Revista de Psicologia, Fortaleza, v.14, e023001.8 jan./dez. 2023

DOI: 10.36517/revpsiufc.14.2023.8

 

 

RECEBIDO EM: 01/09/2022

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 08/12/2022

VERSÃO FINAL: 21/01/2023

APROVADO EM: 27/02/2023

 

Extrato de Estudo em História da Psicologia: o Masoquismo na Psychopathia Sexualis de Krafft-Ebing

Extract of study on History of Psychology: Masochism on Psychopathia Sexualis by Krafft-Ebing

Anna Rita Maciel Simião

Doutora em Psicologia- Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Psicóloga Escolar no Município de Pequeri, Minas Gerais, Brasil. E-mail: anna_rmsimiao@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6752-6750

 

Resumo

O presente artigo, no campo da história da psicologia, a analisa a criação do conceito de masoquismo na Psychopathia Sexualis. Apresentado pela primeira vez como uma perversão sexual por Krafft-Ebing em 1890, dentro da Psychopathia Sexualis, obra pioneira da apreciação médica sobre a sexualidade no século XIX, o masoquismo representa, até os dias de hoje, uma peça importante para a literatura psiquiátrica e psicológica. O presente estudo irá retomar a história conceito do masoquismo; analisar a criação do mesmo dentro da Psychopathia Sexualis e das reformulações teóricas mais relevantes ao longodas diversas edições do livro eabordar as relações entre o masoquismo e outros conceitos relevantes presentes na teoria das perversões sexuais. Por fim, irá discutir de que maneira Krafft-Ebing apresentou as bases que fizeram o masoquismo se expandir de uma manifestação da sexualidade desviante para um conceito central da personalidade humana em diversas correntes psicológicas e quais questões metodológicas essa criação trouxe para o conceito.

Palavras-chave: Krafft-Ebing; masoquismo; perversões sexuais; psicopatias sexuais.

 

Abstract

This article, in the field of the history of psychology, analyzes the creation of the concept of masochism in Psychopathia Sexualis. First presented as a sexual perversion by Krafft-Ebing in 1890, within Psychopathia Sexualis, a pioneering work of medical appreciation of sexuality in the 19th century, masochism represents, to this day, an important piece of psychiatric literature and psychological. The present study will resume the concept history of masochism; analyze its creation within Psychopathia Sexualis and the most relevant theoretical reformulations throughout the various editions of the book and address the relationships between masochism and other relevant concepts present in the theory of sexual perversions. Finally, it will discuss how Krafft-Ebing presented the foundations that made masochism expand from a manifestation of deviant sexuality to a central concept of human personality in various psychological currents and what methodological issues this creation brought to the concept.

 

Keywords: Krafft-Ebing; masochism; sexual perversions; sexual psychopathies.

 

Em 1886, o psiquiatra austríaco Richard Von Krafft-Ebing publicou a primeira edição da Psychopathia Sexualis, um manual de diagnóstico psiquiátrico que se debruçava sobre o estudo das chamadas perversões sexuais, i.e, afecções cerebrais ou espinhais que causariam sintomas psíquicos nos quais os sujeitos sentiam desejos sexuais considerados anormais na época – a saber, desejos sexuais diferentes do coito natural, que na visão desse autor, consistia no sexo vaginal entre um par de gêneros sexuais opostos. O livro foi um grande sucesso na medicina psiquiátrica do final do século XIX, sendo traduzido para diversos idiomas.

Alguns fatos podem argumentar sobre a existência de uma relevância histórica no lançamento da Psychopathia Sexualis: o livro de Krafft-Ebing constitui-se na primeira grande síntese psiquiátrica das concepções sobre a sexualidade desviante, representando a obra pioneira da teorização médica sobre sexualidade, com o médico alcançando o status de grande representante da sexologia na época (Oosterhuis, 2002, 2012, 2019; Pereira, 2009; Sauerteig, 2012). Weeks (1985, p. 67) equipara o impacto da publicação da primeira edição do livro ao impacto da publicação da teoria mais aceita dentro das ciências naturais para explicar a natureza, o evolucionismo de Charles Darwin. A Psychopathia seria, após a publicação da teoria evolucionista, o segundo momento principal e decisivo para a emergência dos discursos científicos sobre a sexualidade humana. A Psychopathia Sexualis representa ainda, em um contexto histórico sobre o estudo da sexualidade, o maior exemplar do procedimento scientia sexualis, conceito presente na História da Sexualidade do filósofo francês Michael Foucault – que faz clara alusão à obra de Krafft-Ebing (Pereira, 2009).

A Psychopathia Sexualis se estrutura na apresentação de breves discussões psicológicas e fisiológicas sobre a sexualidade, na apresentação dos conceitos das perversões, na dissecção de seus critérios diagnósticos e nas recomendações médicas a serem dadas para os júris, ilustradas por inúmeros relatos de casos. Dentre os conceitos que Krafft-Ebing introduziu pela primeira vez na medicina com a publicação dessa obra,por exemplo, sadismo, pedofilia, gerontofilia, zoofilia, entre outros – o masoquismo é um dos mais destacados.

Apresentado pela primeira vez em 1890, em um texto adendo à Psychopathia Sexualis– denominado de Neue Forschungen auf dem Gebiet der Psychopathia sexualis: eine medicinisch-psychologische Studie – como uma perversão sexual correlata ao sadismo, o conceito de masoquismo foi se expandido ao longo do século XIX e início do século XX – principalmente com a relevância conquistada pela psicanálise freudiana – e se (re)transformando através das contribuições de outros autores, conservando, desde sua criação, um status importante dentro de muitas correntes psicológicas.

