Revista de Psicologia, Fortaleza, v.14, e023015. jan./dez. 2023

DOI: 10.36517/revpsiufc.14.2023.15

 

RECEBIDO EM: 09/02/2023

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 12/04/2023

VERSÃO FINAL: 19/04/2023

APROVADO EM: 25/04/2023

 

 

O bailar da falta: o desvelamento do real na dança de Pina Bausch

The dance of lack: the unveiling of the real in Pina Bausch's dance

 

Greta Fernandes Moreira

Psicóloga, Psicanalista e Advogada. Doutora pelo programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida no Rio de Janeiro - Brasil. E-mail: gretafmoreira@gmail.com. Endereço: Rua dos Azulões, Ed. Office Tower, sala 730, Jardim Renascença, São Luís – MA, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5475-3505

 

Betty Bernardo Fuks

Professora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida no Rio de Janeiro - Brasil. Editora da Revista online Trivium: estudos interdisciplinares. E-mail: betty.fuks@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5325-7382

 

 

Resumo

O presente artigo visa investigar quais seriam os efeitos do desvelamento do real em cena para o público espectador da dança moderna e contemporânea. Analisa, em consonância com a teoria psicanalítica, a obra Kontakthof (1978), da bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch, fundadora do Tanztheather Wuppertal, que revolucionou a dança contemporânea, ao trazer ao palco a subjetividade de cada bailarino, despertada através de um peculiar processo de criação. A obra, ao mobilizar afetos, permite estabelecer uma conexão direta com o sujeito espectador, suscitando sentimentos tais como choque e estranhamento (unheimlich.) - fenômenos de borda que podem ser entendidos como mostração da angústia, sinalizando esse último limite anterior ao real e ao campo do gozo.

Palavras-chave: Dança; psicanálise; angústia; unheimlich; Pina Bausch.

 

Abstract

This article aims to investigate what would be the effects of unveiling the real on stage for the spectator of modern and contemporary dance by analyzing, in line with psychoanalytic theory, the work Kontakthof (1978) by the German dancer and choreographer Pina Bausch, founder of the Tanztheather Wuppertal, who revolutionized contemporary dance, by bringing to the stage the subjectivity of each dancer, awakened through a creation process that is peculiar to her, and which allows her to establish a direct connection with the spectator, by evoking such feelings as shock and estrangement (unheimlich), which can also be understood as a display of anguish, an edge phenomenon, which signals this last limit prior to the real and the field of jouissance.

Key-words: Dance; psychoanalysis; anguish; unheimlich; Pina Bausch

 

 

O modernismo, com todas as suas provocantes inovações e rupturas em relação a um padrão clássico de dança, pareceu buscar provocar, no espectador de sua arte, um certo enigma, fazendo vacilar sua passiva e confortável posição contemplativa, convocando-o em sua posição mesma de sujeito, em conformidade com a marca radical que determina a arte dos tempos modernos.

Fugindo da concepção de corpo comumente encontrada no ballet clássico, um corpo técnico, treinado, individual e virtuoso, construído a partir de valores renascentistas, um verdadeiro “corpo objeto”, mero instrumento da arte, a ser adestrado, através de treinos rigorosos, com a clara intenção de criar uma imagem de perfeição, de acordo com a vontade do coreógrafo, numa tentativa de encobrir a falta, a dança moderna e, em seguida, a contemporânea, levam ao extremo a concepção de corpo dançante como retrato de inúmeras influências: culturais, sociais, físicas ou emocionais, tratando o bailarino como um sujeito, com história e valores próprios.

E se a dança moderna nasce junto com a Psicanálise, é na obra de Pina Bausch onde melhor se pode ver esta aproximação. Sua arte traz à tona aquilo que tenta permanecer invisível, revelando um ser humano desamparado, não em virtude de uma catástrofe que tenha vivenciado, mas pelo próprio estado de inacabamento existente entre o sujeito e seu corpo.. Isso revelaria,, ainda, a falta estrutural, constitutiva do ser humano, colocando em cena o sujeito barrado, do qual a Psicanálise se ocupa.

Desvelando o real, furando o sentido, a dança moderna e a contemporânea, a partir do questionamento daquilo que está mais além do visual, conseguem, verdadeiramente, nos presentear com uma nova forma de dança, onde o olhar do espectador ainda comanda, mas ao mesmo tempo escapa à visão (Lacan, 1964, p. 78), entregando-se o sujeito ao olhar do Outro, sendo olhado em sua essência, em sua falta.

E quais seriam os efeitos desse desvelamento do real em cena para o público espectador da dança? Esta questão é o ponto de partida da investigação que se pretende realizar no presente artigo, analisando-se, em consonância com a teoria psicanalítica, uma das obras da bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch, fundadora da Tanztheather Wuppertal, que revolucionou a dança contemporânea.

