Revista de Psicologia, Fortaleza, v.15, e024005. jan./dez. 2024
DOI: 10.36517/revpsiufc.15.2024.e024005
RECEBIDO EM: 24/10/2023
PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 21/02/2024
VERSÃO FINAL: 05/03/2024
APROVADO EM: 08/03/2024
Sofrimento de Professores de Instituições de Ensino Superior: um Afeto de Dimensão Ético-política.
Suffering of Teachers at Higher Education Institutions: an Affect with an Ethical-political Dimension.
Elcides Hellen Ferreira Landim Barreto
Universidade Federal do Ceará, Brasil. Psicóloga, doutoranda e mestra em psicologia. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1284-5679. E-mail: hellenbarreto0@hotmail.com; endereço: Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Departamento de Psicologia, Locus. Avenida da Universidade 2762, Benfica. CEP: 60020-180 - Fortaleza, CE – Brasil.
Zulmira Áurea Cruz Bomfim
Universidade Federal do Ceará, Brasil. Psicóloga, doutora e mestra em psicologia. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1874-8821. E-mail: zulaurea@gmail.com.
Resumo
Ainda é comum, no imaginário das pessoas, a perspectiva segundo a qual os sofrimentos e adoecimentos dos professores são decorrentes de uma fragilidade desses profissionais frente às demandas da docência. Considerando que é necessário superar esse olhar que, em alguma medida, expressa uma culpabilização dos próprios docentes pelas dores que lhes acometem, o presente artigo tem como objetivo discorrer sobre a dimensão ético-política do sofrimento de professores de Instituições de Ensino Superior (IES). Tomando como referência, principalmente, os estudos de Sawaia (2006, 2014), observa-se que o aprofundamento das políticas neoliberais no campo da educação produz mecanismos opressores que geram sofrimento, medo e humilhação, precarizam a subjetividade docente, deixando esses profissionais vulneráveis aos processos de adoecimento. Haja vista se tratar de afetos delineados socialmente, as dores sentidas pelos professores decorrentes da atividade docente devem ser caracterizadas como sofrimento ético-político. Como contribuição, este ensaio busca reforçar a compreensão segundo a qual, embora sentido pelo professor, o sofrimento derivado do trabalho docente é um afeto sócio-historicamente situado, produzido a partir das relações de dominação características da racionalidade neoliberal, portanto, não tem sua gênese no sujeito que sofre.
Palavras-chave: Sofrimento ético-político; professor; ensino superior.
Abstract
It is still common, in people's imagination, the perspective according to which teachers' suffering and illnesses are the result of these professionals' fragility when faced with the demands of teaching. Considering that it is necessary to overcome this view that, to some extent, expresses the blaming of teachers themselves for the pain that affects them, this article aims to discuss the ethical-political dimension of the suffering of teachers at Higher Education Institutions (HEIs). Taking mainly the studies of Sawaia (2006, 2014) as a reference, it is observed that the deepening of neoliberal policies in the field of education produces oppressive mechanisms that generate suffering, fear and humiliation, making teaching subjectivity precarious, leaving these professionals vulnerable to illness processes. Given that these are socially defined affects, the pain felt by teachers resulting from teaching activities must be characterized as ethical-political suffering. As a contribution, this essay seeks to reinforce the understanding according to which, although felt by the teacher, the suffering derived from teaching work is a socio-historically situated affect, produced from the relations of domination characteristic of neoliberal rationality, therefore, it does not have its genesis in the subject who suffers.
Keywords: Ethical-political suffering; teacher; University education.
O sofrimento em Instituições de Ensino Superior (IES) tem sido destacado como um fenômeno cada vez mais recorrente entre os professores desse nível de ensino. Embora este contexto seja apontado como um campo em que também se experiencia sentimentos de prazer (Galindo et al., 2020; Martins & Honório, 2014), tem havido um aumento de situações que promovem uma intensificação nos afetos de sofrimento entre os profissionais que atuam nas IES, principalmente entre os docentes (Campos, Carvalho & Souza, 2021; Fernandes, Marinho & Schmidt, 2022; Guimarães, Pontes, Silva & Nunes, 2019).
