Revista de Psicologia, Fortaleza, v.15, e0240013. jan./dez. 2024
DOI: 10.36517/revpsiufc.15.2024.13
RECEBIDO EM: 17/01/2024
PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 17/06/2024
VERSÃO FINAL: 25/06/2024
APROVADO EM: 03/07/2024
Encontros e Despedidas: Atuação Multiprofissional no Luto Antecipatório em Cuidados Paliativos Oncológicos
Meetings and Farewells: Multiprofissional Practices in Anticipatory Grief in Oncological Palliative Care
Mariana do Nascimento Silva
Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Brasil. Especialista em Atenção em Oncologia pelo Programa de Residência Multiprofissional de Atenção em Oncologia da Secretaria de Estado da Saúde do Maranhão (SES/MA). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0351-072X. Email: mariananscs@gmail.com.
Alice Parentes da Silva Santos
Centro Universitário Dom Bosco, Brasil. Mestra em Saúde Coletiva (UFMA). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1220-4479. Email: aliceparentes@hotmail.com
Fillipe Rodrigues Santos Pereira
Universidade Federal de São Carlos, Brasil. Especialista. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2989-4234. Email: frspereira@estudante.ufscar.br.
Resumo
O Luto Antecipatório é uma elaboração gradual do luto, a partir das perdas advindas com o adoecimento, sendo frequente diante do diagnóstico de doenças graves e ameaçadoras à vida, como as oncológicas. As equipes de Cuidados Paliativos tornam-se facilitadoras deste processo, visto os objetivos deste cuidado. Este é um estudo qualitativo, dedicado a compreender a percepção e prática profissional dos membros de uma equipe atuante em Cuidados Paliativos Oncológicos em um Hospital Público Oncológico, situado em uma capital da Região Nordeste do Brasil, diante do Luto Antecipatório vivido por pacientes e cuidadores. A amostra foi composta por 15 participantes, entre residentes e staffs, com coleta de dados através de entrevista semi estruturada, e posterior análise por meio da Análise de Conteúdo de Bardin, gerando três categorias. Os resultados apontam influência dos pressupostos dos Cuidados Paliativos no manejo, destacando-se aspectos comunicacionais, formativos e de atuação em equipe, embora haja tendência a direcionar demanda à Psicologia. Outrossim, nota-se atravessamento pessoal desta atuação, mobilizando o olhar do profissional para si – sua existência, seu desejo e suas diretivas.
Palavras-chave: Luto; cuidados paliativos; equipe multiprofissional.
Abstract
Antecipatory Grief is a gradual elaboration of mourning, from the losses arising from illness, being frequent from the diagnosis of serious and life-threatening diseases, such as oncological ones. Palliative Care teams become facilitators of this process, given the objectives of this care. This is a qualitative research, dedicate to understand perception and professional practices of the members from a Oncological Palliative Care team at a Public Oncology Hospital, located in a capital of the Northeast Region of Brazil, in the face of Antecipatory Grief experienced by patients and caregivers. The sample consisted of 15 participants, including residentes and staffs, with data collection throug semi-structured interview, and subsequente analysis through Bardin’s Content Analysis, generating three categories. The results point to the influence of Palliative Care assumptions on management, highlightings communicational, trainning and teamwork aspects, although there is a tendency to direct demand to Psychology. Furthermore, there is a personal crossing of this action, mobilizing the professional’s perspective on themselves – their existence, their desire and directives.
Keywords: Grief; palliative care; multiprofessional healthcare teams.
Os Cuidados Paliativos (CP), segundo definição da International Association for Hospice & Palliative Care (2018), despontam enquanto cuidados holísticos, ofertados a pessoas de todas as idades, que se encontram em intenso sofrimento relacionado a saúde, proveniente de doença severa. Entre as patologias graves e ameaçadoras à vida na atualidade, estão as doenças oncológicas, que têm se tornado o principal problema de saúde pública do mundo (INCA, 2019).
Embora haja indicação de que os Cuidados Paliativos estejam presentes desde o diagnóstico, tornando-se preponderantes a depender da necessidade do paciente, eles são comumente solicitados em momento de maior agravo clínico, já sendo iniciado como exclusivos (Braz & Franco, 2017). Consequentemente, pacientes e cuidadores são apresentados aos CP diante de quadros clínicos avançados, havendo simultâneo contato com a finitude e elaboração do luto.
Segundo Bowlby (1990), o luto é uma resposta à ruptura de um vínculo significativo no qual havia um investimento afetivo. Há, portanto, um caráter particular nesta vivência, por correlacionar-se ao grau de apego, fatores relacionados à perda e significações construídas pelo enlutado.
Neste cenário, o Luto Antecipatório é um fenômeno compreendido como uma reação adaptativa, a partir da antecipação de um desligamento afetivo (Fonseca, 2014), que tem sido percebido em circunstâncias de diagnóstico de doenças ameaçadoras à vida, bem como diante de perdas iminentes, visto rompimento da realidade conhecida até então.