Empurrando-a em um nova direção ao juntar elementos teatrais ao movimento do corpo, fundindo essas duas formas de arte em um todo integrado, as obras de Pina são capazes de despertar no espectador, por meio dessa mistura de movimento, som, cenários de destaque e dançarinos intérpretes, o fenômeno do estranho, tratado por Freud em sua obra Das Unheimlich (1919). Leva-nos, dessa maneira, a um bordejamento do real, que nos causa um mal-estar, uma inquietação, algo difícil de dizer, de simbolizar, algo para o qual faltam palavras, que aponta para um vazio, onde a angústia nos domina.

Pina Bausch, uma das principais expoentes da dança alemã, estava particularmente atraída por situações em que as pessoas se movimentavam, mantendo-se profundamente sintonizada com a maneira como as pessoas se expressavam em movimento e os efeitos que essa expressão poderia causar no público espectador. De forma que, a base do seu trabalho é uma entrada física em dimensões internas, por meio de sequências altamente elaboradas de imagens evocativas, construídas tal qual os sonhos, em momentos imagéticos aparentemente não relacionados.

De tal maneira que a dança, para ela, tornou-se uma espécie de confronto entre comportamento e apresentação corporal, sendo uma organização da ação que se dirigia à própria vida, em vez de uma mera imitação criada a partir da distância confortável de uma técnica que a intermediaria. Logo, embora a dança sempre tenha se preocupado com as possibilidades de expressão física, nunca, antes de Bausch, essa expressão havia sido estendida para incluir a maneira como nos definimos, por meio de nossa relação corporal com os códigos culturais.

Pina buscava, assim, a forma como cada sujeito se expressava, como uma ou outra emoção era sentida em seu corpo, como cada um experienciava amor, perda, brutalidade, compaixão, ternura, e assim por diante. Utilizando-se das ferramentas de apresentação teatral para reavaliar os pressupostos básicos a partir dos quais surgia a interpretação, perguntava-se não apenas o que nos movia, mas, mais especificamente, como nos relacionamos com essa questão, tanto como performers quanto como pessoas no mundo.

De modo que, no palco, após passar por todo esse processo de descoberta subjetiva, o corpo do dançarino parece ser libertado das regras de uma técnica previamente desenvolvida, podendo representar a conexão física de cada indivíduo com um mundo de sua própria criação. Logo, a cada performance, é a própria experiência do bailarino, enquanto sujeito, que está sendo encenada ali no palco.

E são justamente esses momentos de experiências pessoais performadas que revelam as correntes ocultas e profundas que conectam a sua obra com o público. Seus trabalhos são, assim, estruturas metaforicamente abertas que nos amarram à base de nosso próprio ser no mundo, as imagens não são didáticas, elas não nos dizem como devemos nos sentir, mas escancaram uma experiência em que todos nós somos obrigados a elaborar nosso próprio significado.

Além disso, como bem marcado por Climenhaga (2009), Pina não está tentando convencer seu público de nada, de modo que não há qualquer espécie de moralidade escondida. Nada é imposto, você tem que encontrá-la dentro de si mesmo. Este, em última análise, é o objetivo da abordagem de Bausch: exigir do público uma busca interna por uma forma de encarar as imagens que ela desenterra de um mundo cruel, de modo que a resposta do espectador pode ser, por exemplo, de choque, por ter se isolado, fugindo dessa realidade, ou um sentimento de conexão, por ter lutado essas mesmas batalhas.

Para tentar exemplificar um pouco mais todos esses aspectos apontados do processo criativo de Bausch, passaremos, a seguir, a analisar uma de suas obras mais conhecidas, Kontakthof, originalmente montada em 1978, e performada inúmeras vezes ao redor do mundo, seja com seu elenco original, seja com um elenco sênior, onde todos os dançarinos tinham mais de 65 anos, ou, ainda, com bailarinos adolescentes. 

 

Kontakthof: mercantilização de corpos e relacionamentos no palco?

Em uma tradução literal, Kontakthof significa “pátio de contato”, descrevendo, geralmente, um lugar de encontro entre prostitutas e clientes, um lugar onde o corpo está exposto e à venda. Assim sendo, fazendo jus a seu título, a aludida peça de Bausch se passa em um salão de baile, provavelmente em princípios do século XX, onde tocam sucessos musicais alemães dos anos vinte e trinta. Da mesma forma, os figurinos recordam a moda dos anos 50.

Todavia, é importante destacar que a peça não faz referência a nenhum feito em específico, não se podendo precisar, exatamente, em que época toda a cena se desenrola. Dessa maneira, temos que a representação não está presa a uma determinada fase da história da humanidade, revelando-se sempre atual para seu público espectador, ainda mais com a variação de idade do próprio elenco, adentrando nos conflitos inerentes à adolescência, à fase adulta ou à velhice, de acordo com a faixa etária dos bailarinos/performers que encenam cada uma das apresentações.

Em 1978, quando Kontakthof foi montado por Bausch pela primeira vez, foi dançado por jovens bailarinos profissionais da sua Tanzteather Wuppertal. Já na sua segunda montagem, recriada em 2000, recebeu uma versão com dançarinos amadores, entre 65 e 75 anos de idade. Os corpos dos bailarinos, já envelhecidos, manifestam-se, assim, em cena, realizando um esforço extraordinário ao adotar as posturas frenéticas dos movimentos que Pina construiu com seus dançarinos em 1978.

