Revista de Psicologia, Fortaleza, v.14, e023020. jan./dez. 2023
DOI: 10.36517/revpsiufc.14.2023.20
RECEBIDO EM: 06/06/2023
PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 03/07/2023
APROVADO EM: 28/07/2023
Being You: alucinações controladas acerca de nós mesmos
Maria Luiza Iennaco
Universidade de São Paulo, Brasil. Mestra em Filosofia. ORCID: Maria Luiza Iennaco de Vasconcelos (0000-0002-5407-4852) (orcid.org) . Email: marialuiza_vasconcelos@usp.br
O Livro Being You é uma obra influente de cunho didático do neurocientista britânico Anil Seth, que aborda questões filosóficas e científicas acerca da consciência. Nele, Seth parte de um ponto de vista filosófico fisicalista e do framework do Processamento Preditivo (PP) para argumentar que a consciência consiste em um conjunto de alucinações controladas de organismos preditivos em múltiplos níveis de análise.
A relevância desta obra para todas as Ciências Cognitivas é evidente. Ela aborda temas atuais de fenomenologia, consciência em humanos, não-humanos e máquinas, bem como estados alterados e modelagem computacional da consciência. Tais temas são incluídos no novo paradigma das ciências da mente – o paradigma da predição, que já possui implicações para a Psicologia e Psiquiatria (Smith et al., 2020; Friston, 2023).
O livro está dividido em quatro partes: nível, conteúdo, self e outros. Na parte de nível, o autor explora a história e a filosofia dos métodos e problemas de mensuração de fenômenos, apresentando o que ele chama de “Problema Real” da consciência. Na parte de conteúdo, ele desenvolve em maior detalhe o framework do Processamento Preditivo (PP) para explicar a percepção consciente. A seção de self investiga a perspectiva de primeira pessoa a partir do PP, e, por fim, na parte de outros, o autor aborda brevemente a consciência em sistemas complexos não-humanos.
No início do livro, Seth descreve o problema de combinar a fenomenologia com as propriedades funcionais e comportamentais na mensuração da consciência. Para ele, dado que tal fenômeno possui muitas expressões e particularidades, seria um erro assumir um modelo ideal (seguindo os moldes de um humano adulto neurotípico) em uma escala unidimensional da consciência. Com isso, ele argumenta que a consciência talvez não deva ser tratada como um fenômeno escalar e imutável, mas como um conjunto de propriedades multifacetadas. Isso faria diferença, inclusive, para o próprio entendimento conceitual ao substituir, por exemplo, os famosos níveis de consciência para níveis de integração de um sistema. Seth, portanto, avança com um programa de pesquisa intitulado Problema Real, que seria um conjunto de perguntas e métodos cientificamente embasados capazes de prever, explicar e controlar a consciência em termos de atividade corporal e cerebral. Para tanto, ele abandona o conceito tradicional de consciência para utilizar as “Alucinações Controladas”, que abarcam tanto o conteúdo percebido quanto as sensações fenomênicas.
Seguindo o framework do PP (Cf. Iennaco, M.L., Silva, T. e Sayeg, P., no prelo), Seth desenvolve a parte dois da obra descrevendo o cérebro como uma máquina inferencial. A nível subpessoal, o órgão faz predições constantes sobre as causas dos sinais sensoriais captados, com base em informações e expectativas que já possui. Em outras palavras, a percepção consciente é baseada na interpretação de informações (e, às vezes, conceitos) que foram previamente estruturadas em cada um de nós, constituindo uma característica subjetiva das experiências perceptuais. O autor denomina, portanto, uma percepção consciente como uma alucinação (dada as influências do próprio organismo que são determinantes) que é controlada pelas informações captadas pelos sensores desse organismo.
Seth continua seu raciocínio na parte mais subjetiva da percepção consciente. Para ele, a fenomenologia dos objetos percebidos depende das chamadas predições contrafactuais. Essas predições existem para que o sistema possa verificar o que poderia ter acontecido com os sinais sensoriais, dada uma ação. Isto é, quando percebemos algo, o conteúdo daquilo percebido emerge de um conhecimento implícito do cérebro sobre como ações e sensações são ou seriam acopladas a esse objeto. Assim, a “sensação de vermelhidão” de um tomate seria algo como as consequências sensoriais das ações sobre as predições contrafactuais.
Caminhando para a terceira e mais importante parte da obra, uma outra parcela da consciência que Seth descreve é o self, pois a percepção consciente ocorre a partir da primeira pessoa. Segundo o autor, múltiplos aspectos culminam no que chamamos de “eu”, que nos parece consistir uma única entidade – imutável e tão presente em nossas vidas mentais. Entretanto, o self não é dessa forma que parece ser: não é estável, imutável e certamente não é coerente como achamos que é. Para Seth, precisamos dessa forte ilusão de uma “self” para controlar os sistemas que regulam nosso organismo.
