PRODUÇÃO E TIPOLOGIA DOCUMENTAL DE MOVIMENTOS SOCIAIS: estudo sobre o
arquivo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terras do Brasil (MST)
RECORD CREATION AND STUDIES BY SOCIAL MOVEMENTS: study of archive of Brazil’s
Landless Laborers’ Movement (MST)
Jean Camoleze¹
Sonia Troitiño²
¹ Mestre em Ciência da Informação pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (UNESP).
E-mail: jcamoleze@hotmail.com
² Doutora em História Social pela Universidade
de São Paulo (USP).
E-mail: sonia.troitino@unesp.br
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Recebido em: 23/09/2019.
Aceito em: 15/11/2019.
Revisado em: 23/12/2019.
Como citar este artigo:
CAMOLEZE, Jean; TROITIÑO, Sonia. Produção e
tipologia documental de movimentos sociais:
estudo sobre o arquivo do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terras do Brasil
(MST). Informação em Pauta, Fortaleza, v. 4, n.
2, p. 121-136, jul./dez. 2019. DOI:
10.32810/2525-3468.ip.v4i2.2019.42191.121-
136.
RESUMO
Este artigo tem como objetivo discutir a
contribuição da tipologia documental para
organização e contextualização de documentos
produzidos por movimentos sociais. Para tanto,
a reflexão baseia-se em um trabalho metateórico
e um estudo de caso realizado no arquivo do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
do Brasil (MST), um dos movimentos de
penetração social mais bem organizados e
amplos do país. Como resultado, constatou-se
que a produção de registros dessa organização
social mantém os elementos característicos dos
documentos de arquivo, ainda que sejam
produzidos em organizações não caracterizadas
como uma entidade jurídica. Da mesma forma,
foi possível identificar que os documentos
populares, representação documental típica dos
movimentos sociais, têm valor educativo,
cultural e exercem o ato comunicativo em todos
os momentos, permitindo a recuperação de
relações orgânicas, muitas vezes pouco
evidentes, mas que também confirmam a
arquivística dos documentos produzidos por
essas não instituições, no sentido tradicional.
Palavras-chave: Arquivo de Movimentos
Sociais. Produção Documental. Tipologia
Documental. Documento Popular.
ABSTRACT
This article aims to discuss the contribution of
studies of documentary forms to the
organization and contextualization of record
creation by social movements. For this, the
reflection is based on the case study carried out
on the archive of the Brazil’s Land-less Laborers’
Inf. Pauta
Fortaleza, CE
v. 4
n. 2
jul./dez. 2019
ISSN 2525-3468
DOI: https://doi.org/10.32810/2525-3468.ip.v4i2.2019.42191.121-136
ARTIGO
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Movement (MST), one of the most well-
organized entity and wide social penetration in
Brazil. As a result, it was found that the record
creation of this social organization maintains the
characteristic features of archival records,
although they are produced in organizations not
characterized as a legal entity. In the same way,
it was possible to identify that popular records, a
typical documentary representation of social
movements, always have educational and
cultural value and exert communicative action,
allowing the recovery of archival bond, often not
very evident, but also confirm the archival
character of the record creation by these non-
institutions in the traditional sense.
Keywords: Social Movements Archives. Record
Creation. Documentary Form. Popular Record.
1 INTRODUÇÃO
Para racionalizar um sistema arquivístico, antes é necessário compreender a produção
documental e fundamentar os processos de trabalho empregados em critérios que
direcionem a organização e a disponibilização de documentos e informações, permitindo
à sociedade seu uso e recuperação. Esses documentos não devem ser caracterizados
exclusivamente como de satisfação cultural; antes devem ser considerados como
importantes fontes para a análise crítica histórica, contribuindo assim para a identidade
da instituição de origem, para a sociedade, para pesquisas acadêmicas e para a
historiografia contemporânea. (BELLOTO, 2006).
