Revista de Psicologia, Fortaleza, v.14, e023018. jan./dez. 2023
DOI: 10.36517/revpsiufc.14.2023.18
RECEBIDO EM: 17/04/2023
PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 05/06/2023
VERSÃO FINAL: 06/06/2023
APROVADO EM: 17/06/2023
Diagnóstico, morte biológica e/ou social como horizonte em pessoas que vivem com HIV/AIDS
Diagnosis and biological and/or social death as a horizon in people living with HIV/AIDS
Talita Miranda Pitanga Barbosa Cardoso
Farmacêutica, Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado da Bahia, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9794-251X. Email: talipitanga2@gmail.com.
Ana Beatriz Barros Ferreira da Silva
Enfermeira, Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado da Bahia, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3001-6156. Email: anabeatrizbarros22@gmail.com.
Márcia Cristina Graça Marinho
Psicóloga, Doutora em Saúde Pública, Professora da Universidade do Estado da Bahia. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7965-9099. Email: anabeatrizbarros22@gmail.com.
Marcio Costa de Souza
Fisioterapeuta, Doutor em Medicina e Saúde Humana. Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana. ORCID: Email: mcsouzafisio@gmail. https://orcid.org/0000-0002-4922-6786. Endereço: Rua Doutor Macario cerqueira, 879, Muchila. CEP: 44005-000, Feira de Santana-Bahia.
Resumo
Objetivo: analisar as percepções de morte biológica e social relatadas por pessoas que vivem com HIV/AIDS após o diagnóstico desta condição de saúde. Metodologia: A pesquisa em questão tem natureza qualitativa e exploratória a partir da cartografia, realizada em um centro de referência entre julho e outubro de 2022, e utilizou a ferramenta do usuário-guia, entrevista e o diário de campo para a produção dos dados. A interpretação ocorreu a partir da produção de um analisador. Resultados: a temática do morrer faz parte do cotidiano das vidas dessas pessoas, para alguns indivíduos o diagnóstico de HIV não muda sua perspectiva de futuro, mas para outros há uma importante interdição de projetos de vida, gerando uma reconfiguração identitária. Diante desses fatores, o enfrentamento da nova realidade produz processos de subjetivação potentes. Assim, é possível perceber o quanto a sociabilidade, apoio mútuo e amparo estatal permitem a reescrita da vida. Considerações finais: o medo do diagnóstico decorrente do estigma, preconceito e discriminação ainda é presente, e afasta do processo de cuidar. No entanto, a partir de um cenário de reorganização identitária podem produzir potência na vida e na construção de novos modos existenciais.
HIV; morte, identificação social.
Abstract
Aim: to analyze the perceptions of biological and social death reported by people living with HIV/AIDS after the diagnosis of this health condition. Methodology: The research in question has a qualitative and exploratory nature based on cartography, carried out in a reference center between July and October 2022, and used the user-guide tool, interview and field diary for data production. The interpretation occurred from the production of an analyzer. Results: the theme of dying is part of the daily lives of these people, for some individuals the diagnosis of HIV does not change their perspective of the future, but for others there is an important interdiction of life projects, generating an identity reconfiguration. Faced with these factors, facing the new reality produces powerful subjectivation processes. Thus, it is possible to see how sociability, mutual support and state support allow the rewriting of life. Final Considerations the fear of the diagnosis resulting from stigma, prejudice and discrimination is still present, and keeps them away from the care process. However, from a scenario of identity reorganization, they can produce power in life and in the construction of new existential modes.
Keywords: HIV, Death, Social Identification
Introdução
O vírus da imunodeficiência humana (HIV) foi descoberto em 1981, cujo feito se apresenta para humanidade como algo extraordinário no que tange a possibilidade de conhecimento do agente etiológico e posteriormente os mecanismos patológicos e possibilidades de controle de uma doença até então desconhecida que se apresentava como preditora do Sarcoma de Kaposi, pneumocistose e comprometimento no sistema imune principalmente de homossexuais do sexo masculino. O início da epidemia acometeu principalmente essa população, juntamente com os haitianos, hemofílicos, heroinômanos (usuários de heroína injetável) e hookers (profissionais do sexo em inglês), sendo denominada doença dos 5 Hs. A maior vulnerabilização decorreu-se de uma necropolítica homofóbica e moralista que cerceou investimentos em termos de pesquisa e intervenções para suprimir os danos causados pelo HIV nessas populações já historicamente vulneráveis, contribuindo para a estigmatização e preconceito até hoje vivenciados por esses grupos populacionais (Parker, 2013; Jans, 2020).
