Graduanda em Psicologia, Faculdade Guilherme Guimbala (FGG). Brasil.
Graduanda em Psicologia, Faculdade Guilherme Guimbala (FGG). Brasil.
Professor do Departamento de Psicologia da Faculdade Guilherme Guimbala e doutorando do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil.
Este texto apresenta resultados de uma pesquisa que teve como objetivo compreender a atuação da(o) profissional psicóloga(o) no contexto carcerário brasileiro a partir da literatura produzida e publicada nas principais bases de dados vinculadas ao CNPq. Foi realizado um levantamento nas bases de dados no ano de 2020 e selecionados 7 trabalhos para análise. Identificou-se que a maioria das publicações é de 2015, possuindo concentração geográfica maior na região Sudeste. Predominam discussões sobre o papel que a(o) psicóloga(o) deve exercer nesse espaço e qual a sua real atuação. Constatou-se que as práticas mais exercidas por psicólogas(os) no sistema prisional são os atendimentos individuais, a avaliação psicológica e a elaboração de documentos. Considera-se a necessidade de maiores discussões e pesquisas sobre a atuação de psicólogas no contexto carcerário, bem como a realização destas discussões durante a formação em psicologia.
This text presents the results of a research that aimed to understand the role of professional psychologists in the Brazilian prison context, based on the literature produced and published in the main databases linked to the CNPq. A survey was carried out in the databases in the year 2020 and 7 works were selected for analysis. It was identified that most publications are from 2015, with a greater geographic concentration in the Southeast region. Discussions about the role that (o) psychologist (o) should play in this space and what is her real role prevail. It was found that the practices most exercised by psychologists in the prison system are individual care, psychological assessment and preparation of documents. There is a need for further discussions and research on the role of psychologists in the prison context, as well as these discussions during training in psychology.
O sistema prisional atual advém de uma construção histórica de práticas disciplinares pautadas na ideia de que os corpos que cometem “infrações” devem ser punidos de alguma maneira. Uma das formas de realizar essa punição tem sido a privação da liberdade. Essa forma de punição, segundo Foucault (1975/2014), é permeada pela aplicação da disciplina que tem como objetivo principal transformar os sujeitos e suas ações sob a lógica da culpabilização e policiamento. Com isso, acredita-se que, ao privar uma pessoa de sua liberdade, torna-se possível “controlar” seus comportamentos, sua racionalidade e produzir outro sujeito: passivo, docilizado e menos infrator.
No Brasil, a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 institui a Lei de Execução Penal - LEP, que, de acordo com seu Art. 10º, pretende “prevenir o crime e orientar o condenado ao retorno à convivência em sociedade”. Percebe-se, assim, que o objetivo da Execução Penal é produzir condições para que sujeitos considerados infratores possam redefinir seus comportamentos por meio de um processo legal punitivo.
Do ponto de vista histórico, a psicologia adentrou o sistema prisional enquanto prática profissional a partir de um viés classificatório. No início, ela serviu aos interesses do poder judiciário produzindo classificações de comportamentos, avaliando estados mentais com o objetivo de orientar decisões jurídicas e aplicações de penas. Nesse viés, o envolvimento da Psicologia com o sistema prisional, de acordo com o CFP (2012, p. 30), deu-se inicialmente pelo fato de ambos serem “categorias a serviço do mesmo projeto social de produção e transformação de subjetividades”. O poder judiciário demandava que a Psicologia fornecesse subsídios para as tomadas de decisões punitivas e repressivas das pessoas presas, diagnosticando e classificando seus comportamentos como sendo perigosos, antissociais, estabelecendo possibilidades de cura ou não de um determinado aspecto comportamental e, ainda, a avaliação das possibilidades de reincidência.
Em 1987, com a Lei de Execução Penal – LEP, a(o) psicóloga(o) passou a fazer oficialmente parte da Comissão Técnica de Classificação – CTC, que tem como objetivo principal a realização do exame criminológico que, de acordo com Salum, Junqueira e Santos (2016, p. 149), é “um instrumento que busca a predição de comportamento, a fim de obtenção ou recusa de benefícios para o preso”, tendo como objetivo “avaliar os detentos visando prever a reincidência prisional”.