Nesse sentido, o controle da criação de documentos deve ser exercido como
primeira atividade na gestão dos documentos, seja em órgãos públicos ou privados, pois
a produção documental tem como premissa pensar a constituição do documento e sua
melhor funcionalidade, conforme objetivos e atuação do órgão produtor. Pazin-Vitoriano
esclarece que:
A produção documental e o arquivo dessas organizações o também reflexos
dessa relação. Em função da dupla característica dos documentos que registram
o relacionamento de seu produtor, seja ele um indivíduo ou uma entidade, com
as instâncias governamentais e com outras instâncias privadas, eles sofrerão
influência, em sua criação, das condições e exigências legais existentes. (PAZIN-
VITORIANO, 2012, p. 33).
Dessa forma, é possível perceber que a criação do documento o é um ato
aleatório. O documento surge a partir de uma sequência de operações técnicas e
intelectuais que ajudam a cumprir uma finalidade determinada, inicialmente dentro do
órgão produtor e, posteriormente, servindo como fonte de pesquisa, garantindo a
difusão de elementos significativos para a constituição do conhecimento.
Similarmente, a produção de documentos de movimentos sociais, com as
particularidades que os distinguem, também apresenta uma sequência lógica e colabora
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para os estudos desenvolvidos em diferentes áreas do saber. Os movimentos sociais
podem ser caracterizados como um coletivo social que mantém uma identidade e um
interesse comum (GOHN, 2004, p. 245). A constituição dos movimentos sociais ocorre de
maneira ativa e consciente, como algo que acontece nas relações humanas, criando
experiências que formam a cultura, por meio das tradições, dos valores, ideias e
instituições. Assim, o surgimento de movimentos sociais o ocorre com base em
estruturas pré-determinadas, mas se por meio de processos históricos. Compostos
por saberes, informações e organização culturais e transmitidas por vivências e
experiências coletivas.
Mesmo que frequentemente o sistema organizacional no qual os movimentos
sociais estão inseridos caminhe paralelamente ao da tradicional burocracia, a existência
de arquivos que lhes caracterizem é uma realidade concreta. Como qualquer outra
organização, os movimentos sociais registram suas ações com dupla intencionalidade: 1)
memorialística; 2) instrumental. Memorialística na medida em que gera documentos
com a finalidade de comprovação de determinados eventos. Instrumental posto que
rotineiramente documentos são utilizados com objetivos administrativos específicos,
ainda que não regrados, relacionados à atividade-fim ou meio.
Portanto, para sistematizar e alternar os conceitos teórico-metodológicos, com o
intuito de estabelecer critérios para organização de acervos de Movimentos Sociais, este
trabalho utiliza como fonte de estudo o Arquivo do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), alocado no Centro de Documentação e Memória (CEDEM) da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP).
Assim, reconhecemos a necessidade de proporcionar coerência arquivística aos
documentos do Fundo do Movimento dos Trabalhadores. Então, com o intuito de
promover uma construção metodológica do processo de organização desse acervo,
utilizamos da metateoria unificada com um estudo de caso, para formular hipóteses e
conceitos, além da elaboração de instrumentos capazes de auxiliar na organização de
arquivos de movimentos sociais.
O MST é reconhecido como um dos movimentos sociais de maior importância do
Brasil, seja por causa da intensa luta pela reforma agrária, sua principal bandeira, ou
pelos mais de trinta anos de história. Atualmente, o MST está presente em 24 estados
brasileiros, com mais de 350 mil famílias, que, mesmo assentadas, continuam a se
empenhar nas ações do Movimento.
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Mesmo que o MST, pelo fato de ser um movimento, não se caracterizar como uma
entidade de natureza jurídica, e, portanto, sujeito à legislação e às regras típicas dessas
administrações, é possível perceber sua estrutura organizacional semelhante à das
instituições regulamentadas. Dessa forma, existe no MST uma produção documental
ativa, não sistematizada no que tange à gestão e à guarda de documentos. Como
consequência, é perceptível a dificuldade do movimento em conservar e disponibilizar
informações sobre suas atividades. Em decorrência, os prejuízos relativos à formação da
memória e construção da história relativa ao movimento são sintomáticos da falta de
uma política específica voltada para a preservação dos registros que os caracterizam: os
documentos populares.