Franco (2014) define este processo enquanto uma construção de significado, que possibilita absorver a realidade da iminência de perda de forma gradual, mesmo sem sua efetiva materialização. Pode favorecer a resolução de questões pendentes, expressão de sentimentos, iniciar mudanças de concepção sobre a vida e identidade; além de fazer planos para o futuro sem a sensação de traição ao doente (Braz & Franco, 2017; Franco, 2010). Têm-se percebido que o preparo cognitivo, emocional e espiritual pode influenciar positivamente no enfrentamento da perda, na medida em que contribui à reorganização da vida intrapsíquica, relacional e social (Fonseca, 2014). Ademais, embora não se exclua o impacto da perda quando esta se torna concreta, podem haver contribuições ao luto pós morte, diminuindo a probabilidade de ocorrência de um luto complicado.
Destarte, a atuação em equipe multiprofissional é essencial para facilitação deste processo, visto maximizar a oportunidade de cuidado integral às demandas de pacientes e cuidadores. A literatura aponta influência direta do manejo profissional em aspectos que perpassam o luto antecipatório, sendo citados: quantidade e qualidade das informações fornecidas aos pacientes e cuidadores; atitudes dos profissionais; possibilidade de se despedir; adaptações ao ambiente e rotina da unidade hospitalar (Rini & Loris como citado em Poles, Misko, & Bousso, 2014).
Há de se considerar que as intervenções profissionais realizadas durante os Cuidados Paliativos, refletem na vivência do Luto Antecipatório (Matioli & Costa, 2021). Entretanto, o contato profissional constante ao cuidado da terminalidade, pode representar situação emocionalmente difícil na prática laboral, não raro envolvendo algum grau de sofrimento.
Neste sentido, este estudo intenta compreender a percepção e prática profissional de uma equipe de saúde atuante em Cuidados Paliativos Oncológicos diante do Luto Antecipatório vivido pelas pessoas atendidas e seus cuidadores, bem como os impactos pessoais e laborais reflexos ao acompanhamento deste processo.
Método
Este estudo é resultado de uma pesquisa qualitativa. Para obtenção dos dados realizou-se pesquisa empírica de campo, tendo como local de pesquisa uma enfermaria com leitos destinados a Cuidados Paliativos de um Hospital Público estadual, referência no cuidado oncológico, situado em uma capital da Região Nordeste do Brasil. A escolha por este espaço justifica-se por sua relevância e alcance, bem como pela estruturação de equipe multiprofissional específica, que atua em casos de cuidados paliativos exclusivos e conjunto.
A inclusão dos participantes na pesquisa esteve fundamentada nos seguintes critérios: profissionais de formação superior ou técnica, atuantes de forma exclusiva ou conjunta em equipe multiprofissional de Cuidados Paliativos na referida unidade há pelo menos 3 meses, considerando a data em que as entrevistas foram realizadas. Os sujeitos desta pesquisa foram 15 profissionais das seguintes especialidades: nutrição, enfermagem, técnico em enfermagem, fisioterapia, serviço social, psicologia, fonoaudiologia, capelania, medicina e quatro residentes de um Programa de Residência Multiprofissional com foco em Oncologia, das especialidades psicologia, serviço social, farmácia e nutrição.
A coleta de dados ocorreu pela primeira autora, no período de agosto de 2021 a janeiro de 2022. Efetivou-se pela realização de Entrevista Estruturada (questionário com foco em levantamento de dados sociais, demográficos, culturais e de formação) e Semiestruturada, realizada a partir das seguintes perguntas disparadoras: 1. “Fale um pouco sobre a prática assistencial junto a pacientes e cuidadores em Cuidados Paliativos”; 2. “Você já viveu a experiência de acompanhar o processo de luto antecipatório no contexto de Cuidados Paliativos?” 3. “O que você percebe como possibilidades e limites da sua atuação neste contexto?”.
Visando a garantia dos aspectos éticos, as entrevistas foram realizadas em consonância com as Resoluções do Conselho Nacional de Saúde que tratam das pesquisas com seres humanos, tendo sido autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa e pela Coordenação de Ensino e Pesquisa da unidade de saúde em questão. Condizente à Res. N° 580, de 22 de março de 2018, previu-se divulgação dos resultados desta pesquisa à instituição por meio de encontros formativos e trabalhos de grupo temáticos aos profissionais staff e residentes.
A coleta foi realizada a partir de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em sala multiprofissional da enfermaria de Cuidados Paliativos e repouso dos profissionais, circunstâncias nas quais garantiu-se (por meio de acordo verbal e identificação visual) ambiente livre de interrupções, com resguardo ao conforto e sigilo adequados à gravação das mesmas, sem prejuízos à assistência aos usuários.
Ainda sob intuito de redução dos riscos inerentes à pesquisa, sinalizou-se por escrito e verbalmente, a possibilidade de suporte psicológico focal de urgência, a ser realizado pela autora, caso as questões abordadas fossem intensamente mobilizadoras. Cumpriu-se a realização, quando percebida necessidade ou demandado pelo participante.
