Revista de Psicologia, Fortaleza, v.14, e023023. jan./dez. 2023

DOI: 10.36517/revpsiufc.14.2023.23

 

RECEBIDO EM: 08/04/2023

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 18/07/2023

VERSÃO FINAL: 25/07/2023

APROVADO EM: 24/08/2023

 

Política de Assistência Social, Compromisso Social e Pandemia de Covid-19: (Re)fazendo práticas no CREAS

Social Welfare Policy, Social Responsibility and the Covid-19 Pandemic: (Re)building some measures in CREAS

 

Nilson de Jesus Oliveira Leite Junior

  Graduado em Psicologia pela Faculdade de Saúde e Humanidades Ibituruna, Montes Claros – MG, e Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9002-5425. E-mail: nilson.junior@usp.br. Endereço para correspondência: Av. Professor Mello Moraes, 1721, Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Butantã, São Paulo – SP, Brasil.

  Jaciany Soares Serafim

  Graduada em Psicologia. Mestra em Desenvolvimento Social pela Universidade Estadual de Montes Claros e docente do Centro Universitário Funorte - Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4669-7478. E-mail: jaciany.serafim@fasi.edu.br.

 

Viviane Bernadeth Gandra Brandão

  Graduada em Serviço Social. Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Docente do Departamento de Política e Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Montes Claros - Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5237-4504. E-mail: viviane.gandra1@hotmail.com.

 

 

Resumo

Este trabalho visa analisar e discutir as estratégias desenvolvidas por psicólogas e psicólogos atuantes em CREAS da mesorregião norte do estado de Minas Gerais, entre os meses de março e dezembro de 2020, que vão ao encontro de um paradigma de atuação que desvela o compromisso social com o fazer da Psicologia na Política de Assistência Social. Trata-se, portanto, de um recorte de pesquisa quanti-qualitativa, descritiva e transversal que contou com a participação de 13 psicólogas e 6 psicólogos atuantes em CREAS de 19 cidades da região norte mineira. Como visto, o cenário pandêmico promoveu e acentuou dificuldades e obstáculos vivenciados nesse equipamento socioassistencial. Todavia, diante desse contexto, as e os profissionais participantes desenvolveram e implementaram em sua práxis cotidiana variadas estratégias para assegurar o atendimento da proteção social especializada a quem dela necessitava, em um cenário caracterizado pelo aumento de violações de direitos e distintas formas de violência contra grupos historicamente subalternizados. Por fim, as estratégias desenvolvidas podem ser lidas sob a ótica do compromisso social com a transformação das condições de vida do público usuário do CREAS.

Palavras-chave: Assistência social. Psicologia. CREAS. Compromisso social. Covid-19.

 

Abstract

This paper aims to analyze and discuss the strategies developed by psychologists working in Social Assistance Specialized Reference Centers (CREAS, an acronym in Portuguese) in the northern mesoregion of the state of Minas Gerais, between the months of March and December 2020, which meet a paradigm of action that reveals the social commitment to the work of Psychology in social welfare policy. This is, therefore, a quantitative, qualitative, descriptive, and transversal research that counted on the participation of 13 female psychologists and 6 male psychologists working in CREAS from 19 cities in the northern region of Minas Gerais. As seen, the pandemic scenario promoted and accentuated the difficulties and obstacles experienced in this social assistance institution. However, faced with this context, the participating professionals developed and implemented in their daily practice several strategies to guarantee the specialized social protection services to those who needed them, in a scenario characterized by the increase of violations of rights and different forms of violence against historically subalternized groups. Finally, the strategies developed can be understood from the perspective of social responsibility to the transformation of the living conditions of CREAS users.

Keywords: Social welfare. Psychology. CREAS. Social responsibility. Covid-19.

