Revista de Psicologia, Fortaleza, v.14, e023016. jan./dez. 2023
DOI: 10.36517/revpsiufc.14.2023.16
RECEBIDO EM: 13/02/2023
PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 15/05/2023
VERSÃO FINAL: 24/05/2023
APROVADO EM: 29/05/2023
Saúde Mental Infantil, Gênero e Cuidado em Famílias Chefiadas por Mulheres em Tempos de Pandemia
Child Mental Health, Gender and Care in Families Headed by Women in Pandemic Times
Vania Bustamante
Universidade Federal da Bahia, Psicóloga, Professora do curso de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. Doutora em Saúde Coletiva. https://orcid.org/0000-0002-6736-041X. E-mail: vaniabus@yahoo.com; Endereço: Instituto de Psicologia, rua Aristides Novis, 197, Estrada de São Lázaro, Cep 40210-730, Salvador, Bahia.
Emily Lara Virgens Oliveira
Psicóloga pela Universidade Federal da Bahia. Foi bolsista de Iniciação Científica da UFBA. https://orcid.org/0000-0002-8628-8978. E-mail: emily_lara_@outlook.com.
Resumo
O artigo aborda o cuidado infantil em famílias chefiadas por mulheres no âmbito do acompanhamento recebido em um serviço de saúde mental, durante o primeiro ano da pandemia da Covid-19. Com base em entrevistas semiestruturadas com mulheres, encontramos que a organização do cuidado infantil está fortemente marcada pelos dispositivos de gênero, como propostos por Zanello (2018), o que gera importante sobrecarga para as mulheres, a qual se intensificou durante a pandemia. As mulheres contam principalmente com o apoio das próprias mães. Já a participação masculina, envolvendo pais e tios, é secundária e ficou mais fragilizada. O acesso a políticas públicas de setores como saúde, educação e assistência social é precária e frequentemente coexiste com a procura por serviços privados. O programa “Brincando em Família” é vivenciado como um espaço de cuidado para as mulheres e suas crianças, o que contribui para a remalhagem dos vínculos familiares e para produzir reflexões sobre o que inicialmente é trazido como queixa, inclusive a tendência a patologizar os comportamentos das filhas que não correspondem aos scripts de gênero convencionais. O trabalho contribui para pensar sobre o cuidado em saúde mental ampliado junto a famílias chefiadas por mulheres em espaços que contemplem as dimensões psicossociais.
Palavras-chave: Cuidado; Gênero; Saúde Mental Infantil; Famílias Chefiadas por Mulheres; Covid-19.
Abstract
This article addresses child care in families headed by women within the scope of the care received at a mental health service during the first year of the Covid-19 pandemic. Based on semi-structured interviews with women we found that the organization of child care is strongly marked by gender devices, as proposed by Zanello (2018), which generates an important overload for women, which intensified during the pandemic. Women rely mainly on the support of their own mothers. The male participation, involving fathers and uncles, is secondary and became more fragile. Access to public policies in sectors such as health, education and social assistance is precarious and often coexists with the demand for private services. The Brincando em Família program is experienced as a space of care for women and their children, which contributes to the reworking of family ties and to produce reflections on what is initially brought as a complaint, including the tendency to pathologize behaviors of daughters that do not correspond to conventional genre scripts. The work contributes to think about extended mental health care with families headed by women in spaces that include psychosocial dimensions.
Care; Gender; Child Mental Health; Families Headed by Women; Covid-19.
Introdução
O presente artigo busca contribuir com a discussão sobre a saúde mental infantil e familiar e, mais especificamente, quando se trata de famílias chefiadas por mulheres. A necessidade de refletir sobre este tema surgiu, com ainda mais urgência, devido ao estado de pandemia da Covid-19, decretado no ano de 2020. O isolamento social foi adotado como medida de enfrentamento à pandemia na maioria dos países, entre eles, o Brasil. Com a rápida disseminação do vírus, algumas estratégias tiveram que ser pensadas para a diminuição do contágio pela Covid-19. A principal estratégia foi o lockdown, que implicou no fechamento de diversos estabelecimentos “não essenciais", tendo em vista a diminuição da circulação de pessoas (Guizzo, Marcello, & Müller, 2020).
Entre os serviços “não essenciais”, estavam as escolas e creches, o que, de acordo com Guizzo et al. (2020), promoveu a intensificação do convívio entre as crianças e suas famílias, que passaram a ter a casa como ambiente escolar, de trabalho e de lazer. As escolas, creches e demais estabelecimentos foram então fechados. As medidas de isolamento social obrigaram todas as instituições de ensino a aderirem às atividades remotas como alternativa para reduzir os impactos negativos causados pela lacuna das aulas presenciais. Diante desses desafios, escolas e famílias tiveram que reinventar a rotina para que estudantes pudessem continuar os estudos.
À vista disso, a população precisou se adequar ao novo ritmo de vida decorrente da necessidade de permanecer em casa, onde a maioria das atividades, como trabalho formal e escola, passaram a ocorrer online, e o deslocamento poderia se dar apenas em caráter emergencial (Lunardi et al., 2021). A “reinvenção do cotidiano” foi vista como uma nova forma de organização da vida das crianças em período escolar, e que perpassa por reorganização também do cotidiano dos cuidadores. Nesse cenário, os pais se viram como responsáveis por mediar a relação entre os filhos e os professores, além de aprender a lidar com os ambientes virtuais e os conteúdos escolares. (Guizzo et al., 2020).