Posteriormente, os registros orais das entrevistas foram transcritos, na íntegra, no intuito de propiciar análise de dados fidedigna ao conteúdo colhido, totalizando 36’66’’ em termos de duração média de cada fala. Por ocorrência de supressão dos dados de identificação, os partícipes estão aqui caracterizados por categoria profissional e numeração, em caso de quantidade superior a 1 (um) participante por categoria, conforme disposto na Tabela 1, acrescido de dados laborais acerca da assistência no contexto de Cuidados Paliativos, fornecidos à data das entrevistas.
A análise dos dados está fundamentada no método de Análise de Conteúdo de Bardin (2016), dividida em três momentos: 1. Pré análise – realizou-se contato inicial com o material a ser analisado, a partir do registro do discurso dos participantes; 2. Exploração do Material – categorização dos conteúdos em três unidades temáticas; 3. Tratamento dos dados – interpretação dos conteúdos e discussão, considerando fundamentação teórica.
Resultados e discussão
A caracterização dos participantes, demonstra acerca de dados demográficos e culturais que a faixa etária dispõe-se entre 24 – 55 anos, cuja maioria identifica-se como gênero feminino (10 entrevistadas) e de crença católica (12 entrevistados). Quanto aos aspectos formativos, a maioria possui formação concluída ou em curso em área específica de Cuidados Paliativos ou Oncologia, sendo uma parte destes residentes, conforme apresentado na Tabela 1. Igualmente a maioria declara ter participado ou organizado eventos e/ou cursos com as temáticas morte, luto e/ou cuidados paliativos nos últimos cinco anos, fato que, relacionado ao tempo de atuação, demonstra busca por aprimoramento profissional e intuito de compartilhar a experiência do serviço em questão.
São apresentados a seguir os dados desta pesquisa nas seguintes categorias temáticas: Conhecimento do Luto Antecipatório, Manejos multiprofissionais e Aspectos relacionados a pessoalidade.
Encontro e despedida: conhecimento do Luto Antecipatório
Esta categoria se constitui a partir do conhecimento declarado pelos profissionais sobre processo de Luto Antecipatório e percepção da repercussão formativa.
É importante destacar que o hospital onde se desenvolveu a pesquisa tornou-se especializado em oncologia no ano de 2014, tendo logo em seguida destacado ala e equipe específica de Cuidados Paliativos. O setor em questão divide-se, atualmente, entre leitos de Cuidados Paliativos (exclusivos e conjuntos) e Oncologia Clínica. Dos profissionais entrevistados, quatro são atuantes nesta ala desde sua fundação; destes, três profissionais estiveram na transição entre Hospital Geral e Hospital Oncológico. Esta experiência de transição reflete diretamente na elaboração pessoal e profissional destes, tanto em termos de perdas e luto, quanto de compreensão do cuidado paliativo, conforme é possível perceber no relato a seguir:
Quando resolveram mudar tudo [de Geral para Oncologia], disseram que seria o Paliativo [no andar em questão]. Fui começar a saber o que era, ler, entender; foram explicar pra gente como era [o serviço de paliativo]. E eu disse que não queria ficar, pedi pra mudar de setor. E disseram que eu ia saber, que ia dar certo. Fui levando. (Fs., fisioterapeuta)
É aparente, no relato, a busca por conhecimento especializado em momento posterior ao início da atuação, além da pouca proximidade anterior com as áreas. A literatura aponta resultados semelhantes quanto a percepção de necessidade de aprofundamento advinda da experiência de trabalho (Braz & Franco, 2017). Ademais, pontua-se o aspecto emocional, diante da interpretação inicial de não ser possível lidar com o contexto, destacando-se o heterossuporte laboral como significativo ao enfrentamento.
Muitos entrevistados pontuaram vivências pessoais com Oncologia e finitude, antecedentes à atuação, que tiveram repercussão direta em seus enfrentamentos e escolhas. Para alguns, reforçava a percepção de falta de recursos de enfrentamento suficientes, associada à frustração, estresse e entristecimento; enquanto para outros, foi propulsor para atuação.
Da formação profissional, a ampla maioria dos entrevistados pontuou não ter tido contato em suas graduações - ou percebê-lo como superficial, com temáticas associadas à Cuidados Paliativos, morte e luto antecipatório, corroborando o que aponta a literatura (Kóvacs, 2009; Braz & Franco, 2017). Este fato pode estar associado ao tabu social em torno do tema, reforçado na formação profissional, que repercute nos achados de pesquisa apontando para consequências negativas advindas deste distanciamento, como sofrimento psíquico, estresse, burnout, entre outros (Santos, 2014).
Para lida desta questão, além da necessidade de revisão de diretrizes curriculares (Santos, 2014), pontua-se a importância da educação para a morte como parte do desenvolvimento pessoal integral, não somente profissional, conforme apresenta Kóvacs (2005).