 

 

Introdução

A pandemia de covid-19, doença infecciosa causada pelo vírus SARS-CoV-2, vem assolando o mundo desde o início de 2020, mostrando ser uma grave emergência de saúde, produzindo efeitos colaterais em diversas áreas, tais como instabilidades política, econômica e social em diversos países. Tratando-se mais especificamente do contexto social do Brasil desse quadro endêmico, nosso país já sofria com inúmeros ataques contra as políticas públicas sociais desde 2016, após o golpe jurídico-midiático-parlamentar (Moritz & Rita, 2020) que destituiu a presidenta eleita democraticamente, Dilma Rousseff, e culminou na ascensão do Governo Michel Temer, que foi responsável pela promulgação da Emenda Constitucional nº 95, conhecida como Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Morte, tendo limitado por 20 anos o teto de gastos públicos. Depois, no Governo Jair Bolsonaro, para piorar esse contexto, houve fortes cortes no campo das políticas sociais e um baixo investimento nessa área, com aprofundamento das privatizações e contrarreformas (Boschetti & Behring, 2021).

Além dos números dramáticos de óbitos em função da covid-19, que somam quase 700 mil1 no país, chamam a atenção a intensificação da taxa de violações de direitos humanos e os casos de violência. A despeito desses quesitos, o informe 2021-2022 da Anistia Internacional apontou que, no Brasil, aqueles grupos historicamente discriminados e marginalizados foram afetados desproporcionalmente com a crise pandêmica e tiveram suas condições de vida ainda mais precarizadas. Entre os grupos mais vulnerabilizados, o informe aponta a população negra, povos indígenas, comunidades tradicionais, mulheres, população LGBTQIA+ e moradores de periferias urbanas, bairros marginalizados e favelas (Anistia Internacional, 2022). Outros autores (Castro, 2020; Vieira, Garcia & Maciel, 2020; Carbonari, 2022), similarmente, destacam que a pandemia tem agudizado o número de violações de direitos e as vivências de diversas formas de violência para grupos como crianças e adolescentes, idosos, mulheres e outros. É nesse contexto, portanto, que são demandados os serviços especializados brasileiros de proteção social, com fins de impedir o rompimento de vínculos familiares e/ou comunitários fragilizados, ou para reconstruí-los.

Nessa seara, no sistema de proteção social brasileiro, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) é responsável por prestar atendimentos às famílias e indivíduos que se encontram em situações de violência, risco e outras formas de violações de direitos humanos. Portanto, trata-se de uma unidade pública estatal da Política de Assistência Social que compõe a Proteção Social Especial de Média Complexidade, no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), com a finalidade de ofertar atendimento às pessoas e famílias nas situações de violações de direitos e risco social, nos quais os vínculos familiares e/ou comunitários estão fragilizados (Brasil, 2011). Tratando-se da equipe que compõe o CREAS, a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS (NOB-RH/SUAS), de 2006, prevê a presença de psicólogas e psicólogos nas equipes de referência desse equipamento.

Outrossim, é importante salientar que o Decreto Presidencial nº 10.282, de 20 de março de 2020, que definiu os serviços públicos e as atividades essenciais no país no período crítico da pandemia de covid-19, em que as orientações dos órgãos de saúde recomendavam o fechamento de diversos serviços e a adoção de práticas de isolamento e distanciamento social, bem como lockdown em algumas cidades brasileiras, a assistência social e o atendimento à população em estado de vulnerabilidade foram elevados à categoria de serviço essencial. Como apontado pelo referido decreto, são considerados serviços essenciais os serviços públicos e as atividades “[…] indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população […]” (Brasil, 2020). Dessa forma, as psicólogas e psicólogos, bem como assistentes sociais e outros profissionais que compõem as equipes dos CREAS, foram atuantes durante o momento de crise e imprevisibilidade causado pela pandemia.

Diante do exposto, este estudo teve como objetivo analisar e discutir as estratégias desenvolvidas pelas psicólogas e psicólogos atuantes em CREAS da mesorregião norte do estado de Minas Gerais, entre os meses de março e dezembro de 2020, que vão ao encontro de um paradigma de atuação que desvela o compromisso social com o fazer da Psicologia na Política de Assistência Social. Feitas as apresentações iniciais, cumpre apresentar como este artigo está estruturado. Além desta seção introdutória, em que se aborda a contextualização da temática de pesquisa, este artigo está estruturado em outras quatro seções. Na primeira, são apresentadas breves discussões sobre o compromisso social da Psicologia. Na segunda seção, é descrita a metodologia utilizada para o desenvolvimento e o delineamento desta pesquisa. Já na terceira, são apresentados e discutidos os resultados obtidos a partir das análises do material coletado. Por fim, na última seção são explanadas as considerações finais.