Em 2007 o CFP, em conjunto com o Ministério da Justiça, elaborou diretrizes para a atuação e formação da(o) psicóloga(o) neste espaço tendo como objetivo problematizar sua prática, visto que ela deveria, então, ser pautada nos direitos humanos, por meio de uma formação continuada, baseada em reflexões críticas sobre essa atuação. Já em 2010 o CFP produziu a Resolução 009/2010 que regulamentou a atuação deste profissional no âmbito do sistema prisional prevendo a garantia dos direitos humanos e a “desconstrução do conceito de que o crime está unicamente relacionado à patologia ou à história individual, enfatizando os dispositivos sociais que promovem o processo de criminalização” (CFP, 2010, p. 2) além de vedar a realização do exame criminológico. Porém, devido a insatisfações de alguns profissionais com relação à essa proibição, em 2011 o CFP lançou outra resolução (012/2011) que substituiu a anterior que não vedava a elaboração do exame criminológico por parte da(o) psicóloga(o) mas vedou “a elaboração de prognóstico criminológico de reincidência, a aferição de periculosidade e o estabelecimento de nexo causal a partir do binômio delito-delinquente” (CFP, 2011, p. 4).
O documento que referencia a atuação da(o) psicóloga(o) nesse contexto é recente, publicado no ano de 2012, pelo Conselho Federal de Psicologia - CFP em conjunto com o Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas – CREPOP. Por ser recente, entende-se que algumas questões dessa prática podem estar em fase de experimentação, ocorrendo práticas diversas de acordo com cada realidade carcerária.
Rauter (2016, p. 43) em seu estudo sobre o trabalho da(o) psicóloga(o) em prisões esclarece que, mesmo com a luta do Sistema Conselhos para mudar a prática e o olhar deste profissional no cárcere e a referência técnica de 2012, sua principal função nesse espaço ainda permanece “ligada à elaboração de laudos e pareceres que pretendem avaliar a periculosidade criminal, principalmente no momento da concessão de benefícios ou da proximidade do fim da pena”. No entanto, Uziel, Scisleski, Barros e Bicalho (2018, p. 3) observam que nos últimos anos surgiram questionamentos por parte das(os) psicólogas(os) sobre sua atuação, emergindo práticas que prezam pelos direitos humanos e pela vida da população carcerária buscando “outras formas de manejar o espaço no cárcere”.
Segundo Pacheco e Vaz (2014, p. 181) as problematizações e mudanças na área da saúde mental com a reforma psiquiátrica começam a aparecer também no sistema penitenciário “através das discussões ético-políticas do fazer psicológico dentro das prisões”. A partir disso, novas práticas da Psicologia tornam-se possíveis, tais como: “práticas de cuidado, respeito, atenção e acompanhamento afetivo e efetivo aos sujeitos presos”. Nessa perspectiva, o CFP (2007, pp. 11-12) ressalta que a atuação com pessoas presas precisa ter “em vista a vida em liberdade, para além dos muros da instituição prisional, estimulando a descontinuidade dos círculos viciosos que promovem a exclusão social”.
Assim, percebe-se que existe uma mudança no posicionamento e atuação da(o) profissional psicóloga(o) nesse espaço. No cenário atual, de acordo com o CFP (2012), o envolvimento dos profissionais dessa área da saúde acontece a partir de uma análise e problematização da complexidade da situação em que o sujeito que comete um delito está, indo para além de suas biografias, adentrando na “sua relação com as inúmeras condições sociais, históricas, políticas e econômicas que a questão da criminalidade contemporânea e suas múltiplas formas de penalização” (CFP, 2012, p. 36). Esses profissionais passam a ver a criminalização como um processo social e histórico, e não individual e da ordem do patológico.
Sendo assim, buscou-se mapear e analisar as principais práticas da Psicologia no contexto carcerário desenvolvidas no Brasil a partir da literatura produzida e publicada nas principais bases de dados vinculadas ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq. Ao realizar o levantamento dessa literatura, analisamos também o cenário nacional de produção de pesquisas nessa temática, procurando destacar quais as regiões brasileiras que mais produziram pesquisas e quais os motivos da escassez ou número reduzido de pesquisas sobre o tema nas demais regiões do país.
O método que foi utilizado para os fins deste estudo foi a revisão sistemática de literatura que tem como objetivo “identificar, selecionar, avaliar e sintetizar as evidências relevantes disponíveis” (Galvão & Pereira, 2014, p. 183). Assim, esse tipo de revisão “disponibiliza um resumo das evidências relacionadas a uma estratégia de intervenção específica” a partir “de métodos explícitos e sistematizados de busca, apreciação crítica e síntese da informação selecionada” (Sampaio & Mancini, 2007, p. 84).
