Revista de Psicologia, Fortaleza, v.14, e023028. jan./dez. 2023

DOI: 10.36517/revpsiufc.14.2023.28

 

 

 

RECEBIDO EM: 30/06/2023

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 20/09/2023

VERSÃO FINAL: 01/10/2023

APROVADO EM: 26/10/2023

 

Retratos da medicalização nos processos de cuidado de usuários e usuárias de um CAPSadII

Portraits of medicationalization in the care processes of users of CAPSadII

 

 

Camilla de Melo Silva

Universidade Estadual da Paraíba – Brasil; Mestra em Psicologia da Saúde; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8749-3295; Email: camillameloslv@gmail.com. Endereço: Rua Baraúnas, 351. Universitário. Campina Grande/Pb. 58.429-500

 

Thelma Maria Grisi Velôso

Universidade Estadual da Paraíba – Brasil; Doutora em Sociologia; ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0447-7490; E-mail: tgrisiveloso@gmail.com

 

 

Resumo

A Luta Antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica garantiram importantes avanços na assistência em saúde mental no Brasil. Contudo, diante dos retrocessos políticos aos quais o país foi exposto nos últimos anos, vemo-nos diante de práticas que coadunam com a lógica manicomial e medicalizante. Diante de tal realidade, buscamos compreender como a medicalização, enquanto fenômeno social complexo, está inscrita na vida das pessoas usuárias de um CAPSad II. Neste artigo, assumimos o objetivo de analisar o lugar que a medicamentalização, parte constituinte da medicalização, ocupa nos processos de cuidado dos usuários e usuárias desse serviço. Definimos enquanto campo-tema um CAPSad II localizado em um município do interior da Paraíba. Realizamos a observação participante e, posteriormente, a análise de discurso dos diários de campo produzidos durante a pesquisa. Levando em conta os processos de cuidado dos usuários e usuárias do CAPSad II, identificamos o lugar fundamental que a medicamentalização ocupa. A prescrição e o consumo de medicamentos psicofármacos possuem um lugar de destaque no serviço, tendo em vista a demanda pela “estabilidade” e a garantia da abstinência, contrariando a proposta da Redução de Danos enquanto estratégia política de cuidado.

Palavras-chave: Medicalização; medicamentalização; redução de danos; diário de campo; práticas discursivas.

 

Abstract

The Anti-Manicomial Fight and the Psychiatric Reform assured relevant advances in mental health assistance in Brazil. However, in the face of the political reverses that the country has been exposed to in the late years, we see ourselves before practices that conform to the manicomial and medicalizing logic. Before such reality, we seek to comprehend how medicalization, as a complex social phenomenon, is inscribed in the life of the people who attend a Center for Psychosocial Attention - alcohol and drugs II (henceforth CAPSad II due to its abbreviation in Portuguese). In this article, we aim to analyze the place that medicamentalization, a constituent part of the medicalization process, holds in the caring process towards the users of this service. We defined as a field-theme a CAPSad II located in a town in the hinterland of Paraíba. We carried out the participant observation and, later, the discourse analysis of the field journals produced during the research. Considering the care processes of CAPSad II users, we identified the fundamental place that medication occupies. The prescription and consumption of psychotropic drugs have a prominent place in the service, given the demand for “stability” and the guarantee of abstinence, contrary to the proposal of Harm Reduction as a political care strategy.

Keywords: Medicalization; medicamentalization; harm reduction; field journal; discursive practices.

 

 

 

 

Não é de hoje que o conceito de medicalização tem sido colocado em pauta. Foi a partir da década de 60 que o debate passou a ganhar corpo no campo da psiquiatria, a partir de Freidson (1970), Szasz (1970), Zola (1972), Illich (1975) e, posteriormente, de autoras e autores como Conrad (2005), Rose (2007) e Clarke, Shim, Mamo, Fosket e Fishman (2003) – ganhando espaço também nas discussões e pesquisas da sociologia da saúde e da própria antropologia (Minakawa, 2016).

A medicalização da vida, conforme discutem Freitas e Amarante (2015), tem se apresentado enquanto um fenômeno social do qual participam diversos atores. A racionalidade que sustenta a medicalização transforma formas de pensar, sentir e agir em meros fenômenos com causalidade biológica, e reduz as experiências humanas a questões diagnosticáveis e medicáveis ou não. Apesar de ser amplamente discutido, o conceito de medicalização nem sempre ultrapassa a crítica ao saber médico (Camargo Jr., 2013). Por isso, torna-se importante destacar que a medicalização da vida não deve ser compreendida apenas enquanto uma crítica a um saber localizado, assim como não se reduz à prescrição e consumo desenfreado de medicamentos.

A medicamentalização, por sua vez, compõe o complexo emaranhado da medicalização, sendo o medicamento um verdadeiro agente no tecido social. É um conceito que problematiza a posição central (e centralizadora) do uso de medicamentos nos projetos terapêuticos e nas práticas de cuidado em saúde (Petuco, 2016), podendo-se afirmar que “a forma como os medicamentos são apreendidos pela cultura ultrapassa a sua materialidade química. Considerados centrais nos processos de cuidado em saúde, eles circulam como coisas impregnadas de significados, facilitando processos simbólicos e sociais” (Santos, 2022, p. 25).

