INTERSECÇÕES ENTRE MEMÓRIA E FEMINISMO
INTERSECTIONS BETWEEN MEMORY AND FEMINISM
Anna Raquel de Lemos Viana
1
Maria Nilza Barbosa Rosa
2
Izabel de França Lima
3
¹ Mestranda em Ciência da Informação
(PPGCI/UFPB),
E-mail: annaraquellemoss@gmail.com
2
Doutora em Letras pela UFPB, Pós-doutoranda
em Ciência da Informação (PPGCI/UFPB)
E-mail: nilzasor@yahoo.com.br
3
Doutora em Ciência da Informação pela UFMG,
Professora do PPGCI e do PPGOA/UFPB
E-mail: belbib@gmail.com
ACESSO ABERTO
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Conflito de interesses: As autoras declaram
que não há conflito de interesses.
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Recebido em: 20/09/2019.
Revisado em: 01/10/2019.
Aceito em: 10/10/2019.
Como citar este artigo:
VIANA, Anna Raquel de Lemos; ROSA, Maria
Nilza Barbosa; LIMA, Izabel de França.
Intersecções entre memória e feminismo
Informação em Pauta, Fortaleza, v. 4, n.
especial, p. 31-46, nov. 2019. DOI:
https://doi.org/10.32810/2525-
3468.ip.v4iEspecial.2019.42602.31-46.
RESUMO
Surgindo no contexto de ideais iluministas e
transformadores da Revolução Francesa e
Americana, posteriormente se espalhando no
mundo todo, o feminismo, como movimento
social, é essencialmente moderno e faz críticas à
estrutura de poder patriarcal existente na
sociedade através de discussões por direitos
sociais e políticos. Atua em multiplicidade de
relações, construindo articulações e se
ampliando dentro do contexto mundial. Nessa
perspectiva, esse artigo se propõe a percorrer a
trajetória histórica por onde transitaram as
dinâmicas políticas dos feminismos, refletindo
sobre as intersecções da memória como fio
condutor para o empoderamento,
fortalecimento da identidade e a conquista dos
direitos das mulheres.
Palavras-chave: Feminismo. Movimentos
Sociais. Memória. Direitos. Política.
ABSTRACT
Arising in the context of "the age of
enlightenment" and transforming ideals from
the French/American Revolution and later
spreading worldwide, feminism as a social
movement is essentially modern and criticizes
the existing patriarchal power structure in
society, through discussions for social and
political rights. It acts in a multiplicity of
relationships, building articulations and
expanding inboard the world context. Within
this perspective, this article intends to go
through the historical trajectory of the political
dynamics of feminism, reflecting on the
intersections of memory as a leader for women's
empowerment, strengthening of identity and
acquisition of women's rights.
Keywords: Feminism. Social Movements.
Memory. Rights. Politics.
Inf. Pauta
Fortaleza, CE
v. 4
n. especial
nov. 2018
ISSN 2525-3468
DOI: https://doi.org/10.32810/2525-3468.ip.v4iEspecial.2019.42602.31-46
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1 INTRODUÇÃO
Questões de gênero sempre permearam acontecimentos históricos. Dentre elas,
destaca-se o movimento feminista, que surge como crítica à modernidade, promovendo
um questionamento político, cultural e moral. Além disso, apresenta, ao âmbito político,
questões até então consideradas apenas de esfera privada, a saber: sexualidade, direito
ao corpo, maternidade, aborto, violência contra a mulher, contracepção e maternidade.
Aliadas a isso, as mulheres expõem assuntos do dia a dia e denunciam as desigualdades
de uma cultura patriarcal, que valoriza a figura do homem em detrimento da mulher, e
coloca em pauta o salário inferior comparado ao dos homens, a falta de divisão dos
afazeres domésticos, a criação dos filhos, a participação política, entre outros aspectos.
Por meio de uma reflexão analítica, entende-se que o poder não é uma
propriedade que pertence exclusivamente a um grupo ou uma classe (FOUCAULT,
1979), ou seja, não existem aqueles que detêm o poder (dominantes) e os que são
dominados. uma rede, práticas de relações de poder. Sendo assim, o poder se
constitui como algo que se exerce, se efetua, funcionando como estratégias, isto é,
“formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto
natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente”
(FOCAULT, 1979, p. 10).
