Revista de Psicologia, Fortaleza, v.14, e023019. jan./dez. 2023

DOI: 10.36517/revpsiufc.14.2023.19

 

RECEBIDO EM: 14/04/2023

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 13/06/2023

VERSÃO FINAL: 20/06/2023

APROVADO EM: 03/07/2023

 

Comportamento suicida e o luto de sobreviventes: um estudo documental

Suicidal behavior and the mourning of survivors: a documentary study

Thaís Shibatta Kagesawa

Universidade Federal de Uberlândia, Brasil, graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia, https://orcid.org/0000-0003-1251-8766 , e mail: thaiskagesawa@gmail.com, Av. Pará, 1720 - Bloco 2C, Sala 47, Bairro Umuarama, Uberlândia - MG, CEP 38405-320, Telefone: (34) 3225-8534

Renata Fabiana Pegoraro

 

Universidade Federal de Uberlândia, Brasil, Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo, https://orcid.org/0000-0001-6052-5763 , e mail: renatapegoraro@gmail.com, Av. Pará, 1720 - Bloco 2C, Sala 47, Bairro Umuarama, Uberlândia - MG, CEP 38405-320, Telefone: (34) 3225-8534

 

Resumo

O suicídio e sua tentativa são a última etapa de um processo construído diariamente, sendo possível a observação de indícios do comportamento suicida no cotidiano desses sujeitos. O luto dos sobreviventes (enlutados) é um fenômeno complexo e multifatorial, assim como o próprio comportamento suicida, e requer a posvenção, cuidados aos sobreviventes para amenizar o sofrimento causado pela perda. Neste contexto, este artigo teve como objetivo analisar o comportamento suicida de uma jovem e a posvenção a partir do documentário Elena. As cenas selecionadas foram transcritas e a análise ocorreu a partir de indicadores em dialogo com a Epistemologia Qualitativa, resultando nas categorias: (1) Em busca de pistas sobre o comportamento de Elena e (2) A perda de Elena segundo as memórias de Petra: da crueldade à compreensão sobre a morte. Identificou-se elementos do luto infantil por suicídio de uma irmã que podem contribuir para estudos nessa área, como a manifestação de querer morrer, evitar falar sobre a irmã, perceber que a mãe poderia morrer também, entre outros. O luto materno está presente no documentário, reforçando a importância de estratégias de suporte aos familiares, a chamada posvenção.

Palavras-chave: Comportamento suicida; jovens; crianças; famílias; luto.

Abstract

Suicide and its attempt are the last stage of a process built daily, making it possible to observe signs of suicidal behavior in the daily lives of these subjects. The bereavement of survivors (bereaved) is a complex and multifactorial phenomenon, as well as suicidal behavior itself, and requires postvention, care for survivors to ease the suffering caused by the loss. In this context, this article aimed to analyze the suicidal behavior of a young woman and postvention from the documentary Elena. The selected scenes were transcribed and the analysis took place from indicators in dialogue with Qualitative Epistemology, resulting in the categories: (1) Looking for clues about Elena’s behavior and (2) The loss of Elena according to Petra’s memories: from cruelty to the understanding about death. Elements of child mourning for the suicide of a sister that can contribute to studies in this area were identified, such as the manifestation of wanting to die, avoiding talking about the sister, realizing that the mother could die too, among others. Maternal grief is present in the documentary, reinforcing the importance of family support strategies, the so-called postvention.

Keywords: Suicidal behavior; young; children; families; grief. 

 

 

 

 

A Lei brasileira nº 13.819/2019 institui a Política Nacional da Prevenção de Automutilação e do Suicídio. Entre seus objetivos, encontram-se a garantia do acesso à atenção psicossocial das pessoas em sofrimento psíquico com histórico de ideação suicida e tentativa de suicídio, a abordagem adequada aos familiares e às pessoas próximas das vítimas de suicídio, garantindo-lhes assistência psicossocial, e ainda a promoção de articulação intersetorial para a prevenção do suicídio. A literatura também aponta a importância de formação profissional para a prevenção do suicídio (Gomes, Iglesias, & Constatinidis, 2019; Marcolan & Silva, 2019).

Entre 2010 e 2019 foram registrados 112.166 óbitos por suicídio no Brasil, na proporção de oito homens para duas mulheres, e com concentração entre 20 e 49 anos (sendo 21% entre 20 e 29; 20,4% de 30 a 39 anos; 17,8% de 40 a 49 anos). Em 2019 ocorreu a maior taxa de suicídio em pessoas entre 70 e 79 anos (8,9 por 100.000). Óbitos por suicídio predominaram em pessoas brancas (48,8%) e pardas (43,6%), no entanto somando-se pardos e pretos, tem-se 48,7% de mortes por suicídio (Silva & Marcolan, 2022). Chama atenção, segundo os autores, o aumento das taxas de suicídio a partir de dez anos de idade, mantendo-se estável entre 5 e 9 anos, e diminuindo para aqueles com mais de 80 anos.

De acordo com Marquetti e Milek (2014), o suicídio e sua tentativa são a última etapa de um processo construído e consolidado diariamente, sendo possível a observação de indícios do comportamento suicida no cotidiano desses sujeitos, tais como conflitos com pessoas próximas, isolamento social, perda de entes queridos, demissão ou abandono do trabalho, afastamento dos estudos, abandono de atividades da rotina diária e de lazer, interrupção ou diminuição da alimentação e dos cuidados pessoais de higiene, sensações de abandono e solidão.