Por último, em 2008, ganha uma nova versão com adolescentes, entre 14 e 18 anos, percebendo-se, mais uma vez, que o corpo colocado em cena passa a possuir outras formas, outras necessidades, exibindo no palco sentimentos à flor da pele, como desamor, insegurança, esperança e desesperança, em um corpo adolescente tímido e cheio de pudor frente ao descobrimento do outro.

Sendo aberta a diversas interpretações, Kontakthof traz ao palco importantes conflitos de papeis entre gêneros, parecendo conter, ainda, uma crítica à própria dança como profissão, ao mostrar, dentre outras coisas, como se prostituem os bailarinos em cena, uma prostituição que está relacionada a uma constante exposição e venda do corpo, disciplinado para apresentar as suas capacidades físicas, algo que os bailarinos costumam enfrentar frequentemente (Rivas, 2014).

Nesse sentido, a peça começa com os artistas sentados em filas, ao fundo e aos lados do salão de baile, levantando-se um a um, ou de três em três, para apresentarem-se aos espectadores, mostrando seus corpos, como se estivessem, de fato, à venda em um mercado: de frente, de costas, exibindo o colo, cintura, mãos e pés. Passam as mãos sobre seus cabelos, para evidenciar a forma do crânio, abrem a boca para mostrar os dentes, dão meia volta e voltam a se sentar.

Os performers se apresentam, assim, como bens a serem examinados, como se estivessem à venda, enquanto o espectador é quem faz a “compra”. Os dançarinos não podem escapar de si próprios nesta transação, oferecendo-nos seus corpos para serem vistos, para serem considerados dignos. Por outro lado, eles também são capazes de se afastar dos papeis performados, de modo que, os personagens representados pelos dançarinos, ao passo que concordam, sutilmente também desafiam essa mercantilização. Ao mesmo tempo que eles permitem que isso aconteça, a expressão confrontadora e dolorosa que projetam, torna o público consciente e desconfortável do seu próprio envolvimento implícito na prática objetificadora.

Além do contexto objetivo que este momento encenado traz aos palcos, a sua imagem é capaz de mostrar que, de certa forma, artistas ou público, estamos todos envolvidos nessa busca de aprovação por uma sociedade que vê a todos como corpos que precisam ser encaixados em padrões por ela determinados. Por conseguinte, os dançarinos pedem a aprovação da plateia, como sociedade, antes de continuarem com seu ritual de acasalamento, mostrando o processo pelo qual todos nós, como seres sociais, constantemente verificamos nosso valor dentro de uma sociedade que tanto destaque empresta à imagem corporal.

Climenhaga (2009) marca que cada artista na performance, seja o mais jovem membro da companhia ou os dançarinos mais velhos daquele intrépido grupo de cidadãos idosos, coloca-se diante do público, oferecendo-se ao evento, como que em um sacrifício de si mesmo, numa cooptação da força através da vulnerabilidade, tornada palpável e usada como uma metáfora para nossas próprias vidas. Olhamos para esses performers e eles se atrevem a olhar de volta, de forma a confrontar o público da mesma maneira que em um retrato expressionista, com um brilho de provocação, de exposição e de intensidade visceral.

Com o avançar da performance, através da repetição, da aceleração ou da utilização de um recurso semelhante à “câmera lenta”, Pina, passo a passo, vai dissecando rituais sociais, diferentes formas de encontros entre homens e mulheres, seja em grupos ou em pares, que se iniciam com gestos ternos, e acabam desembocando em movimentos violentos, nervosos, por vezes beirando o cômico, expondo, assim, causas e efeitos corporais do encontro com o outro, desarticulando a vida pública e a privada.

Apresentando-se em diferentes casais, os bailarinos mostram ao público o mesmo ritual de amor-ódio, demonstrando que, com o mesmo gesto, o contato pode ser visto como amoroso ou como agressivo, a depender da intensidade e motivação. Desse modo, em Kontakthof se mostram os papeis, conflitos e diferenças entre os gêneros através da linguagem gestual, em movimentos coreográficos que envolvem carícias, empurrões, tropeços e as aludidas batalhas de casais.

Com efeito, em uma de suas cenas mais provocativas, duas mulheres, em uma espécie de camisola rosa, fazem uma dança que parodia os gestos femininos aprendidos e reconhecidos por sociedades como a alemã da época e ainda reproduzidos na nossa de hoje. Ao terminar a dança, em que se evidenciam obsequiosos sorrisos, poses com mãos suaves, olhares sedutores e complacentes, uma das bailarinas retorna ao palco soluçando. Um por um, uma dúzia de homens em camisas cinzas, gravatas e ternos se aproxima dela.

O primeiro belisca sua bochecha, continua acariciando sua cabeça, o segundo aperta seu nariz, massageia seus ombros, um terceiro entra para levantá-la do chão com um abraço, enquanto os outros continuam fazendo gestos que reconhecemos como sinais de carinho ou simpatia, mas que, aos poucos, devido à intensidade e à repetição, transformam-se em ações agressivas e desconcertantes. Diante da passividade da mulher, a cena torna-se de uma grande violência.