Entretanto, embora os participantes desta pesquisa tenham apontado deficiências formativas em suas graduações, os residentes e profissionais staff que foram residentes, pontuaram contato com as referidas temáticas no curso desta formação, tendo contribuído para sentirem-se atentos e mais seguros no manejo. Conforme identifica-se no discurso abaixo, quando se questiona sobre o contato com o conceito ou a prática de Luto Antecipatório na residência:
Teve, sim... A gente trouxe essa demanda pra psicóloga residente, então, ela trouxe essa fala sobre luto dando embasamento de como a gente poderia fazer. Quando a gente tá preparado, capacitado por alguém que é o profissional daquela área, a gente faz com um pouco mais de segurança. (Ras, Assistente Social Residente)
Da formação por meio das residências multiprofissionais, têm-se discutido a inserção da tanatologia no conteúdo curricular como estratégia importante de capacitação e preparo para o contato com a finitude, visto que esta proximidade técnica formalizada ainda é descrita como rara por alguns programas, embora recorrente na prática diária (Nascimento, Silva, Arilo, & Oliveira, 2022). Além disto, Braz e Franco (2017) abordam que o preparo para lidar com o processo de morte do paciente pode se constituir como protetivo, na medida em que pode ser representativa de segurança nesta circunstância de crise, provendo continência emocional, acolhimento, escuta e responsividade às necessidades integrais que surgem.
Identifica-se que este processo de aprendizagem pela prática também influencia a compreensão conceitual do processo de Luto Antecipatório, visto que a maioria dos profissionais demonstrou entendimento por meio da exemplificação de demandas, tais como percepção de maior gravidade clínica, despedidas, comunicação de notícias difíceis, realização de desejos e atenção às necessidades integrais em fim de vida de pacientes e cuidadores (fisiológicas, sociais, emocionais e espirituais). Apenas quatro profissionais solicitaram esclarecimentos acerca do termo antes de tratarem sobre suas percepções. Mesmo nestes casos, referiam-se à prática, ainda que não nomeassem conceitualmente.
Há uma percepção partilhada de associação entre Luto Antecipatório e comunicação de Cuidados Paliativos, especialmente mais presente durante a terminalidade ativa do paciente. Conforme ilustra a fala:
Principalmente quando a família recebe a notícia que paliativou; que não tem mais a chance da cura. Daí começam as manifestações mesmo de luto antecipatório. O próprio paciente quando toma consciência que não vai mais ficar curado também, já começam comportamentos de luto antecipatório. (P., Psicóloga)
Disto, Giacomin, Santos & Firmo (2013) alertam para um estado de apercepção corporal diante da saúde, modificado durante o adoecimento, que interpõe uma vivência corporal extrema e o contato com a finitude. Isto pode apontar para o motivo de manifestações do luto antecipatório serem comumente percebidas pelos entrevistados diante da notícia de prognóstico reservado.
Ademais, a ampla maioria dos profissionais entrevistados pontua a recorrência de “paliação tardia”, quando ocorrida diante de agravamento considerável da patologia, contrariando as recomendações de que os Cuidados Paliativos sejam ofertados o mais precocemente possível, tornando-se exclusivo em fases mais avançadas, considerando-se diferentes abordagens de CP recomendadas a cada paciente (Nicodemo & Torres, 2018; Matsumoto, 2009).
As experiências dos participantes desta pesquisa reiteram um achado de estudos brasileiros quanto a recorrência de paliação em processo final de vida (Braz & Franco, 2017). Como consequências, os entrevistados percebem maior estigmatização do Cuidado Paliativo como associado a finitude, refletindo em maior dificuldade na assistência.
Segundo as percepções dos sujeitos desta pesquisa, contribuem para esta “paliação tardia” a obstinação terapêutica e a dificuldade de alguns profissionais médicos em lidarem com a finitude do paciente, como pontuaram um médico e uma enfermeira:
Aí é nosso questionamento: porque não indica antes? Porque não indica quando o tratamento ainda está na fase inicial? Porque a gente não precisa ir lá pra falar de morte, a gente fala de sofrimento. (M1, médico)
Acaba sendo rotina... receber famílias que não são preparadas pelos oncologistas; que passou o tratamento inteiro sem saber o que é CP. A gente vê muito que é pedido CP no momento que o paciente tá à beira da morte. Então, a gente não consegue fazer o trabalho completo, não consegue intervir; o momento que a gente chega é o momento do desespero. (E., enfermeira)
A literatura aponta que a indicação de Cuidados Paliativos desde o diagnóstico, em paralelo ao tratamento curativo, colabora com a construção e o fortalecimento do vínculo e da confiança entre a tríade paciente-cuidadores-equipe, contribuindo para a identificação e desenvolvimento da assistência integral (Braz & Franco, 2017), além de possibilitar o trabalho do luto pelas perdas vividas ao longo do tratamento, não somente focando no cuidado ao luto antecipatório em momento de terminalidade ativa.
