O lugar da voz na clínica psicanalítica
Resumo
Título: A voz e a clínica psicanalítica.
Autor: Jean-Michel Vivès. Rio de Janeiro: Editora Contracapa, 2012,
Vai, livro natimudo,
E diz a ela
Que um dia me cantou essa canção de Lawes:
Houvesse em nós
Mais canção, menos temas,
Então se acabariam minhas penas,
Meus defeitos sanados em poemas
Para fazê-la eterna em minha voz.
Erza Pound – Envoi (1919)
A mudança de posição do lugar da voz na clínica inaugurou a psicanálise. A promoção da escuta dos pacientes e o reconhecimento do valor de sua fala sobrepondo-se à voz do saber médico estabeleceram a prática psicanalítica como tal. Essa inovação pôde acontecer porque Freud ouviu e foi dócil à histérica. Ao resistir à hiponse, elas o obrigaram a escutá-las. Ele, ao se calar, fez emergir a voz tomando-a como objeto pulsional e oferecendo-lhe o campo enigmático do silêncio necessário para que o dito de suas pacientes pudesse modular um dizer. Falar e escutar, circuito que evidencia os efeitos do dito sobre o dizer segundo um hiato em que situamos o sujeito e as bordas de seu gozo.
A voz como objeto pulsional foi conceituada por Jacques Lacan com base na lista dos objetos pulsionais estabelecida por Freud, que localizou, essencialmente, os objetos oral (o seio), anal (as fezes) e fálico (o falo). No trabalho do psicanalista francês, a abordagem da voz tem sua origem no estudo das alucinações psicóticas que invadem e possuem o sujeito, como se vê, notadamente, no delírio paranóico. Lacan, no entanto, rapidamente extrai o objeto voz dessa particularidade psicopatológica para incluí-lo na própria dinâmica do tornar-se sujeito. Esta démarche introduz a voz como um objeto da pulsão (invocante), ao lado do seio (pulsão oral), das fezes (pulsão anal) e do olhar (pulsão escópica).
No campo pulsional, a pulsão invocante adquire, pouco a pouco, estatuto particular pelo fato de sua ligação estreita com o significante e a fala. Desde então, sabemos que a emergência do sujeito e a sua inscrição no grupo humano devem ser compreendidas como estando estritamente ligadas aos móbeis do concerto das vozes que o cercam. Os desenvolvimentos de Lacan sobre o objeto voz, todavia, são raros e esparsos, sobretudo se comparados às diversas lições de O Seminário, livro 11; os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964) consagradas ao olhar como objeto da pulsão escópica.
Hoje, aqueles filiados à linha de transmissão de Freud e Lacan sabem que, na experiência da clínica, dar voz ao analisando corresponde a fazê-la funcionar nas condições de um discurso, para que venha a produzir algo de novo em decorrência não do inédito do sentido, e sim da mutação do regime de gozo que o acompanha. A escuta do analista promove uma decifração do material veiculado pela voz, cuja presença é a manifestação do inconsciente em análise. O material revelado pelo inconsciente é submetido ao discurso, à interpretação, a toda a sorte de mal-entendidos, ao passo que a voz é o que atrapalha o sentido, aturde o dito, quebra a lógica e produz uma ressonância corporal distinta daquela que se fixou para o sujeito. Em outras palavras, a interpretação como corte quebra o sentido e destaca a voz como objeto: o que resta esquecido por trás do que se ouve.
Tal pergunta sobre a voz por trás dos ditos se constitui no eixo deste livro. A pesquisa de Jean-Michel Vivès se concentra na dimensão pulsional da voz e na materialidade do som em sua modulação acústica, gestual e gráfica. Nos textos aqui reunidos, ele busca precisar os móbeis da voz na psicanálise, abordando-os tanto pela via da metapsicológica quanto à luz da psicopatologia.
Ao longo da leitura, o leitor depreende a radical ambigüidade que caracteriza a voz. Esta pacifica porque transmite a lei ao marcar as escansões na fala, mas também subverte, pois seduz pela ausência de sentido e é dotada do poder de inflamar paixões. Vivès elabora suas hipóteses e conclusões transitando pela imbricação de dois lugares privilegiados. De um lado, valendo-se de sua prática clínica, faz emergir de seu texto o comprometimento com uma ética muito particular, qual seja, acolher o que é da ordem do não-sabido e da impossibilidade de respostas prontas; de outro, estende sua pesquisa a algumas expressões da voz na cultura, como a ópera, considerando-a uma encenação de “vozes”, uma vez que o canto “tenta aproximar o que a fala não pode apreender”. Acrescente-se que sua formação de músico o favorece em suas argumentações acerca seja da positividade, seja da negatividade do papel da voz na constituição do sujeito.
De ambos os lugares de onde o autor fala, revela-se a trilha de passagem de seus laços transferenciais: o retorno aos textos freudianos, a orientação lacaniana, o gosto pela pesquisa e pelas artes. Podendo-se tecer um texto sem destituí-lo da dimensão da satisfação libidinal em jogo em toda produção, isto é, podendo o espaço literário, expressão urdida por Maurice Blanchot, ser abordado psicanalíticamente como um campo de gozo, vê-se quem escreve transmitir algo capaz de nos envolver.
Ao coeditar mais um livro da Coleção Janus, o Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, Instituição Membro da Convergência, Movimento Lacaniano para a Psicanálise Freudiana, oferece novamente aos leitores a oportunidade de entrar em contato com textos que contribuem para a transmissão do discurso psicanalítico, em sua aposta de exercer o “que se diga” , a fim de que o inaudito