Encontramos poucas publicações realizadas a partir de estudos empíricos com crianças e suas famílias em tempos de pandemia. No que tange à perspectiva das crianças sobre o período de pandemia, Dutra, Carvalho e Saraiva (2020) desenvolveram um estudo com crianças - que cursaram os primeiros anos do ensino fundamental em escola pública - através de conversas não estruturadas por aplicativo de Whatsapp. As autoras constataram o sentimento de saudade das crianças com relação à rotina de frequentar a escola, visto que esta promovia as interações sociais e, em alguns aspectos, era tida como espaço de lazer.
Lunardi et al. (2021), em estudo desenvolvido através de questionário com 147 pais/responsáveis por crianças em situação de ensino remoto durante a pandemia, encontraram problemas diversos referentes à educação, que atingiam diretamente as famílias mais pobres, desde a falta de estrutura familiar, relacionada a equipamentos para ter acesso às aulas, até questões emocionais ligadas ao período de isolamento. Os referidos autores identificaram, ainda, lacunas deixadas pela falta de informação e suporte escolar, além das dificuldades financeiras, e apontaram que mais estudos deveriam ser realizados para a melhor compreensão do que representou o momento de isolamento social ligado à pandemia de Covid-19.
As dificuldades vivenciadas no período da pandemia ressaltaram outro tema relevante – o da parentalidade. Silva et al. (2020) consideram este um tema sensível de se abordar no contexto pandêmico, principalmente entre as famílias monoparentais, onde:
A tripla jornada das mães solo, que incluía trabalho, criação de filhos e tarefas domésticas, passou a contar com um temor adicional de se contagiar com o vírus e enfrentar uma internação hospitalar ou mesmo vir a óbito, sem ter a quem delegar as funções da maternidade (Silva et al., 2020, p. 20).
As famílias monoparentais chefiadas por mulheres constituem um fenômeno emergente, principalmente entre as camadas de menor renda da população brasileira (Costa e Marra, 2013). Nesse sentido, dados do IBGE registraram o aumento na presença de famílias monoparentais femininas (com ou sem parentes), entre os anos de 2000 a 2010, que passou de 15,3% para 16,2% (IBGE, 2010). O crescente aumento das famílias chefiadas por mulheres foi também demonstrado no IPEA (2017), que registrou a mudança significativa de cerca de 9 milhões de famílias chefiadas por mulheres em 1995, para aproximadamente 28 milhões de famílias em 2015, enquanto que nas famílias chefiadas por homens, vemos passar de aproximadamente 32 milhões para 42 milhões de famílias, no mesmo período.
Cabe destacar que o aumento se revela ainda maior nas famílias onde a mulher negra é a chefe de família. Isso porque, no ano de 1995, aproximadamente 5 milhões de mulheres brancas eram responsáveis pela chefia do lar, enquanto para as mulheres negras esse número era de aproximadamente 4 milhões. Já no ano de 2015, vemos que esses números aumentaram para cerca de 12 e 15 milhões respectivamente (IPEA, 2017).
Batthyány Genta e Scavino (2017), em estudo desenvolvido no Uruguai, destacam que as mulheres que trabalham de forma remunerada desenvolvem uma série de estratégias para lidar com o cuidado das crianças pequenas, sendo a principal delas a participação da avó materna no cuidado. A situação de pobreza é uma variável que exerce influência considerável sobre as estratégias desempenhadas para o exercício do cuidado. Nas famílias de menor renda, o cuidado não remunerado é exercido por irmãos mais velhos e pela comunidade, destacando-se os parentes mais próximos.
A partir de entrevistas realizadas com mulheres mães e chefes de família, Perucchi e Beirão (2007) destacam o papel das creches e escolas no auxílio ao cuidado das crianças como suporte para que essas mulheres possam completar a carga horária de trabalho. No entanto, o auxílio às mães que predomina, com relação ao cuidado das crianças, é o familiar, que se destaca por ser majoritariamente feminino, representado pelas avós, irmãs e a filha mais velha. Desse modo, o gênero mostra-se como fator relevante para pensar no cuidado dispensado às crianças, assim como as atividades desempenhadas pelos membros da família.
As citadas autoras destacam, ainda, que as mulheres entrevistadas relatam enfrentar muitos obstáculos para exercer trabalho remunerado na esfera pública, principalmente devido à dificuldade em conciliar as duplas e até triplas jornadas de trabalho. Além disso, as mulheres chefes de família, participantes no estudo, afirmam a necessidade de exercer tanto a maternidade quanto a paternidade, sendo que, para elas, a maternidade seria mais marcada pela sensibilidade e a submissão, enquanto que, para a paternidade, as características citadas seriam força e atividade, responsáveis por ocupar um lugar de autoridade e respeito no seio familiar.
