Revista de Psicologia, Fortaleza, v.14, e023027. jan./dez. 2023
DOI: 10.36517/revpsiufc.14.2023.27
RECEBIDO EM: 20/06/2023
PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 08/09/2023
VERSÃO FINAL: 17/10/2023
APROVADO EM: 17/10/2023
Construções identitárias e reconhecimento da diversidade numa universidade pública
Identity constructions and recognition of diversity at a public university
Marina Carvalho Freitas
Universidade Federal de Juiz de Fora - Brasil; Especialista em Clínica Psicanalítica. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5985-0550 . Email: marinacarvfreitas@gmail.com.
Angelo Brigato Ésther
Universidade Federal de Juiz de Fora; Professor permanente do Programa de Pós-Graduação de Administração. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9084-3746. Email: angelo.esther@ufjf.br.
Joelma Cristina Santos
Universidade Federal de São João del-Rei; Doutoranda em Psicologia. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1016-5314. Email: joelma.santtos@gmail.com.
Resumo
A ampliação do acesso de grupos minorizados ao ensino superior têm contribuído para que as universidades se reafirmem como espaços propícios à mobilização em torno de pautas identitárias. Considerando o impacto que relações de poder estabelecidos-outsiders tem sobre as construções identitárias de universitários, este artigo analisou a inserção de estudantes pertencentes a três grupos distintos – gênero feminino, raça/cor negra e diversidade sexual – e a percepção que eles tinham acerca da universidade, como uma instituição capaz de reconhecer e valorizar as diferenças. Para isso, foram realizadas entrevistas individuais e grupos focais com 22 estudantes de uma universidade federal de Minas Gerais, sendo o material analisado pelo método de análise de conteúdo. Ao ratificar a influência que vivências de discriminação exercem sobre a identidade dos estudantes, os resultados da pesquisa indicam a necessidade de medidas amplas e sistematizadas que visem a atender demandas que perpassam o preconceito, os cuidados de saúde física/mental e a atenção a fatores socioeconômicos, entre outros aspectos. Nesse sentido, são discutidas proposições apresentadas pelos universitários, considerando-se a necessidade de que sejam abertos cada vez mais espaços para que os principais impactados pelas políticas públicas de inclusão sejam ouvidos e tenham suas demandas legitimadas.
Palavras-chave: Identidade; diversidade; universidade.
Abstract
The increased access of minorities to higher education has contributed to universities reaffirming themselves as favorable spaces for mobilizing around identity agendas. This article examines the impact of established power relations on the identity constructions of university students and analyzes the experiences of three distinct groups: women, people of black race/color, and those with diverse sexual orientations. The research investigates these students' perception of the university as an institution capable of recognizing and valuing differences. Individual interviews and focus groups were conducted with 22 students from a federal university in Minas Gerais, and the collected data was analyzed using the content analysis method. The research findings confirm the influence of discriminatory experiences on students' identities and highlight the need for comprehensive and systematic measures to address issues related to prejudice, physical and mental health care, socioeconomic factors, and other aspects. Furthermore, the article discusses proposals put forth by university students, emphasizing the importance of creating more spaces where those most impacted by public inclusion policies can have their voices heard and their demands legitimized.
Keywords: Identity; diversity; university.
A educação de nível superior, no Brasil, foi marcada nas últimas duas décadas, por diversas transformações, muitas delas decorrentes da implementação de políticas públicas voltadas à expansão, interiorização e ampliação do acesso às universidades. Somente entre 2009 e 2019, por exemplo, o número de matrículas em cursos de graduação da rede federal aumentou 59,1% e, atualmente, quase 2/3 dos matriculados na rede pública estão em instituições federais (INEP, 2020). Além deste aumento de universidades e matrículas, a Lei Federal nº 12.711/2012, comumente chamada de Lei de Cotas, teve grande impacto ao determinar que as instituições federais de ensino superior destinassem 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado o Ensino Médio em escolas públicas, sendo metade dessas vagas destinadas a estudantes com renda per capita familiar igual ou inferior a um salário-mínimo e meio. Também devem ser destinadas vagas para estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas, de acordo com a proporção identificada na unidade da federação em que se encontra a universidade (Lei nº 12.711, 2012). De acordo com a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil (ANDIFES), 51,2% dos estudantes nas universidades federais, em 2018, eram pardos ou negros (ANDIFES, 2019). No que se refere à renda per capita familiar de até 1,5 salário-mínimo, 70% dos estudantes das universidades federais se encaixam nesse grupo, diferentemente de 1996, por exemplo, em que esse número era de, aproximadamente, 44% (ANDIFES, 2019).
O elitismo foi, durante anos, uma das características das universidades brasileiras, já que estas instituições eram compostas, majoritariamente, por pessoas brancas de classes abastadas (Ristoff, 1999). Embora as desigualdades no acesso tenham diminuído e sejam notadas modificações no perfil demográfico dos estudantes das universidades públicas, o que se percebe, na prática, é que somente a inserção de estudantes de grupos minorizados não tem sido capaz de proporcionar a sua inclusão efetiva nestes espaços, haja vista que, como Cruz, Ziller e Nonato (2010) assinalam, as relações de poder encontradas no contexto universitário, como na sociedade em geral, legitimam algumas vozes, enquanto silenciam outras.