Com relação a adolescentes e jovens que tentaram suicídio, Ficher e Vansan (2008) investigaram motivos desencadeadores e histórias de vida desses sujeitos (10 a 24 anos), e apontam que sentiam-se menosprezados pelas pessoas próximas a eles e manifestavam intensos e incessantes problemas de relacionamento com essas pessoas, como brigas e discussões com familiares e pessoas com quem se envolveram afetivamente. Esses problemas foram, segundo esses pesquisadores, motivos determinantes para as tentativas de suicídio, e essas desavenças aconteceram próximo ao instante do ato suicida.

Os estudos sobre tentativas de suicídio e suicídios consumados devem manter diálogo com as pesquisas sobre compreensão acerca da morte. Quando falamos em concepção da morte e experiência de luto, devemos levar em consideração que elas podem variar dependendo da etapa do ciclo vital em que cada pessoa se encontra. Um estudo de Silva et al. (2012) evidenciou que crianças possuem representações da morte que condizem com o desenvolvimento cognitivo e afetivo-emocional das mesmas. Assim, as crianças participantes do estudo caracterizaram a morte como um fenômeno não-normativo e retratado por componentes relacionados à violência urbana e à punição pela transgressão de normas sociais. Por outro lado, os adultos participantes configuraram a morte como um acontecimento inevitável, irreversível e desconhecido, com um sentido de desesperança e finitude. Ademais, para eles o luto é uma fase de elaboração da ruptura de um vínculo afetivo, caracterizado por muita dor e saudade.

Em relação ao luto pelo suicídio, Fukumitsu e Kovács (2016) ressaltam que não devemos reduzir o luto dos sobreviventes, termo utilizado para se referir aos enlutados, a explicações simplistas, visto que é um fenômeno complexo e que abrange diversos aspectos, assim como o comportamento suicida, que está ligado a fatores individuais, sociais, culturais e históricos. Nesse sentido, as autoras realizaram uma pesquisa com o objetivo de investigar as especificidades do processo de luto pelo suicídio através da análise do luto de filhos de pessoas que tiraram a própria vida. Dentre tais especificidades, elas evidenciam que aquele que se matou pode permanecer presente na vida do enlutado através de lembranças e do sentimento de culpa, sendo esse último muito comum no processo de luto por suicídio. Tal sentimento advém do pensamento de que o sobrevivente deveria ter previsto ou feito algo de diferente para ajudar e evitar a morte. De acordo com Dutra et al. (2018), isso ocorre especialmente com os pais daqueles que se suicidaram.

Ainda, Fukumitsu e Kovács (2016) salientam que, pelo suicídio ser considerado uma morte repentina e inesperada, ele pode ocasionar, nos enlutados, respostas intensas, como sentimentos de choque, raiva, impotência, frustração, vergonha, falta de sentido na vida e necessidades de explicações e de isolamento social. O sentimento de choque pode ocorrer pelo fato de, muitas vezes, os familiares não perceberem os sinais deixados por aquele que consumou o ato, o que dialoga com o estudo de Marquetti e Milek (2014), anteriormente mencionado. Nesse contexto, também é possível observar a influência do estigma do suicídio na vivência de luto do sobrevivente, que muitas vezes se silencia e se isola para se preservar e evitar julgamentos advindos da sociedade (Fukumitsu & Kovács, 2016).

Além disso, Dutra et al. (2018) evidenciam que a perda de um membro da família por suicídio gera alterações funcionais nas estruturas e relações familiares. Desse modo, faz-se presente a necessidade de reordenação do sistema familiar, o qual pode ser diferente de acordo com as circunstâncias e as particularidades de cada integrante da família. Assim, a maneira com a qual os sobreviventes lidam com as alterações ocasionadas pelo suicídio de um familiar está intrinsicamente ligada à forma como ocorrerá será sua adaptação e recuperação após tal evento (Dutra et al., 2018; Silva, & Marcolan, 2021).

À vista disso, faz-se necessário discutir sobre posvenção. Esse termo diz respeito à qualquer ato de cuidado direcionado aos sobreviventes para amenizar o sofrimento causado pela perda de uma pessoa pelo suicídio e está ligada à prevenção, uma vez que pode evitar outro ato suicida ou sua tentativa (Fukumitsu & Kovács, 2016). Dessa forma, a posvenção pode acontecer de diversas maneiras, como grupos de apoio, atendimentos psicológicos individuais ou em grupo, ações de propagação de informações sobre suicídio, entre outros (Fukumitsu & Kovács, 2015).