O tratamento baseado em psicofármacos ainda é o mais utilizado nos espaços de substituição aos manicômios e espaços asilares, colocando em segundo plano outras formas de pensar o cuidado das (e com as) pessoas, pautadas nas relações, nos afetos e na comunicação, sendo estas práticas eficazes no diálogo com os sujeitos e tecnologias leves de cuidado (Merhy & Feuerwerker, 2009). A medicamentalização, parte constituinte da medicalização, se apresenta enquanto estratégia de contenção que em muito reforça as práticas hospitalocêntricas.

Tal realidade não é diferente para as pessoas com uso problemático de álcool e outras drogas que integram as mesmas políticas públicas e sociais e passam pelas mesmas intervenções que foram o foco da Reforma Psiquiátrica brasileira (RPb) (Brasil, 2001). Com a aprovação da Lei 10.216/2001 – que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas “portadoras de transtornos mentais” e redireciona o modelo assistencial em saúde mental – e a publicação da portaria nº 3088/2011 – que instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no âmbito do SUS – foram implantados os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de várias modalidades (CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS i e CAPSad) enquanto dispositivos fundamentais da política de saúde mental (Brasil, 2003).

No que diz respeito aos CAPSad, estes devem atuar no acolhimento de pessoas com problemas decorrentes do uso de drogas, compondo, no campo da saúde mental, a rede intersetorial que articula saúde, justiça, assistência social, educação, habitação e segurança (Ferreira, Avarca, Amorim & Vincentin, 2021).

Eles foram articulados com o objetivo de oferecer atendimento diário para pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas, construindo planos de acolhimento terapêuticos singulares e pautados na Redução de Danos (RD) enquanto estratégia de cuidado (Brasil, 2004). A este respeito, cabe-nos ressaltar que a RD assume enquanto objetivo a redução dos danos associados ao uso de drogas – não sendo, no entanto, danos somente à saúde, mas também sociais ou econômicos como crimes contra o patrimônio, corrupção, encarceramento em massa, racismo, violência, estigmatização, marginalização e/ou assédio policial (Rigoni, Breeksema & Woods, 2019).

Ainda que, historicamente, tenham sido propostas estratégias de cuidado que venham a romper com o reducionismo medicalizante e organicista que é sustentado pelo discurso da “dependência química”, no que concerne as políticas públicas voltadas para o cuidado de pessoas com uso problemático de álcool e outras drogas, tem-se enquanto realidade a marcante presença da abstinência como estratégia de “tratamento” e a consequente presença massiva dos processos de medicalização e medicamentalização da vida de pessoas usuárias dos CAPSad.

Na contramão do esperado, nos últimos setes anos foram editados documentos oficiais (portarias, resoluções, decretos e editais) que vieram a constituir o que a nota técnica 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS veio a chamar de “Nova Política Nacional de Saúde Mental” (Brasil, 2019a). A “nova” política é caracterizada pelo incentivo escancarado às internações psiquiátricas e as políticas que pautam as questões atreladas ao uso problemático de álcool e outras drogas passaram a ser chamadas Política Nacional sobre Drogas.

Dentre outras questões que vêm a repercutir diretamente no trabalho desenvolvido nos CAPSad, o Decreto nº 9.761, de 11 de abril de 2019 (Brasil, 2019b) põe fim à Redução de Danos (RD) enquanto dispositivo político de cuidado, colocando a abstinência enquanto objetivo norteador das ações e programas voltados para as pessoas usuárias dos CAPSad, reafirmando a prioridade das comunidades terapêuticas e incentivando o retorno à lógica manicomial.

Situando a presente pesquisa, torna-se pertinente sinalizar que no decorrer da caminhada acadêmica de uma das pesquisadoras deste trabalho, houve uma intensa aproximação e imersão na pauta dessas políticas de saúde mental. Foi neste contexto que, diante de experiências previamente vivenciadas em atividades de pesquisa e extensão realizadas em um CAPSad, foram identificadas questões atreladas aos processos de medicalização e medicamentalização no referido serviço, e surgiram as inquietações que nos levaram ao diálogo com as pessoas que transitam e ocupam, na condição de usuárias, tal dispositivo da saúde mental. Assim sendo, definimos enquanto campo-tema de pesquisa um CAPSad II, localizado em um município do interior da Paraíba.

No referido município, incluindo os seus distritos, a RAPS é composta por 08 CAPS (02 CAPS I, 02 CAPSi, 01 CAPS II, 01 CAPS III, 01 CAPSad II e 01 CAPSad III - infanto-juvenil), 06 Residências Terapêuticas, um Centro de Convivência Cultural, um Chalé de Artesanatos da Saúde Mental, além de leitos especializados em hospital geral municipal e um Ambulatório de Saúde Mental (Silva, Aleixo, Silva, Duarte & Moraes, 2020).

Em pensando as características sanitárias (territoriais e comunitárias), no decorrer da pesquisa identificamos entraves relacionados ao acesso e à permanência dos usuários nos serviços de saúde mental – tendo em vista a vulnerabilidade socioeconômica de parte das pessoas usuárias, assim como a frágil articulação entre os serviços. Por estar situado em um local de difícil acesso (distante do centro da cidade e localizado em um bairro nobre), o CAPSad II, geográfica e afetivamente, está distanciado dos territórios de grande parte de seu público.