Silva et al. (2020) apontam que os desafios enfrentados pelas famílias durante a pandemia, relativos ao cuidado às crianças, tenderam a ser maiores em famílias chefiadas por mulheres, principalmente durante o período de isolamento social. Isso porque elas se depararam com a falta de pessoas para auxiliarem na educação dos filhos, dificuldade para manter a única fonte de renda e conciliar todos esses fatores com o trabalho doméstico. Ademais, o eventual suporte e apoio que elas poderiam ter dos pais das crianças ficou ainda mais difícil, seja por conta das limitações da pandemia, que via de regra recomendaram o distanciamento social como medida essencial para a redução do contágio, ou por problemas preexistentes entre a dupla parental. Outro aspecto bastante problemático são as responsabilidades financeiras que, com frequência, precisam ser redefinidas (Silva et al., 2020).
Desse modo, compreende-se que os entraves enfrentados por mulheres chefes de família perpassam as relações de gênero. O estudo de Perucchi e Beirão (2007) corrobora nesse sentido e revela que as vivências pessoais e experiências dessas mulheres evidenciam a dificuldade em exercerem atividade remunerada, ao tempo em que necessitam desempenhar, tanto o papel de pai quanto de mãe, conforme construções sociais de gênero que se processam por relações baseadas no modelo patriarcal, de afeto e de poder.
Nesse sentido, cabe aqui recuperar contribuições de Zanello (2018) sobre dispositivos, gênero e saúde mental. A autora sugere a existência de dispositivos, que teriam uma função estratégica – política e econômica – de produzir sujeitos, ao traçar caminhos privilegiados de subjetivação, em nossa sociedade, no momento atual. Dialoga com o conceito de dispositivo de Foucault, que envolveria discursos, instituições, enunciados científicos, entre outros elementos presentes na sociedade, que não se limitam apenas ao dito, mas que também podem ser verificáveis no “não dito”.
De acordo com Zanello (2018) os dispositivos teriam assim, através da cultura, a função de produzir subjetividades: “Esse processo se dá por meio das interações sociais, mas também a partir da relação do sujeito consigo mesmo” (p. 57). Na “nossa cultura”, dois dispositivos, o materno e o amoroso, destacam-se para as mulheres. Já para os homens, destaca-se o dispositivo da eficácia, que compreende a virilidade em suas expressões sexual e laborativa.
Ainda na perspectiva de Zanello (2018), o dispositivo amoroso impõe às mulheres a necessidade de ter todos os atributos – como beleza e comportamento adequado – considerados dignos de amor, além de estar disponível, à espera de um homem, que possa reconhecer nelas todos esses atributos. Já o dispositivo materno, surge decorrente da naturalização de uma suposta “capacidade inata” das mulheres para o cuidado, a procriação, a maternagem e a capacidade de desempenhar o trabalho doméstico, logo, da incapacidade ou falta de iniciativa em desempenhar essas funções, viria o sentimento de culpa.
Como já citado, para os homens destaca-se o dispositivo da eficácia. Constituir a masculinidade, através da afirmação da virilidade laborativa, é assumir, então, o papel de provedor, ter um trabalho valorizado e o reconhecimento do outro pelo sucesso e acúmulo de riquezas. Já a virilidade sexual se reafirma na heterossexualidade como padrão a ser seguido “O que se afirma é a masculinidade na heterossexualidade, marcada pela 'impenetrabilidade' ” (Zanello, 2018, p. 254).
Devido à suposição de determinados parâmetros de conduta relativos aos gêneros, os dispositivos fomentam vulnerabilidades identitárias, tanto para homens quanto para as mulheres. Essas vulnerabilidades se expressam de diferentes formas, sendo evidenciadas pelo sofrimento psíquico (Zanello, 2018).
Ainda que no momento de finalização de uma primeira versão deste artigo – janeiro de 2022 – estivesse acontecendo uma importante diminuição do número de mortes, devido à forte relação com a vacinação da população, e uma gradual reabertura de espaços, diversos efeitos poderão se apresentar, tais como: os prejuízos econômicos; os lutos devido às diversas perdas; as relações sociais, a relação entre a própria família, e até com as escolas. Por conseguinte, verifica-se a necessidade de produzir conhecimento para compreender a situação das famílias, principalmente as que se encontram em situação de maior vulnerabilidade, buscando também fortalecer as ofertas de cuidado a essa população.
No presente estudo abordaremos as experiências de famílias chefiadas por mulheres no âmbito do cuidado oferecido em um serviço de saúde mental infantil. É preciso considerar que a saúde mental infantil é um campo bastante incipiente, onde a inclusão da família como sujeito de cuidado é frágil, conforme apontam Bustamante e Onocko-Campos (2020) e, inclusive, ainda são frequentes ações que patologizam e fragilizam as famílias (Onocko-Campos, 2012).
O programa de Saúde Mental “Brincando em Família”, lócus deste estudo, busca contribuir para superar tais limitações, ao trabalhar com a criança e sua família dentro de uma perspectiva de saúde mental ampliada “(...) uma clínica do cotidiano que nos convida a ampliar o foco de visão como estratégia para dar conta da multiplicidade que é a vida” (Onocko-Campos, 2012, p. 156). Corroborando Campos (2016), entendemos que “saúde mental tem a ver com a liberdade e autonomia das pessoas, com a dificuldade do sujeito de lidar com a rede de dependência que toda existência engendra” (p. 33). E, nesse sentido, defende-se que a saúde mental ampliada, como conjunto de práticas, deve ser tanto terapêutica quanto preventiva indo muito além de “uma prática centrada no alívio de sintomas incômodos ou no treinamento de comportamentos adequados ao meio social” (Campos, 2016, p. 33).