Trazendo o conceito para os dias atuais, em um levantamento de bibliografia dos últimos 50 anos, destaca-se que o masoquismo é constantemente apontado como alvo de muitos debates por ser um dos conceitos mais confusos, com tópicos difíceis de explicar e controversos dentro da literatura psicológica, principalmente por ter um escopo muito eclético, com diferentes emaranhados de significados dentro de áreas como a psicanálise, psicopatologia e teorias da personalidade. Ainda assim, é reafirmado como de muita relevância para as áreas da saúde e de humanidades (Beckés et. al, 2016; Bonime, 1995; Bourdine, 2022; Bronstein, 2022; Glucksman, 2015; Glikauf-Hughes & Wells, 1991; Rosenthal, 2015; Sack & Miller, 1975).

Assumindo, portanto, a existência de uma relevância histórica da Psychopathia Sexualis e a importância do masoquismo para a psicologia, o presente artigo corresponde a um estudo dentro do campo de história da psicologia e tem como objetivo analisar a criação do conceito de masoquismo na Psychopathia Sexualis.

A escolha dessa área da psicologia está de acordo com o apontamento de Mota, Cara e Miranda (2018), de que se estuda a história da psicologia porque ela ajuda a compreender como algumas escolhas feitas no passado impactam na contemporaneidade e atualizam-se no presente, fornecendo possibilidades para compreender o passado e como ele influencia a psicologia na contemporaneidade.

Nesse contexto, o empreendimento dessa pesquisa visa contribuir para os estudos psicológicos sobre sexualidade e discutir, ao voltar o olhar para a criação do termo, de que maneira Krafft-Ebing apresentou as bases que fizeram o masoquismo se expandir de uma manifestação da sexualidade desviante para um conceito central da personalidade humana e como essas mesmas bases teóricas para a criação do conceito podem ainda hoje refletir na concepção do mesmo como um termo de difícil abordagem.

Por fim, Krafft-Ebing tinha um público muito específico em mente para fazer uso de sua Magnum opus – juristas e médicos – uma vez que o objetivo principal do manual era auxiliar os depoimentos e análises criminais nas cortes para aprimorar a detecção da presença ou ausência de um quadro patológico e que tipo de perversão acometeria o autor da ofensa, evitando injustiças jurídicas. Por essa razão, a escrita de Krafft-Ebing não apresentava um trabalho tão didático em termos de explicar as fontes históricas e teóricas dos conceitos usados para construir sua argumentação, pois, provavelmente para ele, essas ideias seriam de conhecimento básico dos médicos da época. Esse fato torna o ato de retomar os passos de suas influências teóricas uma tarefa de muita dificuldade (Simião e Simanke, 2021a). A fim de amenizar os impactos desses desafios e por ser um estudo que se dedica a analisar a criação do termo dentro de um tempo histórico específico, esse artigo irá avaliar a obra Psychopathia Sexualis através de suas edições com mudanças mais relevantes sobre o tema e textos adendos do autor e de outros médicos, procurando ao máximo recuperar as fontes utilizadas por Krafft-Ebing para embasar seus argumentos e para dialogar com seus contemporâneos e com a visão da sexualidade no século XIX.

 

Algumas Bases teóricas sobre as perversões sexuais e a teoria de Krafft-Ebing

O passo inicial a ser tomado para a construção argumentativa desse estudo é explicitar que Krafft-Ebing tinha como influência principal os argumentos de Charles Darwin (1871) e Benedict A. Morel (1857) sobre seleção sexual e degenerescência hereditária. As ideias da Psychopathia Sexualis são fundamentadas na autopreservação e na gratificação sexual como instintos fundamentais humanos (Oosterhuis, 2012, p. 133), na aplicação de teorias de seleção sexual (Sanday, 2015, p. 887), na relação que atividades mentais sociais superiores, tais como religião, ética e arte teriam com o instinto sexual (Maudsley, 1867) e na ideia de um determinismo orgânico causado pelas marcas genéticas de uma degeneração mórbida hereditária nas psicopatias sexuais.

Mas, todo esse arcabouço teórico tinha sua própria história conceitual, que impactava diretamente na concepção de uma sexualidade vista a partir do que é desviante, para então, através dessa perspectiva, definir o que seria natural e por fim, o que seria uma sexualidade ideal1. Essa concepção se fundaria na ideia da necessidade natural de propagação da espécie, que foi explicitada em termos totalmente biológicos por Darwin, com sua teoria sobre seleção sexual. A concepção sobre essa necessidade, por sua vez, partiria de uma ideia ainda mais antiga na história das ciências: a de que o instinto sexual teria como função primordial animar os seres ao coito com o sexo oposto para finalidade da continuação da espécie. O instinto sexual seria, portanto, um mecanismo da Natureza para cumprir a finalidade de atravessar o Tempo e deixar um legado na forma de prole (Anonimo, 1756). O ponto de disjunção é que, anteriormente ao evolucionismo, a Natureza era muitas vezes entendida como uma instância de poderes metafísicos superiores ou divinos. Essa instância seria fundamental para a manutenção da Ordem de todas as coisas.

Esse discurso era muito recorrente no que Stolberg (2000) denomina como tradição moralista-teológica, a saber, compilados escritos por filósofos ou monges, que misturavam bases teológicas com preceitos filosóficos de moralidade e noções de medicina. Eram textos muito comuns entre os séculos XV e XVIII e defendiam que a sexualidade fora do encontro de genitais seria expressão de uma excitação sinistra, prejudicial à saúde, às leis divinas e principalmente à sociedade e sobrevivência da espécie humana. Esses atos sexuais eram compilados em uma infinidade de formas desde tão cedo quanto o século XVI, em formato de curiosas listagens categorizadas como Libido Nefandae, a libido nefasta (Zwinger, 1586).

Entrando em uma perspectiva mais próxima à publicação das ideias de Darwin, que desloca os debates sobre o instinto de uma concepção quase mágica para a biologia, a entrada de figuras largamente respeitadas e reconhecidas no meio científico e psiquiátrico deram mais robustez para que pensamentos sobre sexualidade desviante ganhassem ainda mais apoio dentro da comunidade médica dedicada ao estudo da sexualidade. Dentre essas figuras, Samuel Tissot (1728-1797) e Henry Maudsley (1835-1918) se destacam.