Em pensando a experiência das pessoas usuárias no contexto do CAPSad II, na pesquisa realizada procuramos compreender como a medicalização, enquanto fenômeno social complexo, está inscrita na vida dessas pessoas; como também entender o lugar que a medicamentalização ocupa nos processos de cuidado dos usuários e usuárias desse serviço. Assim, o presente artigo surge enquanto possibilidade de apresentação de um recorte dessa pesquisa mais ampla, e objetiva apresentar e analisar o lugar da medicamentalização nos processos de cuidado dos usuários e usuárias.

Para tanto, apresentaremos “retratos” que dizem da pluralidade desses lugares, tendo em vista que a relação das pessoas usuárias com a medicamentalização se dá de maneira singular.

Metodologia

Local da pesquisa – o “campo-tema” – e as pessoas participantes

A perspectiva de campo-tema, proposta por Peter Spink (2003), busca negociar com o que há de mais denso do campo e torna a pessoa que pesquisa mais presente em toda a processualidade. Não é apenas sobre o centro do lugar, mas também sua periferia, visto que “uma posição periférica pode ser periférica, mas continua sendo uma posição” (P. Spink, 2003, p. 28). Desse modo, um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas, localizado em um município do interior da Paraíba, tornou-se campo-tema da pesquisa aqui apresentada.

A definição das pessoas participantes se deu, após adentrarmos no serviço, por acessibilidade ou conveniência que, conforme Gil (2008), diz da definição de participantes a partir do acesso aos mesmos e às mesmas – seja por estarem no serviço, no momento da definição, seja por desejarem participar. A pesquisa foi realizada com a participação e colaboração de todas as pessoas – usuários, usuárias, familiares e/ou acompanhantes e profissionais – que se fizeram presentes nos momentos em que estivemos participando das atividades do CAPSad; assim como aquelas com as quais nos encontramos nos intervalos das atividades – fosse na varanda, no sofá da sala principal, na cozinha, na calçada do CAPSad II e/ou durante uma carona dada – e nas salas de espera que antecipavam as consultas médicas. Destacamos, ainda, que não fizemos uso de critérios de exclusão.

Os instrumentos e seus usos

A aproximação com o CAPSad II se deu a partir da Observação Participante (O.P) enquanto dispositivo de pesquisa – uma potente forma de escutarmos o que há de espontâneo na fala das pessoas (M. J. Spink, 2013). Desse modo, emerge enquanto possibilidade de (co) construção da pessoa pesquisadora com aquelas que estiveram compartilhando com ela as cenas cotidianas do campo-tema (Cardona, Cordeiro & Brasilino, 2014).

Abrindo mão das entrevistas enquanto instrumento de “coleta de dados”, as conversas do cotidiano, enquanto material espontâneo, passaram a ser percebidas enquanto ricas fontes de informação, ampliando o nosso campo de pesquisa (Spink, 2010). Como é (bem) colocado por Batista, Bernardes e Menegon (2014, p. 98), “a ciência foge da conversa”, ou seja, as conversas são entendidas pelos modelos racionalistas como sendo algo que se distancia da suposta objetividade almejada pela ciência hegemônica, “retirando de cena o prosear como possibilidade de método de investigação científica.”

Ao conversarem, as pessoas produzem sentidos e se posicionam nas relações que estabelecem no cotidiano (Menegon, 2003). Baseada na abordagem de produção de sentidos, a autora afirma que as conversas são práticas discursivas compreendidas como linguagens em ação. Assim, as conversas não foram desconsideradas e, mais do que isso, foram entendidas enquanto instrumentos e “protagonistas relevantes e ativas na produção de conhecimento” (Batista et al., 2016, p. 98) – sendo, pois, registradas nos diários de campo.

O Diário de Campo atuou como sendo integrante de todo o processo de imersão no campo-tema. A parceria estabelecida com o diário desfez o binarismo sujeito-objeto, fazendo dele a nossa ferramenta mais importante e um ator/atuante que potencializou a pesquisa. Corroborando o que afirmam Medrado, M. J. Spink e Méllo (2014), com o diário a pesquisa ganhou mais fluidez, a partir do momento em que a pesquisadora pôde, em alguma medida, dialogar com o mesmo.

Não falamos, portanto, “de uma mera informação, mas da produção de intensidades, materializadas em conceitos mesmo que sejam registros de imagens, sons, ou meras observações” (Medrado, et al., 2014, p. 279). No diário de campo foi inscrita toda a intensidade das impressões que emergiram a cada encontro. Houve um movimento de idas e vindas para as anotações e a contextualização de cada situação registrada. Nos momentos nos quais foi impossível anotar, foi feita a escolha de, ao final do encontro, serem gravados áudios no smartphone pela pesquisadora. Tais áudios foram utilizados também na tessitura dos diários.

A análise dos diários de campo

Inicialmente, foram identificados os contextos (local e integrantes) de cada uma das cenas e/ou conversas narradas nos diários. De acordo com Menegon (2003), o contexto se apresenta como sendo imprescindível quando trabalhamos com situações de interação face a face. Após a identificação dos contextos, optamos por fazer uso dos mapas dialógicos enquanto ferramenta de orientação da análise. O mapa dialógico “nos possibilita dar visibilidade à interanimação dialógica, aos repertórios interpretativos, a rupturas, ao processo de produção, a disputas e negociações de sentidos, a relações de saber-poder e a jogos de posicionamento” (Nascimento, Tavanti & Pereira, 2014, p. 247). Para a construção dos mapas, realizamos a Transcrição Sequencial (TS) de todos os registros que haviam sido escritos à mão e que estavam dispostos em dois cadernos de anotações e dos áudios gravados pela pesquisadora.