A construção do cuidado junto às famílias no referido programa integra contribuições psicanalíticas e das relações de gênero. Essa é também a fundamentação teórica adotada neste artigo. Assim, o cuidado e os vínculos familiares são compreendidos a partir de contribuições dos psicanalistas Donald Winnicott e Pierre Benghozi. Em diálogo com Winnicott (1971/2019) entendemos que o cuidado, que está em relação direta com o que o ambiente pode prover, é fundamental para atualizar e desenvolver a tendencia humana inata ao amadurecimento.
De acordo com Benghozi (2010), a formação dos vínculos – que podem ser filiativos ou afiliativos - possibilita tecer as realidades interna e externa ao sujeito. Os vínculos de filiação, estariam representados em nível vertical, incluindo: pais, avós, filhos, netos etc. já os vínculos de afiliação estão associados a um nível horizontal referindo-se aos grupos de pertencimento – como por exemplo os vínculos conjugais e institucionais. O citado autor destaca que quando o continente grupal familiar se encontra enfraquecido, a remalhagem dos vínculos filiativos pode se dar através dos vínculos afiliativos com apoio de instituições que oferecem cuidado, como é o caso do programa Brincando em Família.
Metodologia
A pesquisa apresenta caráter qualitativo, envolvendo estudo de caso, tal como formulado por Yin (2001). No âmbito de uma pesquisa mais ampla sobre o cuidado envolvendo as diversas dinâmicas familiares, para o presente recorte participaram Luiza e Manoela, nomes fictícios dados a duas mulheres chefes de família que estavam sendo acompanhadas junto com suas crianças no programa Brincando em Família. Trata-se de um programa permanente - integrado por psicólogas e estudantes de psicologia - vinculado ao Instituto de Psicologia da UFBA, que oferece acompanhamento psicológico em grupo para crianças e suas famílias, apostando no brincar livre e em escutas individuais e em grupo. Funciona dentro de uma biblioteca pública de Salvador, como parte de uma parceria entre a UFBA e a Fundação Estadual Pedro Calmon. Utiliza-se a abordagem psicanalítica e da atenção psicossocial para compreender as queixas trazidas levando em conta o contexto familiar e as redes de apoio que essa família possui (Bustamante, 2020),
O funcionamento presencial ficou impossibilitado com a pandemia de Covid-19. Em diálogo com as recomendações sanitárias e psicossociais nacionais e internacionais (Surjus, 2020) foram construídas ofertas de cuidado na modalidade remota: criação de um grupo de WhatsApp, realização de contatos mensais e escutas individuais, quando solicitado. Também foram ofertados grupos de acompanhamento psicológico para adultos e crianças em uma plataforma virtual. As participantes no presente estudo tiveram acesso a diversas modalidades de cuidado tanto individual quanto em grupo.
A primeira família é composta por Luiza e as filhas Lívia, de 8 anos, e Luna, com 9 anos. A família morou por algum tempo com a avó materna, mas habitualmente moram sozinhas. Luiza e as filhas chegaram ao projeto em 2019 sem verbalizar queixas. Em 2020 participaram de acompanhamentos em grupo, e Lívia recebeu acompanhamento psicológico individual breve. A segunda família é composta por Manuela e suas duas filhas: Mirela de 12 anos e Mariana com 7 anos, as três moram com a avó e o tio materno. Manuela procurou o projeto no ano de 2020 procurando acompanhamento psicológico para Mariana, o que foi ofertado, junto com acompanhamento individual e em grupo para Manuela. Em ambas as famílias o pai é pouco presente no dia a dia das filhas e isso tem se agudizado com a pandemia.
Como parte da rotina do programa foram produzidos relatos de todos os atendimentos em que as mulheres e suas filhas estiveram presentes. De modo complementar foram realizadas entrevistas semiestruturadas, um recurso que, de acordo com Creswell (2007) pode fornecer informações históricas sobre os acontecimentos, possibilitando ao pesquisador criar uma linha de questionamento sobre os assuntos que se objetiva saber.
Para a análise das entrevistas e dos relatos coletados foi utilizada a análise temática, que, de acordo com Braun e Clarke (2006), possibilita identificar discursos que operam na sociedade e que influenciam diretamente o modo como os sujeitos têm experiências, criam significados e produzem a sua realidade. Em diálogo com o referencial teórico construído, identificamos três grandes temas que orientam a apresentação dos resultados e discussão: 1) As famílias e o cotidiano do cuidado; 2) Queixas em saúde mental infantil; 3) O cuidado, os vínculos de afiliação e as remalhagens possíveis.
O primeiro tema - As famílias e cotidiano do cuidado - tem relação com falas das entrevistadas, falas referentes à manutenção diária do cuidado, que contemplam não somente a participação materna, mas também outros dispositivos e sujeitos, vistos como participantes desse cuidado, como: instituições; as avós, as irmãs. Já o segundo tema denominado “Queixas em saúde mental infantil”, versa sobre o discurso das famílias sobre as crianças, durante a participação no projeto, desde a chegada até o momento em que foram realizadas as entrevistas. O terceiro tema tem relação com os efeitos do acompanhamento realizado no programa Brincando em família, na construção da queixa em saúde mental, e na sua reformulação, ou seja, é um tema que fala sobre como o olhar das famílias sobre a criança, é transformado no decorrer do acompanhamento.