Ainda segundo (FOCAULT, 1987), esse tipo de poder foi disseminado por todo o
tecido social, ampliando-se e tornando- se “capilarizado”. Ou seja, ao invés de o poder
atuar de forma maciça e geral, acontece muitas vezes com mecanismos de poder,
alicerçados por micropoderes, de forma sutil e distribuída. Vale ressaltar que os
micropoderes não cessam os macropoderes, mas servem para sustentar ou multiplicar
os efeitos deles. Percebe-se que as relações de poder ultrapassam o nível estatal e se
estendem por toda a sociedade, evidenciando que, na modernidade, o é o Estado o
centro de formação e controle de sociabilidade. Como complementa Agamben (2009),
existem os dispositivos que se constituem como algo além das instituições (governo,
escolas, manicômios), mas que têm a capacidade de capturar, orientar, determinar,
assegurar os gestos e condutas, opiniões dos seres viventes, como a literatura, escritura,
computadores. Sendo assim, considera-se tudo que exerce poder, de menor ou maior
escala.
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Para melhor compreensão da estrutura do poder, Focault (1979) propõe analisar
em suas extremidades, em suas formas e instituições mais regionais e locais, sobretudo
indo além das regras de direito e que se organizam e delimitam, penetrando em
intuições, virtualizando técnicas que passam a ser instrumentos de interação material,
por vezes, violentos.
Tal perspectiva deve levar em consideração os movimentos sociais, que buscam,
em ação coletiva, provocar mudanças sociais, dentro de um embate político, em um
determinado contexto. Dentre eles, observa-se o movimento feminista como um
movimento moderno, que surge a partir do contexto das ideias iluministas (1680-1780),
com a Revolução Francesa (1789-1799) e Americana (1775-1781), reivindicando
direitos sociais e políticos, com maior ênfase para a luta sufragista, através da
mobilização de mulheres de vários países, afirma Oliveira (2014). Com características
muito particulares, atentando-se para sua história e processos, “é um movimento que
produz sua própria reflexão crítica, sua própria teoria” (PINTO, 2010, p. 12).
Ao dar visibilidade a reivindicações à esfera pública, o movimento feminista se
mostra como interlocutor junto ao Estado, legitimando os direitos e denunciando a
opressão cultural construída historicamente para silenciar as mulheres. Além disso,
utiliza a memória coletiva como forma de construção social para fundamentar e reforçar
os sentimentos de pertencimento e coesão dos grupos feministas.
Justifica-se a importância de reconstruir a história sobre as mulheres, a partir de
lembranças, experiências e vivências dos movimentos feministas, e seu papel na
organização e constituição de uma história que teve como protagonistas as mulheres.
Estas deixaram suas marcas nas lutas cotidianas em suas várias dimensões e níveis,
assim como em diferentes lugares e momentos históricos.
Le Goff (1990) aponta que a memória coletiva é posta como forma de luta pelas
forças sociais de poder. Aqueles indivíduos que dominaram e desejam dominar as
sociedades históricas se preocupam com a memória e o esquecimento das classes,
grupos e indivíduos, como mecanismo de manipulação da memória coletiva.
Ademais, ao incorporar o direito à memória, o movimento feminista propõe
reflexões sobre o discurso histórico, científico e político que privilegia o sujeito
masculino, e promove a desconstrução dos modelos sociais tradicionais, em troca da
construção da alteridade e inclusão das mulheres historicamente apagadas.
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Com a possibilidade de alterar e modificar fatos descritos a partir de novas
percepções, os estudos sobre memória promovem mudanças sociais, pois permitem
reconstruir o fenômeno, em função das preocupações éticas, pessoais, políticas e
culturais de vários momentos vivenciados por diferentes sujeitos.
Neste artigo, busca-se discutir as bases em que se assentam os feminismos,
levando em consideração o desconhecimento da sociedade acerca da história, evolução e
articulação do feminismo, destacando participações de mulheres excluídas
historicamente, bem como problematizando as práticas e discursos do uso da memória
pelo movimento feminista, em suas constituições identitárias em busca de
reconhecimento.