Atualmente, o arquivo oriundo das ações do MST o possui uma metodologia
consolidada de organização arquivística. A ausência da adoção de metodologias e
critérios claros para o tratamento do acervo tem como efeito a dificuldade em se
reconhecer as marcas de sua própria história. Nesse sentido, à semelhança de outros
arquivos, apresenta-se a dificuldade de estabelecer mecanismos de nomear, reconhecer
e denominar os documentos, criando uma árdua tarefa para a disponibilidade do acervo,
sua difusão e sua conservação. (TROITIÑO, 2015).
Desse modo, acreditamos que o estudo tipológico da documentação e sua relação
com a produção documental podem auxiliar na padronização e sistematização da
organização de acervos de movimentos sociais, principalmente no que se refere ao
tratamento técnico de documentos de arquivos.
2 METATEORIA E ESTUDO DE CASO: FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA PESQUISA
EM ACERVOS DE MOVIMENTOS SOCIAIS
As pesquisas que utilizam a metateoria muitas vezes são parte de um estudo com
tendências interdisciplinares, tais como essa pesquisa, provocando pressupostos amplos
e criando hipóteses para estudos teóricos e empíricos (HJØRLAND, 1998a, p. 607). Nesse
contexto, Joaquim Reis afirma:
As metateorias o, pois, estruturas conceptuais que explicam qualquer
fenômeno que se situa no seu domínio. As estratégias de investigação científica
e o desenvolvimento metodológico de uma dada disciplina científica são, pois,
determinadas pelas asserções metateóricas que lhe estão subjacentes. (REIS,
1999, p. 416).
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Desta forma, os estudos metateóricos ampliam e orientam a produção de novos
conhecimentos “num horizonte de possibilidades sociais e historicamente definidas”
(GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2000, p. 333), enfatizando a importância da definição da(s)
metodologia(s). Ou seja, percorrer um caminho metodológico, além de ser passo
essencial para a pesquisa, também amplia a compreensão do processo de análise e as
múltiplas dimensões do objeto estudado.
Os estudos metateóricos, de acordo com Vandenberghe (2013, p. 19), são
aplicados quando envolvem a reflexão acerca do que faz de certos trabalhos ‘estudos
exemplares’ ou paradigmáticos” e uma melhor maneira de compreender os conceitos e
fundamentos existentes sobre o tema e produzir novos estudos e perspectivas teóricas.
Sobre a metateoria, Edward (2013, p. 5 e 6) exalta que houve uma ampliação
sobre os estudos sistemáticos, alterando as perspectivas de uma reminiscência de
análises feitas de maneira extenuante da literatura, embutindo a elas interpretações
pontuais e pessoais. O autor explica que, no passado, “os metateoristas basearam-se em
extensas leituras em diferentes domínios teóricos e disciplinares e, em seguida,
integraram essas visões de acordo com seus próprios conhecimentos científicos e visão
pessoal”, porém atualmente surgem [...] métodos mais sistemáticos e repetitivos para a
construção de sistemas metateóricos”.
Dessa forma, para atender ao objetivo deste trabalho de estabelecer a lógica
orgânica dos conjuntos documentais do MST, o estudo metateórico fornece elementos
abrangentes para a produção de esboços teóricos que objetivam produzir uma
perspectiva de debater, além de parâmetros de arranjo e descrição a arquivos de
movimentos sociais, oferecendo subsídios para pesquisas referentes a produção
documental semelhante.
O estudo de caso é uma das metodologias mais utilizadas, principalmente dento
das ciências sociais. Mesmo assim, existem diversas formas para sua aplicação, o que
dificulta um consenso em suas definições e aplicabilidade (YAZAN, 2015, p. 135). Porém,
utilizamos como metodologia proeminente de estudos de caso, os trabalhos de Robert
Stake, principalmente pelos compromissos epistemológicos que consideram o
conhecimento como algo construído e não descoberto (STAKE, 1995, p. 99). Essa análise
também é pertinente com a alegação de que “há múltiplas perspectivas ou pontos de
vista do caso que precisam ser representados” (STAKE, 1995, p. 108), ou seja, o estudo
sobre a organização do acervo do MST é apenas um aspecto de tantos possíveis, “que
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parte de fenômenos, ao mesmo tempo, complementares, concorrentes e antagonistas,
respeita as coerências diversas que se unem em dialógicas e polilógicas e, com isso,
enfrenta a contradição por várias vias” (MORIN, 2000 p. 387).