Pesquisas mostram que o sofrimento entre os professores está associado, sobretudo, às más condições de trabalho, sobrecarga de carga-horária, exigências de produtividade, competição entre os colegas (Galindo et al., 2020). Além disso, são indicados pelos docentes como fatores de tensão no trabalho, a falta de reconhecimento de seu esforço e dedicação, o excesso de burocratização no processo de realização das atividades docentes, insatisfação com o salário, exigência de aperfeiçoamento contínuo, responsabilização pelo sucesso do aluno com vistas a impedir a evasão discente da instituição (Martins & Honório, 2014).
Esse contexto produz uma série de insatisfação e sentimentos de desajustamento com relação ao trabalho docente que reverbera em um alto índice de afastamento de professores de suas atividades em decorrência de problemas de saúde. As doenças que mais aparecem como motivo de licença de docentes do trabalho dizem respeito a transtornos mentais e comportamentais, como depressão, ansiedade, estresse. E a segunda maior causa de afastamento desses profissionais ocorre por doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo, como dorsalgia, artrite, transtornos dos discos cervicais (Campos et al., 2021). Tanto aquelas como estas estão associadas ao modelo de gestão neoliberal das IES que resulta em adoecimentos que reverberam tanto na forma de sintomas psíquicos quanto físicos (Fernandes et al., 2022).
Como estratégia de defesa desse processo de adoecimento, os professores relatam que costumam recorrer à psicoterapia, terapias integrativas, resgate da religiosidade, apoio familiar, atividades físicas e de lazer, e uso de álcool e outras drogas. Além disso, buscam estabelecer uma boa relação com os colegas de trabalho e alunos (Vivian, Trindade, Rezer, Vendruscolo & Rodrigues, 2019). O uso de medicamentos também tem sido um recurso encontrado por alunos e professores, sobretudo de pós-graduação, como uma maneira de conseguir manter a produtividade acadêmica, mesmo em contextos de esgotamento (Silva, Oliveira & Carvalho, 2020).
A partir dos estudos citados, é possível observar que as estratégias encontradas pelos docentes frente ao sofrimento que vivenciam não são direcionadas para o questionamento dos possíveis causadores desse afeto, qual seja, o modelo neoliberal de gestão das IES. Mas antes, configuram-se como recursos defensivos encontrados por cada um dos sujeitos de maneira individual. Essa informação aponta para o fato de que, embora as evidências mostrem que os sofrimentos de professores de IES estão associados à racionalidade neoliberal que rege o contexto de trabalho na contemporaneidade, as propostas de enfrentamento dessa realidade são direcionadas para medidas com foco em estratégias de ordem individual e de iniciativa dos próprios sujeitos que sofrem. Isso evidencia que é comum uma compreensão de que o sofrimento dos professores é um afeto que inicia e se encerra no próprio sujeito que sofre, ou seja, que se trata de um sentimento de caráter solipsista.
Diante disso, observa-se a necessidade de se ampliar o debate acerca da dimensão ético-política das vivências de sofrimento dos professores de IES, de modo a evidenciar esse afeto como resultado da intensificação da racionalidade neoliberal no contexto do ensino superior. Essa discussão é fundamental no sentido de ultrapassar o nível de entendimento de que o sofrimento do professor é resultado de sua falta de resiliência e incapacidade de ajustamento às demandas do trabalho. E assim, endossar a perspectiva segundo a qual é o professor que sofre, mas esse sofrimento é resultado de um sistema de opressão que se estrutura em um nível de produção da realidade que está além das vivências de qualquer docente tomado isoladamente.
Partindo dessa compreensão, o presente artigo tem como objetivo discorrer sobre a dimensão ético-política do sofrimento de professores de IES. Para tanto, iniciamos com uma discussão acerca das implicações do neoliberalismo no contexto do ensino superior. Em seguida, apresentamos uma reflexão sobre a dimensão ético-política do sofrimento que acomete os docentes que atuam no referido nível de ensino.