 

O compromisso social da Psicologia: breves considerações

O tema do compromisso social da Psicologia vem sendo difundido há algumas décadas e empregado em trabalhos acadêmicos e discursos acerca da atuação profissional psicológica. À guisa de exemplificação, em uma rápida pesquisa com os descritores “Psicologia” e “compromisso social”, entre aspas, combinados com o operador booleano AND e aplicando os filtros de idioma português e marco temporal dos últimos 10 anos, nas bases de dados eletrônicas SciELO (https://www.scielo.br/) e Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PEPSIC) (http://pepsic.bvsalud.org/), que concentram grande parte da produção da Psicologia no Brasil (Cordeiro, 2018), foi possível localizar 75 artigos. Por sua vez, repetida a mesma busca no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) (https://catalogodeteses.capes.gov.br/) e na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) (https://bdtd.ibict.br/vufind/), foram localizados 22 trabalhos, entre dissertações de mestrado e teses de doutorado, que abordam os descritores conjuntamente em seus títulos. Ainda que nesse exemplo não se tenha preocupado rigorosamente com a relação estabelecida entre os temas presentes nos descritores, ele ilustra como esse tema está presente nas produções brasileiras.

Tratando-se do compromisso social de psicólogas e psicólogos, Lopes (2005) sinalizou que esse compromisso pode ser caracterizado por um movimento de contradição e discordância, fatores que convivem no interior de um mesmo trabalho. Segundo esse autor, as práticas psicológicas e as teorias empregadas são direcionadas, ao mesmo tempo, tanto para a transformação da sociedade, com vistas a uma ética universal e a um paradigma de emancipação, como para a manutenção da ideologia dominante que reproduz a dialética exclusão/inclusão social.

Todavia, convém destacar que compromisso social se refere a um conceito polissêmico (Euzébios Filho & Gradella Júnior, 2020) e que demanda uma delimitação mais específica, sobretudo quando se considera o posicionamento da Psicologia como ciência e profissão diante dos mais diversos acontecimentos da conjuntura brasileira ao longo dos anos. O reconhecimento da profissão, em 1962, pela Lei n° 4.119, de 27 de agosto de 1962, é um evidente exemplo do lugar social no qual a Psicologia se institucionalizou, no qual as ideias psicológicas, em grande medida, estavam a serviço de projetos hegemônicos, como o movimento da Escola Nova na educação, o pensamento taylorista na administração e gestão do trabalho e o desenvolvimento dos testes com as guerras. Esses exemplos demonstram que a Psicologia se transformou em profissão a partir de uma tradição que “[…] esteve comprometida com os interesses das elites brasileiras, ora para o controle, ora para higienizar e ora para diferenciar e categorizar” (Bock, 2009, p. 18).

Em linhas gerais, é possível demarcar os anos 1960 como uma década importante para o desenvolvimento de uma Psicologia crítica no Brasil, em oposição à ditadura militar burguesa, contra-hegemônica e comprometida com os interesses da classe trabalhadora e as populações subalternizadas, reféns das diversas expressões da questão social. É importante salientar que a adoção da década de 1960 como um marco não quer dizer que experiências de práticas críticas não tenham sido realizadas anteriormente a essa data, mas, de modo contrário, isso representa uma aglutinação mais sistemática e expressiva de práticas e discursos. Euzébios Filho e Gradella Júnior (2020) destacam que esse movimento assumiu diversas esferas da sociedade por meio de uma atuação política vinculada às pautas dos movimentos sociais e grupos organizados de esquerda na luta pela garantia de direitos sociais. Segundo os autores citados, consolidou-se na década de 1980, como fruto desse movimento, um grupo representativo de psicólogas e psicólogos engajadas e engajados social e politicamente, sob influência de movimentos similares na América Latina, atuando com o lema do compromisso social da profissão. Segundo Bock, Rosa, Amaral, Ferreira e Gonçalves (2022), o prelúdio do compromisso social reuniu diversas tradições que foram gestadas ao longo do século XX, permitindo uma visão ampla da profissão em oposição a um paradigma histórico, liberal e positivista.