Outrossim, os profissionais demonstram percepção de manifestações associadas à identificação de que a unidade de cuidados vivencia processo de luto antecipatório, citando: por parte da família – entristecimento, desespero, sensação de impotência, enfrentamento pela espiritualidade, mobilização para despedida, projeção de vida após o óbito, tentativas de conspiração do silêncio, preocupação de que o cuidado ao paciente seja o mais adequado; por parte do paciente – entristecimento, desejo de que familiares não saibam da finitude ativa, reorganização da vida, manifestação de desejos (ir para casa, morrer em casa, rever alguém específico, pedir perdão, consumir algum alimento específico), demandas espirituais mais recorrentes. Tal identificação contribui ao planejamento dos cuidados uni e multiprofissionais, balizando as condutas adotadas na facilitação do processo de luto antecipatório, conforme sinalizado em:
As famílias sentem muito. Tem um misto. Não só de sofrimento porque vão perder, mas, às vezes, se questionam se elas estão fazendo tudo adequadamente, né? Se estão dando suporte, se aquilo que o paciente está recebendo é o adequado. Justamente o medo de não tratar o seu ente querido como deveria ser. E aí, a gente precisa explicar que no CP se faz muito... então, acho que dar suporte pra família é fundamental... acolhê-los bem, explicar o que vai acontecer, sem conspiração do silêncio. (M2, médico paliativista)
Vem a tristeza. Já começou a questão da despedida; o pensar posteriormente como vai ser sem, é bem comum. O paciente, além da tristeza, começa a querer organizar a vida. Então, começam os desejos de fim de vida. (P., psicóloga)
Destaca-se que tais percepções descrevem a vivência do enlutamento antecipatório em dualidade, que aponta para o modelo compreensivo de processo dual do luto (Stroebe & Schut, 1999), aborda a orientação para perda – diante das reações normais e esperadas na ameaça do óbito, e para restauração – em vias da ocupação com a reestruturação pós óbito e resolução de pendências. É importante ressaltar que tal conceituação compreende o processo de luto como dinâmico, fluido e específico de cada pessoa (Franco, 2021), portanto, a oscilação é saudável e esperada. A fixação rígida e temporalmente extensa em um dos polos (perda ou restauração) deve ser avaliada e manejada por um profissional capacitado.
Chegadas e partidas: manejo multiprofissional
Esta categoria aborda o manejo do processo de enlutamento antecipatório pela equipe multiprofissional a partir da identificação de intervenções específicas, percepção das repercussões e limites desta atuação.
A maioria dos profissionais não identificam manejos específicos ao foco em luto antecipatório em suas atuações, embora, em correlação com a literatura, seja possível constatar. Tal fato pode advir tanto do distanciamento teórico, já pontuado, que dificulta o reconhecimento prático, quanto pela intensa prática em equipe, que favorece a atuação interdisciplinar.
Segundo os discursos, é possível organizar os seguintes focos de intervenção: atuação com pacientes e cuidadores a partir de acolhida, orientações e esclarecimentos (especialmente sobre cuidados paliativos, finitude e oncologia), garantia de direitos, foco na comunicação clara e efetiva, intervenções em tentativas de conspiração do silêncio, compreensão dos desejos; além de focos uniprofissionais, tais como manejos relativos à alimentação e clínica do luto. Foram citadas como estratégias para manejo de tais temáticas a própria atuação em equipe, avaliação de condição emocional e suporte (a busca por familiares mais suportivos), reuniões familiares, rounds e psicoeducação. Conforme ilustram as falas abaixo:
Eles desejam muito que o capelão os aproxime de Deus... A gente, na verdade, não faz da maneira como eles pensam. Ele só quer se sentir seguro.. só [quer] aquela corda que amarra o barco no porto. O capelão nada mais é do que aquela cordinha. Só. Mas o resto ele já faz, que é se equilibrar em cima do mar. (C., capelão)
Principalmente quando tem a conspiração do silêncio, a gente chama o acompanhante pra conversar, ... de dizer da autonomia do paciente de receber as notícias, de saber que ‘tá’ morrendo. Porque ele pode querer se despedir de alguém, que tenha algo pra resolver e que a família nem saiba! Pode ter suas pendências. (E., enfermeira)
O norteamento do manejo a partir da avaliação e consideração às especificidades de biografia, rede de apoio, desejos e valores, conforme pontuam Braz e Franco (2017), são indicadores de que os profissionais extrapolam as questões técnicas, ocupando-se da integralidade, conforme igualmente previsto nos princípios dos cuidados paliativos (Matsumoto, 2009).
As pontuações acerca de manejos específicos (uniprofissionais) apontam para atuação em equipe que mantém especificidades. Bifulco (2014) cita essa flexibilidade como positiva, visto favorecer o cuidado físico, psíquico, social e espiritual, por meio do desenvolvimento de um clima propício para expressão de sentimentos, acompanhamento e oferta de cuidado, que facilite aos cuidadores e pacientes a resolução de pendências, além das tarefas próprias do fim de vida.
