi alertar para a existência de dois lados do mesmo
garoto: o bom e o mau.
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Figura 4 - Céu e inferno na Terra (Ino).
Fonte: Festival Concreto (2015).
O desenho de Ino foi concebido durante um período de medo e luto na cidade de
Fortaleza, ocasionado pela tragédia conhecida como “Chacina do Curió”, que se
transformou em uma das maiores chacinas da história da cidade, onde um grupo de
policiais é apontado nos autos do processo como sendo responsável, no ano de 2015, no
bairro Curió, pela morte de sete pessoas, deixando outras três gravemente feridas, além
de praticar três torturas físicas e uma psicológica conforme informações veiculadas na
matéria publicada pelo jornal O Povo, em 10 de novembro de 2017, após o crime ter
completado dois anos
iv
.
A arte de Ino converge com a ideia de Furtado e Zanella (2009) de que o grafite é
fruto das vivências do sujeito que o produz dentro da cidade. É importante ressaltar que
a dualidade do momento vivido pelo autor pode ter impactado diretamente na sua
produção, ao mesmo tempo em que participava de uma celebração à arte urbana, o
artista testemunhou uma cidade que ainda chorava pela perda dos seus jovens e
questionava as motivações de um crime cruel.
Em 2017, o artista voltou a Fortaleza a fim de contribuir em mais uma edição do
Festival Concreto, abordando a mesma temática e traduzindo seu olhar sobre a cidade
através da arte mais uma vez. O mural a seguir foi elaborado também por Ino, porém foi
inscrito durante a edição do Concreto e eslocalizado no Hotel Sonata de Iracema,
entre as avenidas Beira Mar e a Historiador Raimundo Girão, no Bairro Praia de Iracema.
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Em primeiro nível, para se apontar a existência de um corpo feminino nu sob
um fundo preto. em segundo nível, é possível enxergar um corpo sofrido, magro e,
ainda assim, exprimindo uma conotação sexual. Fortaleza é conhecida pelo significativo
número de casos envolvendo prostituição, exploração e turismo sexual, principalmente
nas proximidades do local onde o desenho foi realizado. São dois lados de uma mesma
cidade, uma contradição onde o mesmo lugar que abriga belas praias e hotéis de luxo
também é lugar de pobreza e exploração sexual.
Figura 5 - Broken (Ino).
Fonte: Street Art News (2017).
As obras representam bem o objetivo por trás da criação do Festival Concreto e
da arte urbana de modo geral. Durante a discussão sobre a história do grafite, Gitahy
(1999), Ramos (2007), Furtado e Zanella (2009) e Grud (2013) ao falar da criação do
Festival, ressaltam a importância da arte urbana para a construção de uma memória
coletiva e para provocar o debate e a conscientização sobre a vida em seus diferentes
aspectos. Assim, foi buscando justamente essa conscientização que o artista Ino
produziu suas obras para o Festival.
Em um mesmo desenho pode ser visto tanto um garoto pensativo, retratado
pelas mãos de um talentoso artista, quanto é possível, também, a construção de
diferentes sentidos para a imagem, provocando uma sensibilização acerca da realidade
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de crianças que são vistas como diferentes, seja pela aparência em si ou pela condição
física ou mental. É durante esse aprofundamento que a imagem ganha um novo
significado. O garoto passa a ser ícone de uma causa, enquanto empina o que para
imaginar ser uma pipa, simbolizando esperança e força.
O grafite a seguir compreendeu parte da 3º edição do Festival Concreto,
produzido pelo brasileiro Dinho Bento. O mural estava localizado no viaduto do
cruzamento das Avenidas Rui Barbosa e General Murilo Borges, no Bairro Aerolândia,
em Fortaleza.
No primeiro plano, identifica-se a presença de um pássaro com a cabeça de um
homem barbudo, próximo a um ninho de passarinhos. Além disso, vê-se, também, lama,
carcaças de animais mortos, casas e uma cruz. No plano seguinte, pode-se compreender
que o mural retrata um cenário de devastação, onde todos os elementos, com exceção do
pássaro com cabeça de homem, que aparenta estar migrando junto de sua ninhada,
estão encobertos por um mar de lama.