Em 1756, Samuel Tissot, principal médico das instituições Católicas da época, lançou uma monografia sobre o Onanismo, palavra criada em 1716 para designar equivalente à masturbação. Em seu texto, Tissot ataca abertamente textos de tradição moralista-teológica sobre o tema e argumenta que a explicação sobre os malefícios da masturbação e outras práticas não estaria diretamente ligada à tradição religiosa judaico-católica, mas que deveria ser buscada na medicina desde a antiguidade e justificada nesses termos. Para Tissot, a ideia de que a sexualidade muito ativa ou pervertida do ideal da propagação causaria inúmeros malefícios seria, de fato, correta, apenas o embasamento na Bíblia ou nas religiões seria errado.

O autor (1769), procurando criar uma argumentação científica, postula que o líquido seminal seria um componente do corpo humano equiparável ao que os Humores representavam para a medicina hipocrática. Sendo assim, tinha uma função importante para o organismo e deveria estar em equilíbrio. Todas as atividades sexuais gerariam choque e posterior desequilíbrio no organismo, inclusive o coito vaginal, pelo esforço físico e perda de liquido seminal. Mas o corpo humano seria apto para regular o liquido seminal a cada perda, já que essas atividades seriam exercícios saudáveis e esperados. Perdas muito constantes, porém, gerariam uma atividade de equilibração muito mais exaustiva que poderia, com o passar dos anos ou pela intensidade dos hábitos, causar uma incapacidade permanente de reposição do líquido seminal, gerando danos irreversíveis para todo o organismo e psiquismo de uma pessoa. Quanto mais distante essas atividades fossem do coito, ou mais propensas à repetição freqüente, – aqui se destaca a masturbação – pior seriam para o organismo2.

Dentro desse contexto de exaustão do organismo e interação entre seres, Henry Maudsley, famoso psiquiatra britânico que influenciou visões que permearam até mesmo a psicanálise freudiana, tem o argumento mais destacado sobre o tema. Para Maudsley (1867), instintos como a fome, a luta, a fuga e a agressividade, representariam maneiras inatas de sobreviver e evitar a morte. Mas o homem, como ser gregário, seria condicionado a estabelecer relações com seus pares, para facilitar sua sobrevivência na natureza. O contato sexual, em última instância, seria o grande ato gregário, pois ao doar um pouco de si para produzir prole, o ser garantiria a sobrevivência de toda uma espécie. O instinto sexual seria, portanto, um instinto de caráter altamente altruísta, com o próprio prazer físico causado pelo ato sexual agindo como uma gratificação e incentivo da natureza para animar os seres a preservar sua espécie, numa relação de sobrevivência ainda maior que a sobrevivência de apenas um único ser.

Dentro dessa linha teórica que se pretendia totalmente fundamentada nas ciências naturais, atividades sexuais de caráter extremo como, por exemplo, sadismo e masoquismo (que envolveriam a humilhação, mutilação e, por vezes, a extinção do par), sodomia e incesto (que, acreditava-se, impossibilitariam a reprodução ou tornariam muito difícil as chances de nascimento de uma prole saudável) passaram a configurar entre atividades sexuais perversas, pois perverteriam a finalidade natural e a essência altruísta do instinto sexual. Por isso, não seriam as mais adequadas para o estágio de civilização e adaptação social do homem civilizado, pois, em última instância, estariam contra a própria ordem natural ao diminuir a possibilidade da sobrevivência de toda uma espécie. Essa lógica argumentativa foi construída de maneira a abarcar o enunciado teórico de que, uma vez que existiria uma expressão correta da sexualidade, até mesmo atos os atos sexuais mais simples, praticados entre pares do sexo oposto que não visassem à propagação, como o sexo oral, seriam até certo grau, perversos (Krafft-Ebing, 1898, p.53). A Psychopathia Sexualis de Krafft-Ebing, que previa categorizar e delimitar sintomas para decidir quais atos deveriam ou não ser punidos, endossava esse tipo de discurso.

 

Masoquismo: A criação de uma perversão.

              Dentro do panorama teórico principal que fundamentava as discussões em 1886, a ideia da ligação entre atos de humilhação e luxúria não era desconhecida. Desde o século XV, filósofos como Picollo de Mirandola (1463-1494) faziam uma ligação direta entre flagelação e instinto sexual pervertido (Mirandola, 1946). Com o renovado interesse pela controversa figura de Donatien Alphonse François, o infame Marquês de Sade (1740-1814), o século XIX experimentou uma grande popularidade na publicação de romances e novelas que narravam desventuras sexuais de homens e mulheres que tinham a flagelação como um dos prazeres sexuais favoritos.

Em 1630, o médico Johann Heinrich Meibom escreveu um ensaio com diversos exemplos retirados de textos médicos e filósofos antigos que já haviam abordado o tema da flagelação. A discussão central de Meibom era de que, para ele, existiria, além de desvios psíquicos na moralidade, uma razão física para esse tipo de ato sexual. Para o médico (1665), as partes corporais favoritas de serem esmurradas para o prazer sexual seriam ligadas aos genitais pelos nervos táteis. A flagelação dessas partes causaria irritações táteis e aquecimento de pele que excitariam o liquido seminal. Com esse estímulo sendo levado aos genitais, seria desencadeando o processo de excitação e ejaculação. Adicionalmente, o médico conclui: “se essas pessoas ficarem esgotadas fisicamente a tal ponto de não poderem mais infligir torturas em si mesmas, a fim de satisfazerem seus desejos vergonhosos não poderiam, também para agradarem a si mesmas, infligir o mesmo tratamento para os outros?” (Meibom, 1665, p.75).

Em 1870, Leopold Von SacherMasoch (1836-1895) publicou o romance Venus in Furs, o conto de um homem submetido sexualmente à sua amada que se popularizou como a obra mais associada ao tema das relações entre sexo, flagelação e servidão.