Neste cenário, os afastamentos à lida com a terminalidade por pacientes e cuidadores pode se dar em virtude de defesas próprias, mantendo tempo de elaboração individual para o contato. Inclui-se a tentativa de proteção por meio da retenção ao acesso de notícias clínicas, que pode igualmente, ser uma forma de enfrentamento diante da percepção da falta de controle (Poles et al., 2014). Entretanto, Fonseca (2014) pontua que especialmente em circunstâncias de desconhecimento do diagnóstico ou prognóstico, a capacidade de enfrentamento da perda pode ser diminuída, havendo impactos pós-morte em virtude de percepção de subtaneidade. Neste sentido, o trabalho do luto antecipatório pode surgir como estratégia de favorecimento a aproximação e elaboração gradual da notícia de perda iminente, estando extremamente correlacionado à comunicação de notícias.
Disto, os participantes identificam relação entre a comunicação do diagnóstico e prognóstico, e o processo de luto antecipatório, bem como entre este e a vivência da perda concreta. De maneira geral, compreendem que quanto mais clara a comunicação, mais efetivo se torna o trabalho do processo de enlutamento; igualmente, que a consciência de finitude, realização de desejos e resolução de pendências, torna o momento da perda concreta mais sereno – mesmo que haja manifestações emocionais reativas, comuns e esperadas ao momento.
Tudo depende de como o paciente vem preparado... Quando o paciente, por exemplo, não é um óbito próximo, dá tempo da gente trabalhar, conversar, fazer acompanhamento e tudo mais. Parece que, dessa maneira, é algo que fica um pouco mais suportável. (M1, médico)
É muito difícil a nossa atuação, muitas vezes, porque a gente barra na comunicação do restante da equipe. Então, muitas vezes são pacientes e familiares que não sabem do verdadeiro prognóstico, do quadro clínico... É muito difícil trabalhar com luto antecipatório e diretivas antecipadas quando o paciente acaba não sabendo do seu diagnóstico ou do seu real quadro; da gravidade. (Rpsi, psicóloga residente)
Fonseca (2014) destaca a comunicação entre os fatores que influenciam a vivência do luto antecipatório. O desconhecimento estaria associado ao aumento de ansiedade, raiva e culpa, além de privar familiares e pacientes da oportunidade de vivenciarem a finitude. Enquanto a comunicação adequada poderia contribuir à relação com a equipe, além de uma maior sensação de controle, por meio da participação ativa (Bousso & Poles, 2009). Giacomin et al. (2013, p. 2491) apontam ainda, que aspectos culturais atravessam a comunicação, destarte, “tudo que for efetivamente dito, insinuado ou mal esclarecido será interpretado: as pessoas e famílias escutam por meio de filtros históricos, culturais e étnicos muito diferentes”. Destacam-se como intervenções a iniciativa de aproximar-se dos sentidos construídos sobre diagnóstico, enfrentamento e perdas, bem como ocupar-se da efetividade da comunicação.
A percepção de que haveria um enfrentamento mais adaptativo, em casos nos quais foi possível trabalhar antecipadamente aspectos da perda, é confirmada pela literatura (Fonseca, 2014; Matioli & Costa, 2021). Fonseca (2014) aponta que quanto mais efetivo for o trabalho emocional, cognitivo e espiritual, há maior potencial familiar para reorganização intrapsíquica, relacional e social – refletindo na elaboração pós morte. Resultado de ganhos ao paciente são também descritos em estudo acerca do ritual de despedida diante de prognóstico reservado (Lisbôa & Crepaldi, 2003). No entanto, faz-se necessário pontuar, conforme destaca Fonseca (2014), que preparação não implica eliminação do impacto diante da perda concreta.
Da percepção da atuação em equipe multiprofissional neste cenário, houve unanimidade em apontar como necessária, pontuando a sensação de segurança e acolhida relatada por familiares e pacientes. Entretanto, os entrevistados pontuam dificuldades no manejo multiprofissional da perda, especialmente em circunstâncias referidas diretamente com a morte. A ampla maioria dos profissionais percebem o profissional psicólogo como referência neste cuidado, consequentemente, demandam presença e atribuem a este, na maioria dos relatos, o foco no cuidado em luto antecipatório, conforme dito em: “[Quando percebo a demanda] eu passo. Principalmente pra psicologia.” (Fs, fisioterapeuta)
Eu acho que a gente precisa primeiro deixar muito claro pra família que a gente compreende que existe um sofrimento e que existe um luto. Então, acolher isto. Segundo, achar meios de ajudar nisto. Indicar um profissional adequado, chamar alguém da equipe pra acompanhar... tem que ter psicólogo, principalmente. (M2, médico)
Ademais, foram pontuadas circunstâncias que se interpõem enquanto limitações à efetiva realização de tais manejos, destacando-se: medo de que sua intervenção traga prejuízo emocional ao paciente; dificuldades da equipe em lidar com manifestações reativas, refletindo em tentativas de supressão; resistência do profissional em lidar com a morte como um processo natural; falta de dignidade na morte, em correlação com a execução de políticas públicas; e comunicação, como anteriormente citado.