A TS nos auxiliou na definição das categorias a serem organizadas no mapa. Foi possível identificar quem estava falando, em que ordem cada pessoa estava falando e sobre o que estava falando (Nascimento et al., 2014). Além disso, possibilitou que entendêssemos o assunto que emergia em cada conversa, o modo como as pessoas se colocavam, os sentimentos, argumentos e repertório linguístico que ali emergiram – “portanto, risos, choro, aumento e diminuição no volume de voz, silêncio e interrupções” (Nascimento et al., 2014, p. 254).

Após a TS, realizamos a estruturação dos mapas dialógicos – quadros compostos por linhas e colunas – organizados a partir dos objetivos de nossa pesquisa. Os mapas subsidiaram a interpretação dos discursos analisados, nortearam a discussão pretendida e foram utilizados enquanto estratégia de visibilidade da dialogia (interanimação dialógica) que se deu na interação entre as pessoas que, ao conversarem e serem ouvidas, expressaram suas ideias, opinaram, argumentaram e contra argumentaram (Nascimento et al., 2014).

Aspectos éticos              

Esta pesquisa foi desenvolvida conforme a Resolução nº. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS)/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), seguindo os preceitos éticos da pesquisa com seres humanos, e submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa. A identidade das pessoas participantes foi mantida em sigilo, em todas as etapas de divulgação e veiculação dos dados, com a utilização de pseudônimos.

 

Resultados e Discussão

O lugar da medicamentalização nos processos de cuidado

Como quem narra uma história, para melhor apresentarmos os achados da pesquisa e, a partir disso, propormos um diálogo reflexivo com o estado da arte, aqui serão exibidos os “retratos” batidos durante a imersão no campo-tema. Embora metafóricos, tais retratos apresentam instantes que comunicam como o medicamento – sendo, em sua maioria, psicofármacos – se faz presente nos processos de cuidado das pessoas usuárias do serviço, assim como são apresentados os sentidos produzidos pelas pessoas que, em alguma medida, se relacionam com o mesmo.

Consideramos pertinente destacar que todas as palavras e/ou expressões colocadas entre aspas dizem respeito a falas proferidas pelas pessoas com as quais estivemos dialogando – não sendo, portanto, grifos nossos.

Retrato 1 – O Grupo de Medicação

Um dos grupos que compõem o quadro de atividades que acontecem no serviço, e que muito nos serviu de ponto de partida para pensarmos a medicamentalização, foi o “grupo de medicação” que acontece uma vez ao mês e é mediado por um dos psiquiatras do CAPSad II. Em um dos encontros do grupo, foi possível compreender um pouco de sua dinâmica:

Nem todas as pessoas participam do grupo. Segundo o profissional, só participam as pessoas que já estão “estáveis”, “seguindo o tratamento”, “sem recaída ou com um lapso”, pois o objetivo é falar sobre a experiência com a medicação, tirar dúvidas, dentre outras questões que possam surgir. (Trecho do Diário de Campo).

Ao nos aproximarmos e buscarmos entender a proposta do grupo e quem faz parte dele, entendendo-o enquanto um dispositivo da medicamentalização, tendo em vista o seu objetivo principal, identificamos que os usuários e usuárias que não atendem aos seus pré-requisitos – ou seja, aquelas pessoas que não estiverem “estáveis”, “seguindo o tratamento”, com recaída ou “com um lapso” – não compõem o grupo e têm sua relação com o medicamento mediada de maneira individual durante as consultas médicas.

Inicialmente, enxergamos o grupo de medicação enquanto potencialidade para as pessoas que dele fazem parte, uma vez que elas têm acesso a informações a respeito dos medicamentos dos quais fazem uso, assim como conseguem relatar experiências da vida cotidiana como, por exemplo, no caso de um usuário que pôde dialogar sobre o preconceito vivido por fazer uso de psicofármacos. No entanto, identificamos algumas limitações em sua proposição ao nos darmos conta da quantidade reduzida de participantes. Mais do que isto, atentamos para um processo de exclusão que, contraditoriamente, estava sendo vivido dentro do próprio serviço de saúde mental pela maioria dos usuários, uma vez que estes não atendiam aos pré-requisitos definidos a priori, ou seja, não estavam em abstinência e/ou “estáveis”.

Certo dia, durante a assembleia de usuários, um dos participantes – que não fazia parte do grupo de medicação – aproveitou a oportunidade para colocar algumas questões a respeito do seu tratamento medicamentoso.

Já se encaminhando para o fim da assembleia de usuários, um usuário fala sobre o fato de não estar mais precisando tomar medicação. Afirma que se sente bem e quer deixar, pois o medicamento às vezes lhe traz efeitos colaterais. A profissional [que estava mediando o encontro] afirma que ele poderá fazer a consulta com o psiquiatra, pois é importante passar pelo processo de desmame, uma vez que não é indicado tirar medicação sem orientação. Ela o orienta a falar com seu técnico de referência para que juntos possam definir como proceder. (Trecho do Diário de Campo).