Nesse viés, esse método torna possível a avaliação de maior número de informações relevantes acerca do mesmo tema, avaliando a consistência e a abrangência dos estudos já desenvolvidos. Dessa forma, o processo de elaboração desta revisão sistemática de literatura seguiu os seguintes passos: elaboração da pergunta de pesquisa, definição das palavras-chave/descritores, identificação das bases de dados e das estratégias de busca, estabelecimentos dos critérios de inclusão e exclusão, realização da busca, aplicação dos critérios, análise crítica e avaliação dos trabalhos levantados e apresentação das conclusões (Sampaio & Mancini, 2007).
Acessou-se duas bases de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, a CAPES Periódico e o Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, já que é uma das principais financiadoras das pesquisas das universidades públicas do Brasil, que são as maiores produtoras de conhecimento no país. Além disso, foram selecionados apenas os trabalhos desenvolvidos entre 2012 e 2019, pois no ano de 2012 foi efetivada pelo CREPOP a última atualização das normativas que orientam as práticas profissionais de psicólogas(os) no contexto carcerário. Dessa forma foi possível fazer aproximações e compreender as relações entre o que foi previsto no documento do CREPOP e as práticas que estão sendo desenvolvidas nos contextos de atuação.
Nessa base de dados procurou-se trabalhos que apresentassem discussões sobre as práticas psicológicas dentro do sistema prisional brasileiro utilizando, para isso, os seguintes descritores: “psicologia” AND “prisão” AND “saúde mental”. Nesse primeiro momento, a partir desses descritores, realizou-se um levantamento durante três dias consecutivos do mês de junho de 2020, encontrando um total de 169 artigos diferentes na CAPES Periódicos. Aplicando os critérios de inclusão: ano de publicação de 2012 a 2019, publicação realizada no Brasil, trabalhos da área da psicologia, acesso do texto na íntegra e que estivesse de acordo com o objetivo da pesquisa, foi selecionado apenas um trabalho. Já no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES encontrou-se um total de 35 trabalhos diferentes, entre os quais dois atendiam aos critérios de inclusão.
Devido ao número restrito de publicações optou-se por utilizar outros descritores, e a palavra-chave “sistema prisional”, visto que somente pela utilização de descritores não foi possível realizar um levantamento mais abrangente de material. Assim, utilizou-se os descritores “psicologia” AND “promoção da saúde” AND a palavra-chave “sistema prisional”, resultando em um total de 40 trabalhos encontrados na CAPES Periódicos e um total de cinco trabalhos na CAPES Teses e dissertações. Em seguida, foi utilizado os descritores “psicologia” AND “prisão” AND “promoção da saúde”, encontrando 126 trabalhos na CAPES Periódicos e sete trabalhos no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES. Por último, os descritores “psicologia” AND “prisão” AND “direitos humanos” resultando em um total de 224 trabalhos na CAPES Periódicos e 28 no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES. A partir de então, foram excluídos os trabalhos repetidos resultando em 390 artigos e 40 dissertações. Assim, aplicando os critérios de inclusão nesse segundo levantamento, obteve-se dois artigos e duas dissertações.
Nos dois processos de busca relatados foram encontrados 941 trabalhos. Desses, 527 foram excluídos por estarem duplicados e 414 não estavam duplicados, dos quais 355 são artigos e 59 são dissertações. Com base na leitura dos títulos e resumos, foram selecionados, a partir dos critérios estabelecidos, três artigos (Pacheco & Vaz, 2014; Soares, Félix-Silva & Figueiró, 2014; Nascimento & Bandeira, 2018) e quatro dissertações de mestrado (Andrade, 2015; Oliveira, 2015; Reishoffer, 2015; Tannus, 2017). Esses foram os trabalhos que compuseram parte das análises e discussões desta pesquisa, conforme o fluxograma esquemático na Figura 1.
A partir da leitura integral das sete publicações selecionadas foi possível analisar informações como: tipo de estudo (artigo, dissertação), ano e local da publicação, filiação institucional, contexto e objeto de pesquisa, referencial metodológico, objetivo do trabalho, discussões e práticas psicológicas realizadas no sistema prisional, expondo-se alguns desses itens na Tabela 1. Sendo assim, com base na análise dos sete trabalhos apresentados na Tabela 1, três categorias foram organizadas levando-se em consideração aspectos que apareceram em todos eles.