Implicações do Neoliberalismo no Contexto do Ensino Superior
O neoliberalismo, mais do que uma teoria econômica, instaura-se como uma racionalidade, uma matriz de produção de discursos e modos de subjetivação cujo mercado é a lógica e o princípio organizador de todas as relações (Safatle, Silva & Dunker 2021). Segundo a perspectiva neoliberal, tanto os produtos quanto os elementos naturais e as relações interpessoais são transformados em mercadorias. Assim sendo, tudo e qualquer coisa passa a ser regido e valorizado de acordo com a razão mercadológica.
Nesse cenário, o que antes era entendido como um direito a ser garantido pelo Estado, como o acesso à saúde e educação, passa a ser visto como mercadoria com precificação regulada pela lei da oferta e da procura, concorrência, disputa e competição (Sader, 2011). Assim, embalado pelo discurso em defesa da meritocracia, abre-se, cada vez mais, espaço para o desmonte dos direitos democráticos. Esse desmonte pode ser visto, por exemplo, na reforma trabalhista de 2017(Lei 13.467, 2017), na Medida Provisória de Liberdade Econômica de 2019, transformada na Lei 13.874 (2019), na Medida Provisória 927 (2020) que altera as leis trabalhista durante o período de calamidade pública e na Proposta de Emenda à Constituição (PEC, 32/2020) que trata da Reforma Administrativa. Tais alterações legislativas ampliam a flexibilização, aprofundam a insegurança do trabalho e reduzem cada vez mais a atuação dos sindicatos. Essas, entre outras medidas, revelam a expropriação de direitos e ampliação da precarização das relações de trabalho resultantes das políticas neoliberais.
No contexto da IES, a intensificação dessa racionalidade neoliberal se expressa nas políticas educacionais cada vez mais voltadas para o desenvolvimento de habilidades e competências requeridas pelo mercado. Isso pode ser visto, por exemplo, na ampliação de disciplinas voltadas para o empreendedorismo. A lógica empresarial de gerenciamento se expressa, também, por meio dos mecanismos de regulação e monitoramento das atividades desenvolvidas nas instituições de ensino. Esses procedimentos são operados através do estabelecimento de metas, índices e indicadores mensurados pelas avaliações externas (Laval, 2004).
As avaliações de larga escala da educação, como o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE), revertem-se, no interior das IES, em exigências e cobranças por metas, em aumento da pressão por altos índices de desempenho, em perda da autonomia do docente com relação à condução das aulas e elaboração de avaliações de aprendizagem das disciplinas. Soma-se a essas demandas a cobrança por produção científica e por aumento da titulação acadêmica dos docentes. No contexto específico da educação privada, os professores estão ainda submetidos ao medo do desemprego e redução dos salários. Em meio a tudo isso, esse profissional, ao estar a serviço das exigências neoliberais, sente intensas limitações no seu fazer, além da desvalorização e descaracterização de sua atividade (Gerheim, 2022).
A situação pandêmica que se vivenciou no Brasil no período de 2020 a 2022 agravou essa realidade de precarização do trabalho. A Covid 19, entre muitas consequências, impôs o trabalho remoto aos professores. Com isso, as funções desse profissional não foram apenas modificadas, foram ampliadas, haja vista que ele precisou, além das atividades que já realizava anteriormente, também gravar videoaulas, editá-las, participar de videoconferências, aprender a utilizar ferramentas para melhorar o engajamento do aluno, monitorar realização de atividades e frequência on-line. Além disso, foi preciso pensar diferentes estratégias para garantir a permanência do aluno na instituição. Essas condições para o exercício de suas funções exigiram dos docentes o uso de uma série de ferramentas tecnológicas com as quais, em muitos casos, não tinham familiaridade, uma vez que elas não eram necessárias ao desempenho de suas atividades de maneira presencial.