Diante do exposto, infere-se que o usuário que apresentou a demanda narrada acima deseja “deixar” a medicação não somente por estar se sentindo bem, mas porque tem sentido no corpo os efeitos indesejados. No entanto, conforme orienta a profissional que está mediando a assembleia, sua experiência só poderá ser dialogada, individualmente, com o médico e/ou o técnico de referência. Contudo, cabe-nos ressaltar que ao nos depararmos com a cena narrada e por termos participado, em outros momentos, dos encontros do grupo de medicação, identificamos que a questão apresentada pelo usuário na assembleia costuma ser debatida entre as pessoas que fazem parte do referido grupo.

Retrato 2: “Dependência” da droga psiquiátrica

Seguindo com o fluxo das análises, ao pensar o lugar que a medicamentalização ocupa nos processos de cuidado, em alguns diálogos nos deparamos com falas sobre a “dependência” com relação à droga psiquiátrica. Em uma das conversas que aconteceu na varanda do CAPSad II, de maneira inesperada, tal qual são as ditas conversas de corredor, o discurso sobre a dependência se fez presente.

Durante a nossa conversa, o jovem [Van Gogh] diz que leu num livro do pastor Silas Malafaia que “o cérebro é o diretor central do corpo do ser humano, que é de onde vem a fome, a sede…”. Sr. Alves, usuário que estava sentado conosco, complementa: “o desejo… tudo, tudo”. Van Gogh segue falando que um médico lhe disse que ele estava dependente de um medicamento e que não poderia deixar de tomar. Conta que até tentou parar, mas não conseguiu. Sr. Alves lhe fala que ele pode perder a esperança, pois tem que tomar. O jovem usuário diz que o médico lhe disse que, após a perda da massa encefálica [em decorrência de um acidente sofrido], sua coordenação motora já não era mais a mesma. Antigamente, narra, conseguia subir num pé de côco alto e “saía distribuindo para todo mundo”. Hoje não consegue mais. (Trecho do Diário de Campo).

No trecho acima, nos deparamos com o status de dependência que é dado à medicação. A partir da colocação do médico, o uso do medicamento parece se tornar realidade vitalícia na experiência do usuário. O profissional em questão não trabalha no CAPSad II, no entanto, ao ser localizado enquanto interlocutor do que está sendo posto pelo usuário, ele parece compor a teia de relações da qual o medicamento faz parte. O seu saber-poder (Foucault, 2013) parece definir a experiência do usuário e o posicionar enquanto “dependente”.

Van Gogh afirma que tentou parar de tomar o medicamento, mas não foi possível, ao que outro usuário respondeu afirmando “que ele pode perder a esperança, pois tem que tomar”. Aqui, atentamos para um processo de centralização da medicação no processo de cuidado de Van Gogh e, mais do que isso, a aceitação por parte dos usuários, uma vez que estes endereçam para o médico a definição do que, naquele instante, é melhor para si. Ou seja, se o especialista disse, eles podem “perder a esperança” – uma expressão que nos leva a pensar na relação de dependência com a droga prescrita e, por isso, destoa do discurso de um serviço que aponta a “dependência química” enquanto patologia a ser tratada.

Ainda na cena apresentada, identificamos o discurso cartesiano sendo legitimado pelo religioso, aqui representado pelo “livro do pastor Silas Malafaia”. Assim sendo, ao acessarmos o que é dito pelo usuário e ao levarmos em conta o fato de ele trazer em sua fala a colocação feita no livro de um representante religioso, que parece utilizar de sua posição para corroborar o discurso biologicista como definidor de suas ações, entendemos que tal discurso acaba legitimando o que é colocado pelo profissional da medicina.

A partir do que é posto pelo pastor, o cérebro, em sua dimensão biológica, assume a “diretoria” do seu corpo e este deve ser controlado por uma substância prescrita, levando em consideração a fala do médico. Ou seja, nos deparamos com a relação estabelecida entre a religião e a medicina que, não de hoje, cumprem um papel irrefutável de controle social.

Retrato 3: O medicamento promovendo “estabilidade”

Para além da perspectiva da “dependência”, foi possível identificar que alguns usuários relacionam a medicação como sendo garantidora de uma possível “estabilidade”, assim como posicionam o medicamento num lugar de sustentação de um esperado bem-estar. Sobre isto, cabe-nos apresentar uma cena que surgiu em um dos momentos de pausa entre as atividades.

Após o encerramento da oficina da qual estávamos participando, Chicó se aproximou de mim, pela primeira vez, e me perguntou o que eu estava estudando. Lhe falei um pouco sobre minha proposta de pesquisa e o usuário afirmou ter interesse, pois ele sempre fica incomodado com os remédios que toma, mas afirma que não larga, porque tem medo do que pode acontecer. Eu lhe pergunto se há um movimento de diálogo com o psiquiatra e ele afirma que já diminuíram um pouco, mas queria diminuir ainda mais. (Trecho do Diário de Campo).

              Ainda que o usuário não coloque o porquê do incômodo frente aos remédios que consome, há o desejo de diminuir “ainda mais a quantidade”, conforme tem sido feito em diálogo com o psiquiatra. Ao afirmar que não larga, dizendo que “tem medo do que possa acontecer”, nos parece que o medicamento é posicionado enquanto garantia de uma desejada – quando não imposta – estabilidade. Por mais paradoxal que possa soar, o usuário parece colocar os psicofármacos num lugar de sustentação de seu bem-estar, apesar do incômodo “com os remédios que toma”. Questionamo-nos: que ameaça é esta que coloca o usuário frente ao medo do que virá, caso pare de consumir as drogas psiquiátricas? Como manejar esse medo? Será que estas não seriam questões que poderiam ganhar espaço em seu projeto terapêutico singular?