Esse movimento que surge, a princípio no campo da Psicologia Social, adota uma postura crítica no tocante às instituições, organizações e práticas sociais e ao conhecimento produzido por essa área, se colocando na contramão aos processos de exploração e opressão e, como objetivo último, uma Psicologia capaz de responder à realidade cotidiana desde a perspectiva latinoamericana e os aspectos mais cruciais da existência e da própria história do povo latinoamericano. Tal como apresentado por Martín-Baró (1990), nesse movimento de ruptura, a Psicologia Social já havia envelhecido diante dos problemas que assolavam (e ainda assolam) a América Latina, não sendo capaz de responder às necessidades das maiorias populares desse continente. Assim, a reivindicação de uma Psicologia Crítica, ou paradigma da Libertação, surge em resposta a uma Psicologia Social hegemônica que reafirma a lógica neoliberal (tanto em sua epistemologia como em suas práticas) e aponta a necessidade de um compromisso ético, político, social e epistemológico com as maiorias populares.

Na América Latina, nomes importantes se destacam quando se trata do compromisso social da Psicologia, tais como Silvia Lane, no Brasil, Martín-Baró, em El Salvador, Maritza Montero e Maria Auxiliadora Banchs, na Venezuela, Fernando González Rey, em Cuba, e Gladys Montecinos, no Peru, apenas para citar alguns exemplos, que não apenas pensaram a Psicologia em seus respectivos países, mas em todo o contexto latino-americano e de seus povos, tendo como horizonte ético-político a superação das desigualdades sociais históricas e socialmente construídas e as situações de opressão (Bock, Ferreira, Gonçalves, & Furtado, 2007). Outrossim, esses autores compreendem que a Psicologia deve partir da realidade material, social, concreta e histórica e buscar seus objetos de investigação na conjuntura, de modo que possam resolver os problemas impostos a ela (Euzébios Filho & Gradella Júnior, 2020).

Dessa forma, uma atuação pautada no compromisso social é aquela capaz de adotar a perspectiva dos serviços comprometidos com a garantia de direitos, de construir resistência à alienação, pautada na defesa da democracia e na produção de sujeitos democráticos que se preocupam com o aprimoramento da qualidade da prática psicológica, expandindo as fronteiras da Psicologia (Bock et al., 2022). Nesse sentido, Bock (1999) destaca que a discussão do compromisso social da Psicologia envolve uma análise sobre a sua inserção na sociedade, seja como ciência, seja como profissão, e, frente a essa análise, apontar se a Psicologia tem caminhado a transformação das condições de vida ou para a manutenção de um determinado status quo.

Ainda, Bock (1999) afirma que existem três critérios que possibilitam analisar se uma determinada intervenção denota o compromisso social da Psicologia. O primeiro, afirma que “[...] o trabalho do psicólogo deve apontar para a transformação social, para a mudança das condições de vida da população” (p. 325). Sendo este, uma perspectiva ética na qual toda intervenção é social e, portanto, necessita ser posicionada. O segundo, é “[...] verificar se a prática escapa do modelo médico de fazer Psicologia. Isto é, se a prática desenvolvida não pensa a realidade e o sujeito a partir da perspectiva da doença” (p. 326). Esse critério reivindica uma compreensão ampliada da intervenção, que seja capaz de considerar o sujeito e a comunidade, sua realidade, os saberes envolvidos e a capacidade destes de intervir e transformar sobre a própria realidade. E o terceiro, por fim, “[...] é o tipo de técnica que se utiliza.” (p. 326), as quais necessitam estar alinhadas às características da população atendida e os saberes psis adaptados às necessidades e à realidade em que a intervenção ocorre.

Isso posto, a noção de compromisso social adotada nesta pesquisa tem como referência as formulações teóricas de autoras e autores do campo da Psicologia Social latinoamericana que reivindicam intervenções críticas e que possuem enquanto finalidade última, a transformação das condições de vida das maiorias populares (dentro dos limites possíveis para a Psicologia), que vivenciam cotidianamente as mais diversas expressões da questão social oriundas da sociabilidade capitalista.