Para Elias e Scotson (2000), indivíduos e grupos ocupam posições na sociedade que podem ser entendidas a partir da análise das relações de poder entre Estabelecidos e Outsiders. Nesta perspectiva, o grupo de Estabelecidos é constituído pelos detentores de poder dentro da esfera social, enquanto o grupo de Outsiders é formado por aqueles que se encontram fora dessa dimensão privilegiada e aos quais são atribuídas características distintivas (vistas como negativas), que influenciam e constituem suas identidades (Elias & Scotson, 2000). Conforme Castells (2001, p. 22), identidade é um “processo de construção de significado com base em um atributo cultural ou, ainda, um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras fontes de significado”. Ao se investigar a forma como as construções identitárias se estruturam dentro da sociedade, faz-se necessário, portanto, considerar como relações de poder definem valores e estabelecem hierarquias, num determinado contexto histórico, social, econômico e cultural.
A análise das relações sociais considerando grupos de estabelecidos e outsiders, como proposta por Elias e Scotson (2000), pode partir da consideração de diferentes atributos, como trabalhos recentes demonstram. Considerando grupos comumente estigmatizados, autores têm utilizado esta base teórica para discutir inserção de migrantes nordestinos (Pereira, 2020), relações raciais (Silva & Cruz, 2019) e relações de gênero (Carvalho & Monti, 2019), por exemplo. No âmbito educacional, outros autores investigaram a dinâmica entre diferentes grupos sociais, como Puci e Véras (2022), que analisaram as relações entre alunos brasileiros e bolivianos em escolas de Ensino Fundamental e Médio, enquanto Machado (2023) pesquisou as estratégias para superação de barreiras sociais desenvolvidas por estudantes bolsistas no convívio com estudantes não bolsistas em duas escolas privadas de Ensino Médio. Já Mello Neto, Medeiros e Cattani (2014) estudaram a construção da identidade social dos estudantes universitários com bolsa integral em instituições privadas de ensino superior, avaliando o senso de pertencimento deles à educação superior e à faculdade privada, considerando ainda a noção de “ruptura” identitária pelo contato com uma nova fronteira social. Para Astigarraga (2013), a força da sociologia de Elias e Scotson (2000) consiste na demonstração empiricamente consistente do conteúdo das formas singulares das relações de poder entre grupos distintos e, nesse sentido, ressalta a necessidade de que a sociodinâmica da estigmatização, isto é, as condições em que um grupo atribui um estigma ao outro, seja objeto de atenção no contexto universitário. Mello Neto, Medeiros e Catani (2014) ressaltam, por outro lado, que diferentemente do fenômeno da configuração observada por Elias e Scotson (2000), nem sempre os outsiders têm ferramentas para estigmatizar os estabelecidos já que, no jogo social, estão em nível de poder inferior, além de instituírem relações que podem ser demasiadamente estreitas e que inviabilizam que o outro grupo seja excluído ou desconsiderado.
Tendo em vista o impacto que uma estrutura social, pautada em relações discriminatórias, tem sobre aqueles considerados outsiders, entende-se que opressões de raça, sexualidade e gênero, por exemplo, estão refletidas no contexto universitário. Mello Neto, Medeiros e Cattani (2014) assinalam que elementos culturais e institucionais desempenham elevado peso na categorização e na trajetória dos estudantes em situação de mobilidade social. Entretanto, embora a desigualdade social e as diferenças negativamente rotuladas estejam na base da distinção entre os estudantes, seus efeitos se modificam a partir da ruptura identitária provocada pelo acesso a uma vivência típica do grupo de estabelecidos, se instalando por meio da ressignificação e readaptação de suas fronteiras simbólicas (Mello Neto, Medeiros & Cattani, 2014). Neste contexto, a participação nas diversas atividades acadêmicas pode levar alguns estudantes a se engajarem mais em determinadas causas do que em outras, visto que, muitas vezes, eles passam a se reconhecer nas situações de discriminação que vivenciam. Pode-se dizer, portanto, que as universidades são espaços em que podem ocorrer processos de (re)construção de identidades dos estudantes, pois, se, por um lado, viabilizam a formação profissional e a produção de conhecimentos, por outro, também retratam uma dinâmica social para além de seus muros, podendo ser espaços marcados pela reprodução de preconceitos.
Ainda que relações de poder, dominação e opressão sejam encontradas na própria universidade, ela não se constitui um ambiente que dificulta a ocorrência de problematizações ou de movimentos de emancipação (Freitas & David, 2019). Nesse sentido, a participação política de estudantes dentro das universidades tem um longo histórico, como nas ações dos movimentos estudantis vinculados à União Nacional dos Estudantes (UNE). Num contexto mais recente, organizações chamadas de “coletivos” tiveram emergência, principalmente, após o ciclo de protestos conhecido como jornadas de junho de 2013, apresentando, em comum, um discurso que aponta para práticas que se distanciam das instituições parlamentares e do modo de articulação política de partidos e organizações formais (Perez, 2019). Assim, os coletivos definem-se como organizações mais horizontais e autônomas, embora tais caraterísticas não estejam necessariamente presentes em todos os coletivos que se autodenominam desta forma (Perez, 2019).