Figura 6 - Verde lama (Dinho Bento).
Fonte: Flickr [200-?].
Analisando esta imagem, faz-se necessário levar em consideração as raízes do
artista que produziu o grafite. Dinho Bento é mineiro e cresceu em Mariana, cidade que
ficou conhecida pela maior tragédia ambiental registrada no Brasil, ocorrida em
novembro de 2015, exatamente um ano antes da sua participação no Festival Concreto.
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Em decorrência do rompimento de uma barragem em um distrito próximo, a
lama e os rejeitos provenientes da extração de minério invadiram a cidade de Mariana,
arrastando consigo casas, igrejas, prédios comerciais, pessoas e muitas das coisas que
faziam parte da história do autor da obra, que, agora, infelizmente, confunde-se com a
história da cidade que está submersa em lama. O fato foi noticiado em vários veículos de
comunicação à época, tendo cobertura, inclusive, pela mídia internacional, dentre as
quais, vale citar a série produzida pelo El País
v
.
A cidade não representa apenas o recorte físico de um espaço, mas, sim, um locus,
onde os homens encontram meios de significar suas vivências. Foi dessa forma que
Dinho encontrou uma maneira de representar algo significativo para si, ao mesmo
tempo em que se utilizou do poder do grafite e de sua capacidade de representar algo
capaz de instigar questionamentos e manifestar-se de maneira crítica acerca de valores,
ideias ou mesmo sobre a ocupação da urbe.
É importante ressaltar que toda essa análise sobre o grafite é possível se o
público tiver conhecimento sobre a tragédia, ou seja, a leitura a ser feita de uma imagem
ou dos textos contidos na inscrição depende do repertório de conhecimentos e saberes
do artista e do receptor. Trata-se, portanto, de uma ação socialmente contextualizada e
simbolicamente situada.
6 CONCLUSÃO
As discussões sobre o grafite suscitam inúmeras questões quanto ao seu papel na
sociedade atual. O grafite sempre teve em sua essência a crítica, mas ao longo dos anos
ele vem ganhando cada vez mais espaço como um instrumento de arte e manifestação
cultural.
Ao abordar o grafite como um meio de mediação cultural e uma fonte de
informação estética, agregam-se novos valores para uma arte que nasceu marginalizada,
porém, que, aos poucos, foi ganhando espaço em galerias de arte e campanhas
publicitárias, atuando, inclusive, como instrumento de requalificação do espaço urbano,
desconstruindo, também, o clichê de que algo ruim ou puramente poluição visual.
Os grafites produzidos no Festival Concreto demonstram que muito mais do que
apenas agente embelezador, as pinturas produzidas buscam despertar conscientização
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sobre problemas sociais e mostrar essa expressão da arte urbana como instrumento de
mediação e transformações da cultura local.
Ao utilizar-se da cidade como principal suporte, o grafite, que nasceu de uma
cultura marginal e tem como uma de suas principais características a efemeridade, pode
ser hoje abordado como uma importante forma de democratização da arte e mediação
cultural nas cidades. A análise dos grafites do Festival Concreto possibilitou, portanto,
observá-lo sob uma nova ótica, como uma manifestação artística que não traz apenas
beleza pra cidade, mas que tem possibilidades de impulsionar mudanças na cultura, na
memória e na sociedade de modo geral.
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ii Texto extraído do site: Festival Concreto. Disponível em: http://www.festivalconcreto.com.br/festival. Acesso em: 31 mar. 2018.
iii Texto extraído do site: Festival Concreto. Disponível em: http://www.festivalconcreto.com.br/festival/. Acesso em: 31 mar. 2018.
iv Informação extraída de: https://www.opovo.com.br/jornal/cotidiano/2017/11/dois-anos-depois-chacina-da-grande-messejana-
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v Disponível em: https://brasil.elpais.com/tag/mariana/b. Acesso em: 16 nov. 2018.