 Como salienta Martín-Baró (1980/2017; 1996), um bom psicólogo e uma boa psicóloga devem ter sua qualidade profissional e seu conhecimento capazes de responder às novas exigências e problemas que assolam a vida das maiorias populares e partir da perspectiva do povo e de suas organizações representativas. Esse movimento é feito a partir de um trabalho que é definido em função das circunstâncias concretas da população atendida. Sendo assim, atualmente, a Psicologia comprometida socialmente necessita enfrentar questões tais como: “[…] a fome, a pandemia, o racismo, a desigualdade social e as plataformas que utilizam inteligência artificial e manipulam subjetividades […].” (Bock et al., 2022, p. 10). Por fim, é possível acrescentar a pandemia de covid-19, bem como os efeitos psicossociais advindos, como questões de interesse e necessárias para a Psicologia se ocupar.

 

Método

Este estudo apresenta um recorte da pesquisa intitulada “Política de Assistência Social e atuação profissional”, que foi apreciada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisas da Associação Educativa do Brasil (Soebras)/Faculdades Unidas do Norte de Minas (Funorte), CAAE nº 40833820.3.0000.5141 e parecer nº 4.494.332, de 11 de janeiro de 2021. A referida pesquisa constituiu-se em um estudo descritivo, quanti-qualitativo e de corte transversal.

O cenário do estudo foi constituído pelos CREAS da mesorregião norte do estado de Minas Gerais, que compreende as cidades de Bocaiúva, Brasília de Minas, Buritizeiro, Capitão Enéas, Coração de Jesus, Espinosa, Francisco Dumont, Francisco Sá, Gameleiras, Grão Mogol, Itacarambi, Jaíba, Janaúba, Januária, Luislândia, Monte Azul, Montes Claros, Pirapora, Porteirinha, Rio Pardo de Minas, Salinas, São Francisco, São João da Lagoa, São João da Ponte, São João do Paraíso, São Romão, Taiobeiras e Várzea da Palma.

Os sujeitos deste estudo foram 13 psicólogas e 6 psicólogos, atuantes nas cidades de Buritizeiro, Capitão Enéas, Coração de Jesus, Espinosa, Francisco Dumont, Gameleiras, Grão Mogol, Jaíba, Janaúba, Januária, Luislândia, Montes Claros, Pirapora, Porteirinha, São Francisco, São João da Lagoa, São João da Ponte, São Romão e Taiobeiras. É preciso destacar que, em sete municípios da mesorregião, não foi possível localizar as e os profissionais (Brasília de Minas, Francisco Sá, Itacarambi, Monte Azul, Rio Pardo de Minas, Salinas, São João do Paraíso) e, em dois deles (Bocaiúva e Várzea da Palma), os convites para participação não foram respondidos. O critério de inclusão adotado foi o de profissionais atuantes no CREAS pelo período mínimo de março a dezembro de 2020.

Para a coleta de dados, foi utilizado um questionário eletrônico no Google Forms, formado por questões norteadoras objetivas, discursivas e autodescritivas em Escala do tipo Likert, agrupadas em dois eixos: o primeiro relacionado às atribuições das(os) psicólogas(os) junto às famílias e usuários (acolhida, acompanhamento psicossocial, visitas domiciliares e intervenções grupais), e o segundo relacionado ao trabalho em rede (articulação com a rede intrasetorial e intersetorial, reuniões de equipe e estudos de caso). Destaca-se que foi aplicado um instrumento piloto com dois participantes a fim de avaliar a aplicabilidade, eficácia e o alcance dos objetivos propostos. Além disso, foram coletados dados dos Registros Mensais de Atendimento (RMAs) dos serviços ofertados nos CREAS dos municípios participantes entre o período de 1º de janeiro de 2019 e 31 de dezembro de 2020 para comparar a quantidade de ofertas no período e se houve impactos da pandemia no que se refere aos registros. Os dados obtidos por meio do questionário eletrônico em Escala do tipo Likert foram analisados estatisticamente com o apoio do software R. Já os dados resultantes das questões objetivas, discursivas e dos RMAs foram analisados com apoio da Análise Categorial, uma técnica da Análise de Conteúdo de Bardin.

A partir da Análise Categorial, cinco categorias temáticas surgiram: (I) Perfil sociodemográfico das trabalhadoras e trabalhadores; (II) Medidas de prevenção à contaminação para quem? Impactos da pandemia na práxis da Psicologia no CREAS; (III) A chegada das demandas no CREAS; (IV) A tenuidade entre as potencialidades e vicissitudes do uso das tecnologias digitais; e (V) O compromisso social como eixo norteador da prática na Política de Assistência Social. Ressalta-se que as categorias I a IV foram tratadas em outro momento (artigo no prelo, citação dos próprios autores, por isso foram removidas). Dessa forma, este estudo se ocupará apenas da categoria V.