Às vezes, a equipe desestabiliza quando o paciente apresenta qualquer emoção reativa... de dizer: “não, esse paciente não pode chorar”. E às vezes, o profissional perde a oportunidade de fazer uma escuta. Porque não precisa ser só o psicólogo. Então, ele tá lá e saiu desesperado do atendimento, porque não deu conta. E às vezes, a gente da psicologia vai e o paciente não quer falar. Ele queria falar, se sentiu confortável de falar, com aquela pessoa. (Rpsi, psicóloga residente)
É perceptível o olhar integral dos profissionais ao abordarem limites tanto associados a si, quanto a aspectos macro, como as políticas públicas. Rodriguez (2014) pontua a multidimensionalidade do luto antecipatório, que precisa ser reconhecida pela equipe, para que possam abordar questões que vão além da antecipação da perda.
Destaca-se neste cenário a vinculação como facilitadora, a partir da construção de relacionamento com figuras que se tornam referência de segurança - que não necessariamente se relaciona com a categoria profissional, conforme pontuado em um dos discursos. Neste sentido, reitera-se a possibilidade de assistência ao luto por qualquer profissional, não representando prejuízo às especificidades de manejo uniprofissional. Consideram-se intervenções baseadas na escuta, acolhimento e atenção às particularidades biográficas como essenciais e comuns a todos, sendo os Primeiros Cuidados Psicológicos uma estratégia possível ao manejo em situações de crise emocional.
A vida se repete na estação: pessoalidade na atuação
Esta categoria apresenta a percepção dos entrevistados quanto aos atravessamentos diante da atuação com perdas, morte e luto. Os profissionais citam como impactos pessoais de estarem constantemente em contato com luto antecipatório em cuidados paliativos oncológicos: a identificação (relacionada à idade, história de vida ou dilemas dos pacientes), oportunidade de revisão de vida, busca por propósito de vida e aprendizado; além da vinculação – por alguns percebida como ambivalente, visto que, na medida em que contribui ao manejo, os expõe mais fortemente a vivência da perda. É possível perceber tais conteúdos nos seguintes discursos:
Pensava “ah, claro que sei que vou morrer algum dia, mas e aí? Não vai ser agora”. Mas não sei. Ninguém sabe. E aí começa a autorreflexão e a vivência de se perceber... eu tô aqui, mas qual o meu propósito de vida? Eu tô fazendo aquilo que me faz feliz? (N2, nutricionista)
A gente aprende que a morte acaba sendo natural nesse processo. Tá no nosso meio todo tempo, né? Todos os dias nós lidamos com isso. Mas nós não temos um software no nosso cérebro pra lidar com a morte. É como se fosse um vírus; um invasor. Mas, na verdade, ela sempre esteve lá. Faz parte da programação. A gente é que às vezes deixa na lixeira e não quer lidar. Mas, ela sempre fez parte da programação. (C1, capelão)
É clara a aproximação com o próprio movimento existencial, levando a posições mais conscientes com relação à própria finitude. Bifulco (2014) aponta que a abertura para lidar com a morte de forma natural, como o fechamento de um ciclo, é consequente à percepção de que a vida é limitada, portanto, pode contribuir a tornar o sujeito ativo e responsável na própria existência e escolhas.
No desempenho laboral identificam ainda, circunstâncias ou conteúdos que associam tal atuação à sensação de prazer ou sofrimento. Relativo ao prazer, referem-se à percepção de eficácia em situações que recebem feedbacks positivos – interpretados como reconhecimento profissional; ao ato de realizar desejos e proporcionar qualidade de vida na terminalidade.
É esse prazer de cuidar, de fazer ali no momento... Às vezes, infelizmente, a doença não proporciona que a gente veja um resultado bom, mas tenho a satisfação que eu ajudei; fiz algo por aquela pessoa. Mesmo não sendo uma melhora pra vida..., mas uma melhora pra morte. De não morrer sofrendo. (Fs, fisioterapeuta)
Tratando de sofrimento, pontuam limitações pessoais diante do cuidado a pacientes jovens, contato recorrente com processos de fim de vida e óbitos; e frustração diante da progressão da doença (especialmente em casos que acompanham o diagnóstico) ou da impossibilidade de realizar desejos em fim de vida. Também foram citados impedimentos estruturais, como a falta de acesso a medicações importantes, estrutura local para atendimentos e avaliação de que o paciente é elegível aos Cuidados Paliativos exclusivos, mas não acessa a paliação até o óbito.
Destacam-se as referências indiretas a sofrimento por perda de pacientes, sugerindo o luto do profissional – que pode ainda ser abordado superficialmente em virtude de resquícios de um olhar biomédico, que tende ao distanciamento e à busca por neutralidade. Tal modelo de cuidado pode favorecer a quadros de maior estresse e adoecimento associado ao labor. Este risco é percebido por um dos participantes, que pontua a necessidade de atenção à saúde física e emocional das equipes.