Assim, os estudos de caso devem valorizar a experiência como elemento da
construção do conhecimento e reconhecer a interação do objeto estudado como seus
contextos e meio como gênese do conhecimento. Com isso, percebemos que, em um
estudo de caso aplicado ao acervo documental do MST e seu arranjo, faz-se necessário
compreender as ações dos protagonistas sociais e a organização histórica e estrutural do
órgão produtor.
Para a realização da pesquisa, e seguindo a metodologia proposta por Stake,
empregamos alguns questionamentos [...] porque as questões nos atraem para
observar, trazendo mesmo à tona os problemas do caso, as emergências de conflito, as
questões humanas mais complexas” (STAKE, 1995, p. 16-17) e direcionamos os
trabalhos, além de manter uma constante interface com os pressupostos teóricos.
Desse modo, faz-se necessário reconhecer, identificar, atribuir nome aos
documentos dos movimentos sociais e compreender a sua produção documental para
pensar na organização do acervo e na recuperação das informações. Diante disso,
surgem diversos questionamentos como: qual a importância dos arquivos de
movimentos sociais para auxiliar os arquivos públicos ou institucionais? Como organizar
um arquivo de um movimento com tanta dinâmica? Como nomear, reconhecer e
denominar essa documentação com grande especificidade? Quais os mecanismos para
identificar a origem, a objetividade e a veracidade destes documentos? Existe uma
padronização possível da produção a destinação final?
Os documentos que formam o Fundo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra serão a base para a coleta de dados e servirão para a análise significativa dos
procedimentos implantados para a organização documental, além de “dar significado às
primeiras impressões, bem como às compilações finais” (STAKE, 1995, p. 71).
Mesmo reconhecendo os momentos distintos, a coleta e a análise dos dados,
ambas ocorrem de maneira simultânea, “a fim de desenhar sistematicamente a partir de
conhecimentos prévios e reduzir percepções equivocadas” (STAKE, 1995, p. 72).
Os dados coletados e analisados são validação através da triangulação
metodológica. Para Günther (2006) a triangulação é a utilização de diferentes
abordagens metodológicas do objeto empírico para prevenir possíveis distorções
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relativas tanto à aplicação de um único método quanto a uma única teoria ou um
pesquisador.
Mesmo com linhas bem definidas entre a coleta, análise e observação direta com
aplicabilidade metodológica, as etapas são interligadas e promovem uma constante
interação entre si. Assim “a transição de uma fase para outra, enquanto a pesquisa se
desenrola, ocorre na medida em que áreas problemáticas vão progressivamente sendo
clarificadas e redefinidas” (STAKE, 1995, p. 22).
Dessa forma, as integrações entre as metodologias da metateoria e a utilização do
estudo de caso irão criar processos de construção de um conhecimento válido e
confiável. Os procedimentos metodológicos aplicados ao trabalho não se limitam apenas
a um caminho a ser percorrido, mas fazem parte da produção do conhecimento e da
ampliação dos estudos sobre o objeto em questão.
3 PRODUÇÃO DOCUMENTAL DE MOVIMENTOS SOCIAIS
A produção documental dos movimentos sociais é fruto de sua própria
organização, como corpo administrativo, ainda que não convencionalmente constituído.
Entre as atividades-fim às quais se propõe, destacamos aqui as relativas à formação e
comunicação de integração entre seus membros, caracterizando assim a base de
estruturação do próprio movimento. A produção documental decorrente dessas
atividades é determinada pela dinâmica e particularidades de cada movimento social,
interferindo nos tipos documentais e na sistematização da organização do acervo. Isso,
muitas vezes, ocorre por causa das propriedades e atributos do próprio movimento, da
mesma forma que pela falta de padronização dos processos de trabalho e seus registros.
Lopez, explica que:
As organizações do movimento social apresentam características próprias que
tendem a se perder se forem tratadas com base em esquemas universalizantes.
Tais características também tendem a ser diluídas quando se prioriza o aspecto
formal dos documentos. Devemos considerar e discutir os elementos
informacionais presentes na produção documental de natureza social e política.