O projeto que deu origem ao presente artigo foi avaliado e aprovado por um Comitê de ética em pesquisa da UFBA, sob o parecer nº 5.007.956.
Resultados e Discussão
As Famílias e o Cotidiano do Cuidado
As participantes, Manuela e Luiza, têm alguns aspectos em comum: ambas possuem duas filhas; são as principais responsáveis pelo cuidado das suas crianças; estão separadas do pai das meninas; e contam com apoio da própria mãe, que é atravessado por alguns conflitos. Ainda que haja diferenças importantes, como o fato de Manuela ter uma situação financeira familiar menos frágil, ambas, após o início da pandemia, deixaram de ter uma fonte estável de renda própria. As duas mulheres se desvincularam dos trabalhos que exerciam – Luiza trabalhava como motorista de aplicativo e Manuela como atendente em uma loja de departamentos – porque precisavam ficar em casa com as filhas, acompanhando tarefas escolares e outras demandas.
Durante o período em que foi feita a produção de dados, ambas se encontravam sem auxílio dos pais das meninas, seja de forma financeira ou no cotidiano do cuidado. Sobre o ex-companheiro Manuela afirma:
(. . .) o pai das meninas mente muito, faz muitas promessas e conta muita vantagem. Há muito tempo não vê as filhas, ou seja, cerca de sete meses. Quando sai com elas, leva-as para fazer um lanche no McDonald 's e depois as traz de volta, não desenvolvendo muita conversa.
Sobre o auxílio financeiro, Luiza afirma que o pai das meninas nunca deu pensão: “Aí quando entrou a pandemia, ele resolveu dar um valor. Só que esse tempo todo de pandemia, seis meses, ele só deu um mês o valor certo, é um inferno pra eu conseguir”.
Mariana e Mirela possuem pouca convivência com o pai. Já no caso de Luna e Laura, a convivência é um pouco maior, mas esses encontros nunca acontecem por iniciativa dele. Na família de Manuela, o seu primo aparece auxiliando, mas não como cuidador, apenas financeiramente. Essa dinâmica pode ser pensada como expressão da divisão sexual do trabalho, onde, como apontam Hirata e Kergoat (2017), é esperado que o homem seja o provedor, assumindo o trabalho remunerado, na esfera pública, e que a mulher se responsabilize pelas tarefas domésticas, não remuneradas, na esfera privada.
No entanto, nem sempre o homem consegue encontrar uma fonte de renda para suprir financeiramente as necessidades do lar e, assim, corresponder às expectativas sociais, mas isso não se relaciona com maior participação masculina no trabalho doméstico e o cuidado infantil. Frequentemente, o trabalho exercido pelas mulheres, na esfera pública, torna-se a fonte principal, se não exclusiva de renda para a sobrevivência dessas famílias.
De acordo com Perucchi e Beirão (2007), as mulheres chefes de família, para conseguirem completar a carga horária estabelecida no seu trabalho, recorrem ao cuidado familiar, o que se faz presente nas famílias entrevistadas, visto que o cuidado oferecido às crianças é quase sempre realizado pelas mulheres, o que reafirma a atuação do dispositivo materno, que se reatualiza quando nos referimos ao cuidado proporcionado pelas avós.
Maria, mãe de Manuela, participa ativamente do cuidado das netas, inclusive optou por se aposentar após o nascimento da neta mais velha, quando Manuela cogitava deixar a filha na creche para poder voltar ao emprego formal. Manuela destaca o cuidado proporcionado por sua mãe, às suas filhas, e afirma "Ela me ajuda com as meninas, porque quando eu preciso sair para comprar alguma coisa, ela fica com as meninas, então elas não vão estar só”. Apesar de contar com a ajuda da mãe, Manuela sentiu com a pandemia a necessidade de pedir demissão do trabalho para acompanhar mais de perto e não sobrecarregar a filha mais velha ao delegar o cuidado da mais nova, pois:
Mariana é muito retada, tá? Mirela não tinha condições físicas, nem psicológica, né? pra ficar com Mariana. Como eu tinha que trabalhar, minha mãe não tinha paciência, né? Até a idade de minha mãe, quem fazia os deveres com Mariana, era Mirela, né? E muita das vezes, Mirela adquiriu muita, é... nervosismo, com isso. Minha mãe ia dormir, pedir a Mirela para ficar com Mariana. (Manuela).
Na família de Luiza, houve maior participação da avó materna, no cuidado das netas, durante o período de pandemia, o que não era tão comum anteriormente. Ao mesmo tempo, Luiza afirma que sua mãe interfere de forma significativa na sua forma de cuidado com as filhas, desautorizando-a em diversos momentos. Ela sente que isso interfere na sua relação com as meninas, e afirma que quando a mãe está ausente, a filha começa a conversar com ela sobre seus sentimentos "(...) quando a avó passa um dia fora, tá ausente, ela começa a falar comigo as coisas dela, o que ela sente, fala coisas a mim que ele nunca teve, que ela nunca fala quando a avó tá" (Luiza).
