Editora-Chefe da Revista de Psicologia. Professora Titular da Universidade Federal do Ceará. Coordenadora do Laboratório de Psicanálise da UFC. Diretora do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise - Seção Fortaleza. Membro da Academia Cearense de Letras.
O processo editorial de revistas científicas brasileiras surgiu na segunda metade do século XIX, com um atraso de cerca de dois séculos em relação à Europa, o que se encontra relacionado com as origens tardias da implantação da Universidade em nosso país. Buscando a recomposição dessa história, de sua expansão, avanços e desafios, tornam-se patentes as enormes dificuldades encontradas por instituições e editores para a consolidação científica, composição, publicação, divulgação e circulação dessas revistas constantemente ameaçadas de desaparecimento. No entanto, ao mesmo tempo, observa-se a persistência da luta, por elas travadas, para garantir a permanência de sua função uníssona: a de socializar e divulgar os conhecimentos científicos gerados no âmbito da pesquisa universitária e das sociedades científicas e da tarefa de articulá-los com o contexto histórico, social e político, única forma capaz de gerar processos de avaliação e mesura do alcance dos seus avanços científicos. Certamente, o sentido, a forma e o alcance dessas dificuldades assumiram formas diferentes em cada época e acompanharam as tensões com que são selados os conflitos entre os interesses científicos e os interesses do Capital.
No contexto atual do processo de editoração científica realizado no Brasil, observa-se, por um lado, um ataque que consiste em negar as próprias conquistas da Ciência moderna e, por outro, uma subversão do próprio sentido da Ciência, que tem perdido sua autonomia de pesquisa, em função dos interesses do mercado. Tal estado de coisas é complexo e tem afetado profundamente não apenas o referido processo, mas também as instituições de ensino e de pesquisa nas quais ele tramita. Os problemas se avolumam, tanto do ponto de vista da precarização das condições materiais necessárias à pesquisa e à divulgação de seus resultados, quanto das condições humanas dos pesquisadores, cada vez mais pressionados para responder a uma demanda que é alheia aos seus propósitos científicos e muito mais vinculada aos interesses mercadológicos, cada vez mais sujeitos à tecnocracia, à burocracia e ao culto de modelos de desempenhos acadêmicos que geram o próprio descarte dos seus produtos, que ganham um valor cada vez mais efêmero.
Numerosos são os editores de periódicos e partícipes do processo de produção do conhecimento científico brasileiro que se erguem contra esse estado de coisas, procurando garantir os princípios civilizatórios e humanos norteadores da Ciência. No âmbito da Psicologia, tem se configurado um esforço coletivo constante nessa direção, uma verdadeira batalha que não deixa de gerar um desgaste, que poderia ser evitado se as condições básicas do referido processo fossem asseguradas.
Em face disso, esse número da Revista de Psicologia, que se avizinha da edição que, em 2023, marcará os seus 40 anos, rende uma homenagem a todos aqueles que, de forma verdadeiramente heroica, mantêm-se comprometidos em assegurar a continuidade, a qualidade e a ética do processo de editoração científica.
Nos últimos 20 anos de trabalho em prol da Revista de Psicologia, sua equipe editorial como um todo tem observado que a demanda pela publicação de estudos e pesquisas vem aumentando significativamente, o que parece ser um fato solidário ao avanço e à ampliação da Pós-Graduação em Psicologia nas universidades brasileiras. O lado afirmativo da busca pelo escoamento da produção, nelas gerado, tem sido, ao mesmo tempo, fonte de novos desafios e da realização de um trabalho mais extenso e minucioso. Com isso, os periódicos são levados a adotar estratégias com o intuito de otimizarem o fluxo editorial (recepção, avaliação prévia, avaliação e preparação final dos textos) em conformidade com as recomendações cada vez mais exigentes de muitos dos indexadores de periódicos. Esse compromisso com a dinamização do trabalho e com a sua agilidade para o desenlace do processo editorial, tem sido muito difícil de ser observado e, isso, devido a vários fatores, dentre os quais os mais significativos são a falta de recursos para o pagamento de serviços especializados necessários à garantia da qualidade técnica dos periódicos, o alto percentual de submissões a ser acolhido e examinado e a recente tendência que tem se revelado, qual seja, a indisponibilidade de consultores para a realização da tarefa avaliativa dos textos submetidos à publicação.
No caso desta última dificuldade, acima elencada, observa-se um problema de muito difícil enfrentamento, uma vez que o trabalho que consiste na emissão de pareceres é complexo, requer atenção e tempo significativo e não tem sido devidamente valorizado como um produto acadêmico a ser contabilizado à altura em relação às outras exigências que são feitas aos professores no contexto de suas atuações. Sendo uma tarefa eminentemente voluntária, a falta de incentivo à sua realização tende a gerar a sua recusa por parte dos consultores eleitos em função de sua comprovada maturidade científica pelos editores de revistas.
O risco do agravamento dessa tendência pode vir a afetar de forma drástica a prática da avaliação dupla-cega, procedimento que tem se mostrado essencial para o controle de qualidade das publicações científicas em geral amplamente defendida por editores de periódicos científicos como garantidora da relevância, da coerência teórica e metodológica dos textos científicos. Nesse sentido, é urgente a discussão e a busca de estratégias mais efetivas e coletivas que possam garantir a manutenção da saúde dessa importante prática e de sua efetivação em tempo hábil, de modo a não comprometer a periodicidade das publicações.
Em face de todos os problemas apontados, a presente edição da Revista de Psicologia rende uma homenagem a todos aqueles que, de forma verdadeiramente heroica, se mantém comprometidos em assegurar a continuidade, a qualidade e a ética do processo de editoração de todos os periódicos científicos brasileiros e, particularmente, a do nosso. Agradecemos e exaltamos todos os pesquisadores que contribuíram nos bastidores com o processo de avaliação e emissão de pareceres e outros tipos de trabalho igualmente relevantes à consecução de sua missão ao longo desses 39 anos de existência.
Destaca-se, na atual edição, a incidência de um maior número de artigos dedicados a relatos de pesquisas realizadas numa pluralidade de instituições brasileiras de ensino superior, seguidas de estudos teóricos e relatos de experiência. Como tem sido costume, contamos ainda com uma conferência e uma resenha. De forma geral, esses textos tratam de problemas relativos aos campos da Psicologia social, da saúde coletiva, da saúde mental e ao das práticas clínicas de orientações diversas, reatualizando com isso a feição plural com que a Psicologia tem sido acolhida por este periódico.
Laéria Fontenele
Editora-Chefe da Revista de Psicologia