Da mesma maneira que há pessoas que apresentam o desejo de retirada ou diminuição do uso, há aquelas que se mostram adeptas à manutenção das receitas médicas e das drogas já prescritas. Foi possível perceber isto em algumas consultas médicas que pudemos acompanhar.

Consulta 1: Além da demanda inicial que dizia da sua relação com sua filha adolescente, Gentileza fala sobre seus medicamentos. Diz que tem estado tranquilo e “dentro do esperado”. (Trecho do Diário de Campo).

Consulta 2: Ao ser questionado como tem estado, o usuário afirma que se sente bem – “seguindo com a vida”. Coloca que seus medicamentos estão perto de acabar e que foi buscá-los. O usuário recebe algumas cartelas, divide-as nos bolsos de sua calça e chega a comentar que são muitos. Agradece e se despede. (Trecho do Diário de Campo).

              Aqui a medicamentalização se apresenta mais uma vez atrelada à “estabilidade”. Os usuários acima mencionados – que são participantes do grupo de medicação – não sinalizam o interesse em mudar a relação com os medicamentos e parecem satisfeitos com o fato de estar tudo “dentro do esperado” e “seguindo com a vida”. O processo de cuidado e “tratamento” é, pois, atravessado pela manutenção do psicofármaco, e a “estabilidade”, na fala dos usuários, parece estar atrelada a uma linearidade da experiência cotidiana.

No entanto, cabe-nos refletir sobre tal linearidade, assim como o que vem a ser a dita (e esperada) “estabilidade” – um discurso médico que, não raras vezes, surge como sendo uma meta irrefutável a ser alcançada. A “estabilidade” parece-nos indicar também um efeito dos próprios medicamentos que, em muitos casos, retiram das pessoas a possibilidade de sentir a vida em sua “crueza” – retirando também a possibilidade de produção de autonomia para o manejo de situações indesejadas que podem ser comuns no cotidiano das pessoas.

Retrato 4: O medicamento enquanto mecanismo de controle

Nos retratos batidos, pudemos identificar que o medicamento também é visto a partir das lentes do controle – seja para os usuários, seja, ainda, para familiares/acompanhantes e/ou para os profissionais.

Enquanto esperávamos o início do grupo de medicação, a mãe de um usuário, que estava circulando “inquieto” pelo serviço, estava demandando medicamento para o filho, pois ele estava “agoniado”. O usuário questionou algumas vezes: “Você vai me dar o remédio?”, perguntando para a profissional da enfermagem. Nesse momento, a enfermeira informou que seriam atendidas as pessoas participantes do grupo e, em seguida, quem estivesse esperando a vez. Ele seguiu colocando que precisava de remédio e a sua mãe afirmou: “É preciso controlar”. Após ser acolhida pela enfermeira, ela decidiu esperar para que seu filho fosse acolhido pelo psiquiatra. A profissional acabou lhes pedindo que esperassem “lá embaixo”, pois só poderiam ficar no espaço as pessoas que estariam participando do “grupo de medicação”. (Trecho do Diário de Campo).

              Na situação apresentada, ao pensarmos o lugar que a medicamentalização ocupa não somente nos processos de cuidado ou “tratamento”, mas também na teia de relações tecida no serviço e/ou fora dele, percebemos, ainda, a demanda de uma mãe com relação ao controle da situação do filho que estava “agoniado”: “É preciso controlar”, afirmava. O usuário, por sua vez, insistia ao pedir seu medicamento, questionando algumas vezes “Você vai me dar o remédio?”, enquanto transitava “inquieto” pelo espaço. Havia a busca por uma resolutividade. O usuário também parecia desejar, naquele momento, controlar o que estava sentindo e, assim como a mãe, nos colocou diante do entendimento de que apenas o medicamento poderia sanar o que estava acontecendo. Ou seja, esperava-se a suposta “estabilização” frente à sua “agonia” – o que, ironicamente, estava acontecendo exatamente antes do início do grupo de medicação.

Retrato 5: O “desmame” enquanto possibilidade

No decorrer na pesquisa, identificamos que, ao se apresentarem “estáveis” e “dentro do esperado”, para alguns usuários e usuárias, o “desmame” surge enquanto possibilidade. Vejamos nas cenas que seguem:

Durante a consulta médica, ao ser acolhido pela profissional da enfermagem que estava substituindo o médico [pois este precisou se ausentar no dia], o usuário fala que tem se sentido bem. Está tranquilo e conta que segue num movimento de diminuição dos “únicos” psicofármacos que faz uso no momento. Afirma que, sob a orientação do psiquiatra, a cada nova consulta vem diminuindo a dosagem do Clonazepam. (Trecho do Diário de Campo).