A participação da avó materna no cuidado, aponta para uma "reatualização" do dispositivo materno, visto que essa mulher, agora avó, é colocada na posição de cuidadora, principalmente diante da falta do pai das meninas. A maior participação das avós no cuidado infantil implicou em uma série de conflitos dentro das famílias; isso porque, tanto Luiza quanto Manuela relatam sobre a dificuldade em estabelecer regras que fossem cumpridas por suas filhas e respeitadas por suas mães.
Outra estratégia apontada é a utilização do cuidado exercido pelo irmão mais velho. Na família de Manuela, podemos observar como a dinâmica do cuidado se atualiza a partir dessa estratégia, visto que ao sair para trabalhar, algumas responsabilidades, referentes ao cuidado de Mariana, a filha mais nova, ficavam indiretamente direcionadas para Mirela. Manuela relata sobre as perdas que sentiu a partir disso, na relação com ambas as filhas, e entre as filhas; em resposta a essa situação, pediu demissão logo no início da pandemia.
Com relação ao modo de compreender o cuidado com as filhas, Manuela e Luiza têm em comum a preocupação com a educação e saúde das meninas. Possibilitar uma boa escolaridade é uma meta importante. Manuela paga uma escola particular para as filhas, por considerar melhor que uma pública, mas acredita que não conseguirá arcar com essa despesa por muito tempo. As filhas de Luiza estudam em escola pública e ficaram sem acesso às aulas presenciais e online, apenas com envio de atividades; só mais tarde tiveram acesso às aulas gravadas pela televisão. Luiza faz queixas sobre a atual escola. Contudo, durante os primeiros anos de vida, as meninas frequentaram uma creche pública e Luiza tem uma boa avaliação da experiência.
Ambas as famílias usam serviços públicos de saúde, desejam um plano de saúde para as filhas, algo que tiveram em algum momento, mas que teve de ser abandonado devido às dificuldades financeiras. Desse modo, às vezes acessam serviços privados.
Queixas em Saúde Mental Infantil
Ambas as famílias começaram a frequentar o projeto com assiduidade a partir do início da pandemia. As duas participantes comunicam queixas relacionadas a problemas de comportamento – agressividade, desobediência, falta de disciplina, entre outros – de uma das filhas. Com relação ao contexto de pandemia, que modificou a dinâmica das atividades escolares e domésticas, percebe-se em ambas famílias a ocorrência de queixas relacionadas ao aprendizado, às dinâmicas estabelecidas com a escola, e a utilização exagerada de instrumentos tecnológicos, como celulares e tablets.
Luiza tem seu primeiro contato com o projeto no ano de 2019 quando, devido um passeio pela biblioteca Monteiro Lobato, vê o espaço do Brincando em Família de portas abertas e é convidada a entrar, passando aquela tarde no programa, onde as meninas são acolhidas e brincam com os materiais disponíveis. Luiza volta a frequentar o programa, no formato online, com o início da pandemia. A partir da frequência nos grupos, e da convivência mais próxima com as filhas, a participante começa a perceber uma série de necessidades das filhas. Luiza relata sobre a pouca convivência das filhas com o pai, e a falta de uma figura masculina no cotidiano delas.
Durante o período de pandemia, Luiza questionou nos grupos de WhatsApp sobre o uso excessivo de aparelhos tecnológicos, falou sobre a grande quantidade de tempo que as meninas passavam usando o celular e a televisão. Com o passar dos dias, Luiza foi aparecendo cada vez menos nos grupos, preferindo realizar tarefas com as filhas que estivessem menos atreladas ao uso desses aparelhos. Em um dos momentos que esteve nos grupos de WhatsApp, trouxe queixas relacionadas à escola das meninas, que tem se mostrado pouco acolhedora.
Luiza relata que na escola não existe um canal de comunicação efetivo no qual os pais possam tirar dúvidas sobre as atividades escolares, ou comunicar as dificuldades que têm enfrentado no processo de aprendizagem das crianças. Ao mesmo tempo, formula uma queixa sobre a filha Luna: “não presta atenção, não se concentra nas atividades, é muito ansiosa e às vezes um pouco agressiva, e tudo isso não acontece com Laura, que é mais tranquila, mais na dela” (Luiza).
Manuela chega ao programa por indicação já no momento da pandemia. Logo na sua chegada, comunica a queixa focada na filha mais nova. Afirma que Mariana precisa de sua atenção a todo tempo, não consegue assistir à aula sozinha, e a solicita sempre. Pela dificuldade em fazer Mariana participar das aulas, ela trocou o turno de aulas da tarde para a manhã, que é quando ela está em casa. A queixa perpassa algumas outras questões, como agressividade e falta de atenção. No entanto, o que é central para Manuela, é a dificuldade que tem encontrado para educar as filhas. Manuela relata a uma das acolhedoras que a filha: não respeita ninguém, faz o que quer, e que como ela precisa sair para trabalhar à tarde e à noite, as filhas ficam com a mãe, mas Mariana não respeita a avó, faz birras, grita, até conseguir o que quer.