Nesse tipo de entidade os documentos, muitas vezes, são produzidos sem
regulamentação, normatização oficial, sem muito controle dos padrões de
produção, razão pela qual são de difícil identificação. (LOPEZ, 2012, p. 20).
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Nesse sentido, importa entender a produção documental como sintomática da
dinâmica e atuação do movimento e, justamente por isso, carecendo de estudos que
elucidem a lógica de criação, destinação e uso da documentação produzida nesse
contexto específico. Nunca é demais lembrar, que estabelecer os tipos documentais
existentes dentro de um arquivo colabora para a organização documental e a
recuperação da informação.
Os documentos produzidos pelo MST são registros de suas atividades e do
funcionamento ideológico e social do movimento. Porém, essa documentação também
tem um importante significado na constituição do social e compõe elemento
representativo da história do Brasil. Ainda que a reunião de documentos provenientes
do MST não possa ser considerada um arquivo nos moldes do tradicionalmente
concebido ou seja, formado dentro de uma organização legalmente constituída
(pessoa jurídica), e obedecendo a regras ditadas pelo direito administrativo, é possível
encontrar, em meio aos documentos oriundos do movimento, sinais de organicidade,
cuja interpretação conduz a entendê-los como documentos arquivísticos. Assim, o
conjunto de documentos proveniente do MST configura arquivo formado de modo
paralelo ao convencional, o que é extremamente significativo e merece reflexão. Essa
documentação também expressa uma autorrepresentação diferenciada da
normalmente apresentada pelas instituições tradicionalmente constituídas, em geral,
voltada para a compreensão das próprias experiências do movimento, enquanto tal, e
da conjuntura na qual está inserido.
Sendo assim, acreditamos que a utilização da metodologia de análise tipológica
para a identificação, interpretação e sistematização de documentos provenientes do
MST, auxilia no estabelecimento de parâmetros documentais que sirvam de modelo
para a organização documental, ao estabelecer referências de tipos documentais
fundamentados no padrão, na formulação da estrutura documental, podendo colaborar
potencialmente na normalização da produção e da guarda documental.
4 MST: luta e informação
Gestado entre o período de 1979 a 1984, o MST não se apoia exclusivamente na
questão da reforma agrária. Segundo posição do movimento, está entre seus principais
objetivos a alteração de problemas estruturais do nosso país [Brasil], como a
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desigualdade social e de renda, a discriminação de etnia e gênero, a concentração da
comunicação, a exploração do trabalhador urbano” (MST, 2015). Em quase 40 anos de
atuação, o MST tem presença marcante no cenário político-social brasileiro, o que lhe
garantiu a atenção de estudiosos e acadêmicos ao refletirem sobre a realidade
contemporânea brasileira, marcando a historiografia nacional nas pesquisas
desenvolvidas por Fernandes (2000), Welch (2006), dentre tantos outros.
A formação do MST vem de um acúmulo da luta agrária resistente no País ao
longo dos anos e foi intensificada na década de 50 e 60 com a criação das Ligas
Camponesas, da ULTABs (União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas) e o MASTER
(Movimento dos Agricultores Sem Terra). Na atualidade, além dos assentamentos e
acampamentos, o MST conta com diversas cooperativas, associações e agroindústrias
que auxiliam na produção, distribuição e venda de alimentos além da Escola Nacional
de Formação Florestan Fernandes, que contribui para a formação do MST e de outras
organizações. Com isso, a estrutura organizacional do Movimento é pautada por um
modelo de cooperação estabelecido, tendo como diretriz garantir “uma maneira de
organizar a produção através da divisão do trabalho” (MST, 2015).
Porém, dinâmica é característica presente na organização do MST, trazendo
diversas alterações e ampliações em sua estrutura (NAVARRO, 2002). Segundo Lopes
(2004), a organização do MST apresenta grande flexibilidade, capaz de se modificar
conforme as necessidades impostas pela conjuntura político-social do momento e de
incorporar novos princípios e elementos. No entanto, conforme esclarecem DAL RI e
VIEITEZ (2004, p. 46), seus filiados se encontram vinculados ao Movimento não apenas
por ideologia e funções políticas, mas também por estarem integrados a algumas de suas
estruturas organizacionais de base. Consequentemente, criando processos específicos e
constância na elaboração de informações e registros sobre suas próprias atividades.