Mais um usuário adentra na sala de atendimento médico. A enfermeira acessa seu prontuário para saber quais os medicamentos por ele tomados. Nesse momento, o usuário coloca que não será preciso levar a Fluoxetina, pois tem bastante em sua casa. Seguindo com essa fala, ele diz que tem esquecido e que acaba não tomando o medicamento todos os dias. Nesse momento, a profissional lhe pergunta como tem estado o seu humor. O usuário afirma que está se sentindo bem e que os estresses que têm são “os do cotidiano”. Acolhendo o seu movimento, a profissional lhe questiona se ele não teria interesse em iniciar o desmame da Fluoxetina, visto que ele esquece e não tem percebido alterações no humor. Pergunta para o usuário: “O que você acha?”, ao que o usuário responde: “Acho bom!”. A profissional afirma que irá registrar em seu prontuário para que ele possa dialogar a respeito em seu próximo encontro com o psiquiatra. (Trecho do Diário de Campo).

              Os trechos acima apresentados nos permitem acessar as experiências relacionadas à possibilidade de desmame e/ou diminuição das dosagens dos medicamentos. É importante destacar que as pessoas que compõem as cenas narradas fazem parte do grupo de medicação, ou seja, usuários que atendem ao pré-requisito da “estabilidade” e que podem conversar sobre seus tratamentos não somente nas consultas, de maneira individual, mas também coletivamente, com pares que compõem o grupo. Ao se perceberem passando pelo processo de diminuição do uso de medicamentos, chegando ao desmame enquanto parte do “tratamento”, os usuários parecem redefinir o lugar da medicamentalização em suas trajetórias terapêuticas.

Ao nosso ver, este movimento parece implicar um reposicionamento dos usuários em questão frente às suas experiências. Há uma possibilidade de apropriação das situações vividas e o entendimento dos problemas enquanto parte “do cotidiano”, ou seja, questões que nem sempre precisam ser medicamentalizadas para serem manejadas. Podemos pensar o processo de desmame como sendo uma realidade que também diz do processo terapêutico e que, numa espécie de contracorrente, aponta para a desmedicalização do cuidado.

 

Mais algumas capturas: ampliando o diálogo com as cenas apresentadas

Nas cenas fotografadas, a abstinência – a partir da esperada “estabilidade” e ausência da “recaída” – surge enquanto uma espécie de passaporte que garante a presença dos usuários no denominado “Grupo de medicação”. Ou seja, as exigências do grupo passam a compor o “paradigma da abstinência” (Passos & Souza, 2011), tendo em vista que, na contramão de uma política de cuidado que se pauta no respeito ao direito de escolha do usuário, o que se encontra é a imposição da descontinuidade imediata do uso das drogas não prescritas como única direção de tratamento possível (Santos & Miranda, 2016).

Ainda que a medicamentalização faça parte da trajetória terapêutica da quase totalidade dos usuários e usuárias do serviço, tendo em vista que o CAPSad II faz parte da “estrutura de diagnósticos” que sustenta práticas no âmbito da saúde mental e, por conseguinte, pauta-se no diagnóstico para garantir a prescrição de medicamentos (Lucy Johnstone, 2019), apenas uma parte das pessoas – as “estáveis” – têm acesso ao diálogo mais amplo sobre a medicação. Para estas, a medicamentalização parece ser uma pauta importante nos processos de cuidado e, mais do que isso, torna-se tema central nessa atividade do serviço.

Conforme Gonçalves e Campos (2017, p. 2), “pesquisas apontam a falta de informação dos usuários sobre os remédios receitados e a não discussão sobre os efeitos indesejáveis deles, revelando uma baixa apropriação dos usuários dos serviços em relação ao seu tratamento”.

No caso do CAPSad II, a falta de acesso à informação sobre os medicamentos e a ausência de discussões, por exemplo, sobre possíveis efeitos indesejáveis pode estar relacionada à experiência da maioria das pessoas usuárias no serviço, uma vez que, para estas, as questões referentes aos medicamentos dos quais fazem uso passam a ser tratadas de maneira individual nas consultas médicas – individualizando o consumo de medicamentos, ainda que a medicamentalização seja uma realidade coletiva e de caráter social. Há a reprodução de uma atenção centralizadora e especializada, atendendo ao modelo biomédico e à lógica manicomial que se centra na doença, na sintomatologia e no tratamento medicamentoso – afastando a possibilidade de criação de espaços e dispositivos de cuidado que sejam pautados na horizontalidade e promovam a produção de autonomia (Gonçalves & Campos, 2017).

É, pois, voltando-se para determinado tipo de funcionamento ou de estrutura orgânica que a medicina estrutura seus conceitos e passa a prescrever as suas intervenções, assim como esta vem a ser uma técnica política de intervenção que assume efeitos de poder que lhes são próprios (Foucault, 2013). Nesse contexto, a medicina é entendida como “um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o organismo e sobre os processos biológicos e que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores” (Foucault, 2005, p. 302).

Concordamos com Freitas e Amarante (2015, p. 27) quando os autores colocam que “a medicalização está de tal forma incorporada em nossas vidas que podemos até considerá-la nossa segunda natureza. E por ela lutamos, como se ao lutar por mais medicalização estejamos almejando por mais-ser”. O mesmo pode ser dito em pensando a medicamentalização da vida.

A cena em que o usuário Van Gogh toma como uma verdade a ser seguida, o que foi dito pelo pastor e pelo médico, ambos ocupando um lugar de poder que define o modo como Van Gogh deverá se relacionar com seus medicamentos, é um convite para a discussão sobre a gestão da vida, a biopolítica (Foucault, 2005).