2 MEMÓRIAS: REFLEXÃO DAS FEMINISTAS
Do direito a estudar políticas públicas voltadas para a mulher, podem-se citar
vários exemplos de conquista e institucionalização de pautas feministas, tanto no espaço
público quanto no privado, que permitem o reconhecimento da capacidade feminina. No
entanto, ainda um desconhecimento da história do feminismo, em parte, pela
limitação de bibliografia e reflexão teórica ao longo dos anos.
Para fins didáticos, o estudo sobre o feminismo divide-se em ondas feministas
(the waves terminology), que, embora apresentem algumas controvérsias tanto no nível
teórico quanto prático, elas são parâmetro cronológico e teórico. Uma onda” feminista
foi um momento histórico relevante de efervescência militante e/ou acadêmica em que
determinadas pautas e questões das mulheres se insurgiram e dominaram o debate.
(FRANCHINI, 2019).
Diferenciados por conjunturas, os feminismos são vistos, em geral, como
irrupções em que, de repente, não mais que de repente, mulheres diversas se
juntam, mostramse “irmanadas” na agitação de “causas” ou motivações políticas
que se avolumam e que avançam como onda. Esta, depois de atingir um ponto
alto, desce, invadindo os mais variados territórios, em diversos tempos; em
seguida, tudo parece dissiparse. Diria que um maior rigor na produção do
conhecimento dessas causas” /motivações depende, sim, de pesquisa de fontes,
mas sob uma leitura orientada por conceitos que admitam esses movimentos
conjunturais como partes de um vasto tecido social, em grande medida,
submersas, vindas de diferentes tempos históricos, trançadas entre si e que
avançam em infinitas combinações de “ramificações”, continuadas ou não,
sinalizando movi mentos e transformações de visões de mundo (FRANCHINI,
2009, p. 4).
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Cada onda tem suas particularidades e facilita as formas de agrupar as mulheres
de acordo com suas demandas e momentos históricos. “Assim, apesar de o haver um
único posicionamento do movimento feminista, é possível identificar certos paradigmas
ou ideologias predominantes que se revelam em reivindicações e pautas de determinada
época”. (SAFFIOTI, 1986, p. 105).
Entende-se que há, nas ondas feministas, uma síntese hegemônica de
determinado período histórico demarcado por enfoques, estratégias e posições políticas.
Dessa forma, são feitos recortes espaciais, temporais e teóricos dos movimentos
feministas ao longo da história da organização de mulheres.
2.1 Primeira Onda
Inicialmente, nas últimas décadas do século XIX, na Inglaterra, as mulheres se
juntaram para lutar por direito ao voto e ficaram popularmente conhecidas como
sufragistas. A mulher, antes vista como ser do lar e feita para procriar, tem questionado
a imposição dos papéis submissos destinados a elas. Portanto, como observa Pinto
(2010), as primeiras reivindicações surgem com pedidos básicos, como direito ao voto e
a participação política. Para isso, as mulheres promoveram grandes manifestações, e
muitas, inclusive, foram presas ou fizeram greve de fome.
no Brasil, o feminismo surge posteriormente, também com a luta pelo direito
ao voto. “As sufragistas brasileiras foram lideradas por Bertha Lutz, bióloga, cientista de
importância, que estudou no exterior e voltou para o Brasil na década de 1910, iniciando
a luta pelo voto” (PINTO, 2010, p. 16). Elas defendem que homens e mulheres são iguais
em relação à capacidade moral e intelectual, e, portanto deveriam ter as mesmas
oportunidades para trabalhar, estudar e participar da esfera pública, predominando,
nesse período de militância, a defesa da igualdade.
Segundo Saffioti (1986, p. 107), a proposta fundamental era “ampliar o que se
entende por democracia, tornando iguais perante a lei os crescentes contingentes
humanos das sociedades competitivas. Nesta concepção, cabe reivindicar para as
mulheres igualdade de direitos com relação aos homens no plano de jure”.
Porém, a crítica a esse período consiste em afirmar que as pautas estavam ligadas
a interesse de mulheres brancas e de classe média, e, por isso, eram pautas
generalizadas de inclusão formal, não adentrando profundamente a estrutura patriarcal
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e machista construída. Mesmo que tenha se restringindo a conquistas “formais”, é
inegável o impacto causado na estrutura de poder patriarcal, por se constituir de um
movimento massivo, em que a coletividade de mulheres ocupou espaços públicos (ruas,
praças), causou tensões e consequentemente mudanças.