Com o lançamento da Psychopathia, Krafft-Ebing estabelece sua própria teoria da sexualidade, mais especificamente, sua teoria sobre psicopatias sexuais – ou parestesias sexuais cerebrais ou neuroses sexuais parestésicas – como perversões do instinto sexual nas quais o próprio instinto seria colorido com ideias sexuais fora da naturalidade, que causariam, em pessoas sem perversões, sentimentos de repulsa e desgosto (Simião e Simanke, 2021b).

Como ponto de partida de sua concepção sobre a psiquiatria, Kraftt-Ebing (1888) considerou o psiquismo dos seres como fundamentado em conceitos cerebrais e na ação e reação desses conceitos entre si mesmos e entre o mundo externo. A doença – incluindo a sexualidade humana desviante – para a psiquiatria, seria a vida sob condições anormais, ou seja, a vida em dissonância entre a percepção dos conceitos do ego, dos conceitos latentes e a resposta adequada aos estímulos que esses conceitos demandariam. Sendo assim, saúde e doenças sexuais não seriam opostas incondicionais, uma vez que as manifestações psicopáticas não poderiam ser fundamentalmente diferentes das manifestações da vida fisiológica normal, pois partiriam do mesmo elemento da esfera psíquica e cerebral, porém, quando a resposta a esse elemento fosse alterada, ele seria caracterizado como elemento doente (Kraftt-Ebing, 1888). Dentro desse contexto, Krafft-Ebing apresenta como prováveis quadros mais propensos a desenvolver neuroses sexuais parestésicas ou perversões sexuais do instinto: uma junção entre degenerações hereditárias de diversas ordens, o cultivo de maus hábitos sexuais – para ele, hábitos como a masturbação – e questões de educação e posição social.

 Quatro parestesias seriam as mais comuns, menos especificas em relação aos sintomas e manifestações clínicas e com mais elementos históricos e teóricos para serem estudadas. Elas foram denominadas pelo médico como patologias gerais sexuais e consistiam em sadismo, fetichismo, homossexualidade e, o objeto de estudo desse artigo, masoquismo.

Antes que o masoquismo aparecesse em 1890, a Psychopathia Sexualis trazia considerações sobre a relação entre flagelação e sexualidade (Krafft-Ebing, 1886). Krafft-Ebing (p. 20) reconhece que era de conhecimento entre meio médico da época a relação entre luxuria e flagelação, principalmente dentro do contexto religioso. Casos como o êxtase de Santa Tereza3, demonstrariam que as sensações táteis de dor, dirigidas como expiação perante a divindade amada,poderiam causar sensações análogas a uma excitação sexual, e regularmente, causar também prejuízos gerais no sistema nervoso em forma de alucinações religiosas. Essas alucinações e seus simbolismos apontavam para conteúdos sexuais.

Na visão de Krafft-Ebing (1886), para não religiosos e para os ditos libertinos sexuais, a experiência médica apontaria para a mesma relação. Assim como os religiosos adorariam a divindade e seriam submissos a ela, expressando paixão por meio da flagelação, algumas pessoas poderiam ser tão submissas pela pessoa amada quanto, expressando sentimentos também através de atos de flagelação. Krafft-Ebing apresenta essa relação como um processo patológico. As causas para que esse processo ocorresse se fundamentariam na associação anormal entre os conteúdos de ideias do sistema nervoso central e periférico com sentimentos de prazer que nasceriam de reações biológicas naturais aos estímulos corporais. Essas pessoas poderiam ser comprometidas a esse amor a tal ponto que sua única satisfação viria da constante humilhação física para o ser amado.

Mais tarde, Krafft-Ebing (1891) apresenta o masoquismo como a posição comum a todos os indivíduos acometidos por sentimentos de luxúria durante sessões de tortura, fossem essas torturas físicas ou psíquicas. Os indivíduos afetados pelo masoquismo teriam fantasias com situações em que estariam sendo humilhados e torturados. O nome da perversão deriva do nome de Leopold Von Sacher-Masoch4. O essencial para o diagnóstico comum do masoquismo seria que o elemento chave em todos esses casos fosse o fato de o instinto sexual ser dirigido para as ideias de dominação e abuso por parte do sexo oposto, tornando impossível, ou pelo menos muito difícil e insatisfatório, o coito vaginal.

Fisiologicamente, o masoquista não perceberia o estímulo da dor como algo desprazeroso em razão de seu estado emocional exacerbado e sobreposto pela luxúria, que faria com que o efeito do estímulo nos nervos cutâneos não fosse percebido pelo cérebro. Em certa medida, haveria um excesso de compensação cerebral da dor física com prazer psíquico, e apenas o excesso compensado permaneceria na memória consciente. Esse excesso sofreria um aumento, uma vez que, através de influência espinhal reflexa e através de uma coloração peculiar no sistema nervoso, uma espécie de alucinação do prazer corporal ocorreria, com uma localização vaga da sensação objetiva projetada (Krafft-Ebing, 1891).

Para o autor, os masoquistas seriam em sua maioria homens, que teriam uma fraqueza moral e de caráter associadas. Na clínica das perversões a maneira como o masoquismo dominaria a possibilidade de haver ou não uma vida sexual normal – bem como em qual medida o sujeito se esforçaria para realizar suas fantasias, o quanto sua virilidade estaria prejudicada e como as fantasias seriam postas em prática – variaria de acordo com a intensidade do instinto anormal patológico, da presença e da força de motivos éticos e estéticos e do poder relativo da organização física e mental sobre a personalidade do indivíduo afetado. Essas variações definiriam as categorias do masoquismo (Krafft-Ebing, 1894).