Nas palavras de Rivas (2014, p. 89),

[...] parecem moscas comendo uma fruta madura. Nesta dança, o público observa a evolução da repetição até ser possível ler nela uma franca agressão feita a partir de nossos gestos diários, que costumam demonstrar carinho. Mas como se chega lá? Como detectar a violência nas formas amigáveis ​​que todos nós usamos e recebemos no dia a dia? O que nos dizem as estatísticas sobre a violência que os homens da nossa família ou nossos amigos, de cujos gestos de afeto não devemos desconfiar, exercem contra as mulheres e as crianças? Essa proximidade da cena com a vida nos tira o fôlego.

 

Assim sendo, questionamentos são levantados pelas imagens encenadas, como, por exemplo, em que ponto a ternura se transforma em crueldade? À medida que a mulher, inerte, vê-se rodeada de homens, é erguida e sacudida, seu rosto beliscado, as mãos erguidas, tudo em uma enxurrada de movimentos repetitivos aleatórios, percebe-se que seu corpo vai se tornando um objeto, sendo o público requisitado a continuamente se lembrar que, da mesma forma, fora dos palcos, pode existir uma pessoa, em algum lugar, passando pelo mesmo que ali é encenado como tortura.

Importante destacar que, ao assistir tais cenas performadas, é praticamente inevitável que o espectador se veja tomado por um certo incômodo. Todavia, com a intensa repetição desses maus-tratos perpetrados contra a mulher, percebe-se que o desconforto inicial, no decorrer do tempo, vai cedendo lugar, inadvertidamente, a uma espécie de aclimatação. O espectador vai se acostumando com a atividade, passando a ignorar as implicações objetificantes e bastante brutais, assumindo uma posição de certa passividade, permitindo que aquilo continue, por estar contido em uma presença passiva na plateia, em uma cena que não clama pela participação do público de forma direta.

Pina parece denunciar, aí, a própria passividade da sociedade contemporânea, propiciando ao espectador perceber como se vai assumindo, ao longo da vida, ainda que indiretamente, o papel de facilitador passivo de tais violências e injustiças. Por conseguinte, dizer que os homens objetificam e abusam das mulheres até mesmo por meio da sutileza de suas ações é um bom ponto. Mas dizer que esse processo continua e nos acostumamos, que nos lembramos e depois nos esquecemos de novo, que o processo é tão contínuo que devemos nos despertar constantemente para os gritos da mulher silenciosa e impassível, é uma denúncia provocadora e perturbadora da cultura estabelecida.

Como bem marca Climenhaga (2009, p. 87, tradução nossa), ao trazer a sua percepção pessoal da aludida cena,

No momento, sentado lá no escuro, estou atordoado, estranhamente descoberto e exausto. Bausch fez com que todos trabalhássemos muito, e a penúltima imagem daquela mulher perdura. Eu a vejo em minha mente e carrego a imagem comigo enquanto volto para o saguão. Apesar do artifício da situação, a mulher passa por um acontecimento muito real, e sua presença no palco é produto tanto de sua existência real neste momento, quanto da longa e densa colagem de imagens que a conduzem. O momento tem poder, em parte, na medida em que somos capazes de ver a mulher como uma pessoa real enfrentando uma provação real e metafórica, e Bausch forneceu um contexto que exige nossa atenção para sua subjetividade, expressada em termos corporais. Ela incorpora a estrutura de sentimento subjacente à imagem, porque é encenada nela e expressa com a presença real de seu corpo no momento.

 

Pina aponta, assim, para esse processo de incorporação e desperta o verdadeiro abuso latente no ser corporal da mulher, não permitindo que se esqueça, por mais que se queira, nem que seja só por alguns momentos, desse processo de abuso e objetificação, bem como a própria implicação de cada sujeito espectador neste evento.

Ao reconfigurar Kontakthof com um elenco de bailarinos amadores idosos, Bausch consegue dar ao público uma outra perspectiva da peça, trazendo ainda mais brilhantismo para sua obra. O mesmo sentimento de vergonha e consciência das tentativas de estabelecer conexão com o outro também estão aqui presentes, sendo, todavia, acrescido o desconfortável sentimento do quanto vamos nos tornando vulneráveis na velhice. Na versão original, os artistas mantêm uma presença forte em cena ao revelar seus corpos bem torneados. Já na versão de bailarinos idosos, os espectadores são invadidos com a tomada de consciência de que seus corpos, em algum momento da vida, vão passar a lhes trair.

Inquestionável é que, mesmo ao final da performance de quase três horas de duração, o espectador é invadido por uma sensação de que a ação desenrolada no palco continua para fora dele, de modo que é praticamente impossível escapar das sensações despertadas pelas vivências encenadas. À medida que eventos e imagens vão se desenrolando no palco de Pina Bausch, eles se aglutinam e provocam o espectador, inquietando-o em sua passividade e demonstrando que, sim, ele também é responsável pelos atos e costumes performados não só no palco, mas em uma sociedade da qual todos fazemos parte.