Muitos coletivos universitários são organizados por estudantes inseridos no contexto da diversidade, entendida, no presente artigo, como um fenômeno social, determinado historicamente e expresso na categorização de pessoas em grupos, como consequência de certas similaridades (raciais, de gênero, econômicas etc.) (Carvalho-Freitas, Silva, Tette & Silva, 2017). O ambiente universitário pode se caracterizar, portanto, como uma arena em que os coletivos se estabelecem e favorecem (re)configurações identitárias, visto que os processos de atuação oferecem um contexto de construção e reconstrução de identidades, em meio à discussão das posições que os estudantes ocupam nas universidades (e na sociedade) e da busca por modificações nas suas condições de permanência nesse contexto. Assim, a atuação de muitos coletivos tende a ser direcionada para a discussão e proposição de ações de desconstrução de preconceitos e de estímulo à inclusão de grupos com maior dificuldade no acesso a direitos, como mulheres e pessoas negras, assim como lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e demais pessoas comumente referenciadas pela sigla LGBTQIAPN+ (Perez & Souza, 2020). Para Guimarães e Silva (2015), a formação dos coletivos se reflete em práticas de acolhimento e trocas sociais, bem como na problematização das relações de poder, num esforço de romper com sistemas construídos e estruturados historicamente.
Considerando a incidência de relações de poder estabelecidos-outsiders sobre as construções identitárias de estudantes que não pertencem a grupos socialmente estabelecidos, a presente pesquisa buscou apresentar perspectivas que pudessem orientar reflexões direcionadas ao fortalecimento de uma universidade realmente capaz de reconhecer e valorizar as diferenças. Com base na análise que sujeitos pertencentes a três grupos minorizados (outsiders) – gênero feminino, raça/cor negra e diversidade sexual – fazem acerca da própria inclusão e permanência/resistência no contexto de uma universidade federal do estado de Minas Gerais, buscou-se compreender aspectos relacionados às construções identitárias e à percepção que eles tinham acerca da universidade, como uma instituição aberta ou não à diversidade.
A escolha por se pesquisar estes grupos se deu em razão da importância de se investigar, de forma mais aprofundada, perspectivas referentes a cada um deles, já que cada grupo traz consigo uma história particular de movimentos e lutas pela conquista e manutenção de direitos sociais. Por outro lado, mostra-se relevante também compreender como as interseccionalidades são impressas no cotidiano universitário, isto é, o fato de um indivíduo pertencer a mais de um dos grupos abordados. Crenshaw (2002) sugere que os eixos interligados às relações de poder instauradas pelo patriarcado, racismo e luta de classes se cruzam, amplificando as opressões a que os sujeitos estão expostos. Para Collins e Bilge (2021), a interseccionalidade pode ser usada como ferramenta analítica e consiste num modo de compreensão e explicação da complexidade do mundo, das pessoas e das suas experiências, ao investigar como as relações interseccionais de poder influenciam as relações em sociedade e as experiências individuais cotidianas. Tendo em vista estas questões, o percurso metodológico do estudo é apresentado na seção seguinte.
Método
Para a realização da pesquisa, foram convidados participantes que fizessem parte de um dos três grupos pré-definidos – gênero feminino, raça/cor negra e diversidade sexual. Como forma de favorecer o acesso e considerando que membros de coletivos universitários estariam mais abertos a discutir os aspectos que perpassam o estudo (tendo em vista que se trata de um tema sensível para muitos indivíduos), foram abordados, inicialmente, membros de coletivos de gênero (femininos), coletivos de pessoas negras e coletivos LGBTQIAPN+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros, queers, intersexuais, assexuais, pansexuais, não-binários e demais possibilidades de orientação sexual e de identificação de gênero). Nesse contexto, considerou-se, como coletivos universitários, grupos que se autodenominavam desta forma. Destaca-se ainda que, embora estivessem separados em três grupos distintos, havia indivíduos que se inseriam em dois ou, até mesmo, nos três grupos abarcados (interseccionalidade).
O estudo contou, no total, com 22 participantes, das áreas de Ciências Humanas, Ciências Exatas e da Saúde de uma universidade federal do estado de Minas Gerais, e, com o intuito de preservar suas identidades neste artigo, foram utilizados nomes fictícios, vários deles escolhidos pelos próprios participantes. No que se refere ao gênero feminino, doze participantes eram mulheres, seis negras e seis brancas, sendo três homossexuais. Em relação à raça/cor, a pesquisa contou com doze pessoas negras, seis homens e seis mulheres. Desse grupo, duas mulheres e quatro homens eram homossexuais. O grupo de diversidade sexual contou com dez participantes homossexuais, cinco negros e cinco brancos, sendo três do gênero feminino e seis do gênero masculino. Um dos participantes preferiu não se identificar com nenhum dos gêneros. Duas participantes pertenciam aos três grupos da pesquisa: eram mulheres, negras e homossexuais. Não foram localizados participantes transexuais, travestis, nem demais possíveis sujeitos do grupo de diversidade sexual para participação na pesquisa.