Marcam-se também as ideologias nazistas e fascistas deste período que
culminavam num maior controle feminino e na tentativa de reforçar os papeis sociais
como inerentes e naturais, marcando o arrefecimento das mobilizações populares como
um todo (ALVES; PITANGUY, 1985, p. 49-50).
Ainda segundo (ALVES; PITANGUY, 1985, p. 50), “o papel estatal e midiático teve
fundamental influência no retorno da mulher ao espaço doméstico e domesticado. As
propagandas neste período exaltam a figura dona-de-casa servil ao marido, do papel de
esposa e mãe e do fomento à indústria de beleza e estética.”
Nesta reflexão, percebe-se a estrutura patriarcal predominante, e a forma como
as mulheres lutaram para ter direitos e garantias em uma sociedade com cultura
predominantemente masculina e machista. Ao fazer uma crítica cultural e questionar
valores tradicionais, o feminismo entende que a cultura é dinâmica e pode sofrer
alterações devido a eventos históricos, ou conflituoso contrato cultural, pois a cultura
condiciona a visão do mundo do homem (LARAIA, 2001).
Construindo articulações e ampliando para um contexto mundial, como
corroboram Bandeira e Melo (2010, p. 8), “o movimento feminista nasceu das lutas
coletivas das mulheres contra o sexismo, contra as condições de aversão e inferiorização
feminino, transformadas em práticas rotineiras de subordinação”.
A luz disso, o direito à memória se estabelece como pauta primordial das
mulheres, e nesta relação começa a constituição de uma subjetividade política e social,
optando por ticas e estratégias de conscientização por meio de atividades coletivas,
proporcionando o maior empoderamento do movimento. Da mesma forma que a
memória e a cultura nos modelam, ela também é modelada por nós, sendo preciso um
reconhecimento do valor dessa memória pelo grupo.
Em consequência dessa relação de disputa de poder, durante muito tempo as
realizações femininas e a memória permaneceram em silêncio, pois, pensando
politicamente, não interessava essa história ser contada (PERROT, 2012, p. 114). O uso
da memória passa a ser um instrumento de controle, servindo de controle para a
construção de uma história que limita os comportamentos dos sujeitos envolvidos,
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delimitando à mulher apenas o espaço privado para criação dos filhos e cuidado do lar,
isto é, um papel de invisibilidade em relação ao homem, sempre destacado no espaço
público.
2.2 Segunda Onda
Nas décadas entre 60 e 70, grandes revoluções aconteceram no cenário mundial:
manifestações estudantis, movimentos de resistência contra a Ditadura Militar,
movimento hippie e manifestações contra a guerra do Vietnã.
“A segunda onda do feminismo na América Latina nasceu nos anos 1970, em
meio ao autoritarismo e à repressão dos regimes militares dominantes e das falsas
democracias claramente autoritárias.” (UNESCO, 2009).
Em meados dos anos 50 até meados dos anos 90, iniciam estudos centrados na
origem da condição da mulher, apresentando questionamentos sobre o porquê de as
mulheres serem consideradas em situação inferior a dos homens. Nesse período
também começou a se construir uma base teórica sobre a opressão contra a mulher,
justificada pela condição biológica e função reprodutiva.
Ao lembrar-se da estrutura patriarcal que a sociedade se constitui ao longo dos
anos, o coletivo feminista se articula, unindo as experiências individuais e coletivas e
questionando a situação de rias experiências de mulheres espalhadas no mundo.
Hallbwacks (2013) diz que o indivíduo que lembra está inserido na sociedade na qual
sempre possui um ou mais de um grupo de referência. Por isso, a memória é sempre
construída em grupo, e “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva.”
Entendem-se as lembranças como resultado de um processo coletivo, ou seja,
estão inseridas em um contexto social específico, como afirma (HALBWACHS, 2013, p.
30): lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que trate
de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos.
Isso acontece porque jamais estamos sós”. As mulheres ativistas que participaram da
chamada segunda onda enxergavam as relações entre desigualdades culturais e
políticas. Através da memória, encorajavam os sujeitos a refletirem sobre suas histórias
e sobre os aspectos de suas vidas pessoais, relacionando ao poder - estrutura de poder
sexista.