Dos sete trabalhos analisados, dois foram publicados em 2014 (Pacheco & Vaz; Soares, Félix-Silva & Figueiró), três em 2015 (Oliveira; Castro; Andrade), contando com apenas um em 2017 (Tannuss) e um em 2018 (Nascimento & Bandeira). Considerando que três foram publicados em 2015 percebeu-se que neste mesmo ano, em abril, a Resolução 012/2011 foi suspensa por uma ação civil organizada pelo Ministério Público Federal contra o Conselho Federal de Psicologia. Essa Resolução veda a produção de documentos que atribuem periculosidade ou possibilidade de reincidência, reconhecendo que a(o) psicóloga(o) não pode prever o cometimento de crimes (Tannus, 2017).
Em decorrência, Tannus (2017) esclarece que não existe um consenso sobre a atuação da(o) psicóloga(o) no sistema prisional, o que ele pode ou não realizar nesse espaço, inclusive, destaca-se, que essa falta de consenso se dá dentro da própria categoria. Além disso, entende-se que essa suspensão provocou em alguns profissionais psicólogas(os) uma certa inquietação e maior mobilização para a realização de pesquisas que comprovem, científica e eticamente, pautadas nos direitos humanos, qual deve ser o papel desse profissional no sistema prisional.
Em relação às regiões geográficas onde os trabalhos foram produzidos, observou-se que existe mais concentração na região Sudeste do país (Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais), com quatro publicações. Os demais trabalhos estão distribuídos nas regiões Nordeste (Rio Grande do Norte), com dois trabalhos, e Sul (Rio Grande do Sul) com uma publicação. Ressalte-se que, segundo pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Psicologia - CFP em 2019 com profissionais psicólogas(os) que atuam no sistema prisional brasileiro, os estados com maior concentração de atuação desses profissionais localizam-se no Sudeste assim como a maior concentração dos trabalhos levantados nesta pesquisa.
Considerando a filiação institucional, tanto os artigos como as dissertações foram
produzidos por pesquisadores(as) durante seus percursos de formação acadêmica em
universidades brasileiras, especificamente cinco universidades públicas e duas
instituições particulares de ensino superior. Segundo uma pesquisa realizada pelo
Sobre o contexto das pesquisas identificou-se que quatro estudos foram realizados em penitenciárias estaduais. Os demais foram realizados em: penitenciária federal, Centro de Reintegração Social Feminino da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados - APAC e um dos artigos constituiu uma revisão bibliográfica.
Identificou-se que o objeto de pesquisa dos trabalhos, em sua maioria, foram mulheres em privação de liberdade visto que quatro dos trabalhos analisados realizaram algum tipo de grupo de acolhimento/terapêutico ou oficina com esse gênero. Sobre as demais pesquisas, uma foi realizada com homens a partir de um projeto intitulado “InForme-se” e duas tiveram como foco as(os) psicólogas(os) que atuam em penitenciárias diversas utilizando como método a entrevista semiestruturada.
A partir disso, constatou-se que a quantidade de pesquisas e produções sobre a população do gênero masculino nesse contexto são poucas, considerando que esse gênero compõe a maior porcentagem da população carcerária brasileira. Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública através do levantamento nacional realizado pelo Sistema de Informações Estatísticas do Sistema Penitenciário Brasileiro - INFOPEN (2019) 95,33% da população carcerária no Brasil é do sexo masculino e 4,67% do sexo feminino. Portanto, existe maior interesse de pesquisar o público feminino que está nesse contexto.
Ao mesmo tempo, entende-se que o enfoque na pesquisa com mulheres justifica-se pelas questões de interseccionalidade, principalmente no que diz respeito às questões de gênero, classe e raça. Esse foco das pesquisas diz do próprio olhar da Psicologia, sempre atento aos modos como certas especificidades produzem agravos nas experiências de certos corpos. Nesse viés, segundo Soares, Félix-Silva e Figueiró (2014, p. 90) “[...] a dificuldade de acesso aos direitos reconhecidos como direitos humanos tem demandado uma luta constante por parte das mulheres, presas ou não presas”.
Apesar dessa constatação, percebeu-se que nenhum dos textos pesquisados discute efetivamente questões de gênero, raça, classe e faixa etária. No entanto, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 aponta que a população carcerária predominante são homens jovens, negros e com baixa escolaridade. Segundo o Anuário, em 2019, 66,7% da população carcerária é negra, e 32,3% branca. Este número vem aumentando ano a ano. Importante destacar que a taxa de variação de pessoas encarceradas entre 2005 e 2019 aumentou 377,7% para população identificada pela raça/cor negra, em relação aos identificados por brancos, com taxa de 239,5%. Esses dados apontam para o fato de que os profissionais que atuam no sistema carcerário devem levar em consideração as questões raciais e suas implicações concretas na configuração do mesmo.