A partir do que foi exposto, escolhemos o documentário Elena, que apresenta a perspectiva de uma jovem adulta que, durante sua infância, passou pela experiência de perda de uma irmã por suicídio, para discutir as relações familiares frente a esse acontecimento (Costa, 2012; Dutra et al., 2018; Fukumitsu & Kovács, 2016). Elena é um documentário brasileiro dirigido por Petra Costa (2012) que conta a história de sua irmã mais velha – Elena - que, movida pelo sonho de se tornar atriz, viaja para estudar em Nova Iorque. Por não conseguir se adaptar, Elena voltou ao Brasil e, disposta a auxiliar na concretização do sonho da primogênita, a mãe de Elena decide mudar-se para Nova Iorque levando a caçula Petra, ainda criança. Já em Nova Iorque, em 1990, Elena toma uma grande quantidade de remédios e acaba morrendo. Quem encontra o corpo é sua mãe, que dá a notícia a Petra. A história é contada através de filmagens caseiras, gravações de áudio, fotos, depoimentos de familiares e amigos, imagens de arquivos e a narração da própria cineasta, que aparece no filme tanto criança, quanto adulta. Petra conta que fez o documentário por causa do desejo de tirar sua irmã do “mundo dos esquecidos” e trazer Elena de volta à memória, além de citar que o suicídio é a causa de morte que mais tem aumentado ao longo dos anos (Ristow, 2013; Senado Federal, n.d.).

A partir do documentário, e de nosso interesse pela temática, elencamos os seguintes problemas de pesquisa que orientaram este artigo: Quais vivências infantis a experiência de perder uma irmã após tentativa de suicídio foram registradas no documentário? De que modo essas vivências infantis são percebidas na vida adulta a partir da narração do documentário por Petra, a narradora-documentarista já adulta? Quais aspectos da vivência de luto familiar por suicídio são retratados no documentário? Os registros apresentados no documentário permitem a identificação de pistas sobre o comportamento suicida de Elena? Partindo destas perguntas, este artigo tem o objetivo de identificar pistas sobre o comportamento suicida de uma jovem e a posvenção a partir da análise do documentário Elena dirigido por Petra Costa.

 

Aspectos metodológicos

 Esta é uma pesquisa de tipo documental, definida como estudo que se utiliza de documentos, escritos ou não, como fonte de coleta de dados. São mais comumente utilizadas fontes escritas oficiais, como documentos jurídicos e fontes estatísticas, e documentos particulares tais como fotografias, desenhos e vestuários (Cellard, 2019).

A fonte de informação escolhida para esta pesquisa foi o vídeo-documentário Elena, dirigido por Petra Costa (2012), com 82 minutos de duração. Elena foi premiado no Festival de Brasília no ano de seu lançamento como melhor documentário (júri popular), direção, montagem e direção de arte; em 2013 ganhou menção especial no Festival Internacional de Cinema de Guadalajara (México) e no Festival Internacional de Documentários (Croácia), além de melhor documentário no Films de Femmes (França), no Los Angeles Brazilian Film Festival (Estados Unidos) e no Festival de Havana (Cuba); em 2015 foi premiado como Melhor filme de longa-metragem no festival brasileiro Arquivo em Cartaz (https://elenafilme.com/o-filme/#premios)

Um documentário é caracterizado por apresentar um discurso autoral sobre um objeto ou evento do real a partir do registro in loco, dando prioridade à verossimilhança e literalidade na medida do possível. Ele também pode possuir a presença de um locutor, usar depoimentos, documentos históricos e reconstituições de acontecimentos para possibilitar uma aproximação do que se quer retratar. Ainda que ele se caracterize por ser um discurso sobre o real, o documentário é uma construção da realidade, isto é, ele precede um processo ativo de produção de valores e significados, possuindo uma forte ligação com o ponto de vista de seu diretor. Isso acontece a partir de cada escolha feita pelo documentarista durante a produção de sua obra, não sendo simplesmente o que é apresentado, mas como se apresenta (De Marco, Andrade & Espírito Santo, 2008; Melo, 2002).

Menezes (2003) destaca que as imagens em movimento dos documentários possibilitam transformar o olhar do espectador ao lhe apresentar um universo novo e original, distinto do que é comumente visto. Assim, é possível refletir sobre um evento ou objeto de maneira única, com a capacidade de transformação e ampliação do pensamento daquele que o assiste sobre determinado aspecto da realidade. Desse modo, utilizar o documentário como material de análise possibilita investigar dimensões dos acontecimentos construídas a partir de uma perspectiva singular.

Este estudo é orientado pela Epistemologia Qualitativa de Gonzalez Rey, a qual possui três princípios básicos. O primeiro refere-se ao caráter construtivo-interpretativo do conhecimento, que rompe com a oposição entre o empírico e o teórico, uma vez que ambos são inseparáveis. Nesse sentido, o conhecimento é uma produção permanente, pois, com novos campos de realidade, há novas perspectivas que podem adquirir significados ao longo da pesquisa, o que permite a criação de novas dimensões teóricas também. O segundo diz respeito ao singular como fonte de produção de conhecimento, enfatizando que uma pesquisa é fonte de produção subjetiva do(a) pesquisador(a) em questão (Oliveira & Caixeta, 2018). Por último, o terceiro relaciona-se ao diálogo como cerne da pesquisa, uma vez que, segundo Rey (2005, citado por Oliveira & Caixeta, 2018) é capaz de expressar simbolicamente sua subjetividade.

Dentro da perspectiva proposta por Gonzalez Rey, foi utilizado o conceito de indicador, isto é, componente que não possui significado a partir do contato direito com o mesmo, mas somente com a interpretação do(a) pesquisador(a), possibilitando a elaboração de hipóteses que não relacionam-se diretamente ao conteúdo explícito dos componentes. Os indicadores podem ser compostos por somente um elemento ou por um grupo destes e são formulados no processo de construção do conhecimento com finalidade explicativa. Ademais, o indicador só tem relevância quando relacionado a outros indicadores, que formam uma categoria (Rey, 2001).