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Assmann (2011) indica dois modos de recordação: memória funcional e memória
cumulativa. A memória funcional é responsável por assegurar a identidade do grupo, ou
seja, é seletiva e remete a um grupo, indivíduo, estabelecendo uma conexão entre
passado e futuro. A memória cumulativa é caracterizada por ser histórica, e por isso não
depende de um sujeito específico, não é seletiva, não critérios, tudo é importante.
Com isso, Assmann (2011) compara a memória funcional à memória coletiva, e a
memória cumulativa à memória histórica, a qual separa o presente, passado e o futuro,
sendo a primeira habitada, e a segunda inabitada.
A memória habitada é possível alterar e ser utilizada de diversas formas. Destaca-
se a legitimação e a deslegitimação, processo em que existe a alteração da memória,
confirmando ou anulando, de acordo com propósitos políticos. a memória cumulativa
funciona como reservatório para armazenamento de memórias funcionais, portanto o
é natural, é necessário o apoio de instituições para preservá-las. Por fim, a autora afirma
que “a dimensão memorial e a dimensão científica da historiografia não se excluem, pois
se liga uma à outra, de maneira complexa” (ASSMANN, 2011, p. 158), sugerindo que se
utilizem as duas formas para reorientar o projeto de escrita da história.
É importante, neste período de busca por uma política de igualdade de direitos,
fundamentada no reconhecimento entre equidade entre os gêneros, a utilização da
memória, pois “a memória se orienta para o passado e avança o passado adentro por
entre o véu do esquecimento. Ela segue os rastros soterrados e esquecidos, e reconstrói
provas significativas para a atualidade.” (ASSMANN, p. 53. 2011).
Prova disto são expressões e slogans que se tornaram bastantes conhecidos
nessa segunda onda, por exemplo, o slogan O pessoal é político”, idealizado pela
feminista e autora Carol Hanish. Ela problematiza a desigualdade de união com
problemas culturais e políticos, incentivando as mulheres a terem sua liberdade política
para combater as estruturas sexistas de poder. Outro exemplo foi a “Liberação das
mulheres” com os protestos e queima de sutiãs, com participação de cerca de
quatrocentas ativistas do WLM (Women´s Liberation Movement), em 1968, durante a
realização do concurso de Miss América.
A crítica feminista durante esse período é o principal movimento a influenciar a
história das mulheres e o amadurecimento das pautas e debates sobre a afirmação da
igualdade entre os sexos, em oposição à visão parcial da história. Segundo Joan Scott: “as
feministas começaram a utilizar a palavra “gênero” mais seriamente, no sentido mais
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literal, como uma maneira de referir-se à organização social da relação entre os sexos.”
(SCOTT,1989). Uma das estratégias foi a utilização da palavra gênero como forma de
suprimir os termos mulher, mulheres e estabelecer uma nomenclatura de relação entre
os sexos, de forma que não fossem acusadas de reconstruir uma história parcial.
A segunda onda é caracterizada, portanto, no avanço de percepção e análise do
movimento de forma holística, incorporando em suas pautas diversas posições,
denunciando a estrutura de patriarcado exercido como poder político através da
dominação masculina e subversão das mulheres, além do âmbito privado, invadindo
todos os espaços da sociedade (SAFFIOTI, 2004).
Fazendo crítica ao caráter burguês-liberal da primeira onda, o próprio
movimento acrescenta reinvindicações acerca de classe e raça, relações de poder e
transversalidade de opressões estruturais, transcendo as questões de gênero.
Destacam-se nesse período as primeiras discussões e problematizações sobre a
diferença entre gênero, sexo e orientação sexual, denunciando o errado das
naturalizações de papéis sociais impostos a homens e mulheres.
2.3 Terceira Onda do Feminismo
Como citado, na segunda onda do feminismo, uma das principais preocupações
era o fim da discriminação e desigualdade entre os sexos. Como forma de responder as
supostas falhas e preencher lacunas das ondas anteriores, a terceira onda, iniciada em
meados da década de 80 e 90, objetivava ressignificar as definições e evitar estereótipos
essencialistas acerca da mulher.