Os objetivos estabelecidos pelas pesquisas voltaram-se mais ao fazer psicológico, formas de contribuição e atuação da(o) psicóloga(o), discutindo e analisando seu papel nas prisões brasileiras, somando um total de cinco trabalhos. Os dois trabalhos restantes buscaram compreender o modo como mulheres produzem suas vidas e suas relações (consigo mesmas e com as(os) outras(os) no contexto carcerário, enfatizando as mediações feitas por profissionais da Psicologia nesses processos.
O referencial epistemológico utilizado em dois dos trabalhos foi a criminologia crítica. No entanto, cada um deles foi acompanhado de outros referenciais, como os pensamentos de Jacques Deleuze e Félix Guattari, Michel Foucault e o método da cartografia; o segundo utilizou uma perspectiva com enfoque materialista. As obras de Michel Foucault também serviram como referencial para outros dois trabalhos. A Psicanálise apareceu em um trabalho, o método da cartografia em outro e o último trabalho teve como método a pesquisa bibliográfica.
Quanto à metodologia utilizada para a realização desses trabalhos, verificamos que duas
pesquisas de intervenção ocorreram por meio de um grupo terapêutico; uma pesquisa de
intervenção tratando de uma cartografia em teatro-experimentação; uma pesquisa de campo a
partir de um projeto intitulado
Segundo relatório descritivo referente à atuação da(o) psicóloga(o) no campo da execução penal no Brasil, publicado pelo CFP em 2019, a partir das respostas de vários profissionais atuantes nessa área, as práticas mais exercidas por eles estão distribuídas majoritariamente em três atuações:
Em primeiro lugar estão as práticas individualizadas que constituem 90,8% do total: acolhimento (37%), atendimento de emergência/abordagens em situação de crise (24,2%), acompanhamento individual (21,4%) e psicoterapia individual (8,2%).
A segunda prática mais exercida refere-se à elaboração de documentos e avaliação psicológica, respondendo a 69,6%: avaliação psicológica (22%), elaboração de laudos/pareceres para fins diversos (16,6%), elaboração de laudos/ pareceres para fins de exame criminológico (16%) e participação em atividades relacionadas à Comissão Técnica de Classificação - CTC (15%).
E, em terceiro lugar, está a realização de uma prática em equipe correspondendo à 38,2%: discussão de casos com a equipe do serviço (18,2%), atendimentos conjuntos em equipe (13,5%) e discussão de casos com outros profissionais da rede ampliada (6,6%).
Já as práticas diferenciadas como atividades em grupo somente aparecem 18,2% no cotidiano das(os) profissionais psicólogas(os): realização de grupos/oficinas de prevenção/educação (7,6%), psicoterapia em grupo (5,6%), grupo socioeducativo/convivência (2,4%), grupos/oficinas de atividades culturais (1,8%), grupos/oficinas sobre sexualidade/direitos reprodutivos (0,6%) e grupos de geração de renda (0,2%). Nessa perspectiva, Pacheco e Vaz (2014) afirmam que a avaliação psicológica por meio de perícias e laudos constitui a prática mais exercida ao longo dos anos no contexto carcerário. Esses autores explicam que o principal objetivo dessa prática, nesse contexto específico, é fornecer subsídios para decisões voltadas à concessão de direitos ou benefícios aos sujeitos que se encontram em privação de liberdade.
Tannuss (2017, p. 72) cita a aproximação da Psicologia com o Direito justamente pela produção de documento, esclarecendo que a Psicologia contribui com novas técnicas de controle das massas, e legitima “as práticas do Judiciário de reprodução de estereótipos e criminalização da pobreza”. Nascimento e Bandeira (2018, p. 109), seguindo a mesma linha, percebem ainda a existência de uma tensão entre o “castigar ou reeducar, avaliar/examinar ou prestar assistência”, por se situar em um contexto paradoxo. Retirada de um pedaço
Segundo a pesquisa realizada por Tannuss (2017) utilizando entrevistas com 10 psicólogas(os) atuantes no sistema prisional da Paraíba, nove deles atuam em conjunto com uma equipe de saúde vinculados por meio da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade - PNAISP que possui como objetivo romper com os modelos tradicionais. Porém, segundo a autora, ainda aparecem dificuldades nesse rompimento visto que a prática tem como foco o modelo clínico realizando, basicamente, o acompanhamento individual dos presos. Retirada de um pedaço.