O primeiro procedimento de análise foi assistir o documentário para contato inicial. Em seguida, o documentário foi assistido mais uma vez com o objetivo de identificar os seus pontos-chave e as respectivas cenas que estavam de acordo com os problemas de pesquisa deste estudo, anotá-las e transcrevê-las. Essa transcrição foi feita com as seguintes informações: tempo de começo e fim da cena, descrição da cena e descrição da imagem correspondente a ela. Em seguida, todas as transcrições foram lidas e divididas em três conjuntos, sendo (A) referente a cenas com pistas sobre o comportamento suicida na trajetória de Elena, (B) sobre cenas relacionadas às vivências infantis sobre a perda da irmã e (C) relativo a cenas sobre o luto familiar após a morte de Elena. Tais conjuntos foram relidos para a identificação de indicadores presentes em cada um deles.

Ao final desse processo, os indicadores foram reunidos em duas categorias de análise: Categoria 1 - “Em busca de pistas sobre o comportamento de Elena” , formada por quatro indicadores: “O sofrimento de Elena”; “A naturalização do sofrimento de Elena”; “O distanciamento de Elena”; “Arte é vida”; e Categoria 2 - “A perda de Elena segundo as memórias de Petra: da crueldade à compreensão sobre a morte”, composta por sete indicadores: “Impactos em Petra do suicídio da irmã”, “Impactos na mãe do suicídio da filha segundo o olhar da Petra”, “Aprendendo a lidar com a perda de sua irmã”, “Teria feito tudo diferente” e “Medo de Petra seguir os passos de Elena”.

Por fim, foi realizado o tratamento dos resultados a partir da inferência e da interpretação dos trechos selecionados com respaldo na literatura. Essa etapa da análise que pressupõe a construção de diálogo entre as categorias temáticas e a literatura consultada.

 

Resultados e discussão

Categoria 1 - “Em busca de pistas sobre o comportamento de Elena”

O primeiro indicador aponta o “sofrimento de Elena” retratado no documentário.

Quando Elena fez 15 anos, os pais estavam se separando. Petra, a caçula e documentarista, recorda-se de Elena e menciona “Te procuro”. A câmera se desloca da imagem de Elena, que aparecia em uma filmagem caseira, mais nova, para uma foto profissional da jovem. As imagens e as falas apontam para o crescimento de Elena, para sua transformação, e Petra pontua “Você para de brincar de teatro comigo para virar atriz de verdade”.

Em busca da carreira como atriz, a jovem Elena havia viajado para Nova York, nos Estados Unidos, para estudar, deixando a irmã, Petra, com cerca de sete anos, e a mãe residindo no Brasil. Aparentando ter cerca de 20 anos, Elena está em N.York, prestes a voltar ao Brasil, e fala ao telefone “Sinto que minha semente nem chegou a brotar direito ainda. Então, provavelmente numa cidade, ela, se brotasse, miúda e doente viveria.” Numa cena com imagens borradas o documentário apresenta uma jovem que poderia não florescer, se transformar, crescer, ter um futuro pleno, cheio de frutos, e nos dão pistas sobre certa tristeza que acompanha. O sofrimento de Elena é retratado nesta relação com os estudos, com a carreira, com a arte e com as dificuldades para crescer e se transformar.

Em seu diário audiogravado, Elena conta: “Minha garganta está machucada, sempre esteve. Não só por causa dos gelados, vento, frio, tensão, ansiedade. Mas principalmente a consciência do medo, da falta de amor por mim, pela minha voz”. As imagens da cidade apresentadas enquanto Elena está ao telefone, indicam que ela provavelmente acabara de voltar a morar em Nova Iorque, agora acompanhada por sua mãe e irmã, Petra, que deveria ter por volta de 7 anos. As expressões “Sempre esteve” [machucada] e “agora não me deixa falar, nem cantar” marcam a tristeza que Elena carrega e passa a afetar suas atuações e expressões artísticas e, portanto, seu sonho em se tornar atriz: “Talvez eu precise de uma terapia especial, para me ‘destraumatizar’ e tirar esse rolo de fios, no peito e na garganta, que antes não me deixava respirar e agora não me deixa falar, nem cantar”. Elena falou sobre sua tristeza através de metáforas, como a da semente e a da garganta machucada, e disse à sua mãe que iria se matar. Isso poderia ser interpretado como pistas da progressão do pensamento auto-destrutivo da mesma (Marquetti & Milek, 2014).

O segundo indicador, a “naturalização do sofrimento de Elena”, foi identificado em cenas que retratam o sofrimento como algo cotidiano, “da natureza” da jovem, certa falta de esforço. Petra narra um episódio que aconteceu quando ela ainda era pequena: em uma tarde, levou a primeira amiga que fez na cidade de N York até a sua casa e estava apresentando o local a ela. Chegando no quarto de Elena, Petra percebe que sua irmã estava toda coberta, só com o rosto para fora e com os olhos vermelhos. Ao sair do quarto, sua amiga, “com olhar angustiado”, perguntou o que Elena tinha e então Petra respondeu “ela é assim”, como se estar naquele estado fosse da natureza dela.