Nesse processo de transição do ensino presencial para o remoto, a sala de aula foi substituída pela virtual. Com isso, o professor perdeu não só o ambiente símbolo do seu trabalho, mas também o espaço da construção reflexiva, da partilha de histórias, da espontaneidade criativa, da discussão teórica, do debate reflexivo que possibilita o desenvolvimento do pensamento crítico. No lugar dessa presencialidade afetiva se tinha a virtualidade expressa por meio de ícones padronizados, silenciosos e silenciados do outro lado da tela. Além disso, com a realização das atividades profissionais no ambiente residencial, foram desfeitas as barreiras de tempo e espaço que separam o trabalho produtivo do trabalho reprodutivo (Fares, Oliveira & Rolim, 2021). As demandas domésticas e laborais se misturaram e se intensificaram, aprofundando ainda mais a sensação de exaustão, incompetência e fracasso.
Esses sentimentos já estavam presentes entre os profissionais, uma vez que eles são próprios dessa sociedade que se caracteriza, sobretudo, pela maximização da produção, do lucro, do desempenho (Han, 2019). A cobrança por aulas objetivas, desenvolvidas com ferramentas virtuais, focadas na técnica e no ‘saber-fazer’, semelhantes aos vídeos acessados nas redes sociais já era crescente. O uso cada vez mais intenso das tecnologias já era apresentado como solução para otimização dos recursos financeiros tanto nas IES privadas quanto públicas. Nesse cenário, a educação superior há muito se distancia de qualquer visão de missão social. O contexto pandêmico, entretanto, acentua esse distanciamento ao acelerar a implementação de um modelo de ensino que impede as universidades de serem espaços de construção de conhecimento crítico, livre, plural e independente (Santos, 2020).
Essa aceleração do processo de degradação do ensino superior é confirmada por Santos (2023). Ao analisar as determinações sócio-históricas do período pós-pandemia no ensino superior do Brasil, a autora aponta que o cenário pós-pandêmico é de avanço do projeto de mercantilização do ensino superior, de empobrecimento do processo de construção de conhecimento a partir das trocas e interações humanas e de ampliação do movimento de precarização do trabalho docente.
Esse último ponto, qual seja, precarização do trabalho docente, pode ser confirmado pelo censo da educação superior de 2022. De acordo com os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep, 2023), em 2019, antes da pandemia de Covid 19, havia um total de 8.603.824 alunos matriculados no ensino superior no Brasil. Em 2022, último período com informações divulgadas pelo Inep, esse número era 9.443.597. Isso mostra que houve, de 2019 a 2022, um crescimento de 839.773 matrículas de alunos no ensino superior. Movimento inverso ocorre com o número de professores em exercício no ensino superior no mesmo período. Em 2019 havia no Brasil um total de 386.073 docentes em exercício e em 2022 esse número caiu para 362.116. Assim, é possível constatar que, mesmo diante de um expressivo crescimento no número de alunos matriculados, houve, no período em questão, uma redução de 23.957 professores em exercício no ensino superior no Brasil. Esse cenário põe em dúvida a alegada crise utilizada para justificar o corte de professores ocorrido no período da pandemia.
A partir desses dados é ainda possível observar que, embora o fim da emergência sanitária tenha sido declarado ainda no primeiro semestre de 2022, o número de professores em exercício no ensino superior, contabilizados no censo do referido ano, continuou abaixo daquele anterior ao período pandêmico. Isso aponta que esse processo de precarização deve permanecer mesmo no pós-pandemia. Confirma-se assim, portanto, que as transformações ocorridas na educação, nos anos de 2020 a 2022, não se revelam apenas como saídas emergenciais para lidar com a crise decorrente da pandemia. Tratam-se, antes disso, de um projeto, já em curso anteriormente, de mercantilização da universidade (Santos, 2020).