Especificamente, a chave para entendermos o self nos termos do autor é, primeiramente, considerar a atividade fisiológica em termos de inferências interoceptivas. Da mesma forma que o cérebro preditivo não tem acesso direto às causas dos sinais sensoriais de fora do corpo, ele também não possui acesso direto às causas dos sinais sensoriais de dentro do corpo, fazendo predições em ambos os casos. Esses sinais internos são referentes às condições fisiológicas do corpo, então transmitem informação da víscera para o sistema nervoso. Essas transmissões informam os estados de regulação fisiológica do corpo para garantir que o sistema mantenha seus estados otimizados e, portanto, sua sobrevivência.
As experiências subjetivas das interocepções são equivalentes às emoções e humores, que, neste contexto, são constituídas pelas próprias predições interoceptivas (Cf. Barrett 2017). Isso significa que as emoções são enraizadas nas melhores predições sobre os estados do corpo. Por exemplo, quando há uma desregulação no nível de açúcar no sangue, nosso humor muda e interpretamos subjetivamente essa mudança como “fome”, então agirmos assim que podemos para comer algo e, portanto, normalizar os níveis alterados. Assim, a percepção nesse contexto não seria para adivinhar o que está lá fora, mas sim para controlar e regular o que está aqui dentro.
Para Seth, então, diferenciar esses tipos de percepção nos ajudam a compreender melhor a fenomenologia envolta nelas. No entanto, a exterocepção e a interocepção estão estritamente conectadas, pois os estados internos se regulam a partir da aquisição de recursos do meio externo, sendo este percebido por sensores carregados de predições e expectativas. Estas, por sua vez, são confeccionadas no intuito de satisfazer as regulações internas. Dentro desse ciclo, para Seth, fica mais fácil entender os motivos pelos quais somos munidos de modelos como o self.
Primeiro porque precisamos dele para fazer sentido das regulações fisiológicas: por exemplo, “eu” tenho fome, “eu” tenho medo. Ao contrário dos objetos externos que estão lá fora independentemente do “eu”, a fome e o medo existem somente dentro desse modelo de self. A manutenção da fisiologia implica na existência do organismo. Por isso, Seth utiliza o Princípio da Energia Livre (Friston, 2009) para não somente explicar como um organismo mantém-se vivo, mas também para aproveitar do suporte matemático que tal princípio fornece à teoria que ele objetiva desenvolver no livro.
Segundo que o self precisa ser estável e percebido como uma entidade imutável para manter-se regulado, o que significa que as predições fisiológicas precisam ser altamente realizáveis. Isso implica em uma forte sensação de subjetividade (eu) e sentimentos (sinto) que obrigarão o organismo a lidar com eles. Ainda que o autor entenda que o self seja apenas um conjunto de crenças, valores, objetivos, memórias e também melhores predições perceptivas, ele defende que self é um fenômeno fascinante de ser estudado em termos preditivos, pois ele facilmente é “descoberto” como uma alucinação interoceptiva controlada.
Finalmente, o self descrito no livro pode favorecer a explicação da consciência em termos preditivos, pois, uma vez elucidado como predições interoceptivas, o self acaba por ofuscar as fronteiras entre múltiplos aspectos da nossa cognição. Seth argumenta que as experiências de volição, por exemplo, são úteis para orientar um comportamento futuro, tanto quanto para orientar um comportamento atual. Isto é, o que eu fiz hoje e chamou minha atenção vai servir de experiência e afetará o que eu farei amanhã dentro de um mesmo contexto.
Seth termina seu livro explorando a consciência para além dos humanos. Ele defende que é muito provável haver múltiplas expressões de consciência nos animais não-humanos. Dependendo do pressuposto de cada um sobre o que é consciência, ela também será encontrada ou não em máquinas. O ponto de convergência desse debate de o quê tem consciência, na perspectiva de Seth, se volta para a ética, pois as escolhas feitas a partir do aceite ou rejeição de consciência nesses sistemas mudam drasticamente a forma como os tratamos. Por isso é preciso muito debate e também o combate ao preconceito e egocentrismo.
Em resumo, a obra didática dissemina uma nova ciência da consciência, baseada no Processamento Preditivo. Aquilo que Seth defendeu é que, independentemente de como a ciência retrata nossas “alucinações controladas”, o self não deixará o cerne da nossa existência subjetiva. Somos um conjunto de múltiplas experiências, interações e contextos que nos formam aquilo que fomos, somos e seremos até a nossa morte. No entanto, a ciência tem muito a ganhar com novas perspectivas acerca do nosso funcionamento.
Referências
Barrett, L. (2017). How Emotions Are Made: The Secret Life of the Brain. New York: Mariner Books.
Smith, R., Badcock, P., & Friston, K. J. (2021). Recent advances in the application of predictive coding and active inference models within clinical neuroscience. Psychiatry Clinical Neuroscience, 75, 3-13. https://doi.org/10.1111/pcn.13138
Iennaco, M. L., Silva, T., & Sayeg, P. (no prelo). Processamento Preditivo: Uma introdução à proposta de unificação da cognição humana.
Friston, K. (2023). Computational psychiatry: From synapses to sentience. Molecular Psychiatry, 28, 256-268. https://doi.org/10.1038/s41380-022-01743-z
Friston, K. (2009). The free-energy principle: A rough guide to the brain? Trends in Cognitive Sciences, 13(7), 293-301.