Em 1998, os documentos correspondentes a atividades de formação promovidas
pelo MST entre 1980 e 2001, incluindo os principais periódicos editados e publicados,
foram entregues à custódia do CEDEM. Esse conjunto de documentos, proveniente da
Coordenação Nacional do MST, estava acumulado na Sede Nacional, na cidade de São
Paulo (CEDEM, 2018).
No Guia do Acervo do CEDEM (2018) é mostrada a diversidade de dimensões e
suportes dos documentos oriundos do MST, composto por registros de diversos gêneros,
com destaque para os gêneros - textual, bibliográfico, iconográfico e audiovisual:
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[...] é composto por publicações do MST e sobre o MST, material de propaganda,
cadernos de formação e educação, recortes de jornal, relatórios de reuniões,
correspondências, projetos, material pedagógico, documentação financeira e
administrativa, documentos textuais produzidos pelo Setor de Educação da
sede nacional, fitas de vídeo e o Jornal dos Trabalhadores sem Terras. (CEDEM,
2018, p. 109-110).
Devido às especificidades e características próprias do MST, esse conjunto de
documentos forma um acervo complexo e com grandes particularidades. Diante desse
desafio, a normalização da descrição de seus documentos, assim como a definição do
nome dos tipos documentais encontrados no acervo, pode ser um grande aliado da
organização arquivística, especialmente na formação das séries documentais e,
posteriormente, em sua organização e posterior recuperação da informação.
A possibilidade de pensar e repensar as ações relativas à organização de arquivos
de movimentos sociais é uma maneira de rever conceitos e procedimentos tradicionais
da arquivologia. Para além do universo relativo aos arquivos institucionais, existem
organizações cujo papel precisa ser considerado na construção da memória social.
Nota-se que o desenvolvimento de metodologias para o tratamento da
informação, assim como a promoção do acesso a conjuntos de documentos constituídos
paralelamente ao sistema de produção de documentos oficiais, pode colaborar com o
estabelecimento de protocolos de trabalho que considerem o perfil e contexto de
produção e atuação da instituição de proveniência.
5 TIPOLOGIA DOCUMENTAL COMO INSTRUMENTO PARA A ORGANIZAÇÃO DE
ARQUIVOS DE MOVIMENTOS SOCIAIS
A metodologia derivada da Tipologia Documental possibilita estabelecer a
relação orgânica do documento, da criação a sua destinação, por se voltar à
compreensão dos componentes desses conjuntos orgânicos, permitindo o
estabelecimento de parâmetros para a organização documental a partir da análise da
configuração do documento, em conformidade com a disposição, natureza das
informações encontradas e correspondência à mesma atividade (BELLOTTO, 2002).
Com isso, a identificação das séries documentais, a partir da tipologia documental, é
fundamental para a classificação, descrição e, principalmente, para a recuperação da
informação (GARCIA RUIPÉREZ, 2007, p. 9).
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Nesse sentido, estudos de tipologia documental proporcionam reconhecer
características semelhantes entre documentos, assim como entre a disposição de
informações, por meio da análise de caracteres externos e internos, permitindo compor
uma série documental. Os estudos de tipos documentais, segundo Arévalo Jordán (2003,
p. 229):
[...] es totalmente necesaria para el archivero, en primer lugar, porque los tipos
documentales van a distinguir las series documentales que son las
agrupaciones documentales indispensables tanto a los efectos de clasificación
como de inventarios, en segundo lugar, porque esa determinación es uno de los
elementos precisos para la catalogación.
Troitiño (2015) observa em alguns arquivos a ausência de uniformidade na
definição dos tipos documentais e, consequentemente, das séries documentais de um
fundo. Essas situações constituem em um verdadeiro desafio nos momentos de
organização e recuperação da informação. Para a autora, parte considerável da solução
do problema reside nos estudos de tipologia documental.
No caso específico do MST, observou-se que a falta de uniformidade no
estabelecimento dos tipos documentais representa um grande desafio a ser enfrentado.
A categorização de determinados documentos típicos de movimentos sociais auxilia na
compreensão do mecanismo responsável pelas ações geradoras dos documentos e pelo
uso de documentos para gerar ações.