 

A angustiante estranheza em cena no tanzteather de Pina Bausch

Como podemos perceber, nas peças de Bausch, o espectador é convidado a colocar cada imagem no contexto que o rodeia, despertando lembranças de momentos semelhantes por ele anteriormente experienciados. Em Kontakthof, por exemplo, a emoção básica despertada é a necessidade humana de conexão e o sentimento subjacente que temos quando nos permitimos nos encaixar nesses padrões de comportamento ensejados pelo desejo de nos relacionarmos com o outro. A sensação de se oferecer à crítica e ao equilíbrio de poder e vulnerabilidade que está implícito nesse gesto é desenvolvida metaforicamente na peça como um elo para nossa busca por amor e conexão.

O espectador consegue, então, sentir as tentativas constantes dos bailarinos na busca infindável por uma completude externa, que sempre provocam repetidas desilusões. No palco, o mundo parece ser construído através de uma constante interface entre a realidade que nos cerca, as implicações metafóricas dos eventos que ali ocorrem, e a realidade psíquica de cada sujeito, enquanto público espectador, engajado naquele ato de representação que ali se desenrola. Cada ação é feita para outra pessoa, seja um para o outro no palco ou para nós na plateia, e há uma sensação de expectativa com cada ação.

A dança contemporânea, dessa forma, ao se aproximar da arte da performance, distingue-se dos movimentos artísticos anteriores ao expor essa experiência estética ligada ao sentir. Suscita, portanto, reflexões perceptivas, que vão muito além da pura apreciação e contemplação da obra artística, relacionando-se, diretamente, ao que Freud (1919) destacou em seus estudos sobre estética, ao tentar desvendar esse sentimento de Unheimlich, de uma estranha inquietação que nos domina, ao nos depararmos com uma obra tal como a de Pina Bausch.

Sendo assim, o que a dança contemporânea traz à tona são questões sobre o encontro entre artista e espectador. Sobre uma diferença, que, segundo Frayze-Pereira (2005), aponta para o caráter não-puro do sentir, para o aspecto ambíguo das experiências artísticas contemporâneas. Sendo estas insólitas e perturbadoras, ambivalentes e excessivas, irredutíveis à identidade, entretecidas na existência de homens e mulheres da segunda metade do século XX, e que encontram a sua inspiração em estados psicopatológicos, nas toxicomanias, nas perversões, nas culturas primitivas e práticas sociais alternativas.

Com efeito, falar sobre arte contemporânea é tratar, sobretudo, de conceitos, de questões sociais e políticas, sobre o não tradicional, sobre o fazer artístico não institucionalizado. É, também, a estranheza de fazer, inclusive do próprio corpo, objeto artístico, como trata a performance, a body art e a dança contemporânea. Dirigindo-se para além das possibilidades de representação, o tanzteather de Bausch aproxima-se, dessa maneira, da surpresa, do estranho e da experiência da angústia, afeto que denuncia o furo no campo simbólico.

Freud, em 1915, afirma que a sublimação pela arte, ao oferecer uma escapatória ao recalque, pode ser um dos caminhos para lidar com o irrepresentável do trauma, que anuncia nossa posição fundamental de desamparo. Ocorre que, pela via da dança moderna e contemporânea, somos levados a uma conclusão oposta: o choque e estranhamento que essa arte provoca pode ser entendido também como mostração da angústia. A presença de um objeto – ou corpo – no lugar que deveria ficar vazio, revela-nos o objeto que nós mesmos somos para o desejo do Outro.

E isso resta bem claro em Kontakthof, quando os bailarinos performers se apresentam, já no início do espetáculo, como bens a serem examinados, como objetos que se mostram à venda para o espectador, tornando o público consciente, por meio de suas expressões confrontadoras e dolorosas, de seu próprio envolvimento implícito na prática objetificadora.

A exibição desse Unheimlich, desse algo que deveria ter permanecido oculto, porém foi trazido à luz (Freud, 1919), é o que Lacan apreende na experiência da angústia, por trazer à tona o lugar da falta. Com efeito, a experiência de um teatro imersivo e a vivência de uma performance de dança proporcionadas pelo tanzteather, coloca-nos frente ao desconhecido, e nos remete a nós mesmos como desconhecidos, outros, e também aos inúmeros outros não desvendáveis com os quais convivemos ao longo da vida, fazendo-nos pensar o fora-de-sentido, o inabitual, o estranho que atormenta por fazer lembrar a castração que nos divide como sujeitos.

Logo, o que aparece na hiância entre um significante e outro é justamente o inconsciente com sua função “pulsativa”: “tudo que, por um instante, aparece em sua fenda, parecendo ser destinado, por uma espécie de preempção, a se cicatrizar, como o próprio Freud empregou a metáfora, a escapulir, a desaparecer” (Lacan, 1964, p. 49).

Ao encenar um corpo que se desmancha, que estraga, que se machuca, que paralisa, que traumatiza, Pina faz retornar algo que, por mais que se tente apreender pela via do significante, insiste em não se deixar apaziguar pelas tendências homeostáticas do princípio de prazer, interrompendo a proliferação do simbólico e reinstaurando o novo. E esse algo, esse elemento para além do belo – ou para além do princípio de prazer – é capaz de lançar o espectador em um universo em que ele se sente apreendido, justamente, naquele ponto irredutível de sua angústia.