Em outra cena, a mãe descreve uma situação em que sentou na cama junto com Elena, que disse: “arte pra mim é tudo, sem a arte, eu prefiro morrer. Se eu não conseguir fazer arte… melhor morrer”. A mãe então disse “Ô Elena, não faz isso, não é assim…” e perguntou para sua filha o porquê dela ter voltado a fazer aula de teatro, visto que elas tinham combinado que ela não voltaria por enquanto e ela já havia ficado um mês sem ir. Elena respondeu que então nada tinha sentido para ela e sua mãe comentou novamente sobre o combinado, perguntando “por que você voltou lá se lá te faz sentir mal?”. Aqui é possível observar uma tentativa de proteger Elena deixando-a longe daquilo de que ela gostava.

Em outra cena, a mãe lembra de quando ficou um pouco impaciente e falou para Elena “ver se fazia um esforço”, porque vê-la naquela situação estava fazendo mal à Petra. A filha mais velha “levantou brava e saiu dizendo que ia se matar”, entrou no elevador mesmo que ela tenha tentado impedi-la, o que a deixou desesperada. Na sequencia, enquanto aparecem imagens de ruas movimentadas por carros e ruas desertas, Petra conta que sua mãe, desesperada, passou horas procurando Elena pelas ruas, até que depois de um tempo a primogênita retorna à casa e é levada ao psiquiatra pela mãe, iniciando o tratamento com lítio, uma medicação bastante comum para quem é diagnosticado com transtorno bipolar.

Elena declarou seu sofrimento, sua vontade de morrer, sua dificuldade em ver sentido na vida sem sua arte. A literatura destaca que, muitas vezes, apenas após a efetivação de um suicídio a família e as pessoas próximas à pessoa conseguem, ao relembrar a convivência, identificar “pistas” que poderiam sinalizar que havia ideias ou planos para o suicídio (Botega, 2015). Marquetti e Milek (2014) pontuam que é possível observar indícios do comportamento suicida no cotidiano das pessoas que se suicidam ou tentam, uma vez que a ação em si precede um processo construído e consolidado diariamente. Tal processo relaciona-se com alterações no funcionamento cotidiano ocasionadas pelo próprio desejo autodestrutivo. Os olhares, as falas, o choro de Elena podem, em retrospectiva, serem percebidos como pistas deixadas sobre o sofrimento experienciado por Elena que, mais à frente, somou-se ao abandono de atividades às quais ela encontrava-se vinculada e ao afastamento de pessoas relevantes.

O terceiro indicador aponta para o “distanciamento de Elena”, que havia se afastado de pessoas que se preocupavam com ela. Petra lembra que Elena havia ficado em sua casa sozinha o dia inteiro e se pergunta “fazendo o que? Falando com quem?”. Uma das cenas mostra o rosto de um amigo de Elena chamado Michael, que faria um show no final de semana. Quando ligou para ela, percebeu que “ela não parecia nada bem”. Então ele disse que iria até o encontro dela para eles saírem para “beber alguma coisa, tomar um café”, o que ela quisesse. Ele comenta que Elena “estava meio histérica no telefone” e disse “Michael, não quero que você me veja assim, eu não estou bem…”. O amigo então insiste, dizendo que estava tudo bem e que ele iria até ela, não tinha problema, “por favor, deixa eu te pegar, vou de táxi e te pego”. E a resposta de Elena foi “não, Michael, por favor, eu não quero te ver. Estou me sentindo mal, estou me sentindo péssima…”. Ele foi até o prédio de Elena, tocou a campainha, ligou, e ela não o atendeu. Aparecem imagens tremidas e escuras do que aparenta ser a fachada do prédio em que Elena morava, que se conectam com a cena seguinte, quando Petra lê trechos da carta que Elena escreveu após tomar os remédios e beber cachaça. “Este mistério, me sinto escura, num escuro que nunca vai terminar, não ouso querer trabalhar em teatro, cinema, dança, canto, porque eu já os vivi e poucos momentos depois já não possuía sua luz [....] E toda tristeza de sempre tomava conta de mim”. Essas cenas sinalizam para uma das alterações encontradas no estudo de Marquetti e Milek (2014), denominada isolamento social. As cenas mostram como Elena se afastou de pessoas que se preocupavam com ela, como sua mãe e seu amigo, e guardava para si toda a tristeza que sentia.

O quarto indicador, “Arte é vida”, mostra a importância dessa experiência para Elena, cuja vida se entrelaçava à arte. "Arte pra mim é tudo, sem a arte, eu prefiro morrer. Se eu não conseguir fazer arte… melhor morrer” . E ainda “Me sinto fraca, covarde e envergonhada perante a vida e todos. Eu quero morrer. Razão? Tantas que seria ridículo mencioná-las. Eu desisto [...] . Outros tipos de mudanças no cotidiano de pessoas que cometem suicídio ou fazem a tentativa são classificados por Marquetti e Milek (2014) em relação às atividades laborais e escolares. As autoras citam a demissão, o afastamento e o abandono do trabalho, a perda da vontade de trabalhar e o abandono dos estudos. Isso relaciona-se com a realidade de Elena com a arte, visto que foi objeto de estudo e de trabalho para a mesma, motor de sua mudança para outro país em busca de formação para atuação profissional no campo das artes cênicas.