 

Resultados e Discussão

Esta categoria temática faz menção às estratégias adotadas pelas trabalhadoras e trabalhadores que vão ao encontro de um paradigma que desvela o compromisso social com o fazer da Psicologia na Política de Assistência Social.

Inicialmente, vale frisar aqui o entendimento de que a precarização em curso das ofertas socioassistenciais, a falta e a escassez de recursos e insumos necessários ao pleno funcionamento do CREAS são de responsabilidade do Estado, para não corrermos o risco de incutir tal responsabilidade às trabalhadoras e trabalhadores do SUAS. Entretanto, sob o ponto de vista da atuação profissional, para o enfrentamento das vicissitudes impostas e/ou acentuadas pela pandemia de covid-19, os profissionais da Psicologia se valem do paradigma do compromisso social enquanto potencializador e ferramenta para tal atuação. Assim, parafraseando Oswaldo Yamamoto ao pensar o compromisso social “[…] a questão não parece residir em com quem a Psicologia, […] vem se comprometendo, mas na forma desse compromisso” (2009, p. 48, grifos do autor).

Evidenciou-se, nesta pesquisa, que, por um lado, a atuação da Psicologia no contexto do CREAS, no cenário pandêmico, implicou lidar com o campo do desconhecido, do não previsto e do não habitual, pois muitas foram as vicissitudes que perpassaram a práxis das trabalhadoras e trabalhadores. Por outro lado, esse campo também viabilizou o surgimento de inovações, de leituras críticas do cenário, de trabalho articulado e de criação diante do novo. Como bem apresentado nas Referências Técnicas para atuação de psicólogas e psicólogos no CREAS, “[…] a criação é realizada a partir das condições dadas, mas deve representar um avanço verdadeiro, autêntico, genuíno e vivo.” (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2012, p. 42). É nesse sentido que consideramos o compromisso social enquanto possibilidade de resposta e de olhar amplo e crítico diante do cenário atual.

À vista disso, nossos achados apontaram para a adoção de estratégias nas mais diversas ordens que podem indicar o compromisso social das trabalhadoras e trabalhadores, tais como a preocupação com a arquitetura das salas de atendimento, optando por salas amplas e ventiladas, além de adaptações nos locais de atendimento, a fim de assegurar a saúde dos usuários, trabalhadoras e trabalhadores, como pode ser observado na seguinte fala: “As estratégias foram chegar a esse usuário sem colocá-lo em risco […].” (Psicóloga 3).

Além disso, verificou-se a utilização de Canal de Ouvidoria Municipal da Assistência Social, anúncios em alto-falantes, realização de campanhas virtuais nas redes sociais e WhatsApp e uso de recursos próprios, como aparelho celular e stories de redes sociais. Essas iniciativas tiveram o objetivo de informar a população o que é o CREAS, seu objetivo e quais ações são realizadas nesse equipamento socioassistencial. Considerando o contexto pandêmico, marcado pelo aumento na taxa de denúncias de violações de direitos humanos, torna-se mister que canais de denúncia e até mesmo redes de apoio sejam difundidos. Em concórdia, Miron e Guareschi (2017) sinalizam que as práticas da Psicologia, comprometidas ética e politicamente com o campo da assistência social, devem ser capazes de promover transformações nas condições de vida da população. E isso, no contexto do CREAS, pode ser traduzido como o rompimento dos ciclos de violências e violações de direitos humanos.