A biopolítica, conforme infere Caponi (2016), partindo do conceito foucaultiano, não utiliza, enquanto referência, a vida de sujeitos que possam escrever a narrativa de sua história. Ao contrário, a biopolítica “se refere a sujeitos anônimos e intercambiáveis, cujas histórias carecem de significação, pois do que se trata é de populações, de corpos substituíveis que devem ser maximizados e aperfeiçoados e não de sujeitos morais e suas próprias ações” (Caponi, 2016, p. 107). É uma estratégia que em nenhuma medida se coloca enquanto ingênua, pois é assumida de modo que, exercendo o governo sobre os outros, a partir de critérios “científicos” e “validados de classificação”, que privilegiam formas de intervenção brutais, tal qual a farmacológica, seja possível excluir e silenciar o governo de si.

Diante das cenas apresentadas, cabe-nos pensar uma “lógica da estabilidade” atrelada ao que Galindo, Lemos, Vilela e Garcia (2016) chamaram de “farmacologização da vida”. Conforme é proposto pelas autoras, a farmacologização lança mão de tecnologias que operam nos corpos e na vida, tornando-se estratégias de controle que são legitimadas política e socialmente. Elas vão afirmar que, através do marketing das empresas farmacêuticas, “os medicamentos prometem uma estabilização de sentimentos, humores, pensamentos e ações, em um contexto social e político-econômico de encomendas voltadas a uma constante aceleração de cada ato e de cada pensamento” (Galindo et al., 2016, p. 351).

A partir do que está exposto, identificamos como tal realidade parece reforçar a nossa compreensão acerca das estratégias de controle que são operadas a partir do medicamento enquanto um dispositivo que mobiliza estratégias e formas de assujeitamento (Ignácio & Nardi, 2007). Usuários e usuárias, familiares e acompanhantes e, além destes, profissionais do serviço produzem sentidos sobre a medicação, passando não somente a identificar o modo como os medicamentos vêm a controlar experiências tidas como indesejáveis, como demandando tal controle por não deter estratégias outras para as situações adversas.

O uso, o controle e a administração das medicações “configuram-se como importantes rituais entre profissionais, usuários e acompanhantes, que expressam um repertório usual de práticas de tratamento, presente nas relações entre os atores sociais em questão, dando sentido à realidade vivida” (Moraes, 2005, p. 130).

É mantida uma “medicina do patológico e da doença” e o “anormal”, “incurável” e “perigoso” é medicalizado. A psiquiatria vai se apropriando dos estados ditos “desviantes” e “degenerados”, tendo acesso e autorização social a toda e qualquer ingerência indiscriminada dos “comportamentos” humanos – e aqui não podemos deixar de localizar as pessoas usuárias dos CAPSad. É engendrado todo um mecanismo que “reforça a tautologia psiquiátrica estendida à Psicologia, ao Serviço Social, ao serviço educacional: circunscrever comportamentos anormais, fixar em classificações, gerenciar para que sejam controlados. Em nome da proteção, toda e qualquer referência de anormalidade será circunscrita ao âmbito da medicalização” (Fonseca & Jaeger, 2015, p. 32).

Sendo assim, é preciso pensar na desmedicalização do cuidado, o que nos remete às “necessidades de saúde” que, como bem colocam Frazão e Minakawa (2018), estão para além das “necessidades de tratamento clínico” e/ou de “serviços especializados de saúde”. A este respeito, os autores propõem a noção de necessidade de saúde como sendo um conceito político que é carregado de valor e que aponta para a sua avaliação como sendo uma atividade complexa que deve levar em conta questões que vão “desde os determinantes sociais até a ideia de projeto de felicidade e qualidade de vida, em diálogo com interesses de natureza estética, emocional e moral, entre outros” (Frazão & Minakawa, 2018, p. 423).

 

Conclusões: considerações (que não se pretendem) finais

Ao buscarmos entender o lugar que a medicamentalização ocupa nos processos de cuidado dos usuários e usuárias do CAPSad II, identificamos que a mesma ocupa um lugar central. A regulação e o controle do “comportamento”, a partir da prescrição farmacológica, mostrou-se visível a olhos nus. Em prol de uma suposta “estabilidade” e da garantia – quando não imposição – da abstinência em detrimento da RD enquanto estratégia de cuidado, a prescrição e o uso de medicamentos mostraram-se como sendo carro-chefe do serviço, uma vez que todas as pessoas com as quais estivemos em contato fazem uso de algum psicofármaco. Em alguns casos, identificamos que a medicação era demandada não somente pelas pessoas usuárias – chegando inclusive a ser definidora do vínculo com o serviço –, mas também por familiares – que viam na medicação uma possibilidade de manejo de situações de sofrimento e “agonia”. Assim, ainda que haja rupturas em algumas trajetórias terapêuticas, tendo em vista que identificamos que algumas pessoas conseguem garantir algum grau de negociação frente ao uso das drogas prescritas, o protagonismo mostrou-se tímido, todo e qualquer desconforto passa a ser patologizado e a supressão deste – pela via medicamentosa – é almejada e colocada enquanto resultado de uma possível “estabilidade”.

Não podemos tomar como sendo suficiente o debate aqui proposto, uma vez que nos vemos de frente a uma complexa rede de relações que, em nenhuma medida, estão circunscritas somente no CAPSad II. Ao contrário, entendemos que pensar a medicalização da vida e, além dela, a medicamentalização é romper com as paredes dos serviços de saúde e transitar pelas praças públicas, pelos espaços de trabalho, pelas comunidades e territórios.

 

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