Algumas categorias relevantes presentes na Psychopathia podem ser citadas de maneira breve: (1) desejo de abuso e humilhação como forma de satisfação sexual (masoquismo clássico). Essa categoria compreenderia o masoquismo que mais se enquadrava na definição geral de Krafft-Ebing para a patologia. Como correlata da categoria, K.Ebing apresentou a relação entre Flagelação passiva e masoquismo, pois a flagelação passiva poderia aparecer como a forma corriqueira de submissão do masoquista à sua senhora, ou seja, a parceira sexual do masoquista e responsável por infligir sevícias. (2) O masoquismo simbólico, categoria na qual os masoquistas ficariam satisfeitos apenas com a representação simbólica da perversão. Praticar o ato em si ficaria apenas na imaginação e a satisfação aconteceria por meios atos simbólicos representativos, ainda que o conteúdo violento dessas imaginações não fosse totalmente claro na consciência; (3) O Masoquismo ideacional teria o mecanismo de uma representação simbólica da perversão, mas com total clareza da ideação masoquista. Nessa categoria a perversão psíquica seria confinada ao plano das ideias, sem que existisse alguma tentativa de transformar essas ideias em atos. O masoquismo ideacional apontaria a certeza de que para os masoquistas em geral, a base fundadora da perversão não seria sentir dor física e sim ser subjugado e humilhado (Krafft-Ebing, 1894).

 

Considerações teóricas sobre o masoquismo

A primeira consideração teórica de Krafft-Ebing sobre o masoquismo aparece na relação dessa perversão com as outras patologias gerais da sexualidade. É importante ressaltar que um dos argumentos defendidos nesse artigo é de que K.Ebing, em sua obra, que tinha o objetivo claro de diferenciar e categorizar sintomas, não apresenta duas categorias concomitantes. Apenas aponta o conceito de tendências entre as perversões, ou seja, um perverso categorizado dentro de uma das quatro patologias poderia ter alguma sintomatologia ou cometer algum ato perverso condizente ou limítrofe de outra, mas apenas uma seria o alvo principal do instinto sexual e se sobreporia à outra tendência (Simião e Simanke , 2021b).

O masoquismo demonstra bem esse sentido. Desde sua criação, Kraftt-Ebing o liga ao sadismo – homenagem ao Marques de Sade, a perversão sexual na qual os sujeitos sentiam prazer em ferir e humilhar o parceiro – como par oposto dessa perversão. O autor indica que poderia ser possível que, nos jogos sexuais perversos, algum sádico ou masoquista acabasse assumindo o papel oposto, criando uma dualidade sádico-masoquista, mas Krafft-Ebing acredita que a explicação para isso seria complexa demais para ser detalhada. O que precisaria ser entendido era que, nesses casos, o núcleo da perversão seria formado pela associação geral das duas finalidades do ato de violência. Mas ainda assim, nas pessoas afetadas pelas duas formas, uma das facetas, ativa ou passiva, seria sempre mais predominante que a outra.

Essa correlação entre as duas perversões se daria pelo fato de ambas terem suas raízes na degeneração do componente natural de agressividade. O componente de agressividade seria benéfico para a vida dos seres, e em acordo com a evolução e autopreservação, pois possibilitaria a tomada de atitudes para proteção de si e dos outros e a coragem para cortejar o par sexual. Enquanto o sadismo seria a degeneração ativa, fazendo com que o sádico sentisse a excitação sexual em ferir e humilhar, o masoquismo seria a degeneração passiva, priorizando ser ferido e ser humilhado (Krafft-Ebing, 1894).

Ainda na consideração sobre a relação entre a agressividade e luxúria e sua saída como sadismo e masoquismo, algumas categorias do masoquismo estariam na transição entre essa perversão e o sadismo, por exemplo, a categoria masoquismo latente - atos repugnantes para o propósito de auto-humilhação e gratificação sexual ou Koprolagnia5, que contemplariam os casos de sujeitos que sentiriam prazer na humilhação de serem contaminados com secreções humanas ou secreções artificiais, como por exemplo, pessoas que se excitavam quando o parceiro urinasse ou defecasse nelas, ou ainda, quando o parceiro jogasse cera quente ou substâncias ácidas em seus corpos. A mesma relação poderia ser traçada entre esses e os sujeitos que apresentariam impulsos sádicos de antropofagia, o gosto para experimentar secreções humanas ou até mesmo órgãos humanos. A dualidade do caminho seguido pela degeneração seria o ponto de definição da perversão. Provavelmente para os koprolagnistas, muitas vezes o impulso em sua significância ativa (de desejar experimentar essas substâncias) não estivesse claro na consciência do indivíduo, por isso esses casos seriam categorizados como latentes. O autor liga essa categoria ao gosto exacerbado por sexo oral, pois o prazer em ingerir fluídos sexuais poderia ser um dos alvos de tendências perversas latentes (Krafft-Ebing, 1906).

O masoquismo também teria uma categoria limítrofe com o fetichismo –perversão na qual um objeto ou parte do corpo seria a única finalidade do instinto sexual. O Masoquismo latente – fetichismo por pés femininos e sapatos femininos marcaria a transição entre os masoquistas ideacionais e os fetichistas. Seria altamente provável que a maioria de homens que teriam fetiche por sapatos femininos apresentasse um sentimento inconsciente masoquista de auto-humilhação, pois a maioria se satisfazia sendo pisado ou lambendo pés e sapatos, relações que remeteriam à humilhação e servilismo do masoquismo clássico. A ideia de ser humilhado permaneceria nas profundezas da vida inconsciente do masoquista latente, e apenas a ideia do sapato ou do pé seria erguida na consciência, passando a representar, na sintomatologia, a perversão fetichismo (Krafft-Ebing, 1894).

Uma dos maiores pontos da teorização de Krafft-Ebing (1894) sobre o masoquismo é sua relação com a homossexualidade. Na visão do autor, ainda que a maioria dos masoquistas fosse do sexo masculino, a saída da perversão seria a passividade, de acordo com K.Ebing, a posição do psiquismo do sexo feminino, uma vez que a própria natureza teria designado ao sexo feminino um papel passivo nas relações sexuais, que supostamente daria à mulher uma inclinação instintiva a subordinação voluntária ao homem. Para o psiquiatra, a homossexualidade também teria suas raízes em uma posição passiva e feminina perante o sexo.