Violência, sexualidade, direito ao trabalho, igualdade no casamento,
direito à terra, direito à saúde maternoinfantil, luta contra o racismo,
orientações sexuais. Esses grupos organizavamse, algumas vezes, muito
próximos dos movimentos populares de mulheres, que estavam nos
bairros pobres e favelas, lutando por educação, saneamento, habi tação
e saúde, fortemente influenciados pelas Comunidades Eclesiais de Base
da Igreja Católica. (PINTO, 2010, p. 17).
Abordam temas sobre micropolítica e questões relativas a aspectos culturais,
sociais, políticos e de cor, sobretudo o movimento feminista intersecional. Entre as
principais discussões, existe a defesa da participação da mulher negra na sociedade.
Buscaram, então, mudar os modelos como a mídia e a linguagem retratavam e definiam
as mulheres.
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o próprio questionamento do padrão branco de classe média-alta das feministas,
mulheres negras começaram a se destacar no movimento e negociar seus
espaços para revelar as diferenças vividas por mulheres com diferentes
condições sociais e étnicas. (FARIA, 1997, p. 23).
O objetivo passa a ser então o reconhecimento de diversas identidades femininas
e olhar crítico sobre as estratégias e organização das pautas feministas, entendendo as
diferenças significativas sobre o sexo.
Fica evidente a importância de aprender sobre a vida e luta de mulheres
antepassadas, como forma de legitimação e reconhecimento da estrutura patriarcal na
qual estamos inseridos, valorizando a memória como instrumento no avanço da
conquista de direitos. Majoritariamente, a produção histórica foi feita por homens, a
partir de experiências e pontos de vista vividos por eles.
Mas, [para Foucault] a história é um jogo de forças, sem fio condutor,
sem a trama de um sujeito transcendental a percorrê-la inteiramente,
tornando-a inteligível, destrinçando seu sentido, buscando suas leis
progressivas e evolutivas. A história não tem por detrás de si fios
causais, não é a busca da origem e nem de um fim remoto. No lugar do
retorno a um começo feliz, a temporalidade anônima, dispersa, sem
volta. Cada trama histórica desenha uma disposição na ordem do saber,
não há um sujeito soberano acima dessas disposições. Ele é tramado por
elas. (...) não um sujeito supra-histórico e sim posições possíveis de
subjetividades constituídas, diferentes, porém nunca indiferentes
(ARAÚJO, 2008, p. 99-100).
Implica-se, com o entendimento de história por Focault, o rompimento de uma
percepção de história linear, casual e diacrônica, com base em convicção de origem e
fim, a partir de rupturas e descontinuidades.
Benjamim (1994, p. 231), em seu texto sobre o conceito de história, apresenta a
necessidade de narrar a experiência e afirma que o historicismo “culmina legitimamente
na história universal”, cujo “procedimento é aditivo”. Isto é, o historicismo privilegiaria a
“história dos vencedores” e acabaria apagando a memória dos excluídos, ou seja, dos
esquecidos pela memória oficial. Esse papel relegado ao público feminino de
insignificância foi responsável para que se entendam as razões das faltas de fontes
históricas sobre sua existência concreta e sua história singular (PERROT, 2012, p. 22).
Percebe-se a necessidade de construir uma história e uma memória capazes de atender
as necessidades e as vivências das mulheres em sua constituição de valor,
diferentemente dos papéis estereotipados.
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Assmann (2011) aponta que não ingenuidade no rememorar. Sempre existem
interesses políticos e sociais que envolvem as questões de compartilhamento, guarda e
preservação, que vão além das questões práticas e tecnológicas.
Prova disto é a crescente centralização de poder pela Igreja e Estados nos
“processos de coleta, armazenamento, recuperação, uso e supressão de diferentes tipos
de informação” (BURKE, 2003, p. 110). Havia uma censura aos livros como forma de
evitar a leitura de determinadas obras. A partir do século XV, ao lado do registro do
“tempo da igreja” e do tempo dos negociantes”, surge o “tempo dos arquivistas,
cronistas e historiadores”. A invenção da imprensa ajudou no desenvolvimento desta
nova memória desvinculada da igreja.