O professor, neste cenário de mercantilização da educação, é tomado por uma gama de demandas paradoxais: por um lado, tem a regulação dos tempos, ampliação de suas tarefas, estabelecimento de metas e limitação de custos com recursos pedagógicos. Por outro, recai sobre si os apelos gerenciais que lhes demandam flexibilidade para desenvolver um maior número de tarefas, maleabilidade, espírito de equipe, senso de colaboração e autonomia (Gerheim, 2022). Entre essas imposições contraditórias, os valores sociais e pedagógicos da profissão docente, como a promoção do diálogo e do protagonismo do aluno no seu processo de aprendizagem, acabam por ficar inviabilizados. Com isso, o “trabalho do professor mostra-se esvaziado de sentido e é somado aos sentimentos de pouca autonomia e muita desvalorização” (Gerheim, 2022, p. 155). Essa condição gera um empobrecimento do sentido de ser e de existir desse sujeito trabalhador. Esse fenômeno, denominado precarização subjetiva (Castro, 2022), evidencia que as determinações sociais contemporâneas acabam por precarizar não apenas o trabalho, mas também a própria subjetividade do trabalhador.
Sofrimento Ético-político de Professores de Instituições de Ensino Superior
Referências à dimensão ética e psicossocial do sofrimento dos sujeitos são feitas por Sawaia em 1994 ao abordar a dimensão ético-afetiva do adoecer da classe trabalhadora. Embora a autora tenha apresentado a saúde como uma questão eminentemente sócio-histórica e ética nesse estudo, é com a publicação do livro ‘As artimanhas da Exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social’, em 1999, que o termo sofrimento ético-político é veiculado pela primeira vez no meio acadêmico (Bertini, 2014).
Na referida obra, o sofrimento ético-político é apresentado como uma categoria de análise da dialética exclusão/inclusão. Este é definido como sendo um afeto derivado das relações sociais construídas historicamente em um contexto no qual as situações de desigualdade, opressão e injustiças, firmados no medo e na servidão, despotencializam a existência das pessoas (Sawaia, 2014).
Essa perspectiva é construída, principalmente, a partir do pensamento de Espinosa, filósofo do século XVII, segundo o qual, o afeto é a base da ética e da política (Spinoza, 2014). Para Espinosa (Spinoza, 2014, p. 105), “Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser”, por meio de uma potência de agir. Esta se caracteriza como um esforço movente intrínseco aos seres, como uma potência que os impulsiona para a vida. Assim, todos os elementos da natureza, incluindo os seres humanos, estão em constante movimento pelo qual vai se produzindo a existência.
Nesse fluxo permanente, as pessoas são afetadas umas pelas outras e esses afetos podem ocorrer no sentido de diminuir ou expandir a potência de ação dos sujeitos. A diminuição da potência ocorre quando, em decorrência do encontro com o outro, a ação do sujeito passa a ser motivada por ideias confusas, ilusórias, originárias de superstições e medos. Nesse cenário, as pessoas experimentam a tristeza, a servidão e a heteronomia. E assim, tendo a capacidade de produção da existência diminuída, padecem e sofrem.
Esse sofrimento, de acordo com Heller (1999), não se configura como uma dor que emana do indivíduo, que é própria da condição humana e, portanto, inevitável; mas antes, trata-se de uma dor mediada pelas injustiças sociais. Assim sendo, diz respeito à dimensão social e histórico-cultural dos afetos que se constituem a partir dos significados construídos nas relações dialéticas entre os sujeitos e a sociedade (Vigotsky, 2007).
A partir dessa compreensão, Sawaia (2014) conceitua o sofrimento ético-político como sendo aquele resultante das políticas de exclusão e processos de marginalização dos sujeitos. Ele é gerado a partir das desigualdades sociais e opressões que submetem os indivíduos a condições de sujeição e servidão, diminuindo a sua potência de ação e, consequentemente, sua capacidade de produção da existência. Assim sendo, quando se trata dessa categoria, “É o indivíduo que sofre, porém, esse sofrimento não têm a gênese nele, e sim em intersubjetividades delineadas socialmente” (Sawaia, 2014, p. 101).