Me traz sofrimento mediante algo que sempre se escuta: não se conecte com o paciente, porque você vai sentir a dor dele. (N2, nutricionista)
Você se envolve de uma maneira profissional, mas muitas vezes, pode se envolver mais do que isso. E aí, você tem que ter muito cuidado, porque a gente pode ter o que a gente chama de fadiga de compaixão – você se envolver tanto a ponto de sofrer junto com aquela família pela perda daquele ente querido. Então, acho que esse alerta é fundamental... A gente precisa estar atento pra isso. Ter programas de cuidado ao cuidador. (M2, médico)
Do cuidado ao cuidador que atua constantemente com perdas e luto, Esslinger (2014) pontua a necessidade de atenção a dois domínios: cognitivo (intervindo na capacitação técnica e no desenvolvimento de habilidades) e afetivo (a partir da possibilidade de compartilhar experiências). A autora considera que a natureza do trabalho em saúde, permeado por técnica e ação, pode interferir no espaço necessário à reflexão, contribuindo à fadiga. Além disto, o foco formativo no dom profissional para salvar vidas, pode contribuir a percepção da perda como um fracasso.
Estas questões apontam para o risco ao luto não reconhecido do profissional diante da perda de paciente com o qual construiu vinculação, ou mesmo para validação da sensação de pesar diante do óbito, podendo ser interpretada como indicador de fraqueza e/ou inadequação para exercício de suas funções (Esslinger, 2014). Esta não validação pode advir de terceiros ou do próprio profissional com relação a si.
Kóvacs (2010) associa a tentativa de silenciamento ao processo formativo, que corrobora o não envolvimento com pacientes e/ou familiares. A autora estabelece uma relação entre luto não reconhecido, estresse intenso e colapso pelo esgotamento psíquico, visto que o distanciamento das próprias emoções pode culminar em maior dificuldade a acessar recursos de enfrentamento. Matioli & Costa (2021) destacam que esta ausência de espaço para elaboração pode favorecer à somatização e ao Burnout, como resposta a mobilização emocional não processada.
No que concerne aos recursos para lidar com tais questões, são citados pelos entrevistados o suporte familiar, espiritualidade e suporte interno da própria equipe institucional; resguardo aos momentos de lazer e atividades de desconexão com o ambiente laboral; trabalho externo em psicoterapia e autopercepção (no sentido de identificar o que é próprio de si e seus limites), conforme referido em:
Acho que vou ter que conviver com essas duas posições, sofrimento e alegria; mal-estar e meu prazer. Mas reconheço muito que hoje tenho mais prazer do que sofrimento. Até considero que esse sofrimento pode fazer parte. (N2, nutricionista)
Liberato (2015) pontua com relação à psicologia, mas, ampliado por nós à equipe, que a partir da vinculação o paciente deixa de ser um caso clínico e torna-se pessoa - fato que contribui para personalização do cuidado. Entretanto, ainda se trata de um vínculo profissional, como tal, exige o resguardo de um espaço que possa proteger os profissionais de conteúdos que, por mais que sejam semelhantes ou os toquem, não são seus. É clara a necessidade de reconhecimento e respeito aos limites – próprios e de outrem –, evitando que o profissional permaneça entre os extremos da impotência ou onipotência; e resguarde a autonomia de pacientes e cuidadores.
Considerações finais
Corroborando estudos já realizados acerca de atuação profissional no enlutamento, especificando-se neste estudo o antecipatório, é possível perceber que a ampla maioria dos profissionais não identifica manejos diretos na atenção ao luto antecipatório. Apesar disto, é possível destacar manejos condizentes à facilitação deste processo, possivelmente balizados pelos pressupostos próprios aos Cuidados Paliativos.
Embora reconheçam a importância da atuação multiprofissional, a maioria dos entrevistados considera que os profissionais psicólogos estariam mais aptos ao manejo. Hipotetiza-se associação entre esta não identificação e as fragilidades do processo formativo dos profissionais. Neste cenário educacional, visto a pós graduação em formato de Residência ter sido citada enquanto facilitadora de contato teórico com os temas Cuidados Paliativos, Morte e Luto, considera-se que o aprofundamento teórico em tanatologia possa contribuir ao aperfeiçoamento das práticas, bem como a identificação e/ou construção do pertencimento.
Ademais, os partícipes desta pesquisa atribuem correlação prática entre facilitação do Luto Antecipatório e enfrentamento adaptativo familiar diante da perda concreta por morte, apontando dificuldades associadas à paliação ocorrida em momento ativo de terminalidade, interferindo na possibilidade de manejo adequado.
Avalia-se que os objetivos deste estudo foram alcançados, além de considerar-se repercussão de caráter interventivo, em virtude de ter se tornado uma possibilidade de contato e reflexão para os profissionais participantes em torno das temáticas abordadas, que pode ter contribuído ao processo de autopercepção.
É perceptível que a atuação em processos de luto antecipatório da unidade de cuidados expõe o profissional ao contato com questões que ultrapassam a técnica e a fisiologia, favorecendo o olhar para si – sua existência, seu desejo, suas diretivas. Perpassa, então, uma constante elaboração e construção de sentido, que não se extingue diante da compreensão teórica, mas se desenvolve no contato diário com as histórias, os prazeres e os sofrimentos de quem cuidam.
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