A maior suscetibilidade em homens que fazem sexo com homens guarda justificativa principalmente na fisiologia, visto que em relações anais o ânus sofre mais soluções de descontinuidade tecidual quando comparado com relações vaginais (Rachid & Schechter, 2017).
Portanto, a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) configura fenômeno universal, dinâmico e instável, cuja forma de ocorrência nas diferentes regiões do mundo depende, entre outros determinantes, do modo de existência em que a população individual e coletiva se constitui (Sampath et al., 2021; Jans, 2020).
Assim sendo, o Programa conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (2021) esta enfermidade se configura como uma Pandemia, no qual mais de 36,3 milhões de pessoas foram a óbito por doenças relacionadas a esta condição de saúde desde o princípio da epidemia. Em 2020 foram 680 mil mortes, e em todo o mundo 1,5 milhões de novas infecções. Além disso, estima-se que, cerca de 6,1 milhões de pessoas vivem sem o diagnóstico da infecção.
Diante desse contexto, esta condição de saúde se produz como um problema de saúde pública relevante, e tem se caracterizado com fatores que são atrelados às afecções edificadas durante todo processo de adoecimento, desde o diagnóstico ao tratamento, as quais são preponderantes para a concepção dos processos de subjetivação desencadeados pela enfermidade. Desta forma, a singularidade que permeia os modos de existência das pessoas que vivem com HIV/AIDS (PVHA), e que acessam os serviços de saúde, precisa ser considerada para que a produção do cuidado se desenvolva integralmente (Franco & Hubner, 2019).
Destarte, para além dos processos comuns que envolvem a atenção à saúde, a produção do cuidado perpassa pela construção de vínculos entre os seres viventes envolvidos os quais possuem uma importância única nesta experiência. Deste modo, o projeto terapêutico das PVHA exige o acesso a diversas tecnologias do cuidado (leve-duras e duras) para a sua resolutividade, no entanto, não há como pensar o cuidado sem garantir a potência das tecnologias leves (relacionais), que são essenciais para a continuidade do cuidado. Assim, confiança, atenção e afeto são poderosas ferramentas de cuidado associadas a outros instrumentos específicos de intervenção das diferentes profissões, saberes e campos de conhecimento. Ou seja, o estímulo à utilização das tecnologias leves, em consonância com as demais, podem promover processos dialógicos potentes com aqueles a quem se pretende cuidar e permite uma maior experimentação de saúde, e em consequência a produção de felicidade (Franco & Hubner, 2019; Roosli, Palma & Ortolan, 2020).
Como consequência, a ruptura biográfica tem sido uma perspectiva adotada para os estudos sociológicos dos processos de adoecimento no caso de diagnóstico de condições que desenvolvem a cronicidade, característica a qual a infecção por HIV se apresenta. Originalmente Bury (1982) formulou essa concepção baseada no diagnóstico de mulheres de classe média com artrite reumatoide que tiveram esse diagnóstico em idade inesperada, afetando seu modo de interpretar, de ser e agir diante das dificuldades conduzindo a uma reconstrução narrativa biográfica (Castellanos, Barros & Coelho, 2018).
Portanto, o diagnóstico de HIV representa muito mais do que uma doença que se não tratada pode ser fatal, mas, representa também um cenário de certeza de estigmatização e reestruturação da identidade. Esse olhar do outro que determina o padrão de normalidade e enquadra os sujeitos em desviantes desse enquadramento e gera a culpa, o medo, a vergonha, a raiva, a confusão e a desorganização identitária, além do que se denomina morte social ou civil. Esta se trata do sentimento de abreviação da vida e de diminuição do espaço de vida e exercício da cidadania. Além do medo da morte, têm medo de viver. De viver as consequências sociais da AIDS (Yan et al., 2019; Adam et al., 2021).
Diante do exposto, este estudo tem como objetivo analisar as percepções de morte biológica e social relatadas por PVHA após o diagnóstico desta condição de saúde.