Mas ainda assim, para Krafft-Ebing, mesmo com um quadro de posição psíquica passiva em relação ao sexo, um masoquista não seria o mesmo que um homossexual, simplesmente porque o alvo de perversão masoquista masculina seria ser subjugado e humilhado pela parceira idolatrada do sexo oposto. O que definiria a homossexualidade não seria a posição psíquica feminina, mas a finalidade do instinto sexual ser o sexo oposto. Para o autor, seria muito provável queum homem homossexual sentisse prazer em se humilhar para seus parceiros por conta de uma tendência masoquista, mas esse prazer teria que ser exercido com o par do mesmo sexo, o verdadeiro alvo de seu instinto sexual.

A próxima teorização se concentra no masoquismo em mulheres. Assim como era comum na época, a referência da teoria seria o sexo masculino. De acordo com Krafft-Ebing, a sexualidade feminina seria ainda muito misteriosa e pouco conhecida e ele não contava com tantos dados teóricos para se aprofundar sobre a mesma (Krafft-Ebing, 1906). O psiquiatra acredita também que a psicologia sexual das mulheres seria mais propensa ao pudor e por isso menos inclinada a cometer atos cruéis por impulso. Isso dificultaria que casos de perversão em mulheres, tais como mulheres masoquistas, chegassem ao consultório ou às cortes para avaliação do psiquiatra (Krafft-Ebing, 1892). Para K.Ebing a própria perversão nas mulheres seria mais perceptível, uma vez que seria o natural do feminino a posição passiva em relação ao masculino, portanto, qualquer exacerbação facilmente chamaria atenção. Esses casos seriam bastante freqüentes, mas o costume social reprimiria sua manifestação (Krafft-Ebing, 1892, p. 138). O essencial para o diagnóstico nas mulheres, do ponto de vista psicopatológico, seria que o elemento chave fosse o fato de o instinto sexual ser exclusivamente dirigido para as ideias de dominação e abuso por parte do sexo oposto.

O autor chama atenção ainda para uma manifestação, mais comum em mulheres, que não corresponderia à perversão masoquista, mas indicaria traços masoquistas, que fariam com que uma pessoa ficasse tão dedicada ao outro indivíduo da relação que acabasse totalmente dependente dele e do laço estabelecido, assumindo um papel análogo ao de um escravo, suportando abusos e humilhações. Essa condição seria chamada de escravidão sexual. Os motivos para que uma mulher se submetesse a assumir um papel análogo ao de um escravo na relação e permanecesse nesse papel seriam: o medo de perder o companheiro e o desejo de mantê-lo sempre satisfeito; a sociedade que tinha um contrato desigual sobre casamento para cada gênero sexual; medo da perda de estabilidade para os filhos e o medo da perda de condições financeiras. Para que esse processo anormal ocorresse, não seria necessário um caráter sexualmente desviante desenvolvido, mas apenas um grau extraordinário de amor ou um caráter carente e passivo. Os motivos do indivíduo dominante seriam egoísmo e fraqueza moral, que encontraria no outro o espaço ilimitado para a ação. Esses fatores poderiam montar o cenário para que uma relação amorosa fosse transformada em escravidão sexual. As mulheres não seriam masoquistas, pois poderiam sentir todas as dificuldades e abusos sem nenhum prazer sexual, mas pelos motivos citados acima, seriam incapazes de abandonar os parceiros. Homens não masoquistas, em menor escala, poderiam também se tornar escravos sexuais de suas parceiras em alguns contextos (Krafft-Ebing, 1901).

Por fim, K.Ebing faz uma diferenciação importante em sua teoria da sexualidade: com a provável exceção do sadismo, que buscaria sempre a mácula do outro em algum grau, todas as outras patologias gerais não seriam em si mesmas criminosas. Ser humilhado ou fantasiar essa humilhação para conseguir prazer poderia indicar que o indivíduo fosse masoquista, mas não que ele fosse criminoso. Existiria então uma separação entre a perversão sexual e a concretização do ato perverso. O ato perverso, na teoria de Krafft-Ebing, seria um conceito com aplicação mais ampla, pois para que uma pessoa cometesse um ato perverso, não era necessário que ela tivesse um quadro de psicopatia sexual. Por exemplo, uma pessoa poderia gostar de humilhar parceiros sexuais e cometer atos agressivos no sexo sem necessariamente ser acometida pelo sadismo. Geralmente, essas pessoas teriam desvios de moral e caráter muito graves e acentuados, incluindo o que comumente era chamado de maldade, mas não teriam o instinto sexual pervertido em finalidade, sendo psiquicamente e fisicamente capazes de se relacionar sexualmente de maneira natural, e, principalmente, capazes de escolher não praticar o ato perverso. Um sádico poderia, através do tratamento psiquiátrico e medicação, aprender a condicionar seu próprio psiquismo a não cometer o ato perverso, mas não seria uma escolha propriamente dita e exigiria uma grande força psíquica e mental, já que sua perversão o condicionaria a procurar essa satisfação. Pessoas dentro dos quadros de psicopatias sexuais seriam então, perversos. Pessoas sem psicopatia que escolhessem praticar um ato perverso seriam os pervertidos. Para esses, o médico na corte, uma vez tendo avaliado a ausência dos critérios de diagnostico da perversão, deveria condenar à cadeia comum. Para os perversos, depor pelo manicômio judicial com direito ao tratamento psiquiátrico e esperança de cura. O mesmo valia todas as dezenas de perversões presentes na Psychopathia Sexualis.