Além disso, mesmo que esses profissionais estejam inseridos no cárcere a partir de uma política de saúde, “quando solicitados por juízes, também podem ter sua atuação voltada para a prática jurídica. Ou seja, produzem documentos que subsidiam as decisões judiciais para possível progressão de regime do preso” (Tannuss, 2017, p. 108). O outro profissional entrevistado atua a partir de uma visão jurídica fazendo parte da Comissão Técnica de Classificação e Triagem - CTC que possui como objetivo principal a realização do exame criminológico. A autora relata que mesmo os profissionais que não realizam periodicamente laudos ou exames criminológicos possuem um discurso semelhante visto que entendem o “sujeito perigoso” e o seu crime como algo biológico, ou seja, “inerente à personalidade”. Já a periculosidade “é atribuída às questões sociais, como a família, a pobreza, orientação sexual etc.” (Tannus, 2017, p. 135). Desse modo, segundo Rauter (2016) a realização de documentos como laudos podem vir dotados de julgamentos e preconceitos cobertos por uma linguagem científica, afastando-se da ética da profissão.
Ainda a pesquisa realizada por Tannuss (2017) demonstra que cinco das(os) nove psicólogas(os) que atuam a partir de uma política de saúde o fazem exclusivamente com atendimento clínico/escuta psicológica. Já “os outros 4 também realizam o atendimento clínico, mas aliado a outras atividades como as palestras ou orientações” (Tannuss, 2017, p. 143). A autora ressalta que é possível perceber na atuação das(os) psicólogas(os) na Paraíba, assim como apresenta o relatório de 2019 do CFP já citado, uma prática a partir do “modelo hegemônico de atuação clínica” no qual “há uma predominância de técnicas psicoterápicas, que muitas vezes são tomadas como a única possibilidade de prática, o que se deve muito ao fato do psicólogo reconhecer nesse tipo de trabalho a única forma de atuação” (Tannuss, 2017, p. 143).
Em contrapartida, Reishoffer (2015, p. 84) relata em sua pesquisa que também foi solicitada a produção de parecer técnico e a atuação a partir do atendimento individual, assim como percebe-se ser para muitos profissionais nessa área. Porém, ele afirma que esta prática requer do profissional o não afastamento “dos princípios ético-políticos de uma atuação atravessada pelos princípios dos direitos humanos”, assim como previsto no código de ética da categoria, evitando contribuir com os processos criminalizantes e excludentes presentes no sistema carcerário. Ainda, Reishoffer (2015, p. 91) considera que os laudos e pareceres marcam alguns sujeitos como “irrecuperáveis” colocando “em funcionamento a máquina carcerária em sua função de controle diferencial da pobreza” evidenciando a neutralização e exclusão como funções do cárcere.
Sendo assim, mesmo que as atuações da(o) psicóloga(o) possam ser restringidas pelo
próprio sistema em que atuam se faz necessária a busca por uma “tentativa de investir nas
linhas de fuga [...] linhas que comportam a resistência e a ruptura com o instituído”
(Reishoffer, 2015, p. 16). As pesquisas identificadas como pesquisa intervenção atuaram
nessa perspectiva de práticas diferenciadas a partir da arte, estética ou de atividades
grupais. Uma dessas práticas diferenciadas foi realizada por Reishoffer (2015, p. 16) em
uma penitenciária federal por meio do projeto
A partir do que Soares et al. (2014) chamam de cartografia em teatro-experimentação, os autores apresentam uma prática possível e diferenciada em um presídio feminino por meio da arte com o objetivo de construir com as detentas experimentações sobre o que é ser mulher e presa, além de “construir dispositivos” que tornassem possível a produção de outras vozes, “[...] vozes múltiplas, caóticas, paradoxais” (Soares et al., 2014, p. 92). Nesses encontros os autores utilizam filmes, literatura, poesia, música, pintura e teatro a partir de temas como corpo, a experiência na prisão, histórias de vida, etc. Os autores apontam que a medição artística apresenta potencialidades para a criação de sentidos outros para a vida.
Andrade (2015) também realizou sua pesquisa em uma penitenciária feminina (APAC) a partir de oficinas de estética relacionadas diretamente ao cuidado de si, com o objetivo de entender a produção de sentido realizada pelas internas visto que a vida no cárcere acarreta, na maior parte das vezes, uma despersonalização, degradação de si, ausência do autocuidado, etc. (Andrade, 2015, p. 38).