Por isso, além de construir uma nova consciência, é necessário reconhecer e
entender o contexto histórico, os silenciamentos, as vivências e conquistas de mulheres
de décadas anteriores. Não basta reconstituir pedaço por pedaço a imagem de um
acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstituição
funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e
também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para aqueles e vice-
versa, o que será possível se somente tiverem feito e continuarem fazendo parte de uma
mesma sociedade, de um mesmo grupo (HALBWACHS, 2013, p. 39).
É fundamental que as lembranças sejam reconstruídas e reconhecidas pelas
mulheres à sociedade, em especial o grupo feminista, através do compartilhamento de
informações e lembranças para o fortalecimento do grupo social.
2.4 Quarta Onda do Feminsmo
Apesar de não haver consenso entre os estudiosos, parte da academia afirma
existir uma quarta onda do feminismo. Tais lutas são engendradas
contemporaneamente pelos chamados coletivos, organizações fluidas, discursivamente
distantes da política parlamentar e das organizações tradicionais (PEREZ; SOUZA, 2017).
Atualmente, os debates em torno das questões femininas estão cada vez mais
fortes, permitindo a reflexão sobre as experiências sociais e pessoais dos sujeitos
masculinos e femininos, caracterizada principalmente pela possibilidade do uso das
redes sociais e tecnologias da informação e comunicação (TIC’s). As feministas
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encontram um espaço para produzir, disseminar informação para mulheres em todo o
mundo, sem barreiras geográficas e com facilidade de conexão.
Dessa forma, as questões feministas ocupam espaço na academia, na política e
apresentam pautas de discussões mundiais, interferindo e questionando os sistemas
democráticos, políticos e morais, levantando novas propostas e dando continuidade às
conquistas das femininas das décadas anteriores.
As principais palavras dessa nova onda são “liberdade” e “igualdade”. Essa
liberdade, de acordo com Arendt (1979, p. 192), é dimensão da política. "O campo em
que a liberdade sempre foi conhecida, não como problema, mas como fato da vida
cotidiana, é o âmbito da política". Portanto, requer um espaço politicamente organizado,
demonstrando "algo tangível em palavras que podemos escutar, em feitos que podem
ser vistos e em eventos que podem ser comentandos, relembrados e transformados em
estórias antes de serem incorporados, por fim, ao grande livro da história humana"
(ARENDT, 1979, p. 201).
A liberdade se manifesta de forma concreta e tangível, revelada através da ação e
do discurso de "criar seu próprio espaço concreto onde possa, por assim dizer, sair do
esconderijo e fazer sua aparição" (ARENDT, 1979, p. 218). Porém, atualmente, pouca
representatividade feminina no cenário político, muita dificuldade para ocupação em
cargos de poder, pouco espaço de fala e tomada de decisão. Isso se devido à exclusão
das mulheres na política e na história que reverbera até hoje.
Por vários lados, as feministas passavam a feminizar-se valorizando a
linguagem feminina, os atributos e os temas femininos, o que significava
mais do que um simples retorno aos seus valores próprios, um
alargamento do campo conceitual, através do qual teciam suas críticas à
sociedade patriarcal capitalista, revelando suas armadilhas e limitações.
Mais do que nunca, passaram a pensar em si mesmas sob uma ótica
própria, dando visibilidade ao que antes fora escondido e recusado, o
que inevitavelmente levou a uma radicalização da potencialidade
transformadora da cultura feminista em contato com o mundo
masculino. Tratava-se então, não mais de recusar o universo feminino,
mas de incorporá-lo renovadoramente na esfera pública, o que se
traduziu ainda por forçar um alargamento e uma democratização desse
mesmo espaço. (Os feminismos no Brasil: dos “anos de chumbo” à era
global (RAGO, 2003, p. 6).
A disputa pela memória e a luta por visibilidade são urgentes no momento atual
da nossa sociedade, principalmente no contexto brasileiro, pois, em meio a onda
conversadora que se destaca, estamos vivendo uma tentativa de apagamento da
memória da resistência política e da leitura crítica da história. Como observa Assmann
(2011), é fundamental, nesse contexto, saber o que será armazenado e o que será
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descartado. Anteriormente, até mesmo o lixo do passado era fonte de informação
cultural sobre os hábitos de um povo, porém, na era das mídias digitais, a fronteira entre
o que se deve lembrar e o que deve ficar esquecido é cada vez mais tênue. Nesse
momento, é necessário retomar a história como pauta prioritária e utilizar a memória
como objeto de disputa, pois evidencia experiências sociais diferentes por partes dos
atores envolvidos e apresenta manifestações de cada grupo.