Como marca Sales (2016), o trauma, esse encontro faltoso com o real, impossível de ser representado, e que só pode ser repetido, vem da confusão entre sujeito e mundo, da ruptura entre o dentro e o fora – operação de divisão cujo resto é o objeto a, objeto da angústia. A repetição, antes, serve para proteger do real, compreendido como traumático. Mas essa mesma necessidade também aponta para o real, e nesse caso o real rompe o anteparo da repetição. É uma ruptura não tanto no mundo quanto no sujeito – entre a percepção e a consciência de um sujeito tocado por uma imagem (Foster, 1996, p. 128-129).

Assim sendo, a imagem que se repete – a exemplo da cena de Kontakthof em que uma das bailarinas retorna ao palco soluçando, após ser assediada por uma dúzia de homens de terno e gravata que iniciam os movimentos fazendo gestos que reconhecemos como sinais de carinho ou simpatia, mas que, aos poucos, devido à intensidade e à repetição, transformam-se em ações agressivas e desconcertantes – aponta o sujeito como efeito do olhar, como sombra ou “mancha” (Lacan, 1964, p. 77), anunciando o encontro faltoso com o real. Consequentemente, as repetições acabam por despertar a sensação de estranheza, que dá à angústia seu caráter fundamental. Forma-se, pois, um ciclo vicioso: “repetições que se fixam no real traumático, que o encobrem, que o produzem” (Foster, 1996, p. 131).

A dança contemporânea evidencia, dessa forma, o caráter fragmentário da pulsão, deixando transparecer, através dos objetos que ela cria, esses elementos do informe. O objeto a do olhar destaca-se, então, na relação do espectador com a arte, de modo que, ao ver a obra, o sujeito é fisgado na posição de objeto, como se a própria obra o olhasse, indagando-o. Nas palavras de Lacan (1964, p. 76), “o olhar só se nos apresenta na forma de uma estranha contingência simbólica do que encontramos no horizonte e como ponto de chegada de nossa experiência, isto é, a falta constitutiva da angústia de castração”.

Portanto, “a repetição de uma imagem para encobrir um real traumático, que, não obstante, retorna, acidentalmente e/ou obliquamente, nesse próprio encobrimento” (Foster, 1996, p. 132) é provocadora da emergência de um acaso que pega o sujeito de surpresa e o joga no fenômeno do estranho. Em virtude disso, a repetição, performada por Pina, de movimentos corporais – e também de posturas estáticas – muitas vezes sem sentido, captura o sujeito em sua divisão, e implica, repetidamente, que seja atravessado pelo real, remetendo-o à sua incompletude, à sua castração.

Por essa razão, arriscamos afirmar que a dança contemporânea, aqui exemplificada no tanzteather de Pina Bausch, ao invés de pacificar o olhar, estabilizando-se sobre o imaginário e o simbólico, provoca, ao contrário, um retorno do real. Nas palavras de Foster (1996, p. 136), é como se essa arte “quisesse que o olhar brilhasse, que o objeto se sustentasse, que o real existisse, em toda a glória (ou horror) de seu desejo pulsátil, ou ao menos evocar essa condição sublime”.

Da mesma forma, para Rivera (2013), o que o corpo numa performance contemporânea denuncia, “para além de qualquer reafirmação de sua existência individual, é sua fugacidade, a condição mortal, passageira, do homem” (p. 19-20). Ou seja, trata-se mais de uma ausência do que uma presença “mais ou menos espetacular do corpo” (p. 20).

Por isso, pode-se dizer que o tanzteather bauschiano atualiza algo da cena traumática que diz respeito à finitude, ao desamparo humano, à morte, algo que fica em bastante evidência na montagem da peça Kontakthof com bailarinos de mais de 65 anos de idade, sendo ali acrescido o desconfortável sentimento do quanto vamos nos tornando vulneráveis na velhice, deparando-nos, inexoravelmente, com a certeza da falibilidade do corpo, com seu envelhecimento, e com a angustiante certeza da finitude e da morte.

Vale lembrar que Freud, na tentativa de procurar a angústia mais fundamental do homem, deparou-se com a correspondência entre este afeto e a morte. Porém, isso “oferece à Psicanálise um difícil problema, pois a morte é um conceito abstrato de teor negativo, para o qual não se acha uma correspondência inconsciente” (Freud, 1923, p. 72). Em virtude disso, ele opta por usar a noção de perigo para falar das ameaças que apresentam risco ao Eu, sendo o perigo de castração a referência mais próxima a uma perda real, física. É, então, a perda no nível do corpo, que fornece ao sujeito a possibilidade de representação de sua situação de desamparo e tem, por isso, o potencial de desencadear o desprazer que dá à angústia seu caráter específico.