A produção documental de movimentos sociais pode conduzir à elaboração de
registros para auxiliar em sua própria organização administrativa ou, então, conduzir a
documentos criados com o intuito de formar e comunicar aos seus participantes
diversos assuntos. A esta última categoria de documento podemos classificar como
documento popular, por apresentar a finalidade de transmitir informações voltadas para
a educação dentro do próprio movimento e, também, por ser produzido obedecendo a
regras e estruturas culturais determinadas por sua origem.
Como experimentação inicial referente à aplicabilidade da organização de
acervos de Movimentos Sociais por meio da Tipologia Documental, trabalhamos com
quinze documentos, que compõem a caixa de número um, no Fundo do Movimento Sem
Terra. A escolha por esses documentos ocorre por apresentarem uma organização
definida pela instituição de guarda e por representarem uma grande diversidade dos
tipos documentais dentro do acervo.
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Por meio da apreciação da espécie e da função do documento, estipulamos o tipo
documental, que posteriormente foi utilizado para a organização dos grupos, das séries
e do arranjo, conforme apresentado nos quadros 1 e 2:
Quadro 1 Tipologia Documental do acervo do MST
Título Espécie Atividade Tipo documental
Normas Gerais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Norma Regulamentar Normas de regulamentação
As instâncias nacionais e estaduais Manual Regulamentar Manual de regulamentação
Vamos organizar a base do MST Apostila Formar Apostila de Formação
Só direge, quem sabe! Apostia Formar Apostila de Formação
Sugestão para condução de Reunião Manual Orientar Manual de orientação
Como escolher as instâncias do MST Instrução Normativa Instução Normativas
Quadro de Avaliação Quadro Avaliar Instução Normativas
Dirigir e ou Administrar Informativo Formar Informativo de formação
Estrutura do MST Organograma Organizar Organograma de Organização
A disciplina no MST Informativo Formar Informativo de formação
A função dos núlceos dos militantes do MST Informativo Formar Informativo de formação
Secretaria: Nosso 'Cartão de Visita" Informativo Orientar Informativo de orientação
Delegar atividades Capacitar Militantes Apostila Formar Apostila de Formação
A Organicidade necessária Apostila Formar Apostila de Formação
Circular34/95 Circular Orientar Circular de orientação
Contribuição para o debate dos núcleos Informativo Formar Informativo de formação
Fonte: Elaborado pelos autores (2019).
Quadro 2 Possibilidade de Arranjo Documental para o acervo do MST
Arquivo Grupo Série Documento
A Organicidade necessária
Delegar atividades Capacitar Militantes
Só direge, quem sabe!
Vamos organizar a base do MST
Dirigir e ou Administrar
A disciplina no MST
A função dos núlceos dos militantes do MST
Contribuição para o debate dos núcleos
Normas de Organizão Normas Gerais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Regulamento de Organização As instâncias nacionais e estaduais
Manual de orientação Sugestão para condução de Reunião
Instrução Normativa Como escolher as instâncias do MST
Organograma de Organização Organograma de Organização
Circular de orientação Circular de orientação
Informativo de orientação Secretaria: Nosso 'Cartão de Visita"
Cartilha de Instrução
Informativo de Instrução
Formação
Gestão
Acervo dos
Trabalhadores
Rurais Sem Terra -
MST
Fonte: Elaborado pelos autores (2019).
Dessa maneira, o estudo tipológico desenvolvido buscou situar os elementos
intrínsecos do documento popular e seu valor dentro da formação educacional
promovida pelos movimentos sociais brasileiros. Como resultado, foi possível identificar
que os documentos populares m valor educacional, cultural e exercem ato
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comunicativo a todo o momento, dentro de uma conduta formativa pré-estabelecida.
Desse modo, é importante refletir sobre criação, uso e repercussão de documentos
conscientemente delineados pelos movimentos, a fim de atingir um de seus objetivos
principais: a formação simultânea de seus membros e da sociedade, como um todo traz
compreensão para o papel desempenhado pelo MST e por movimentos sociais, em geral.