Segundo Pacheco e Vaz (2014, p. 182), o Estado do Rio Grande do Sul fez uma divisão do trabalho das equipes técnicas e, nesse escopo, uma equipe continuou responsável pelas avaliações dos presos e a outra realizava o que eles denominavam “tratamento penal”. Essa segunda equipe teve a incumbência de propor às pessoas presas um “tratamento penal” com o objetivo de redução de danos “levando em consideração as especificidades e singularidades de cada um”, visto que esses danos foram causados pelo próprio cárcere. Assim, a partir das propostas de atendimento e acompanhamento psicológico de forma grupal, foi possível pensar “atividades voltadas para a saúde, profissionalização, crescimento pessoal e reconstrução da cidadania” (Pacheco & Vaz, 2014, p. 186) da pessoa em privação de liberdade. Nascimento e Bandeira (2018, p. 102) afirmam também que a redução de danos é uma prática possível da(o) psicóloga(o) no âmbito do cárcere já que auxilia no manejo com os efeitos do encarceramento, “desde que sua prática seja contextualizada e comprometida com a garantia dos direitos humanos”.
A prática realizada por Oliveira (2015, p. 39) em sua pesquisa a partir da Psicanálise teve como objetivo a realização de oficinas terapêuticas destinadas a pessoas possivelmente psicóticas com o intuito de ouvi-las para além do seu ato criminoso. Assim, a autora reflete que, a partir dos saberes “psis”, foi proposto ao indivíduo “vivenciar a experiência da loucura singularmente”. Retirada de um pedaço
Diante do exposto, a(o) psicóloga(o), no sistema prisional, precisa questionar sua atuação e sua função nesse espaço mesmo que seja um espaço de regras, que acabam ditando o modo de ser e agir fazendo com que se adequem ao sistema (Lopes, 2016), pois a partir dos danos psicossociais do encarceramento o profissional não pode ser mais um “funcionário do cárcere” sem olhar de forma crítica sua atuação e seu papel social, ético e político produzindo ferramentas para novos processos de subjetivação capazes de potencializar a vida das pessoas nessa situação (Badaró-Bandeira, 2005).
A lógica da prisão se dá a partir da segurança e da disciplina, tendo como função o controle social, de acordo com Andrade (2015). Constitui, porém, algo que, na realidade, não pode ser comprovado, pois não há evidências de consequências positivas para sujeitos que foram presos. A prisão é conhecida por produzir um efeito contrário ao proposto, o que a pesquisadora chama de “uma escola do crime”. A partir desse cenário descrito por Andrade (2015), um dos maiores desafios para a atuação da(o) psicóloga(o) é “a má gestão dos processos de trabalho, a insuficiência de pessoal para dar conta da demanda e a baixa remuneração para o tipo de serviço” (CFP, 2019, p. 52). A falta de materiais, equipamentos ou locais de sigilo para realizar os atendimentos também se faz sentir.
Nesse sentido, a pesquisa realizada por Tannuss (2017, p. 150) demonstra que as(os) psicólogas(os), nesses espaços, estão submetidos a processos de adoecimento “devido às péssimas condições de trabalho, o convívio com a violência, o clima hostil e, principalmente, à impossibilidade de, através da sua prática, promoverem mudanças na instituição”. Além disso, as profissionais ressaltam a questão da baixa remuneração e “apontam para a desvalorização da profissão no campo prisional, no qual agentes penitenciários, sem formação superior, possuem salário maior do que as psicólogas” (Tannuss, 2017, p. 114).
Tannuss (2017) expõe que, além de a maior parte dos entrevistados de sua pesquisa possuírem contrato temporário, fato que caracteriza uma situação frágil e que acaba dificultando possíveis posicionamentos, há uma alta demanda de trabalho. As profissionais relatam que esses contextos de trabalho não possuem espaço próprio, não há materiais suficientes como mesas e equipamentos em geral e que, em diversas situações, os próprios profissionais acabam comprando os materiais. A pesquisadora ainda constatou que, embora tenha aumentado o número de equipes de saúde nesses espaços, a cobertura ainda é insuficiente e o enfoque continua o mesmo, curativo. Retirada de um pedaço
O trabalho fica condicionado a alguns fatores, segundo Tannuss (2017), tais como a quantidade de agentes para trazer os presos para o atendimento e a motivação desses profissionais, além de relatos por partes das(os) psicólogas(os) referentes à resistência dos agentes penitenciários à equipe de saúde. E, por fim, relata que há uma tensão entre ambos pelo estigma de “periculosidade” atribuído aos sujeitos presos.