O suicídio relaciona-se a uma condição de sofrimento e adoecimento do sujeito (Penso & Sena, 2020). As cenas destacadas, para além disso, revelam como Elena atrelava à arte o seu sentido de vida, bem como seu afastamento e a perda de vontade de Elena em relação ao seu trabalho artístico. Segundo Rocha, Boris e Moreira (2012), a falta de sentido da vida pode ser um elemento relevante no processo de decisão de cometer suicídio. Uma vez que a arte estava ligada ao sentido de vida de Elena, é possível que a dificuldade em se expressar artisticamente possa ter sido um fator de risco para o seu suicídio. Ela chega a dizer à mãe que arte era tudo para ela e, sem a arte, ela preferia morrer, “se eu não conseguir fazer arte… melhor morrer”. Havia um movimento cíclico, no qual o seu sofrimento afetava sua expressão artística e isso acarretava mais sofrimento. O abandono de atividades prazerosas ou da rotina da pessoa podem ser compreendidos como sinais de alerta para o sofrimento.

Devido ao suicídio ser considerado uma morte repentina e inesperada, ele pode ocasionar respostas intensas por parte dos sobreviventes, como sentimentos de choque, raiva, impotência, frustração, vergonha, falta de sentido na vida e necessidades de explicações e de isolamento social (Fukumitsu & Kovács, 2016). Afastamento e evitação podem ser utilizados como estratégias de enfrentamento para lidar com a dor que o suicídio provoca (Martins & Leão, 2010 citado por Rocha & Lima, 2019). Algumas possíveis consequências para os sobreviventes apontadas na literatura são depressão, perturbações ansiosas, sentimentos de culpa, sintomas de transtorno do estresse pós-traumático e desinvestimento na própria vida, uso de bebidas alcóolicas e drogas (Batista & Santos, 2014 citado por Rocha & Lima, 2019; Tavares, 2013 citado por Oliveira & Faria, 2019).

 

Categoria 2: A perda de Elena segundo as memórias de Petra: da crueldade à compreensão sobre a morte

O primeiro indicador, “Impactos em Petra do suicídio da irmã”, foi construído a partir de cenas de Petra, tanto quando ela era criança, como quando ela já estava adulta. Na primeira cena identificada Petra se recorda de quando tinha sete anos, estava em Nova Iorque, voltou para casa e viu a mãe com uma expressão triste, desesperada, que nunca tinha visto antes. Foi quando sua mãe lhe contou que Elena havia morrido e Petra achou tudo muito cruel. Durante isso, aparecem imagens de gravações antigas do quarto da narradora, com bonecas em cima da cama e uma colagem feita com desenhos pintados que estava fixada na parede, representando a tenra idade de Petra. Em cena seguinte, a mãe olha ao longe recorda e conta o momento em que falou para Petra que Elena tinha morrido. Petra respondeu “It hurts my feelings” e começou a chorar.

Em outra cena aparecem imagens do Relatório Psicológico elaborado quando Petra tinha 7 anos e 6 meses, escrito em língua inglesa, que é lido por ela. Nele está escrito que ela foi levada para avaliação psicológica por sua mãe, a qual dizia que Petra começou a falar que queria morrer e estava tendo pesadelos, além de existir evidências de depressão e sentimentos de culpa na criança. Petra evitava falar sobre a irmã e usava defesas que sugeriam tendências obsessivo-compulsivas para lidar com situações difíceis e que era provável que ela continuasse a usar essas defesas por um tempo, que permitiam negar os motivos de sua verdadeira depressão. Esse relatório psicológico aponta aspectos depressivos, ligados ao luto, e mesmo evitação – não tocava no nome da irmã.

O segundo indicador agrega “Impactos na mãe do suicídio da filha segundo o olhar da Petra”. As cenas deste indicador revelam os impactos da morte de Elena em sua mãe através da visão de Petra. Numa delas a mãe aparece com os olhos fechados e as mãos na cabeça enquanto diz que “a culpa é… a cabeça… pegando fogo”, depois fala que “a dor da culpa é… uma angústia aqui…”, ao mesmo tempo em que há a imagem de seu punho fechado sobre seu colo e sua mão subindo e sendo colocada ao redor de seu pescoço. Ela volta a se referir sobre a culpa novamente enquanto faz um gesto com as mãos como se a cabeça estivesse explodindo. Em seguida, a mãe expressa que a dor é insuportável, havendo até sofrimento físico, que dá a sensação de que a única saída é a morte, o nada.” Mais à frente, Petra conclui que depois da morte de Elena sua mãe “vira saudade, sempre com o olhar distante e triste.” “Perguntava “O que foi, mãe? Você está triste?” e ela a olhava em silêncio, esboçava um sorriso e dizia que estava pensando na Elena.”

No que se refere ao luto pelo suicídio, Fukumitsu e Kovács (2016) assinalam algumas especificidades do processo desse tipo de luto, evidenciando que aquele que se matou pode permanecer presente na vida do enlutado através de lembranças e do sentimento de culpa – como expresso pela mãe de Elena e Petra, que se refere à culpa como “a cabeça pegando fogo” e à angústia, uma dor insuportável, levando ao sofrimento físico. O sentimento de culpa é muito comum em familiares sobreviventes (Dutra et al., 2018; Fukumitsu & Kovács, 2016; Oliveira & Faria, 2019; Rocha & Lima, 2019; Ruckert, et al., 2019). É possível notar que Elena continuou existindo dentro de sua mãe através do relato de Petra sobre sua mãe “virar saudade” depois da morte da irmã

O terceiro indicador é “Aprendendo a lidar com a perda de sua irmã”. Petra relembra que, nos dias que se seguiram após a morte de Elena, a prima dela disse que, se ela quisesse, ela poderia continuar conversando com a irmã, pois ela estaria invisível, mas a escutaria. Petra conta que fez isso.