Após algum tempo de acompanhamento, Manuela inicia a formulação de uma queixa sobre o comportamento da filha mais velha. Afirma que Mirela é muito quieta, introvertida, que guarda tudo para ela, não expressa seus sentimentos em forma de carinhos e abraços, e passa quase todo o tempo no celular. A escuta da equipe, que incluiu alguns encontros realizados com Mirela, possibilitou uma ampliação da receptividade de Manuela para com a singularidade da filha, e com a não necessidade de realizar um acompanhamento psicológico com a adolescente no momento.
O uso de telas aparece como queixa em ambas as famílias, além da pouca convivência com o pai das meninas, além da agressividade e a dificuldade na realização de atividades escolares. Manuela afirma que, durante a pandemia, tem sido muito difícil controlar o uso que as filhas fazem da internet, porque todas as comunicações se passam através desse meio e que, apesar disso, tem se preocupado muito.
Além das questões relativas ao uso intenso da internet e dos aparelhos celulares, ambas as mães afirmam que quando as filhas iam para a escola, antes da pandemia, eram consideradas pelas professoras como boas alunas e não recebiam reclamações relativas ao aprendizado; entretanto, com a pandemia, perceberam certa dificuldade nas filhas em acompanhar os assuntos.
Sobre as queixas sinalizadas por ambas as famílias, Guizzo et al. (2020) afirmam que “(...) a quarentena dá origem a um deslocamento. É a criança fora de lugar, assim como o adulto fora de lugar diante da criança” (p.3). A “reinvenção do cotidiano” frente às novas exigências da pandemia, coloca a família – neste caso duas mães, chefes de família, mães de duas meninas –, como responsáveis pela educação das filhas. Logo, as queixas em saúde mental perpassam o processo de aprendizagem, o que pode ser visto como reflexo da pandemia, visto que anteriormente essas dificuldades não eram pontuadas, pelo menos pelas professoras. Além da dificuldade em realizar as atividades escolares, aparece o uso intenso, porém necessário, da internet, inclusive para acompanhar a escola.
Das exigências de uma boa escolarização, e o uso frequente de aparelhos celulares, computadores, surgem alguns conflitos dentro do ambiente da casa que, agora, com o isolamento social, é o único ambiente frequentado pela família. Assim aumenta-se as discussões e tornam-se menos evidentes as fronteiras entre o espaço coletivo e individual dos membros da família. Por outro lado, o momento de pandemia se relaciona com a intensificação do convívio entre crianças e adultos, onde comportamentos que incomodam os cuidadores passam a ser vistos a partir da intensificação desse convívio com as crianças. Isso foi encontrado no caso de Mariana e Luna.
Em ambas as famílias participantes no estudo as mães são as únicas responsáveis por auxiliar nas atividades escolares, além do trabalho na esfera pública, e o trabalho doméstico, o que evidencia a sobrecarga de funções atribuídas às mulheres. As mães mostram-se responsáveis pelos processos de aprendizagem que antes eram divididos com a escola, além das outras fontes de cuidado, que não se revelam tão presentes no momento atual, devido à medida de distanciamento social. O contexto da pandemia, incita a busca por atendimento em saúde mental devido às múltiplas mudanças no cotidiano e às perdas relativas a esse momento.
O Cuidado, os Vínculos de Afiliação e as Remalhagens Possíveis
As mulheres entrevistadas buscam diferentes estratégias para a continuidade do cuidado às crianças, tanto dentro do espaço familiar quanto na relação com instituições. Aqui cabe recorrer a Winnicott (1971/2019) que percebe o cuidado como essencial para que o indivíduo desenvolva a sua tendência inata ao amadurecimento e que se dá a partir de provisões ambientais. Nesse sentido o autor enfatiza a importância do cuidado a quem cuida, no caso a mãe, para que ela possa maternar e com isso faz referência à função paterna. Destaca-se aí, o papel das instituições no cuidado dispensado aos responsáveis e às crianças.
Destarte, para Manuela e Luiza, o programa “Brincando em Família” é uma instituição que aparece como fonte de cuidado e convite a reflexões. Nesse sentido, Manuela faz desabafos e também problematiza situações que vivencia, como o tempo que deixou a filha mais velha responsável pelo cuidado da irmã mais nova, o papel do pai das meninas no cuidado e sobre sua própria relação com a mãe que tira sua autoridade em alguns momentos:
Porque são pensamentos totalmente diferentes . . . querendo ou não sua mãe ou a pessoa que você mora vai acabar intervindo na educação dos seus filhos, certo? Às vezes não é porque querer, mas é porque são pensamentos totalmente diferentes, e quando você não consegue fechar o elo, certo? Destrói tudo, fica com ele vago entre os elos e passa muita coisa ruim, entendeu? Então é, muitas brigas hoje minha com minha mãe é a criação de Mariana, tá? (Manuela).