Inicialmente, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 15 estudantes. Posteriormente, também foram entrevistados estudantes indicados pelos participantes e que pertenciam a um dos três grupos da pesquisa, embora pudessem não fazer parte de coletivos, numa estratégia metodológica conhecida como “bola de neve”, em que os próprios pesquisados indicam outros possíveis participantes para a pesquisa. Além das entrevistas, foram realizados dois grupos focais heterogêneos, levando em conta a necessidade de se considerar também aspectos que diferenciavam os estudantes em contexto de diversidade, pela análise coletiva de grupos heterogêneos. Assim, contou-se com a participação de estudantes categorizados em algum dos três grupos pesquisados, sendo um encontro por grupo e cada um com duração aproximada de uma hora e meia a duas horas. O primeiro grupo focal contou com sete participantes, dos quais quatro já haviam sido entrevistados anteriormente, visto que auxiliaram no processo de alcance de novos integrantes e os incentivaram a participar. O segundo grupo focal foi composto por quatro participantes, mas, desta vez, todos novos na pesquisa.
Para análise dos dados produzidos nas entrevistas e nos grupos focais, foi realizada análise de conteúdo do tipo temática (Bardin, 2011), contando com auxílio do NVivo, um software elaborado para análise qualitativa de dados e com recursos que facilitam as atividades de processamento, codificação e análise de dados, dentre outras (Guizzo, Krziminski & Oliveira, 2003). Nesta pesquisa, foram selecionados alguns recursos do software de apoio, como os nós e a árvore de nós, os quais se mostraram adequados para a análise dos dados e se encontravam em consonância com a metodologia adotada.
Os resultados aqui apresentados fazem parte de uma pesquisa de mestrado, que foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da instituição em que foi realizada. Todos os participantes do estudo receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e foram orientados acerca dos objetivos do estudo, do sigilo de suas identidades, da participação voluntária e da possibilidade de desistência em qualquer momento do estudo. Após terem concordado e assinado o TCLE, os dados foram produzidos e registrados em gravações, anotações e posteriores transcrições.
Resultados e Discussões
Reconhecimento da diferença e estratégias para valorização da diversidade
A análise das entrevistas e das discussões promovidas nos grupos focais demonstrou que os participantes têm procurado e se organizado em torno dos coletivos, de modo a adotar, como Castells (2001) denomina, uma identidade de resistência. Ao se articular alguns conceitos propostos por Elias e Scotson (2000) e Castells (2001), entende-se que o grupo estabelecido se apresenta com uma forte identidade positiva e que os outsiders, se e quando organizados, podem se configurar como um grupo que resiste à imposição identitária, o que, de certa forma, corresponde ao que Castells (2001) chama de “identidade de resistência”. Além disso, estes estudantes buscam ser acolhidos, construir e contribuir para políticas de identidade que alcancem maior reconhecimento numa sociedade que vem se tornando cada vez mais abertamente plural, embora, muitas vezes, intolerante às diferenças e à diversidade, como pode ser observado na fala da estudante Márcia:
A gente compartilhava nossas angústias, sabe? E aí um dia sentamos aqui, estávamos conversando aqui, naquele parque ali da reitoria, aí a gente falou: ‘Por que a gente não monta um coletivo pra justamente nos fortalecer e fortalecer quem tá também talvez passando pela mesma situação que a nossa?’ E foi assim que surgiu. E aí, a gente começou a pensar sobre isso e pensar também sobre as pessoas que, de alguma forma, não recebem o acolhimento que a universidade não dá. […]. O objetivo do coletivo basicamente é autocuidado. A gente pensar em como a gente vai ser resistência aqui na universidade. Porque, na universidade, a gente sempre passa por coisas assim… Enquanto pessoa negra, enquanto mulher negra, enquanto LGBT também, porque, no nosso grupo, tem LGBT’s negros. A gente passa por constrangimentos, por racismo, por LGBTfobia, às vezes, de formas muito sutis, sabe? Que a gente só vai perceber depois. Uma pessoa conta uma coisa e aí você percebe que você sofreu aquilo (Márcia, mulher negra heterossexual).
Como Azevedo (2019) argumenta, a formação de vínculos sociais tende a ser favorecida por características em comum e pela convivência diária, o que faz que a inserção cotidiana num mesmo ambiente, com expectativas e receios partilhados, além da própria identidade de estudante, contribuam para a criação de relações de cooperação e empatia. O relato de Márcia assinala que os coletivos surgiram, na universidade pesquisada, com o objetivo de criar espaços de diálogo e acolhimento, trocas e compartilhamento de condições semelhantes. Amaral (2013) assinala que, de modo geral, estes grupos tendem a ter início entre estudantes que compartilham condições de vida similares e que, por meio de conversas informais, começam a pensar e problematizar as circunstâncias sociais em que estão inseridos, muitas vezes, vinculadas às relações de poder e opressão. Nesse contexto, percebe-se, conforme Castells (2001), que a identidade de resistência é criada por atores que se encontram em posições/condições socialmente desfavoráveis pela lógica de dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência fundamentadas em preceitos diferentes dos que permeiam as instituições sociais, o que leva à formação de “comunas” ou “comunidades”.