Durante a repetição de uma gravação de alguém que está subindo as escadas e abrindo uma porta, a narradora recorda que, quando tinha dez anos, perguntou se Elena não voltaria mais e percebeu que sua mãe também poderia morrer a qualquer momento, sendo isso um sinal que ela deveria fazer de tudo para evitar esse acontecimento. Assim, aparece uma filmagem de Petra criança em seu quarto, aparentemente angustiada, enquanto ela continua dizendo que começou a fazer promessas constantes, como não comer mais sal, subir todas as escadas do apartamento em que moravam, no 19º andar, de joelhos e nunca mais se olhar no espelho. Percebemos, assim, o sofrimento da criança, pela ausência da irmã, e reagindo ao medo de perder também a mãe, tomando consciência da finitude humana.

Petra evitava falar sobre a irmã. Mais à frente, Petra conta de quando fez dez anos e foi passar as férias no sítio de uns amigos junto com sua mãe onde havia um carrinho de golfe no terreno. Ela passou os dias brincando de dirigir para cima e para baixo, ao mesmo tempo que são mostradas imagens de um gramado com a sombra de uma pessoa se movimentando em um balanço infantil, dos raios de sol brilhantes vistos através de copas de árvores, além de troncos de árvores e de suas copas. A cena termina com Petra narrando que “numa tarde, dando voltas em círculo com o carrinho, eu percebo que você morreu, pra sempre”. Em outra cena temos uma gravação de Petra já maior, talvez adolescente, correndo em um campo florido. Enquanto isso, ela relata que depois, “como tudo”, o medo desapareceu e Elena também foi desaparecendo com ele.

Assim como a pessoa que tirou sua vida permanece presente na vida do enlutado através de lembranças, como assinalado por Fukumitsu e Kovács (2016), Elena continuou existindo dentro de sua irmã e de sua mãe. Petra conta que Elena foi “desaparecendo dela”, porém, quando aquela já estava mais velha, com 21 anos, ela começou a buscar pela irmã e esta foi “tomando forma, tomando corpo, renascendo um pouco”. Na sequência da cena onde a narradora Petra conta que aos 21 anos começou a buscar pela irmã, esta irmã morreu de novo para ela, a diferença foi que naquele momento ela tinha mais consciência para sentir a sua morte. Isso evidencia como a elaboração do luto de Petra aconteceu depois de muitos anos, quando ela já era jovem.

              Aqui podemos fazer um paralelo com a discussão sobre memória proposta por Bosi (1987). A autora apoia-se em Bergson para refletir sobre toda percepção humana estar impregnada de lembranças e que “lembrar-se” vem do francês “se souvenir” que significa “vir à tona o submerso”, ou seja, aquilo que percebemos no presente - pelos sentidos - está sempre misturado às nossas experiências anteriores. A memória de Elena vai desaparecendo do cotidiano de Petra – vai submergindo. Ao mesmo tempo, o documentário pode ser entendido como uma forma de que essas memórias voltem à tona, reapareçam.

Um paralelo também pode ser feito com a foto que ilustra o documentário, onde uma moça flutua na água – não está, portanto, nem submersa, nem fora da água, mas entre dois mundos – a água e o ar/terra. Recordar, escrever, filmar são formas presentes de lidar com as memórias da irmã, que vem à tona, que são buscadas por Petra na tarefa de construção do documentário. Bosi (1987) trata a memória como uma “invasora”, uma força subjetiva e latente, pois “pela memória o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se às percepções imediatas, como empurra, desloca e nas últimas, ocupando o espaço todo do consciente” (p. 9). Para ela, “é do presente que parte o chamado ao qual a lembrança responde” (Bosi, 1987, p. 9). No caso de Petra, a escrita do roteiro foi o chamado para a acesso a fotos, gravações e memórias de seu convívio com Elena, trazendo à tona o que estava esquecido.

Bosi continua, revelando que ao narrar, [o sujeito] recupera na própria voz o fluxo circular que a memória abre do presente para o passado e deste para o presente – constroi portanto uma melodia do passado interpretada pelo presente. Aqui, apoiada em Halbwachs, Bosi destaca que não se lê duas vezes o mesmo livro, ou seja, é impossível reviver o passado enquanto tal. Podemos refletir, portanto, que o documentário não permite que Petra reviva as emoções de mesma forma, mas que reacomode a dor de ter perdido Elena abruptamente, e qe reaprenda a conviver com ela, agora pelas lembranças que apresenta ao mundo, via documentário. De Walter Benjamin, Bosi se apoia na ideia de que o narrador tira o que narra da própria experiência e a transforma em experiência dos que a escutam, portanto tem a narração uma forma artesanal de comunicar que não pretende transformar o “em si” do acontecido (Bosi, 1987), mas que comunica, no caso de Petra, o público do documentário sobre a experiência narrada e filmada.