 

Conclusões Finais

O masoquismo, como aponta Oosterhuis (2002) teve um papel importante desde sua criação por Krafft-Ebing. Primeiro porque, junto à obra da Psychopathia como um todo, teve efeitos práticos próximos ao idealizados por Krafft-Ebing. Conta-se (Krafft-Ebing, 1923; Oosterhuis, 2002) que nos primeiros anos após a publicação, Krafft-Ebing passou a receber cartas com relatos de pessoas que se sentiram respeitadas ou pelo menos toleradas em seu ambiente familiar e social ao serem entendidas como doentes e não maldosas ou possuídas por um demônio. O livro, sendo o grande sucesso que foi na época, também embasou depoimentos de muitos médicos que eram chamados a depor nas cortes, tendo efeitos na revogação da prisão comum para homossexuais que cometiam o antigo crime de sodomia.

O caso do masoquismo, como procurou abordar esse artigo, em comparação com as outras perversões sexuais gerais, aponta para uma distorção e um problema prático metodológico que data de mais longe na história da medicina: a ideia de que o instinto de autopreservação é absoluto em cada ser, ou, que cada ser tem como objetivo principal além da sobrevivência da espécie, a própria sobrevivência. Dentro de uma lógica que fundamenta que a finalidade e alvo para o instinto sexual obedecem à ordem de procurar a sobrevivência, supor uma faceta da sexualidade, ainda que pervertida, que tivesse como seu mais profundo desejo a própria extinção, contrariando o mais inato para cada ser humano, criou um ponto teórico a ser debatido.

Nenhuma das outras patologias gerais tem a tendência descrita acima. Enquanto o fetichismo representa a distorção do próprio gatilho do amor, mas que ainda assim tem uma raiz positiva, pois ama e idolatra o objeto (Simião e Simanke, 2021b), a homossexualidade, mesmo que diminuindo as chances da procriação, não representaria nenhum perigo para a autopreservação nem tinha na sua natureza necessidade de atos de extinção do outro. Anos depois, o próprio Krafft-Ebing (1901), admitiu que a homossexualidade se tratava mais de uma variação do instinto sexual do que de uma condição de degenerescência mórbida6. O sadismo era, obviamente, muito nocivo para a sociedade, pois destruía o par necessário para procriar. Mas ainda respeitaria a própria vontade de sobreviver, evocando a agressividade em sua forma mais natural e condicionada para a evolução: da competição sexual e de ver o fim do intruso antes de sua própria extinção. Mas o masoquismo, contrariando o mistério de evitar a própria morte, inconscientemente procurava esse encontro a cada nova situação perigosa e humilhante. Essa patologia indicaria, assim, invariavelmente, um desvio muito maior das raízes biológicas que Krafft-Ebing usou para explicar as perversões sexuais.

A leitura da Psychopathia Sexualis aponta que Krafft-Ebing, apesar de reconhecer essa característica do masoquismo (1891), não conseguiu esgotar essa questão metodológica. Krafft-Ebing tinha objetivos muito específicos para a obra e, como ele mesmo admitiu, a avaliar profundamente a psicologia da sexualidade humana não era um deles (Krafft-Ebing, 1894). Sendo assim, é possível entender que explicar detalhadamente os critérios diagnósticos era mais vital que os conceitos em seus aspectos psíquicos, mesmo que isso causasse algumas contradições na teoria. Essa critica pode ser estendida para a total ausência da dimensão e do ponto de vista de quem era acometido pelas psicopatias sexuais. Os relatos de casos e conduções médicas na obra marcavam uma despersonalização, inclusive do próprio médico em relação aos seus pacientes. Os relatos serviam como exemplos elucidativos da sintomatologia esperada para as perversões sexuais e não uma teorização daqueles sintomas.

Ao criar e analisar por anos o conceito de masoquismo, Krafft-Ebing também não conseguiu esgotar a ideia de como uma tendência que se apresenta contra o instinto de sobrevivência poderia, naturalmente, estar presente na condição humana. Tampouco não se discutiu qual papel de uma tendência agressiva dirigida ao próprio ser teria na evolução e propagação das espécies, levando em conta que o próprio médico, como citado nesse artigo, postulava que todas as perversões sexuais partiriam da distorção do próprio instinto e de componentes psíquicos naturais da biologia humana. O tema da escravidão sexual é bem ilustrativo desse ponto, uma vez que o autor reconhece que não é uma perversão, mas que tem “raízes masoquistas”. Nessa linha argumentativa, mais uma vez a tendência natural da agressividade dirigida para o próprio ser estaria presente e atuante no psiquismo.

Existia ainda outra questão mais prática que causava confusão na abordagem do masoquismo: logo após sua criação a nomeação da perversão masoquismo se tornou um ponto de debate, pois, alguns psiquiatras, como por exemplo, Schrenck-Notzing (1895), acreditavam que o nome masoquismo não era o mais adequado para a perversão. O termo algolagnia (pain-craving) era usado como uma alternativa para masoquismo e enfatizava o fato de que o mais importante para o masoquista era buscar o prazer sexual pela dor física. Krafft-Ebing (1894) rejeitava o uso de algolagnia e permanecia firme afirmando que o masoquismo tinha como alvo a humilhação e posição de subjugação perante o outro uma vez que mesmo sem a dor física presente, o masoquista poderia sentir prazer sexual, vide categorias como o masoquismo ideacional. O autor também afirmava que o masoquista, em outros contextos que não o sexual, poderia perceber dor física e a humilhação com desprazer. Essas afirmações do autor invariavelmente significam que, na própria concepção do criador do termo, o masoquismo revelaria um comprometimento maior do psiquismo.

Sendo assim, diferentes estudos da época, ao priorizar o foco em um desses aspectos, modificavam o masoquismo como conceito, extrapolando a própria ideia de uma perversão sexual de sintomatologia reconhecível para uma condição do psiquismo. Muitas vezes essa complexa condição era resumida em “pessoas que gostam de sofrer”, seja essa dor física, moral ou sentimental, apontando que a tendência desse sofrimento talvez não ficasse sempre confinada ao momento sexual. Todas essas argumentações indicavam para a necessidade de maiores reflexões da psicologia sobre o tema, pois ambos os escopos trouxeram muitas possibilidades para o entendimento do conceito.