Esta construção identitária origina formas de resistência coletiva diante de opressões que, de outro modo, não seriam suportáveis e, em caso de êxito, essa identidade de resistência pode vir a se tornar, conforme Castells (2001), uma identidade de projeto, isto é, capaz de redefinir sua posição na sociedade e, consequentemente, de buscar a transformação de toda a estrutura social. Nesse contexto, percebe-se que a forma como a universidade acolhe ou não os estudantes, os leva a se darem conta da necessidade de atuação política com vistas à emancipação, ao tentar modificar sistemas construídos e determinados historicamente que diferenciam oportunidades de acordo com as condições de vida de cada pessoa. Machado (2023) pontua que apesar (ou talvez por causa) da percepção de barreiras que lembram aos outsiders o lugar social que eles ocupam, os estudantes que não pertencem ao grupo de estabelecidos empreendem estratégias para superar esses obstáculos, evidenciando a importância que a instituição educativa tem para a trajetória de vida deles. Assim, suas identidades são construídas levando em consideração aprendizados e possíveis ganhos advindos do fato de eles permaneceram na instituição (Machado, 2023). Na presente pesquisa, observou-se que nos espaços físicos e simbólicos em que os coletivos se organizavam, eram possibilitadas e estimuladas construções mais amplas de consciência das posições sociais de seus integrantes, pelo compartilhamento de situações em que eles se percebiam e se reconheciam, levando à politização das relações. Medeiros, Moreira, Soares e Martins (2017) ressaltam ainda que, geralmente, as pautas levantadas em coletivos estudantis abordam questões transversais e ações políticas, embora o foco, muitas vezes, se concentre nas vivências dos membros em meio às relações de poder (expressas no racismo, na homofobia, no sexismo) e à busca por emancipação.
Nesse sentido, a atuação desses estudantes na universidade pesquisada, que possui uma diretoria responsável pela elaboração de propostas e práticas direcionadas àqueles contemplados por ações afirmativas, parece ainda não resolver a problemática dos estudantes em sua totalidade, sobretudo, às relacionadas à opressão social e às políticas de acolhimento. Pelo Plano de Desenvolvimento Institucional da universidade em que este estudo foi feito, cabe a esta diretoria coordenar ações institucionais que visem a sensibilizar e mobilizar a comunidade acadêmica e a sociedade civil acerca de questões relativas à raça/etnia, gênero, diversidade sexual, deficiência, vulnerabilidade socioeconômica e tradições culturais. Oficialmente, a diretoria busca articular os demais órgãos universitários, a fim de envolver discentes, docentes e técnicos administrativos, e promover discussões sobre temas relativos a ações afirmativas, em especial, as que se referem à educação para as relações étnico-raciais. Além disso, se mantém integrada a conselhos municipais de políticas públicas voltadas para as populações negra e de pessoas com deficiência. Entretanto, como Nunes, Miranda e Sacramento (2021) ressaltam, no campo educacional, as discussões sobre o sofrimento provocado pelo racismo, por exemplo, ainda são negligenciadas, visto que os estudantes que passaram a ocupar espaço no ensino superior, como resultado das lutas sociais, ainda encontram um ambiente embranquecido, que reflete as tensões sociorraciais do País. A análise dos resultados da pesquisa evidenciou que a universidade desempenha um papel fundamental na vida e na construção identitária de seus estudantes, constituindo-se um ambiente com menos opressão (em relação ao contexto extramuros universitários), no qual os estudantes se sentem mais seguros, como pode ser percebido na fala de Edson:
A universidade foi fundamental. Foi fundamental pro reconhecimento enquanto identidade negra, porque a gente sabia, eu sabia, mas de fato eu não me reconhecia, não me tratava enquanto negro. Tratar enquanto negro assim: se reconhecer. Alguém falar: ‘Ah, você é moreno’. Não! Em se assumir quanto negro. Acho que isso foi fundamental na universidade. Pra questão sexual também totalmente. […] Enquanto negro acho que a gente fica mais confortável na universidade, enquanto gay eu acho que aqui também é um espaço mais tranquilo de você ter socialização, de você se mostrar, de você ter mais liberdade de fazer as coisas. Acho que isso com toda a certeza. Mas o fato de ter liberdade não significa que não tem preconceito (Edson, homem negro homossexual).
Percebe-se, nesse relato, a relativa liberdade, concedida pelo contexto universitário, para que características identitárias, menosprezadas até então, pudessem ser expressas, reconhecidas e valorizadas. Dessa forma, a fala de Edson exemplifica a vivência de alguém que se sente duplamente estigmatizado e encontra, na universidade, possibilidades maiores de se sentir confortável por ser quem é. A análise interseccional lança, assim, luz sobre aspectos da experiência individual, a fim de que se possa compreender como indivíduos e grupos são “disciplinados” a se adequar e/ou desafiar o status quo não por coerções explícitas, na maioria das vezes, mas por práticas disciplinares persistentes (Collins & Bilge, 2021).
Proposições para uma universidade diversa
Apesar da abordagem cotidiana dessas questões, observa-se que ainda persistem certas lacunas, insuficiências e potencialidades, para as quais os próprios sujeitos da pesquisa apontaram possíveis soluções e encaminhamentos. É importante colocar que existe a possibilidade de que a universidade já execute algumas dessas ações em seus programas, contudo, ainda que possam existir, os estudantes não percebem ou não reconhecem esses programas como realmente efetivos. A fim de mobilizar transformações, estudantes pesquisados teceram críticas e apresentaram propostas com implicações práticas para a instituição universitária, visando a indicar soluções com base no olhar de quem necessita dessas ações. Uma das principais propostas consistiu no fortalecimento do acolhimento dos estudantes por parte da instituição, um ponto que se fez muito presente em diversos depoimentos. Conforme relatado, quando os estudantes chegam com alguma denúncia, questão ou fragilidade, eles desejam ser ouvidos, vistos, perguntados sobre quais seriam as soluções que os contemplariam. Assim, uma das formas pelas quais a necessidade de acolhimento se manifestou foi no questionamento sobre a quantidade de psicólogos disponíveis para atendimento psicoterapêutico, que foram considerados poucos e difíceis de serem acessados:
Mas a questão maior é que eu não precisava viver tudo que eu vivi daquela forma, naquela intensidade, de me privar de tudo, se a universidade me acolhesse, se a universidade me visse, entendeu? Se os professores: ‘Poxa, ela é a única menina preta da sala’ […] Faltam no acolhimento. Hoje em dia a gente tem, por exemplo, os coletivos que fazem esse papel. A própria universidade não faz esse papel. […] Por exemplo, a questão de apoio psicológico que eu mesma já precisei, já usei e gostei. Mas, depois de um tempo eles falaram: ‘Ah, agora você não precisa mais’. Mas, agora a menina que mora comigo fala que tem que agendar, que tem que ligar, que tem uma fila de pessoas na frente (Márcia, mulher negra heterossexual).