Metodologia
Trata-se de um estudo qualitativo exploratório que utilizou a entrevista semiestruturada como meio de produção dos dados para análise do que se relata. Como filosofia, buscamos uma aproximação à Cartografia, no plano do território existencial, no sentido de entender a vida e seus processos de construção durante todo o percurso da investigação. Para tanto, a construção desta pesquisa reconhece o encontro entre o pesquisador e os participantes como potencializadores, e, por conseguinte, uma ferramenta de produção de afetos e afecções que devem ser imersos e percebidos na pesquisa (Rolnik, 2016).
O estudo foi realizado em uma unidade de referência municipal para a atenção especializada a PVHA, pessoas com outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e Hepatites Virais em uma capital do Nordeste do Brasil. Os participantes do estudo eram acompanhados no serviço, e a seleção para a participação da pesquisa surge no cotidiano do processo de trabalho a partir de diálogos com trabalhadores que apontavam casos/pessoas que eram considerados (as) complexos (as) diante da experiência no cuidar, ou seja, os trabalhadores identificavam as demandas que exigiam uma maior atenção do que o habitual por parte da equipe, totalizando três usuários, dois se declararam ser do gênero masculino e outra do gênero feminino.
Inicialmente, como critério de inclusão, para participar da pesquisa, necessitava que as pessoas fossem acompanhadas pelo serviço médico de Infectologia, com diagnóstico de HIV, adultos de ambos os sexos, sem restrição de identidade de gênero ou orientação sexual, que apresentaram histórico de dificuldade de realizar o tratamento em algum momento, visto que os caminhos e trilhas dessa população tendem a ser mais tortuosos.
Por conseguinte, uma ferramenta denominada de usuário-guia foi utilizada como estratégia metodológica para evidenciar as experiências apresentadas na produção dos dados, o qual permite revelar de forma singular e múltipla todos os processos de subjetivação relacionados com o viver de cada entrevistado. Assim, a voz que ecoa nestes corpos poderia ser escutada e a maneira que a vinculação com o outro impacta na sua vida, o que permite analisar as potentes redes vivas criadas nos encontros. Destarte, esse modo de pensar a pesquisa permite um deslocamento do usuário da condição de objeto de estudo para sua centralidade quanto produtor do conhecimento (Moebus, Merhy & Silva, 2016).
Como a pesquisa abrange o território geográfico do bairro da Liberdade em Salvador-Bahia, espaço que tem uma potente relação de resistência e ancestralidade, e que suas ruas e vielas se conectam rizomaticamente produzindo viveres/existências; como os usuários são produtores de suas redes, as quais provocam tessituras a serem construídas no cotidiano do cuidar em saúde; e com o intuito de manter a confidencialidade dos participantes da pesquisa, foram escolhidos nomes de localidades (Curuzu, Soledade e Guaíba) para a identificação dos usuários durante os resultados.
A entrevista era uma técnica de produção de dados fundamental, e para a realização desta foi utilizado um gravador de celular Iphone X como forma de garantir a fidedignidade dos depoimentos, todavia, foi apenas utilizado com a devida autorização do participante. Para contemplação desta ferramenta utilizou um roteiro em que se divide em quatro dimensões (identificação, produção do diagnóstico, caminhos do cuidado e barreiras e acesso). Para a conexão com os territórios existenciais o diário cartográfico foi produzido com o intuito de revelar o plano das afecções durante a entrevista e em demais encontros que ocorriam no processo de trabalho.
Após a realização das entrevistas, estas foram transcritas de forma fidedigna para posterior análise, assim como o diário cartográfico, e em seguida era realizada uma leitura flutuante e exaustiva de toda a produção para que pudesse estabelecer um ou mais analisadores. A partir dessa prática, emergiu o analisador: o diagnóstico e a morte biológica e/ou social que guiou a sistematização dos achados.
Para Baremblitt (2002) um analisador é uma ferramenta que funciona para dar voz e visibilidade ao objeto de estudo e inclui os relatos e escritos sobre as redes formais e redes vivas, bem como os modos como se dão as cenas, rituais e o cuidado em si. Por fim, no momento da análise final, se articulou os dados empíricos (entrevista e diário de campo) com o que se tem de produzido atualmente trabalhos científicos, conectando as, falas e afetações produzidas promovendo uma inter-relação entre os achados e o que tem de produção sobre a temática (Souza, 2019).
Para iniciar a pesquisa, era exposto o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado da Bahia sob número do parecer 5.991.828 e CAAE 54898221.4.0000.0057, o qual respeitou as normas brasileiras de pesquisa com seres humanos, previstas na resolução 466/2012 e as normas aplicáveis à pesquisa em Ciências Humanas e Sociais previstas na resolução 510/2016.