Os elementos que constituem a memória coletiva permitem que os fenômenos
históricos em que as mulheres vivenciaram, de maneira individual ou coletivamente,
construam uma narrativa histórica em que as feministas apresentaram novas práticas
políticas e novas visões de sociedade na qual a mulher é sujeito.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao se revisar a historiografia dos movimentos feministas, podem-se perceber as
principais características e algumas distinções em relação à periodização por ondas. É
notório, também, o papel de esquecimento e subordinação da figura feminina em relação
à figura masculina ao longo dos anos.
Por isso é tão importante entender as relações de poder e o uso da memória por
toda a sociedade, para que possa servir como forma de liberdade e não de domínio de
um grupo específico, valorizando dessa forma a democratização da memória.
Com mais liberdade, as mulheres descobrem a sua história e o seu papel além da
procriação e afazeres domésticos a que sempre estiveram condicionadas, modificando a
visão e a configuração da sociedade. Consequentemente, buscando a efetivação do seu
papel a partir de registros, obras de arte e ocupação, aliadas a transformações que
ocorreram no âmbito político e econômico em que o poder político estava estruturado.
Apesar de ainda não alcançarmos uma sociedade justa e igualitária, com o fim da
hierarquização dos sexos, a inserção da memória ocupou um novo âmbito, possibilitou
que vozes femininas nãos fossem silenciadas, sendo possível ouvir com mais frequência
sobre suas participações na ciência, na história, na mídia e na participação política.
Exemplo disso é o Dia Internacional da Mulher, que se tornou um dos grandes
símbolos da luta do movimento feminista, proposto por Clara Zetkin, no II Congresso
Internacional das Mulheres Socialistas, em Copenhagen, em 1910 (BLAY, 2001, p. 602),
comemorado até os dias de hoje em quase todos os países. Esse dia ainda é momento de
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luta e organizações de protestos, fóruns, eventos feministas contra a discriminação de
sexo, e momento de propostas de reinvidicações, consolidando uma coordenação de
mulheres e laços de solidariedade, oportunidade para o encontro e fortalecimento das
mulheres, favorecendo para que a memória feminina não seja silenciada. (SOARES,
1994, p. 14).
Explorando essas transformações ocorridas ao longo da história, constatam-se as
mudanças também no uso da memória ocorridas na contemporaneidade, e as influências
exercidas sobre o jogo de poder e o convívio social. A memória tem função social nos
grupos principalmente minoritários, pois sensibiliza sobre a questão do passado, da
formação e construção de uma identidade coletiva.
Discutir sobre memória e movimentos sociais, sobretudo o feminista, permite
ampliar a visão de pertencimento entre os sujeitos, na medida em que está inserido em
um contexto social. Dessa forma, é possível valorizar fenômenos e a construção de
conhecimento que esclarece e enriquece novas formas de enxergar e refletir sobre a
realidade.
O desafio de estudos sobre memórias concentra-se em apresentar as experiências
muitas vezes silenciadas e suprimidas de sujeitos, em geral, marginalizados da
sociedade, para que possam se reencontrar com a dimensão histórica, a partir do
discurso o hegemônico, com participações coletivas, abrindo oportunidades para
constituição de espaços públicos diferentes, a partir de espaços de memória e de
experiências vividas e partilhadas. Isto a fim de não somente “registrar fatos, à maneira
da historiografia oficial, mas de contribuir ativamente para que no nosso presente não
ocorra o esquecimento da tragédia” (BRUNI, 2007, p. 17).
Portanto, na medida em que a memória coletiva oferece um suporte social,
promovendo a participação das mulheres, novas significações do vivido, os estudos
permitem também a democratização e pluralização, através da coletivização dos fatos e
reconstrução da então considerada história oficial e original, carregada do discurso de
história dos que detêm o poder e, por isso, são vencedores, reproduzindo a visão dos
dominadores.
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