Nas palavras de Lacan (1962-63, p. 149):

A falta é radical, radical na própria constituição da subjetividade, tal como esta nos aparece por via da experiência analítica. Eu gostaria de enunciá-la com esta formulação: a partir do momento em que isso é sabido, em que algo chega ao saber, há alguma coisa perdida, e a maneira mais segura de abordar esse algo perdido é concebê-lo como um pedaço do corpo.

 

A dança de Pina Bausch parece, de fato, ressaltar essa perda no nível do corpo. Mais do que à representação da morte ou finitude, ela alude àquilo que é estranho justamente por não ter representação. Consequentemente, o estranhamento do público frente à essa manifestação artística parece estar ligado, como aponta Sales (2016), a uma certa nudez – nudez de palavras e de sentido, mostração de um real que ultrapassa o significante, denunciando a falta, a castração. Sendo uma arte do retorno do real, isso se deve, como aponta a autora, à condição do corpo que, deslocado de seus aportes imaginários, de onde se extrai a integridade egóica, ele é de fato apresentado em sua desintegração, em sua nudez, tanto de sentido, quanto do próprio corpo.

Em virtude disso, o olhar do espectador, embaraçado frente a tal performance, parece mais invasivo para ele mesmo do que para os artistas no palco, revelando uma espécie de não-lugar. Como aponta Giorgio Agamben, em um ensaio chamado “Nudez”, ao comentar uma performance da artista Vanessa Beecroft, realizada na Neue Nationalgalerie, em Berlim, em 2005: “algo que poderia e, talvez, deveria ter acontecido não tinha tido lugar” (Agamben, 2014, p. 89).

Temos assim, que o tanzteather de Bausch é uma arte anárquica. Nela, o corpo é mostrado não em sua integridade, perfeição e beleza, mas na vertente carnal que exibe sua finitude ou, como prefere Freud (1926), sua fragilidade quanto aos poderes do destino. Portanto, a referência ao trauma não pode passar despercebida, posto que se trata de uma estética que evidencia a vazão da pulsão pelo corpo, algo que extrapola o trato pelo significante e se abre ao campo do real do qual a angústia é sinal (Lacan, 1962-63).

E é a relação com a verdade, enfim, que faz da angústia um afeto tão essencial. Não é a angústia o afeto que não engana a respeito do retorno do real? Real que é, nos termos de Lacan (1964), “o maior cúmplice da pulsão” (p. 73). Já segundo Baas (2001): “de fato, a angústia é, entre os afetos, o único a ser concebido como indício da verdade, isto é, como o indício verdadeiro do que há da verdade” (p. 66). Com efeito, a angústia sinaliza justamente essa verdade, pois ela surge quando alguma coisa tampona a falta. A angústia advém, por conseguinte, como uma “experiência-limite” que protege o sujeito contra seu desaparecimento no gozo.

O desejo, da mesma forma, aparece com a função de “proteger o sujeito de seu aniquilamento no gozo” (Bass, 1998, p. 81). A lei do desejo funciona, assim, para barrar o acesso do sujeito à Coisa, inscrevendo o sujeito no mundo e interditando o para-além, colocando um limite no gozo. Por outro lado, o que a angústia sinaliza é justamente a ausência da lei ali onde ela deveria existir, ou melhor, ela convoca a lei para barrar a experiência traumática do real (Sales, 2016). Por isso, ela aparece quando o objeto a advém na experiência como objeto empírico, como duplo, inserindo uma presença ali onde deveria ficar vazio. Se a angústia evoca a lei, como diz Baas (1998), é porque ela não engana à respeito dessa articulação necessária do objeto a com a impossibilidade do desejo de atingi-lo.

Além disso, a implicação dessa forma artística com a dimensão do dejeto, do fragmento, em oposição à rigidez do par imagem/sentido, como apontado por Sales (2016), faz encontrar as duas vertentes do objeto que Lacan expõe no seminário sobre a angústia: aquela forjada no campo imaginário e a outra que, inscrita no circuito da pulsão, fica colada ao corpo do autoerotismo como resto de investimento libidinal que não se deixa capturar pela imagem e é, por isso, da ordem do real.

Podemos, assim, concluir, que as obras criadas por Pina Bausch têm voz própria: elas rompem o paradigma da identificação ao belo, por isso suscitam o estranhamento, o irreconhecimento – algo semelhante à destituição subjetiva que, como alega Safatle (2006), faz surgir algo de “informe, impessoal, opaco às determinações de identidade” (p. 219). Ao buscar um esvaziamento dos ideais muito perseguidos pela dança clássica, o tanzteather permite uma aproximação entre a vida e a arte, colocando em cena o banal, o comum, o vazio, o grosseiro, o sujo, o sexual, enfim, todos esses elementos do informe, do sublime, que se sobrepõem à mera beleza da forma.

Ganham espaço, assim, o elemento do irrepresentável e da não-intencionalidade, a assunção do corpo do artista como obra, a aproximação com a vida, o predomínio do símbolo sobre a palavra, a estrutura não narrativa, a realização em locais alternativos, com poucas apresentações e muito espaço para improvisação. De modo que o tanzteather bauschiano revela-se uma arte marcada por um saber programaticamente discernido pelo real e submetido à desfiguração, à hiância, aos arranjos imprevistos, aos não-lugares, evidenciando uma obra que se funda no real e que é por ele nutrido.