Diferentes estudos têm evidenciado a dimensão ético-política dos afetos (Bertini, 2014). Como exemplo pode ser citada a pesquisa realizada por Hinkel e Maheirie (2007) acerca do conteúdo das letras de músicas de bandas de rap nacional. De acordo com a análise desses autores, as letras de rap apresentam sentimento de culpa, vergonha, tristeza, humilhação, revolta e medo. A expressão desses afetos despotencializadores nas letras de música denunciam processos de inclusão em uma ordem social que tem como base um sistema de exclusão/inclusão perversa dos jovens da periferia brasileira (Hinkel & Maheirie, 2007).
O sofrimento ético-político também é experienciado nos processos de inserção no mercado de trabalho. Em uma pesquisa que teve como objetivo compreender a vivência e a qualidade da inserção no mercado de trabalho de jovens trabalhadoras de uma indústria de confecção na cidade de São Paulo, Dias (2014) observa que, embora essa atividade permita que as jovens trabalhadoras tenham condições de se inserir no mercado produtivo e consumidor, esse é um processo de inclusão perversa. Isso porque, a atividade que desempenham para se manterem no mercado é mecânica e repetitiva, de modo a impedir o pleno desenvolvimento criativo e a expansão da potência de ação dessas trabalhadoras. Na mesma direção, Bertini (2014, p. 61), tendo como referência a análise de outros contextos de trabalho, conclui que “A maneira do sistema capitalista incluir faz parte dos mesmos mecanismos de produzir e sustentar a servidão, a passividade, a miséria e, principalmente, a alienação do trabalhador”.
O trabalho do professor, embora possa ser considerado, à primeira vista, uma atividade socialmente valorizada, ou seja, entendida como digna, importante e até fundamental para o presente e futuro da humanidade, não ficou imune às transformações decorrentes da implementação das políticas neoliberais. De modo que, os valores superiores que ensejavam a missão de educar/civilizar a humanidade, tornam-se para os docentes fardos a carregar em uma sociedade em que a educação se torna mais uma mercadoria (Costa, 2005).
Nesse contexto de mercantilização da educação, os professores de IES precisam lidar com exigências de produtividade (Silva et al., 2020), entre outros indicadores do processo de precarização e flexibilização laboral (Aquino, Moita, Correa & Souza, 2014). Ao mesmo tempo, esse profissional carrega a missão de ser exemplo de emancipação e promover a emancipação de outros sujeitos (Costa, 2005). Desse modo, como analisa Costa (2005), o fazer docente é delimitado por uma certa contradição: por um lado, o imperativo de se conscientizar enquanto educador, cidadão livre, esclarecido e revolucionário, e possibilitar essa vivência aos demais; por outro, os limites da realidade profissional.
O contraditório vivenciado pelos professores, de acordo com Gerheim (2022), faz com que o docente, em meio a sentimentos de pouca autonomia e muita desvalorização, sinta um esvaziamento de sentido do seu trabalho e, consequentemente, um empobrecimento na sua condição de ser e de existir. Esse fenômeno, definido por Castro (2022) como precarização subjetiva, revela a condição de desorientação, sofrimento e desamparo à qual o trabalhador está submetido.
A precarização subjetiva vivenciada pelos professores, resultante de um processo de inserção em um contexto social que impede esses profissionais de desenvolverem o seu potencial humano, tem como consequência múltiplas formas de mal-estar deflagradores de uma série de adoecimentos físicos e mentais, cujos mais prevalentes são ansiedade, depressão e doenças osteomusculares. Além desses, sintomas de labirintite, hipertensão, alcoolismo, gastrite, fibromialgia, distúrbios alimentares e enxaqueca têm sido cada vez mais recorrentes entre os docentes do ensino superior (Silva, 2015).