Resultados e Discussão
Durante as entrevistas a temática sobre o morrer emergiu em todas as falas dos participantes, o qual demonstra o quão esse tema faz parte do cotidiano das vidas das pessoas com HIV/AIDS. Importante destacar que, os problemas de saúde de um modo geral exigem uma reorganização de como a pessoa lida com sua rotina, rede social, laboral e familiar além de mudanças no autocuidado o que pode gerar processos de sofrimento psíquico, principalmente em condições de saúde que por si só se apresentam com prognósticos desfavoráveis (Mojola, Angotti, Schatz & Houle, 2021).
Esse cenário pode ser revelado através do excerto da fala dos três participantes da pesquisa,
[...] infelizmente a sorologia é essa. Então a primeira sensação quando eu cheguei em casa era, [...] agora vou morrer, acabou a possibilidade de sonhos, acabou a possibilidade de carreiras grandes, subir em grandes palcos, essa é a primeira sensação que você tem (Guaíba).
É, eu achava que eu não tinha mais vida, que eu era uma leprosa no meio da terra, e que onde eu chegasse todo mundo ia me olhar e ia dizer: meu Deus, ela tem HIV, e eu fiquei por um tempo assim. Aí quando eu pensava, eu chorava sozinha na rua (Soledade).
Quando recebi o diagnóstico olhei rapidamente para os olhos dele [profissional de saúde] e apaguei, aí não lembro de mais nada, ali senti a minha vida sendo ceifada. (Pero Vaz).
As falas dos entrevistados descrevem a experiência no momento do diagnóstico desta enfermidade, a quão esta condição de saúde impacta subjetivamente naquele quando se descobre infectado. Há uma visão de fim da vida, uma desconexão com o mundo diante de uma doença que carrega uma verdade pré-estabelecida de interrupção da vida. Durante a prática profissional, muitas vezes neste momento, ou na primeira consulta, o chão cai também para quem cuida.
Esta produção subjetiva influenciada pela experiência desta enfermidade, proporciona um olhar para si e dos outros que convivem socialmente, desta forma há uma interferência direta com a percepção da vida, e subjetivamente se constrói uma relação com a morte e o medo que ultrapassa o adoecimento (Gomes et al., 2021).
A partir da fala de Guaíba, é possível perceber quais são suas expectativas de vida antes da descoberta do diagnóstico. Diante de uma configuração naquele momento de potência de morte, sob a perspectiva trazida por Spinoza (2015) para caracterizar afecções que geraram paixões tristes a partir do encontro de dois corpos, retrata o quão é importante à construção de um projeto terapêutico efetivo.
Essa construção se configura como condição para o estabelecimento do vínculo, conceito-ferramenta importante para a reorganização dos processos de trabalho das equipes. O vínculo permite um reconhecimento mútuo e busca relações simétricas, permitindo o aprofundamento do processo de corresponsabilização pela saúde, além de ter por si só um potencial terapêutico (Seixas et al., 2019).
Além disso, permite um deslocamento de concepções do trabalhador que deseja tratar de um ser obediente que aceita viver conforme sua vontade e os conceitos moralistas do que é certo para viver, substituindo o desejo, por exemplo, de adesão do usuário ao tratamento à adesão da equipe ao projeto do outro. Ou seja, o desejo emanado não se trata primariamente da adesão ao tratamento e sim instrumentalizar a possibilidade de uma grande carreira, subir em grandes palcos (Seixas et al., 2019; Bisallah et al., 2018).
Para alguns seres viventes, o diagnóstico de HIV não muda sua perspectiva de vida, seus desejos e expectativas quanto ao futuro, mas para outros há uma importante interdição de projetos de vida e fechar portas de antemão de sonhos e planos, gerando uma reconfiguração identitária. Principalmente quando são pessoas que já vivem situações econômicas e sociais desfavoráveis somando-se assim instabilidades em diversos âmbitos de sua vida (Castellanos et al., 2018; Oliveira & Junqueira, 2020).
Aí ela falou: o senhor pode consultar o seu resultado a partir das 16h na internet ou amanhã vem aqui pra pegar às 12h. Só que até então, eu não tinha mais dinheiro pra poder me locomover pra lá, então não conseguia nem andar direito, estava muito fraco (Pero Vaz).