O masoquismo então, desde sua concepção e pela escolha aberta de seu autor de construir um manual de fácil acesso para médicos e juristas que não se debruçava completamente sobre os aspectos da personalidade e psiquismo humano, – apesar de curiosamente esmiuçar a sexualidade humana – não atentou para um problema metodológico da própria ideia de masoquismo: ao assumir a existência de uma perversão sexual que tem sua raiz na agressividade natural dos humanos e ao mesmo tempo tem como a máxima exaltação a própria extinção, a teoria aponta que o instinto de preservação e por conseqüência, o próprio instinto sexual, não seriam questões tão lógicas e diretas nas ciências humanas, por isso precisariam ser mais bem estudadas para além da sintomatologia das perversões sexuais.

Até o final do século XIX, a psicologia ainda não havia conseguido formular uma resposta para explicar uma faceta da sexualidade que agiria contra a autopreservação, nem se isso indicaria que as degenerações presentes no masoquismo fossem mais extremas que as das outras perversões. Esse problema metodológico seria retomado anos mais tarde por Sigmund Freud, fato que aponta mais uma vez para o impacto na história da psicologia que a criação do masoquismo por Krafft-Ebing teve na história da psicologia.

 Conclui-se aqui que, em sua criação, o masoquismo abarcou uma contradição metodológica natural, conseqüência do estilo argumentativo escolhido por Krafft-Ebing para sua teoria. Essa contradição perpassou para os estudos do conceito ao longo dos anos, bem como a miríade de aspectos que poderiam ser entendidos como o “prazer ao sentir dor”. Ainda hoje, como demonstra a bibliografia desse artigo, as apreciações do conceito de masoquismo não estão livres desses problemas de fundamentação.

 

 

 

Agradecimentos

Este trabalho é parte da pesquisa de doutorado, Instinto e objeto sexual nas teorias de Kraftt-Ebing, Albert Moll e Sigmund Freud. Agradeço ao programa de pós-gradução de psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e à Universidade de Durham (Reino Unido) pela possibilidade de concretização deste projeto. Agradeço também aos professores Dr. Richard Theisen Simanke, Dr. Andreas Holger Mahele e Dr. Lutz Sauerteig pelas valiosas contribuições.

Financiamento

A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de mestrado/doutorado da autora, bolsa CAPES (processo: 88881.135059/2016/01).

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Um dos pontos defendidos pela autora desse artigo é de que Krafft-Ebing tinha uma abordagem transcultural da sexualidade. O autor (1894) afirma que a espécie humana como um todo teria, desde sua criação, um comportamento sexual primitivo padrão voltado para a reprodução e abundante em manifestações desviantes. Essas supostas manifestações desviantes seriam devido à crença de que povos primitivos tinham capacidades intelectuais menos desenvolvidas (Maudsley, 1867). Por isso, atos sexuais desviantes não poderiam ser considerados perversões sexuais, apenas manifestações de uma espécie menos evoluída. A ideia de perversão só apareceria após um processo civilizatório, que acomodaria esses impulsos de acordo com as regras da sociedade, representando um tipo ideal de sexualidade, ainda que não natural, pois todo ser humano, independente de cultura, posição social ou raça, guardaria resquícios do comportamento sexual primitivo podendo repetir os atos perversos a qualquer tempo.

Tissot, bem como a maioria dos teóricos do século XIX sobre sexualidade, toma como central para suas observações o sexo masculino. O sexo feminino é endereçado de maneira mais secundária e por analogia. As contrações uterinas e a lubrificação vaginal servem para validar esse mesmo esquema para o sexo feminino.

Evento da autobiografia de Tereza D’avilla, Santa Tereza de Jesus, (1515-1582), em que ela teria tido um encontro com o jovem e belo São Miguel Arcanjo, que a perfurou com uma lança dourada divina, causando grande dor e êxtase.

O médico britânico Havelock Ellis (1927) relata que na época era notório o desagrado do escritor, que não estava preparado para admitir a justiça do uso de seu nome de uma maneira alienista. Sacher-Masoch achou que Krafft-Ebing não compreendeu o sentido de Vênus das Peles. Krafft-Ebing (1906), ao longo dos anos, argumentou sobre várias provas biográficas afirmou que sua intenção pessoal nunca teria sido ofender, mas mostrar que para o bem ou para o mal, a sexualidade teria uma poderosa influência na vida mental dos homens, vide o talento e alta qualidade literária do escritor. Krafft-Ebing explicou ainda que o sentido ao batizar a perversão de masoquismo seguiu o mesmo mecanismo que batizou o Daltonismo a partir do nome de Dalton.

Koprolagnia foi um termo cunhado por Krafft-Ebing, derivado do termo coprofagia, creditado ao zoologista francês Pierre Latreille (Latreille, 1806). Tem um sentido mais amplo que coprofilia, seu correlato mais usado, pois fazia referência aos fluidos em geral, não somente fezes.

Corresponde a uma publicação no periódico do médico e sexólogo Magnus Hirschifeld. Homossexual e pioneiro no estudo da transexualidade, foi perseguido e humilhado politicamente, inclusive por colegas de profissão. Como consta no prefácio da referência, Krafft-Ebing mudou algumas concepções sobre a homossexualidade, principalmente no que diz respeito ao status de degeneração mórbida, pela convivência com homens brilhantes como Magnus Hirschfeld (1901). O sexólogo publicamente elogiava Krafft-Ebing por seus esforços em extinguir a recomendação de prisão comum para homens homossexuais por crimes de sodomia (Krafft-Ebing, 1901, Ossterhuis, 2002; Siguschi 2012).

 

 

 

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