Similarmente, as parcerias com as Unidades de Saúde na oferta de proteção e suporte nas abordagens para a proteção de usuários e equipes foi largamente utilizada. Tal prática foi importante, na medida em que as equipes das Unidades de Saúde, em contato direto com as populações dos territórios, puderam repassar às equipes técnicas do CREAS as vivências de situações de violência e violações de direitos durante o isolamento social. Esse compromisso com o fazer da Psicologia na Assistência Social, de garantir o atendimento aos usuários por intermédio da (re)invenção das ações, pode ser observado no seguinte trecho:

Nós utilizamos muito, é, a questão do atendimento via WhatsApp. Às vezes chamadas de vídeo, é chamada de telefone mesmo, né, via ligação telefônica. É, isso aconteceu muito, né? Por exemplo, campanhas e algumas coisas que a gente desenvolveu, nós desenvolvemos nas redes sociais né, a gente usou os status, principalmente, para divulgar, mandando também no WhatsApp desse público. Quando o público não tem acesso a esse serviço, a gente faz a visita, só que a visita, a gente, dependendo do ambiente né, que a gente sabe que o nosso público é, muitas vezes, um público muito vulnerável, então, às vezes a gente está falando de uma família que mora em um cômodo, então não dá pra haver um distanciamento, às vezes a gente fazia ali mesmo na porta da casa, então, a gente desenvolveu algumas estratégias mais nesse sentido. (Psicóloga 1).

A postura das trabalhadoras e trabalhadores foi comprovada também nas respostas com as afirmações de que a pandemia de covid-19 havia dificultado a articulação do trabalho em rede e as reuniões das equipes para estudos de caso, já que, para a primeira assertiva, 37% discordaram em alguma intensidade e 26% se posicionaram como indiferentes. E, para a segunda afirmativa, 32% discordaram em alguma intensidade e 11% se posicionaram como indiferentes. Esses achados são indicativos de que mesmo em momentos de crise, articulações de trabalho em rede e reuniões de equipes para estudos de caso foram realizados nos municípios supracitados. Nas questões discursivas sobre essas afirmativas, algumas trabalhadoras e trabalhadores sinalizaram que a articulação em rede se intensificou em alguma medida, mesmo esbarrando em limitações tecnológicas como falta de internet, de computadores, de caixas de som e disponibilidade nas agendas das e dos profissionais. Tal como se observa a seguir: “Quem já não trabalha em rede [trabalhadoras e trabalhadores] anterior aos acontecimentos da pandemia, usou a mesma para continuar não articulando porque não podia aglomerar, aproximar etc.” (Psicóloga 3).

Essa fala nos convoca a questionar criticamente o compromisso das trabalhadoras e trabalhadores atuantes nos serviços socioassistenciais e a refletir sobre isso. Ainda que não tenha sido o objetivo desta pesquisa a investigação acerca das trajetórias acadêmicas e profissionais que culminaram na inserção na Política de Assistência Social, a partir da fala de alguns respondentes, estabelecemos uma associação de que o não investimento pode estar ligado a um paradigma de inserção na Política de Assistência Social para suprir fins mercadológicos, de estabilidade profissional e do primeiro emprego para alavancar a carreira profissional (Cordeiro & Sato, 2017; Hadler & Guareschi, 2014).

As maiores dificuldades encontradas “foi” [sic] lidar com muitos colegas de profissão que não entendiam a importância dos serviços na vida dos usuários […]. As estratégias foram trabalhar em equipe com quem entende o trabalho necessário com responsabilidades. Em nosso local de trabalho, em que já havia o sentido do verdadeiro trabalho do SUAS, foi tranquilo e contínuo. (Psicóloga 3, grifo nosso).

Dessa maneira, o trecho em questão serve para reforçar que o caráter de compromisso presente na atuação das trabalhadoras e trabalhadores foi um fator positivo para o desenvolvimento e continuidade das ofertas socioassistenciais, mesmo diante das limitações impostas pela pandemia. Sendo assim, o trecho nomeado pela Psicóloga 3 como o “sentido do verdadeiro trabalho do SUAS” permite inferir que se refere a uma perspectiva da Assistência Social enquanto política pública, de direito e obrigação estatal, prestada a quem dela necessitar (Brasil, 2005). Em conformidade com isso, Euzébios Filho e Gradella Júnior (2020, p. 107) sinalizam que o compromisso social é “[…] um movimento crítico, caracterizado, majoritariamente, por ideais democráticos que não ultrapassam o campo da cidadania, mas que reivindicam, por exemplo, a ampliação das políticas públicas e direitos sociais para os mais pobres.”