Ou seja, a condição de viver com HIV traz uma posição de vulnerabilidade que pode se somar a outras vulnerabilidades já existentes como a econômica e social, solicitando do Estado e sociedade uma atenção adicional a essas pessoas. É muito comum no cotidiano da atenção de PVHA escutar situações que podem levar ao abandono de tratamento no que se refere à impossibilidade de manter-se economicamente.
Importante destacar que o conceito de vulnerabilidade tem origem no campo de direitos humanos e se ampliou para o campo da saúde, trazendo à tona a construção de respostas para o enfrentamento da epidemia da AIDS. É perceptível a conexão potente entre Vulnerabilidade e AIDS, na qual a pobreza e outros marcadores de exclusão social têm um papel na tessitura da inter-relação da vulnerabilidade à doença. Portanto, viver com HIV/AIDS reforça e produz novos aspectos que alicerçam as vulnerabilidades decorrentes do estigma associado (Burke et al., 2019; Colocci et al., 2021; Damião et al., 2022).
Diante desses fatores, o enfrentamento da nova realidade gera processos de subjetivação e significação profundos que podem levar pessoas a pensarem na interrupção da própria vida e revela uma ideação suicida (Agostini, Maksud & Franco, 2017; Oliveira & Junqueira, 2020).
[…] e nessa situação altos e baixos da minha vida também, eu comecei a deixar de me alimentar ao descobrir que na época que eu namorava, ele estava me traindo, foi um baque muito forte. Eu sempre ajudei na questão de faculdade, trabalho dele acadêmico e ele não reconheceu o que fazia por ele, [...] Então, foram afetando muito minha vida e aí comecei a deixar de querer viver, não tinha mais motivação de querer viver […], fui me entregando mais ainda à depressão porque o refúgio da depressão era cantar e chegou um momento que eu já não queria mais viver, passei dias e dias sem me alimentar (Pero Vaz).
Os caminhos adotados buscando desviar-se do reconhecimento individual e social, muitas vezes tortuosos, podem envolver o medo do diagnóstico e o encarceramento como vislumbre da morte. Alguns indivíduos, mesmo se sentindo em uma situação de exposição ao HIV/AIDS, protelam buscar o serviço de saúde para realização da testagem. Outros buscam apenas quando já estão com sintomas que indicam mudança em seu estado de saúde, e outros quando tem relações sexuais com pessoa sabidamente vivendo com HIV ou por desconfiança do parceiro estar infectado (Conserve et al., 2022).
Segundo Tan et al. (2021), as principais barreiras existentes para a busca pelo diagnóstico além do medo, envolve a questão da confidencialidade e anonimato da enfermidade em caso de positividade, por sentirem receio da sociedade de modo geral. Além disso, o acesso à testagem ainda é um problema de ordem mundial.
Essas questões fazem com que ao suspeitar da infecção, a pessoa evite a busca do diagnóstico, conforme Guaíba relata a seguir,
Então, ao terminar o primeiro ano de aluno especial do mestrado, eu ingressei como efetivo no mestrado e segurei um pouco o lugar de descoberta. Porque apesar de ter certa desconfiança e ter feito uma rápida associação entre meu ex-namorado e a infecção pulmonar que eu tive, eu não quis descobrir naquele momento. Não era legal que descobrisse no início do mestrado, não tinha estrutura emocional para descobrir (Guaíba).
Diante do diagnóstico, a reconfiguração identitária perpassa tanto pela perspectiva do indivíduo que vive com HIV quanto pela perspectiva da sua família, amigos e rede de convivência social. Um dos desafios, portanto, da nova realidade envolve a revelação diagnóstica (Agostini et al., 2017; Mojola et al., 2021; Belay, Yehualashet, Ewunetie & Atalell, 2022).
Outros desafios na nova condição de saúde estão presentes, como a tomada de medicamentos diariamente e as visitas regulares ao serviço de saúde, no entanto quando não consegue compartilhar o diagnóstico com familiares, o problema de saúde pode tornar-se um fardo ainda maior (Oliveira & Junqueira, 2020).