Existe uma grande incidência de sofrimento mental na juventude universitária, provocada, em parte, pelas mudanças geradas pelo ingresso na universidade, como o afastamento da cidade natal, a mudança e/ou fragilização das amizades da adolescência e as novas demandas da vida acadêmica (matrizes curriculares extensas, competitividade entre colegas, sono de má qualidade etc.) (Nunes et al., 2021). Tais circunstâncias requerem das universidades empenho na elaboração e na aplicação de políticas institucionais que possam amenizar o impacto deste contexto sobre os estudantes. Ações de acolhimento, de forma institucionalizada e com foco nas dificuldades vivenciadas por outsiders, consistem numa questão para a qual a universidade pesquisada parece ainda não ter se atentado, sendo a oferta de atendimento psicológico individualizado uma iniciativa insuficiente e que não olha para as particularidades do público que tem demandado a prestação deste serviço. Além destas propostas individuais, a universidade pode estruturar ações mais gerais e grupais, e, nesse sentido, a fala de Márcia destaca a importância dos coletivos na promoção de acolhida aos estudantes de grupos minorizados. A criação de rodas de conversa e a abertura de salas de aula para divulgação de espaços que têm o objetivo de acolher os estudantes, como os coletivos universitários, também foram sugestões de alguns estudantes para a instituição:
Às vezes, rodas de conversa, são coisas mínimas, mas que fortalecem muito quem tá vivendo a situação. Abrir espaço […]. Por que que um coletivo feminista não poderia entrar e divulgar? Falar, ‘olha, nós temos reuniões’, sabe, às vezes até poder usar um espaço da universidade, porque são coisas que estão ligadas, né. Um coletivo negro entrar e divulgar, porque, às vezes, as pessoas não sabem, então, abrir esses espaços (Maitê, mulher negra heterossexual).
Nesse contexto, destaca-se o estudo de Munoz, Oliveira e Santos (2018), que observou que a participação em coletivos organizados dentro da universidade constituía estratégia de enfrentamento da discriminação e do preconceito vivenciado por universitárias negras, ao produzir visibilidade e possibilitar que as estudantes demonstrassem que estavam presentes e unidas no espaço acadêmico. As estratégias para superação de dificuldades apontam a inteligência institucional dos estudantes, ao compreenderem as “regras do jogo” e saberem usá-las a seu favor, mas também o sentimento de identificação com o espaço de formação, apesar das barreiras simbólicas e, muitas vezes, materiais, que são impostas por um certo ethos que diverge daqueles aos quais os outsiders estão acostumados (Machado, 2023).
Além disso, muitos depoimentos dos pesquisados apontaram a necessidade de se realizar um processo de reeducação de servidores da universidade e, em especial, de docentes. Ao longo da pesquisa, no que se refere a relações de poder identificadas entre professores homens e estudantes, foram trazidos casos, por exemplo, de professores que tratam a africanidade como algo primitivo e exótico, bem como de professores que assediam e fazem comentários estigmatizantes, como relatado por alguns universitários:
O pior problema em sala de aula é quando o professor acaba falando coisas racistas. A história, muitas vezes, é contada de forma racista. Quando trata, por exemplo, artes de matriz africana, com estéticas do continente africano, assim, de modo geral, como algo primitivo. Isso são ações racistas cotidianas que vai adoecendo a gente. A gente vai ficando cansado, saturado de ouvir isso, tratado como exótico tudo que é relativo ao negro. Enfim, desqualificado isso e imposto sobre nós numa questão eurocêntrica (Luiz, homem negro homossexual).
Uma possível solução, proposta por Renato – participante da presente pesquisa –, seria a universidade realizar trabalhos preventivos em relação a professores e servidores, em vez de trabalhar somente para corrigir situações, colocando como obrigação institucional que os professores participem de uma formação que elucide pautas, como diversidade, estigmatização, meritocracia, políticas de permanência estudantil etc. Conforme relatado:
Eu vejo que a universidade tem alguns recursos, precisa de melhorias, precisam evoluir… mas esses recursos são puramente pra remediar sabe, eles não são preventivos. Você vê que a universidade não fornece formação pros professores para lidar com todos os públicos (Renato, homem negro heterossexual).