Percebe-se, assim, “o desconhecimento por parte dos psicólogos acerca da realidade dos presos” (Tannuss, 2017, p. 134). Tannuss (2017) compreende que isso possa acontecer tanto pela alta demanda já citada, pelo acesso restrito dos profissionais apenas ao espaço prisional, ou pela ausência total de acesso. França et al. (2016), nesse mesmo sentido, afirmam que ao entrar nesse ambiente, o trabalho é mediado por uma lógica punitiva e excludente, que utiliza o discurso de segurança como justificativa.
Nascimento e Bandeira (2018) afirmam que um dos grandes desafios para a(o) psicóloga(o) em sua prática é contribuir para melhores condições de vida nas prisões. Reishoffer (2015, p. 27) propõe que o caminho para investigar os processos de produção da subjetividade dentro desses espaços seria por meio de uma análise sobre como tornar possível um regime prisional que seja considerado paradigma de eficácia e sucesso, por apontar as pistas “para entendermos as lógicas de encarceramento da atualidade e suas funções estratégicas dentro da sociedade capitalista, que tem na prisão seu modelo penal de excelência”.
Nesse sentido, mesmo a APAC que, segundo Andrade (2015, p. 98), estimula o desenvolvimento de capacidades e aptidões, valorizando as mulheres que se encontram institucionalizadas, ainda assim é uma “instituição de reclusão que leva a um modo de subjetivação que tem como fundamento a sujeição”.
Tannuss (2017) cita Amaral (2016) ao concluir que o trabalho da(o) psicóloga(o) é considerado ambivalente, por possuir o objetivo de promoção de saúde psicológica e lutar pela garantia de direito dos presos e, ao mesmo tempo, instrumentalizar os profissionais já presentes na área, o que a pesquisadora chama de “cotidiano punitivo”. Ou seja, o paradoxo e a ambivalência se fazem presente na própria condição institucional, na crença do poder das prisões e na descrença do humano visto como um ser incorrigível, mas talvez reeducável pela sociedade.
A partir dos trabalhos analisados fica evidente que o profissional da psicologia precisa pautar sua prática em um viés crítico que leve em consideração o fazer ético e político da profissão. Ou seja, é necessário que o trabalho desses profissionais crie “margens de manobra, espaços de singularizações normativas que possibilitem a resistência, a emancipação e o enfrentamento das dinâmicas segregacionistas” (Barros & Amaral, 2016, p. 63).
Além disso, o olhar interseccional deve compor o conjunto de habilidades que o(a) profissional da psicologia precisa desenvolver para oferecer seus serviços e saberes neste contexto. Adotar um posicionamento crítico que considera o modo como a classe, a raça, o gênero e a sexualidade entretecem as condições de existência às quais os sujeitos encarcerados estão submetidos é, por si mesmo, um ato político.
Portanto, se faz necessária a formação contínua de psicólogas(os) para uma atuação no sistema prisional que considere os marcadores sociais de gênero, sexo, idade e classe como fundamentais para pensar práticas de cuidado, acolhimento, mediação e potencialização de processos emancipatórios.
Evidencia-se, pelos trabalhos analisados, que a prática da Psicologia no sistema prisional brasileiro enfrenta diversas questões do próprio sistema vigente, visto como um local de estigmatização, segregação e exclusão, além de produzir diversos tipos de violências e vulnerabilidades. Porém, esses efeitos do cárcere são comumente justificados pela defesa de uma suposta ideia de “sociedade mais segura”, em que os presos serão ressocializados posteriormente e curados de seus “males morais”. Além disso, é um campo que enfrenta diversas dificuldades referentes à sua infraestrutura, em péssimas condições, superlotação frequente de celas e sem sigilo algum.
No que se refere às possibilidades de atuação, as pesquisas mostraram que se voltaram, na maior parte das vezes, a práticas individualizadas e à elaboração de documentos. No entanto, percebe-se um movimento por parte das(os) pesquisadoras(es) em busca de novas formas de atuação, principalmente com grupos e a mediação da produção artística na produção de sentidos outros sobre a vida e a condição de aprisionada(o).
Se faz necessário pensar sobre a prática da Psicologia no cárcere, suas dificuldades, exigências, limites e, principalmente, suas potencialidades, possibilitando uma abertura para discutir novas estratégias que permitam trabalhar as questões decorrentes da vivência em um espaço com essas características, em busca de uma melhora na qualidade de vida. Além disso, é de suma importância que os cursos de Psicologia promovam mais discussões e possibilidades de atuação no sistema prisional visto que isso agrega na formação do futuro profissional, dando mais visibilidade para esse espaço e para as demandas gritantes que ele apresenta.