Este mesmo entrevistado e Soledade acrescentam ainda sobre a fabricação do seu próprio luto após a descoberta,
Eu lembro que quando eu volto para casa depois da descoberta na festa da copa do mundo no Brasil, foi o tempo de viver o luto. O luto da descoberta, eu fui para casa quando cheguei eu olhava, eu chorava olhando as fotos da minha mãe grávida de mim, eu olhava para minha mãe, eu olhava para os meus irmãos. Como era que eu iria dizer isso pouco a pouco? (Guaíba).
Eu estava gestante do meu quinto menino, e quando eu conheci o meu esposo a gente tinha dois meses de conhecimento, foi quando logo em seguida eu engravidei, e aí no nosso primeiro pré-natal do nosso filho Daniel, foi quando eu descobri o HIV em mim [...] ele chegou na sala, logo em seguida a gente tentou resolver uma coisa quando eu descobrir a notícia, porque a enfermeira me chamou na sala, e quando passou a me contar a situação eu estava sem ele porque ele foi fazer um negócio pra voltar, e quando ele abriu a porta que ele entrou e olhou pra mim, e ele fez: o que foi que aconteceu? Eu estava em transe, sem chão! Porque a gente só tinha três meses de namoro, então eu fiquei totalmente, [...] e agora, como é que vai ser? E a moça olhou pra mim e disse: ah, a senhora não pode mentir. E eu digo: a gente nunca viveu de mentira. E aí quando contou pra ele, disse: não, ela é minha esposa e a gente vai vencer, eu amo você, minha filha, e a gente vai para frente (Soledade).
Portanto, tal como um ser social é possível perceber o quanto o reconhecimento do ser que vive com HIV perpassa pela sua relação consigo próprio e com a sociedade. O quanto à sociabilidade, apoio mútuo e amparo estatal permitem a reescrita da vida a partir das sensações de não controle sobre a ordem, sentido e coerência da vida, reconquistando modos de produção de vidas existenciais potentes (Melo, Cortez & Santos, 2020).
Experiência com doenças crônicas que culturalmente se alicerçaram com o prognóstico de morte revela produções subjetivas intensas em cada ser. É fundamental que se reconheça esta realidade e os espaços de cuidado utilizem do encontro com essas pessoas para ressignificação do viver com HIV/AIDS, na produção de entrelaçamentos reflexivos e sensíveis sobre esta nova vivência (Carvalho et al, 2019).
De acordo com Otani, Barros, Marin e Pinto (2018), apreender a realidade com sensibilidade para identificar os sentimentos e as vivências do outro, é um requisito essencial no processo do cuidar e tem como consequência a solidariedade. Para isso, é importante o desenvolvimento da empatia, para que o profissional possa compreender a condição psíquica e social do vivente que necessita de cuidado a partir de um olhar para o cuidado de forma subjetiva, integral e singular (Souza et al., 2023; Santos, Santos, Merces, Souza & Souza, 2021).
Ressaltamos como a percepção sobre o humano, o mundo e as coisas ocorre a partir de encontros e pode contribuir para a ressignificação de vivências de sofrimento e promoção da saúde de todas as pessoas envolvidas na produção do cuidado. Desse modo, na intersubjetividade construída no encontro entre sujeitos, nos entrelaçamentos do reflexivo e do sensível, profissionais, usuários e demais cuidadores tornam-se coparticipantes de um cuidado capaz de abordar múltiplos aspectos de influências individuais e coletivas, de ressignificar vivências e desenvolver habilidades para todos os envolvidos (Han et al., 2019; Souza et al., 2021; Baum et al., 2022).
Considerações finais
Diante do exposto, observa-se o quanto o medo do diagnóstico decorrente do estigma, preconceito e discriminação ainda presente na sociedade afasta o indivíduo do seu cuidar. A sensação iminente da morte biológica decorrente de um diagnóstico tardio ou da morte social decorrente das rotulações arraigadas em determinadas concepções estruturais limita o indivíduo do seu pleno exercício da vida e cidadania. No entanto, a partir de um cenário de reorganização identitária, rede de apoio, aceitação diagnóstica do indivíduo e das pessoas que convivem com ele produzem potência de vida e novos modos existenciais.
Importante que novos estudos dessa natureza possam ser realizados nos mais diversos espaços de cuidar, formal o não formal, mas que possibilite tornar dizível todos os afetos e afecções experimentadas por esta população. Mesmo sendo uma pesquisa qualitativa, e reconhecendo que não é necessária uma amostragem robusta, entendemos que esta pesquisa possui por sua natureza a limitação da não
generalização dos dados.
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