Chama a atenção que tanto a queixa inicial de Manuela quanto a de Luiza referem-se a uma das filhas que não se comporta de acordo ao “esperado para uma menina”. No olhar de suas mães Mariana apresentava desobediência, agressividade, enquanto Luna apresentava dispersão, falta de disciplina, muita imaginação e preferência por brincadeiras e roupas masculinas, diferentemente da irmã. Nesse momento, as participantes parecem estar reproduzindo os scripts relacionados com os dispositivos materno e amoroso, onde se espera obediência, organização, contenção emocional e vaidade nas mulheres (Zanello, 2018). Ao mesmo tempo, Luiza e Manuela relatam não se sentirem aceitas e amadas como são pelas próprias mães. Durante o acompanhamento ambas puderam ampliar seus questionamentos: expressaram preocupações mais abrangentes sobre ambas as filhas, reflexões sobre a relação com a própria mãe, denúncias sobre as enormes falhas de políticas públicas – de saúde, educação, assistência social, entre outras – agudizadas nos tempos de pandemia, assim como sobre a desigualdades de gênero no cuidado infantil.
Podemos ver essa tentativa de compreender os conteúdos “desorganizados” como os elementos beta, como proposto por Benghozi (2010), que vão sendo, a partir da capacidade de revêrie e do acolhimento proporcionado pelo programa “Brincando em Família”, elaborados pelas mulheres. A capacidade de revêrie, demonstrada inicialmente por quem materna no contexto familiar, de elaborar e conter os conteúdos beta trazidos pelo bebê, é uma função continente, nomeada por Bion, como citado por Benghozi (2010), como função alfa. Nessa direção, uma estratégia adotada por Manuela foi a criação de uma rotina, determinando atividades que as meninas deveriam fazer no dia a dia, incluindo a realização das atividades escolares e domésticas.
O estabelecimento de uma rotina para essa família fortaleceu o vínculo entre mãe e filhas. O “Brincando em Família” surge na família de Manuela como local de cuidado e de suporte. Quando perguntada, por uma das acolhedoras, sobre como tem se sentindo no acompanhamento, Manuela respondeu:
É um trabalho muito abrangente, porque vocês sabem que não é a criança, o que ocasionaram na criança, pode vir de trás dela, e o que tem de trás de uma criança? A família, né? Então eu acho o trabalho de vocês muito lindo, porque vocês, além de ajudar a criança, vocês ajudam a família da criança, entendeu? Então assim, eu comecei a ver vocês como uma família, tá aí…tá aí, eu comecei a ver vocês como uma família.
Desse modo, o projeto “Brincando em Família” e algumas outras instituições de cuidado, pelas quais as famílias de Luiza e de Manuela passaram, podem ser vistas como exercendo uma função paterna primordial, como defende Onocko-Campos (2012), de proporcionar um ambiente para a figura materna, no qual ela possa sentir estabilidade para cuidar da criança.
Essas experiências também podem ser pensadas em diálogo com contribuições de Benghozi (2010) sobre a psicanálise dos vínculos, de modo que ao tecer um vínculo afiliativo com o Brincando em Família, articula-se também uma remalhagem dos vínculos filiativos entre mães e filhas.
Considerações Finais
Neste trabalho mostramos que as mulheres participantes se sentiram acolhidas em suas queixas, e que, a partir do acompanhamento, foi possível fortalecer o vínculo com a família e entre a família e as crianças, nos aproximando do que Onocko Campos (2012) revela como essencial: o trabalho conjunto entre os profissionais da saúde e a família do usuário. Em vista disso, consideramos que, para ambas famílias, o projeto apresenta-se como um ambiente facilitador.
Winnicott (1971/2019) define o ambiente facilitador como aquele capaz de atender às necessidades da criança para que ela possa alcançar a máxima maturação possível. Tal ambiente é inicialmente representado pela mãe, mas podemos pensar nessa mesma proposta como um conjunto de ambientes integrados, para que as necessidades do bebê possam ser atendidas, sem que haja a sobrecarga de um único sujeito. Nessa perspectiva, o programa “Brincando em Família” pode ser visto como compondo esse ambiente facilitador, ao dar suporte para as mulheres, mães, que o frequentam.
Os resultados mostram práticas de cuidado, que envolvem propiciar reflexões e inclusive a possibilidade de remalhar os vínculos familiares, a partir de vínculos de afiliação com instituições. Esta compreensão do processo não deve ser confundida com responsabilizar as mulheres pelo bem-estar familiar; não se trata de naturalizar a sobrecarga e o desamparo das políticas públicas que as atingem.
É preciso continuar questionando a tendência familista, ainda muito presente no Brasil, sob a perspectiva de considerar que a família deve “naturalmente” conseguir cuidar de seus membros e desse modo se justifica a falta de proteção social (Mioto, 2010).
Os resultados deste artigo vão ao encontro de diversos trabalhos sobre famílias e suas crianças em tempos de pandemia, ao mostrar a intensificação da sobrecarga das mulheres e as dificuldades no cuidado infantil (Dutra et al., 2020; Guizzo et al., 2020; Lunardi et al., 2021; Silva et al., 2020), e avançam ao mostrar as possibilidades de cuidado em um serviço de saúde mental infantil. O artigo mostra o potencial de se trabalhar com a criança e sua família, inclusive em tempos de pandemia. Ao mesmo tempo, existem limitações importantes, pois não foi possível incluir outros membros da família, especialmente os pais, nem realizar um trabalho de articulação com outros espaços de cuidado, tais como escolas, serviços de saúde e de assistência social.
Este foi um estudo preliminar, onde foram entrevistadas apenas duas mulheres, chefes de família, o que visivelmente não permite realizar generalizações.
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