Todos esses agravos a saúde dos professores de IES não se caracterizam como dores que emanam do indivíduo, que são próprias da condição humana, e, portanto, inevitáveis. Essas são dores resultantes das exigências de produtividade e competitividade decorrentes do fenômeno de precarização e flexibilização laboral que ocorrem no âmbito das IES brasileiras, tanto da esfera pública (Aquino et al, 2014) quanto da rede privada de ensino (Barreto & Bomfim, 2023).
O sofrimento que acomete cada vez mais os professores de IES é resultado das relações que se constituem a partir do entrelaçamento de questões políticas, sociais, econômicas e subjetivas. Desse modo, a precarização subjetiva do professor diz respeito à dimensão social, histórica e cultural da realidade contemporânea. Assim sendo, a dor relativa a esse processo deve ser caracterizada como expressão de um sofrimento de caráter ético e político.
Considera-se o sofrimento docente, tal como Sawaia (2006) compreende a saúde ao abordar a dimensão ético-afetiva do adoecer da classe trabalhadora, como uma “(...) questão eminentemente sócio-histórica e, portanto, ética, pois é um processo da ordem da convivência social e da vivência pessoal” (Sawaia, 2006, p.157). Trata-se de um afeto com origem nas relações de poder que produzem e mantêm as opressões sociais e as relações de servidão que impedem que os sujeitos desenvolvam o seu potencial humano, portanto, um afeto de dimensão ético-política.
Para finalizar, é importante acrescentar a essa discussão, embora de maneira bastante pontual, que, conforme Sawaia (2009, p. 366), “Os homens se submetem à servidão porque são tristes, amedrontados e supersticiosos. Enredados na cadeia das paixões tristes, anulam suas potências de vida e ficam vulneráveis à tirania do outro, em quem depositam a esperança de suas felicidades”. Desse modo, as relações de opressão, tal como ocorrem no contexto das IES, estruturam-se a partir de sistemas que anulam a potência de vida dos sujeitos ao ponto de deixá-los vulneráveis aos processos de dominação.
Considerações Finais
Este artigo teve como objetivo discorrer sobre a dimensão ético-política do sofrimento de professores de Instituições de Ensino Superior. Com esse intuito, foi realizada, inicialmente, uma apresentação sobre as implicações do neoliberalismo no contexto das IES, para, em seguida, ser evidenciado o caráter ético e político das dores que acometem os professores das referidas instituições.
No decorrer da exposição foi possível observar que, embora a figura do professor, ao longo do período moderno da história da civilização ocidental, tenha representado a imagem do ‘novo homem’, qual seja, racional, livre e esclarecido, emancipado; e, por esse motivo, tenha-lhe sido atribuída a missão de emancipar a sociedade, esse profissional não saiu ileso do processo de aprofundamento das políticas neoliberais.
Com a precarização e flexibilização que atinge tanto as IES públicas quanto privadas, o professor é acometido por dores que revelam o sofrimento ético-político desses profissionais. Isso porque são resultado de um processo complexo que é ao mesmo tempo subjetivo e objetivo, individual e coletivo, que diz respeito ao entrelaçamento de questões políticas e sociais que interferem nas ações dos sujeitos, ou seja, trata-se de um processo social, histórico e culturalmente situado.
Dessa forma, com este trabalho pretendeu-se contribuir com o fortalecimento da perspectiva segundo a qual o sofrimento docente, embora sentido pelo professor, não tem nele a sua gênese. Esse é resultado de um sistema de opressão que opera em um nível de produção da realidade que está para além da vivência solipsista de cada docente que sofre. Assim, busca-se colaborar com a superação de qualquer colocação que, de algum modo, culpabilize os docentes pelas dores que lhes acometem em decorrência da sua atividade laboral.
Considerando que este artigo teve como foco as vivências de sofrimento dos professores de IES e sabendo que, como coloca Sawaia (2009, p. 364), “há também o extraordinário milagre humano da vontade de ser feliz e de recomeçar onde qualquer esperança parece morta”, sugere-se que sejam desenvolvidas pesquisas futuras no sentido de refletir sobre possibilidades de enfrentamento e transformação desse contexto causador de sofrimento docente.
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