Quase no final do documentário, Petra diz: ”pouco a pouco… as dores viram água... viram memória… as memórias vão com o tempo, se desfazem, mas algumas não encontram consolo, só algum alívio nas pequenas brechas da poesia. Você é a minha memória inconsolável, feita de pedra e de sombra. E é dela que tudo nasce e dança”.

Tal acontecimento está em acordo com a literatura, visto que esta indica que o luto de crianças é elaborado no decorrer da estruturação psíquica das mesmas, isto é, em diversas ocasiões de suas vidas. Com o passar do tempo, elas podem dar significados ao episódio vivido. Também pode haver reativação desse luto ao longo da vida (Franco & Mazorra, 2007).

O quarto indicador “Teria feito tudo diferente” aponta para a manifestação da vontade da mãe em fazer coisas diferentes, com o pensamento de que isso poderia evitar a perda da filha. “Passando o filme milhões de vezes… Repassando o filme. Pensando tudo que eu teria feito diferente.” O sentimento de culpa vivenciado pelos sobreviventes pode surgir do pensamento de que eles poderiam ter previsto ou feito algo de diferente para ajudar a pessoa e evitar sua morte, sendo frequente especialmente com os pais daqueles que se suicidaram (Dutra et al., 2018; Fukumitsu & Kovács, 2016). Ao pensar se poderia ter feito tudo diferente, a mãe de Elena aponta para o pensamento de, pela ação, ter conseguido evitar a perda de sua filha. A genitora, portanto, aparece presa em um processo de revisitar, pela memória, o passado, identificando o que poderia ter dito ou feito de modo diferente e que pudesse ter sido capaz de evitar a morte da filha mais velha.

O quinto indicador refere-se ao “Medo de Petra seguir os passos de Elena”, expressão da preocupação advinda da mãe sobre Petra vir a tirar sua própria vida. Ao longo do documentário, Petra diz "Nossa mãe sempre me disse que eu podia morar em qualquer lugar do mundo, menos em Nova Iorque. Que eu podia escolher qualquer profissão, menos ser atriz”, ou seja, não poderia seguir a profissão da irmã Elena”. Petra discorre sobre sua angústia em sentir que estava chegando cada vez mais perto da idade que Elena tinha quando morreu.: “Eu tenho medo. Tenho medo do que o tempo vai fazer comigo. Eu tenho medo. Qual meu papel?”

Os sobreviventes podem sentir necessidade de conferir sentido ao suicídio da pessoa próxima e de explicar o sentido e o valor de suas próprias vidas, levando em consideração a especificidade desse tipo de morte (Rocha & Lima, 2019; Ruckert, et al., 2019). Assim, um dos indicadores de risco de suicídio mais relevantes é ter tido algum tipo de relação com alguém que se matou, ou seja, ser um sobrevivente (Oliveira & Faria, 2019; Rocha & Lima, 2019). Petra tem medo e preocupação de seguir os mesmos passos da irmã, ou seja, tirar sua própria vida.

Tal preocupação manifesta-se através do desejo da mãe de que a filha mais nova more em qualquer lugar do mundo, menos Nova Iorque (onde Elena morou) e escolha qualquer profissão, menos ser atriz (a que Elena escolheu). Também há o desejo de que Petra esquecesse Elena. A própria narradora também fala da angústia de sentir que estava chegando cada vez mais perto da idade que Elena tinha quando morreu e de que tem medo do que o tempo faria com ela. Além disso, a mãe e Petra narram a mesma frase em um momento do documentário, que diz: “se ela me convence que a vida não vale à pena, eu tenho que morrer junto com ela”. Isso evidencia a necessidade que alguns sobreviventes sentem em pensar sobre o valor de suas próprias vidas a partir do episódio de suicídio de uma pessoa próxima.

Como apontado anteriormente, posvenção envolve cuidados aos sobreviventes como práticas grupais de apoio, atendimentos individuais ou ações informativas (Fukumitsu & Kovács, 2016). As reflexões sobre o trabalho da memória, a partir de Bosi (1987), nos permitem apontar que a construção do documentário pode ser entendida como uma forma de cuidado na perspectiva de pósvenção para Petra, isto é, que permite ao sobrevivente tornar mais amenos os impactos causados pelo morte por suicídio. O documentário, como obra de arte, possibilita que se produzam estranhamentos e que emerjam emoções contraditórias, e que novas relações e significados sejam construídos (Souza, Dugnani & Reis, 2018). Neste sentido, podemos traçar um paralelo com uso de recursos não terapêuticos, mas que podem ser benéficos para a reconstrução da vida dos sobreviventes (Dutra et al., 2018)

 

Considerações finais

              Este artigo elegeu um documentário para análise de cenas que pudessem revelar aspectos familiares na experiência de comportamento suicida de uma jovem, a forma como essa experiência pode ser percebida pela irmã-caçula e, a partir disso, refletir sobre a posvenção aos enlutados. Tantos anos após o suicídio da irmã mais velha, a caçula, então cineasta, propõe-se a construir por meio de memórias, registros fotográficos, diários e gravações os passos que antecederam a morte da irmã, e de que modo essa perda foi vivenciada por ela.

O documentário se encontra com a literatura especializada ao destacar que as pistas sobre o comportamento de Elena só foram percebidas após sua morte e permitir refletir sobre a importância de cuidados na etapa de posvenção.

 

Referências

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