Outra sugestão é a instituição apontar, com clareza, brincadeiras e comentários que não podem ser realizados em sala de aula devido ao seu cunho ofensivo, respeitar nomes sociais, explicar, politicamente, as trajetórias vividas pelos diferentes grupos para que essa compreensão seja mais fácil, além de levar exemplos e casos ocorridos dentro da universidade para evidenciar e exemplificar essas questões. Em casos mais graves, como de assédio por exemplo, efetivar normas internas em que sejam previstas penalizações aos assediadores. A despeito da existência de ouvidoria especializada na instituição, os relatos apontaram a necessidade de a instituição implementar uma escuta qualificada para os estudantes e de criar uma estrutura formal para a realização de denúncias, seguindo um “passo a passo” que englobe todas as ações fundamentais para o tratamento de casos, como os de assédio. Os estudantes sugeriram também uma pesquisa por parte dos profissionais das áreas de ações afirmativas, ouvidores, visando a identificar “boas práticas” de universidades que dispõem de soluções para essas questões, como ocorrem suas atuações, o que realizam etc. Neste sentido, segue extrato de um grupo focal:
E a gente sabe que o trabalho adoece. Que o racismo adoece, a homofobia adoece… que machismo adoece. Então, eu acho que isso é preciso ser discutido com qualidade, não é ficar levantando bandeira, porque isso para mim é rir na cara dos LGBT’s, sabe? Porque assim, tem dois anos que morreu um menino trans no […], porque teve um professor transfóbico, sabe? Outro dia, o menino se jogou da residência da universidade, então, para mim, isso é chacota, porque não está sendo lidado, sabe? (Marília, mulher negra homossexual).
Tipo, em criar espaços realmente qualificados, para ouvir os alunos, sabe? E não simplesmente ‘ah, chega no final do semestre, manda um formulário para falar para os professores’. Entendeu? Uma coisa que está na cara, que os alunos, a gente fala entre a gente que não vai dar em nada (Carlos, homem branco homossexual).
Eu acho que por ter um conflito de interesses, em termos institucionais, não acho que funciona uma estrutura formal para receber denúncias… talvez se fosse algo organizado pelos alunos. […] É muito difícil. Mas eu não sei, tem que ver o que está funcionando em outros lugares (Maria, mulher branca heterossexual).
Nota-se, mais uma vez, uma demanda por acolhimento (e tomada de providências) diante das dificuldades vivenciadas por estes estudantes outsiders, as quais podem ser potencializadas pela discriminação vivenciada dentro de um contexto que ainda não conseguiu fazer frente aos desafios de incluir, verdadeiramente, a diversidade humana. Os relatos de assédio e suicídio demonstram que a universidade pesquisada não tem sido capaz de lidar com as agressões físicas e psicológicas que têm ocorrido dentro de seus espaços e, embora se reconheça claramente que ela não é a única responsável por tais acontecimentos, a sua omissão – ou despreparo efetivo – diante da recorrência dos casos contribui para a reincidência de episódios deste tipo. Ouvir a comunidade acadêmica, identificar os casos que demonstram possibilidades de desfechos trágicos e, principalmente, atuar de forma preventiva são demandas necessárias e urgentes.
Conforme observado por Nunes et al. (2021), em intervenção realizada com universitários negros e LGBTQIAPN+, não se pode desconsiderar a relevância de que sejam constituídos espaços de atenção à saúde mental, a fim de assegurar oportunidades de fala a grupos historicamente silenciados em suas demandas sociais e psíquicas. As autoras ressaltam que a saúde mental dos estudantes é impactada por fatores biopsicossociais capazes de interferir na permanência deles dentro da universidade e, consequentemente, na conclusão do curso de graduação. Por isso, fazem-se necessárias ações de apoio à diversidade e à convivência que tenham em vista as especificidades dos contextos em que os estudantes estão imersos, de modo a favorecer o autocuidado, o fortalecimento das identidades e a reflexão sobre projetos pessoais de vida, bem como a construção de diálogos que articulem a universidade, a comunidade externa e os movimentos sociais (Nunes et al., 2021).
Silva (2017) ressalta ainda que questões de gênero e sexualidade, quando interseccionadas com marcadores sociais de classe, raça e origem, têm evidenciado o estranhamento em relação à universidade e interferido nas trajetórias de formação, bem como na construção do sucesso acadêmico, em decorrência de uma permanência não qualificada. Nesse sentido e como Collins e Bilge (2021) assinalam, a presença de estudantes de grupos historicamente minorizados tem confrontado as instituições de ensino superior ao trazer experiências e necessidades diversas, bem como demandado equidade e transformação das estruturas sociais. No que se refere ao desejo de transformação, proporcionado pela universidade, e de atuação em pautas sociais, outra proposta de implicação prática levantada pelos estudantes foi que a universidade criasse um cursinho pré-vestibular social (preparatório para o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM) em que funcionários da instituição pudessem ter oportunidade de estudar, bem como seus filhos e pessoas cujo acesso à universidade é dificultado. O cursinho seria ministrado por alunos, isto é, os professores das aulas ofertadas seriam os estudantes de seus próprios cursos que tenham pretensão de se tornarem professores. Essa proposta proporcionaria ganhos para ambos os lados, no sentido de que os estudantes estariam oferecendo uma contrapartida para a sociedade e para os funcionários da instituição por meio da oportunidade de estudar, bem como se capacitariam para atuarem como docentes, como relatado:
Eu acho que a primeira coisa, as duas primeiras coisas que a universidade deveria fazer é abrir cursinho popular para quem é funcionário da universidade e quer estudar aqui. Real, oficial. Eu sei que é difícil por causa do processo de terceirização, que a universidade não é responsável pelo contrato de trabalho das pessoas. Ela pode fazer um… como é que é? Licenciamento, não… enfim… ela pode mudar isso (Marília, mulher negra homossexual).