Uma análise pormenorizada dos princípios fundamentais do Código de Ética Profissional da psicóloga e do psicólogo, enquanto norteadores da atuação profissional em qualquer contexto que seja, sustenta a necessidade de assumir posturas e comportamentos em concórdia com o compromisso social-ético-político, haja vista que tal compromisso implica promover a defesa da dignidade, de transformação social, de rompimento com práticas hegemônicas acríticas, de pautar o trabalho em conformidade com as orientações do Código de Ética Profissional, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e outras convenções, além de se posicionar contra práticas excludentes, cristalizadas e discriminatórias (CFP, 2005).

Outrossim, mesmo com todas as dificuldades e limitações encontradas, evidenciou-se a preocupação das trabalhadoras e trabalhadores com o processo de formação continuada para promover atendimento especializado e de qualidade para o público usuário, por meio de cursos on-line disponibilizados pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social (Sedese) e outras plataformas. Esse processo de formação continuada e aperfeiçoamento pessoal e profissional se aproxima do exposto por Bock et al. (2022) de que uma Psicologia socialmente comprometida necessita enfrentar as questões que vão se colocando nas sociedades em cada conjuntura histórica.

Diante das estratégias adotadas, verifica-se o esforço das trabalhadoras e dos trabalhadores atuantes nos CREAS para a continuidade das ofertas socioassistenciais diante de um cenário de adversidades já em curso, mas que foram agravadas pela pandemia. Esforço este que anuncia o caráter eminentemente político da atuação para que os usuários continuassem sendo atendidos. É, portanto, nesse esforço e na busca por saídas frente ao desconhecido e ao não habitual que encontram-se os elementos anunciadores de práticas que têm como pano de fundo o compromisso social da profissão. Concordante, Bock (1999, p. 327) disserta que “compromisso social é estranhar, é inquietar-se com a realidade e não aceitar as coisas como estão. É buscar saídas”. Assim, as trabalhadoras e os trabalhadores buscaram saídas, mesmo que por vezes fosse necessário a mobilização de recursos próprios para que os usuários tivessem acesso à informação e a canais de denúncia de situações de violação de direitos. O compromisso social na atuação no CREAS, por fim, indicou um movimento: de identificar as necessidades dos indivíduos e famílias usuárias e ser capaz de construir respostas frente ao novo.

 

Considerações finais

O objetivo deste artigo foi analisar e discutir as estratégias desenvolvidas pelas psicólogas e psicólogos atuantes em CREAS da mesorregião norte do estado de Minas Gerais, entre os meses de março e dezembro de 2020, que vão ao encontro de um paradigma de atuação que desvela o compromisso social com o fazer da Psicologia na Política de Assistência Social. Dessa forma, verificou-se que, diante das adversidades impostas e/ou intensificadas com a pandemia de covid-19 no norte de Minas Gerais, nos serviços socioassistenciais, trabalhadoras e trabalhadores foram atuantes nos CREAS, não apenas por este ser tratar de um serviço essencial de funcionamento obrigatório por decreto presidencial, mas também porque, por vezes, na pandemia, dispunham de recursos próprios e buscavam meios diversos de chegar ao público usuário que demandava os serviços e o atendimento especializados.

Nesse sentido, essas estratégias podem ser lidas como esforços e posturas perpassadas pelo compromisso social da Psicologia no campo da Assistência Social que, como dito por uma das psicólogas entrevistadas, entende o trabalho como necessário e emprega o sentido do verdadeiro trabalho do SUAS. E isso deve ser considerado diante das adversidades vivenciadas por essas trabalhadoras e trabalhadores, que poderiam adotar posturas de resignação e passividade, ou mesmo limitar seus esforços aos recursos disponíveis nos equipamentos socioassistenciais.

Por fim, retomando mais uma vez o pensamento de Oswaldo Yamamoto, o compromisso social da Psicologia deve se situar na forma como a ela tem se comprometido com as populações que demandam seus serviços nos mais diversos contextos e momentos sócio-históricos da conjuntura vivida. E, como tentativa de elucidar e, até mesmo, aprofundar essa discussão, sugere-se que novos estudos sejam delineados, sobretudo no que diz respeito às percepções de psicólogas e psicólogos atuantes nos diversos equipamentos do SUAS sobre o paradigma do compromisso social da Psicologia no âmbito da Política de Assistência Social.

 

 

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Dado consultado no dia 08 de abril de 2023 no Painel Coronavírus, do Ministério da Saúde, tendo contabilizado 699.634 óbitos desde 2020.