Para além dos documentos populares, outros documentos representativos dos
movimentos sociais carecem de estudo. Sendo assim, utilizar critérios no processo de
análise documental que levem em conta característica do registro documental típico do
MST, auxilia na configuração de formas pré-definidas e estabelece referências, em
relação ao tipo documental, fundamentadas pelo padrão, formulando a estrutura
documental e normalizando a produção e a guarda documental.
Face ao exposto, salientamos que a análise dos tipos documentais permite uma
“[...] reflexão sobre a identificação como processo e as discussões sobre a posição que
ocupa no contexto das metodologias arquívisticas”. (RODRIGUES, 2008, p. 14). A
tipologia documental consiste, portanto, em um instrumento para a uniformização de
procedimentos metodológicos, no sentido de identificação de acervos e tratamento da
produção e organização dos documentos.
Nessa perspectiva, o presente estudo revelou que utilizar a metodologia de
análise tipológica para identificação, interpretação e sistematização de documentos
provenientes do MST auxilia no estabelecimento de parâmetros documentais que
sirvam de modelo para a organização documental, por estabelecer referências de tipos
documentais fundamentados no padrão e na formulação da estrutura documental, o que
pode vir a colaborar potencialmente na normalização da produção e da guarda
documental.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apresentamos neste artigo alguns dos pressupostos teóricos e primeiros
resultados do diálogo estabelecido entre os projetos de pesquisa: À margem da
burocracia: produção documental e arquivos de movimentos sociais e Movimentos
Sociais e Tipologia Documental: estudo da organização documental no acervo do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O primeiro projeto parte da
consideração que a intencionalidade da reunião de documentos que testemunhem
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determinada realidade, mais do que propriamente a instrumentalização de atos
burocráticos, tem relação direta com a dinâmica própria das organizações
representativas de movimentos sociais.
Essa constatação aliada à de que a difusão e reunião de documentos é uma
importante estratégia de perpetuação da memória política, diante da ameaça de sua
dissipação, representa um desafio ao tratamento arquivístico de acervos, conforme o
tradicional modelo pautado em um sistema reconhecidamente administrativo. Assim, a
pesquisa busca averiguar e debater sobre a difícil tarefa de identificar e abordar
arquivisticamente documentos de movimentos sociais e de seus militantes. Por sua vez,
o segundo projeto visa promover uma construção metodológica do processo de
organização do arquivo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
promovendo um estudo metateórico unificado com um estudo de caso para analisar as
hipóteses, os conceitos e a elaboração de novos instrumentos capazes de auxiliar na
organização de acervos de movimentos sociais estruturados com base na metodologia
derivada da Tipologia Documental.
Síntese da interação entre os dois projetos, este estudo possibilitou compreender
que os documentos produzidos por movimentos sociais são registros de suas atividades
e do funcionamento ideológico e social. Porém, a produção documental de movimentos
sociais também tem um importante significado na constituição social e compõe
elementos representativos da história do País. Mesmo esses arquivos não se formando
dentro de uma instituição legalmente constituída, é importante considerar que se
formam igualmente a partir de estruturas inter-relacionadas e atividades rotineiras da
organização de origem.
Assim, essa reflexão permitiu compreender que a criação de documentos de
movimentos sociais segue uma lógica particular, sempre realizando ato comunicativo
entre os próprios movimentos e as camadas populares da sociedade. A forma de pensar,
os modos de produzir e os elementos intrínsecos relativos a arquivos de movimentos
sociais trazem características peculiares, que devem ser consideradas no estudo dessa
documentação, além de configurar a possibilidades do estabelecimento de um arranjo
documental capaz de facilitar a contextualização e a recuperação da informação.
Com isso, a identificação dos tipos documentais existentes dentro de um arquivo
pode servir como base para a organização e a formação das ries documentais. Este é
um processo metodológico que permite priorizar a organicidade do acervo e as
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especificidades do órgão produtor, fator fundamental para o tratarmos de informações
procedentes de movimentos sociais.
Desse modo, adotar a tipologia documental como um instrumento interpretativo
que demonstra a necessidade da identificação da atividade responsável pela produção
dos documentos é um dos métodos a orientar a análise conjuntural sobre a organização
do acervo do MST, mas que potencialmente pode vir a colaborar com futuras pesquisas e
protocolos de organização arquivística em arquivos oriundos de outros movimentos
sociais.
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