Tais iniciativas refletem as relações sociais e as lógicas de poder estabelecidas no interior do espaço universitário, apontando para as formas que os outsiders buscam para tentar romper com estruturas de dominação e demonstrando, conforme Nunes et al. (2021), que os pactos firmados nesse contexto não são neutros nem alheios às nuances do espaço socioeconômico e político. Por fim, foi sugerido que a universidade fizesse um acompanhamento dos alunos em condição de diversidade: número de alunos, cursos, evasão, situação dos egressos etc. Esse acompanhamento deveria funcionar como uma informação gerencial para a universidade, direcionando ações e estratégias de atuação. Como pontuado por Silva (2017), a democratização das universidades não se dá pela simples massificação do acesso de estudantes com diferentes perfis, mas pela garantia de possibilidades de expressão de todas essas identidades sem danos à condição de estudante. Além disso, conforme os estudantes, outras propostas poderiam ser construídas em parceria com os grupos minorizados presentes na universidade.
Considerações Finais
Como Collins e Bilge (2021) destacam, as divisões sociais resultantes das relações de poder de classe, gênero, orientação sexual, entre outras, têm se mostrado muito evidentes no ensino superior, uma vez que as universidades têm se aberto a um número maior de estudantes que, historicamente, enfrentam barreiras discriminatórias. Diante das sugestões formuladas pelos outsiders e das políticas já existentes na universidade voltadas a esses estudantes, o que parece necessário é um planejamento mais amplo e de maior alcance, não um somatório de ações e iniciativas estanques, ao menos na concepção dos entrevistados. Para muitos deles, é imprescindível que as universidades ouçam, de fato, aqueles que têm sido silenciados e, nesta perspectiva, entende-se que os coletivos universitários, como espaços de acolhimento e também de questionamento, podem contribuir para a construção de uma universidade mais aberta à pluralidade e capaz de promover, realmente, a valorização de identidades socialmente rebaixadas. Percebe-se, portanto, que os coletivos ocupam um espaço de poder que visa a alcançar o reconhecimento que estas identidades precisam ter, numa efetiva concepção de cidadania e de democracia.
Nesse sentido, é importante que as políticas e práticas institucionais abranjam o ingresso (recepção, acolhimento inicial), a permanência (suporte financeiro, suporte acadêmico, suporte à saúde física e mental, entre outras possibilidades) e a preparação para a saída ou formatura (apoio para possíveis atividades e suporte emocional, por exemplo). As políticas devem visar tanto a estudantes quanto ao corpo docente e técnico-administrativo, cuja formação deve incluir conhecimento sobre leis, normas e condutas éticas, de modo constante e atualizado.
Por fim, se tais políticas e práticas se constituírem, efetivamente, uma face estratégica do modo de gestão da universidade, deve haver preocupação com as consequências e implicações do não atendimento das diretrizes, o que significa dizer que as devidas sanções deverão ser previstas e adotadas. O que se mostra evidente é que, para os estudantes, as questões relacionadas à vivência da diversidade tem sido negligenciadas ou tratadas como assuntos de pouca relevância dentro do cotidiano acadêmico. Esta percepção pode ser ocasionada por uma ausência de treinamento dos atores institucionais responsáveis pela implementação destas ações, por um modelo de avaliação inadequado destas iniciativas, pela própria complexidade das questões envolvidas, entre outros possíveis fatores que precisam ser mapeados institucionalmente.
Compreende-se que ocupar o lugar de outsider em meio às relações que hierarquizam os estudantes dentro dos espaços universitários têm um grande impacto sobre a construção identitária destes alunos. Por isso, é necessário avaliar as contribuições que os próprios estudantes, organizados ou não em coletivos, têm a oferecer neste processo de acolhimento e de configuração de resistência, bem como considerar as lacunas que eles observam no meio acadêmico. Para futuras pesquisas, sugere-se, assim, que investigações similares sejam realizadas em outras universidades do país, objetivando encontrar similaridades e diferenças entre elas, bem como fortalecer as potencialidades institucionais. Como esta pesquisa não realizou uma análise documental aprofundada acerca da forma como a instituição se posicionava em relação à diversidade e a demais questões relacionadas – o que pode ser visto como uma limitação deste estudo – seria relevante que outras investigações avaliassem também o posicionamento formal das universidades expresso em documentos oficiais. Podem ser analisados também os espaços em que os estudantes se organizam dentro da universidade – para além dos coletivos universitários –, como os diretórios acadêmicos e o diretório central dos estudantes, visando a compreender de que modo eles atuam em pautas de diversidade, grupos minorizados, relações de poder e construções identitárias. Dessa forma, acredita-se que as contribuições desse estudo possam ser ampliadas e ajudem a fortalecer os processos institucionais que têm sido criados em prol de universidades mais plurais, em que grupos historicamente excluídos – assim como suas representações e valores – não sejam apenas inseridos, mas também considerados sujeitos de conhecimento e pertencimento.
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