Nessa mesma direção, Iannini (2004) sugere que a arte contemporânea, de modo geral, aparece como “figura de um certo excesso de real – que desnuda a precariedade do simbólico – espécie de ruína, espécie de catástrofe das imagens de reconciliação” (p. 84). Nesse sentido, a dança contemporânea rompe com a adequação não apenas a uma tessitura simbólica, mas também com a tendência do Eu a uma totalização imaginária ou à unificação em torno de uma Gestalt.

No trabalho de Bausch, intensificando os movimentos já iniciados com o advento da dança moderna, há uma certa reconfiguração do lugar do corpo como arte – e ao mesmo tempo, do sujeito como corpo – que singulariza, de certa forma, a dimensão do objeto na arte. Nesse sentido, Rivera (2013) propõe que, ao se entregar ao olhar do público, o artista sai de um certo domínio sobre o corpo e assume, por um instante, sua condição de quase-objeto, assujeitando-se, assim, ao outro, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, configura sua posição de sujeito desejante, barrado, faltoso.

Como se pode perceber a partir dos trechos da obra bauschiana Kontakthof, o que aparece em cena não é um corpo ideal, belo, intacto e de formas perfeitas, e sim a dimensão de um corpo fragmentado, sempre passível de sofrer o atravessamento de algum ato que o desfigure e que venha denunciar sua finitude. De forma que, o corpo apresentado pelo tanzteather, longe de ser aquele de nossa fantasia, aproxima-se, ao contrário, da dimensão do real, de um corpo que ficou fora do espelho, impossível de ser refletido, aquele resto de objeto que não faz imagem, o corpo do objeto a, objeto da angústia.

Entregue, como objeto, ao olhar do Outro, um deslocamento é provocado. Quem é sujeito agora? Quem é objeto? Nesse lugar onde tanto artista quanto público são lançados, sem o véu da fantasia que lhes garante a proteção narcísica, encontra-se uma certa dimensão do corpo vazio. Não sendo da ordem do ideal, do belo, o corpo do bailarino performer deixa aparecer o informe, a queda, o acidente, o estranho.

Comentando as performances artísticas na perspectiva do unheimlich, Rivera (2006) marca que o estranho aparece, justamente, no jogo especular que produz duplicações do eu, num movimento de ocultamento e mostração: “o Estranho aponta para um ato que chacoalha a cena da fantasia, pondo em questão seu estatuto de cena, ou seja, de agenciamento entre o sujeito e o objeto no campo do olhar” (p. 130). Por conseguinte, o estranho é aquilo que denuncia a fragilidade da fantasia, ao trazer para a cena, um inesperado ato de fragmentação, evidenciando o fator pulsional que constitui o sujeito.

Pode-se, então, afirmar que o tanzteather de Pina Bausch remete cada um que o vivencia a uma experiência de descentramento do corpo. O próprio olhar – que em geral se estabiliza sobre formas imaginárias – é invadido por uma certa estranheza, ao sermos obrigados a entrar em contato com aquilo que é incontornável, que não pode ser dito, que emudece, que não é representável, à exemplo da morte.

Ao evocar, em suas performances, a vulnerabilidade humana, busca provocar no espectador tanto o choque quanto o silêncio, não buscando escandalizá-lo, mas fazendo-o pensar, implicando-o como sujeito no trabalho infinito e interminável de remanejar, ligar e simbolizar a força constante da pulsão, que não se esgota jamais. O tanzteather aproxima-se, dessa maneira, de uma arte viva, que dialoga com a sinestesia própria à vida cotidiana e por isso comporta uma liberdade maior de criação, tocando no limite tênue que separa vida e arte.

Com efeito, Pina não dá desculpas, nem permite que o espectador o faça. Para todos, inclusive seus críticos, ela é um incômodo constante, um lembrete da própria inadequação humana, convocando-nos sempre a abandonar a rotina e a monotonia, a nos livrarmos da frieza, de modo que possamos confiar uns nos outros, respeitando-nos. Bausch nos força a questionar a vida e nosso posicionamento nela, não oferecendo uma solução alternativa, mas fornecendo uma base para a exploração e um senso de urgência dos problemas que ela ataca.

 

 

Referências

Agamben, G. (2014). Nudez. Belo Horizonte: Autêntica Editora.

Baas, B. (1998). De la chose à l’objet: Jacques Lacan et la traversée de la phénoménologie. Paris: Peeters Vrin.

Baas, B. (2001). O desejo puro. Rio de Janeiro: Revinter Ltda.

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Iannini, G. (2004). O olho negro das favas: exercício de estética lacaniana. In: Iannini, G.; Rocha, G. M.; Pinto, J. M.; Safatle, V. (orgs.). O tempo, o objeto e o avesso, p. 75-91. Belo Horizonte: Autêntica.

Lacan, J. ([1962-1963] 2005). O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

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Sales, C. (2016). A experiência da angústia na clínica psicanalítica e na arte da performance. 2016. 131 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Programa de Pós-graduação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.