Revista de Psicologia, Fortaleza, v.15, e024012. jan./dez. 2024

DOI: 10.36517/revpsiufc.15.2024.e024012

 

 

 

 

RECEBIDO EM: 24/01/2024

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 05/06/2024

VERSÃO FINAL: 05/06/2024

APROVADO EM: 10/06/2024

 

 

 

A Construção do “Inimputável Periculoso” e o Controle Social Através da Medida de Segurança

The Construction of the 'Dangerous Non-Criminally Responsible' and Social Control Through Security Measures

Victória Mello Fernandes

Doutoranda em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: mellofvictoria@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8294-6128. Pesquisa realizada com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

 

Resumo

Este ensaio propõe uma análise da emergência do “tipo social” inimputável, explorando a inimputabilidade e as medidas de segurança no espaço social, a partir de formulações jurídicas e psiquiátricas no Brasil. A partir da abordagem qualitativa e teórica, buscou-se compreender e dialogar com a produção temática no país, junto às bases teóricas que derivam do pensamento decolonial latino-americano e de teóricos especializados na interseção entre o campo jurídico e psiquiátrico. A pesquisa indica que as formas de classificar e ordenar desvios relacionados à loucura e ao crime são construídas a partir de definições de humanidade e racionalidade moldadas por categorias da modernidade-colonialidade. Certos indivíduos, assim como aqueles racialmente classificados, historicamente carregam qualificações de “perigo”, “não-humanidade”, “irracionalidade” e “insanidade”. Essas categorias permeiam os discursos criminológicos e legais no atravessamento com a psiquiatria, manifestando-se nas condições dos sujeitos encarcerados e institucionalizados em manicômios judiciários. A análise não se restringe a uma abordagem disciplinar isolada, mas explora a expressão da formação sócio-histórica brasileira enraizada em formas produtivas - não apenas econômicas - da escravização, sustentada pelo racismo e pela colonialidade do poder, do ser e do saber.

Palavras-chave: Inimputável; medida de segurança; manicômio judiciário; colonialidade de poder; sistema judiciário.

 

Abstract

This essay examines the emergence of a legally non-criminal social type, exploring non-criminal responsibility and security measures in the social context, based on legal and psychiatric formulations in Brazil. Using a qualitative and theoretical approach, the aim was to comprehend and engage with thematic production in the country, drawing on theoretical foundations derived from Latin American decolonial thought and theorists specialized in the intersection of the legal and psychiatric fields. The research indicates that the ways of classifying and ordering deviations related to madness and crime are constructed from definitions of humanity and rationality shaped by categories of modernity-coloniality. Certain individuals, much like those racially classified, historically bear qualifications of “danger”, “non-humanity”, “irrationality”, and “insanity”. These categories permeate criminological and legal discourses in psychiatry, manifesting in the conditions of individuals incarcerated and institutionalized in forensic asylums. The analysis extends beyond a disciplinary approach, exploring the expression of Brazil's socio-historical formation rooted in productive forms - not solely economic - of enslavement, upheld by racism and the coloniality of power, being, and knowledge.

Keywords: Legal incapacity; security measure; judicial asylum; coloniality of power; judicial system.

 

 

 

 

O presente ensaio analisa como processos sócio-históricos resultaram na construção de um tipo social específico, a partir da sujeição criminal (Misse, 2015), uma categoria jurídica em interseção com os saberes psiquiátricos (Foucault, 2006): o inimputável, para além das definições legais. A pessoa com transtornos psiquiátricos em conflito com a lei, contemporaneamente designada dessa maneira, pode ser compreendida em uma fronteira disciplinar de saberes que, historicamente separados, ainda compartilham similaridades nas formas de captura, ordenação, classificação e destinação às instituições de privação de liberdade.

Para conduzir a análise teórica, adotou-se uma metodologia qualitativa, empregando uma revisão de literatura para explorar investigações realizadas no Brasil sobre o inimputável, inimputabilidade e a internação compulsória para cumprimento de medida de segurança em manicômios judiciários. Além disso, o enfoque teórico empregada parte do pensamento decolonial latino-americano - tanto teoria quanto práxis - como uma lente de análise dos processos sócio-históricos brasileiros relacionados à estabilização de enquadramentos jurídicos e construção de categorias específicas do inimputável e da inimputabilidade, temas também abordados por pesquisadores de diversas áreas, como Sociologia, Antropologia, Filosofia, Direito e Psicologia.

Considera-se que a privação de liberdade é um fenômeno de extrema relevância para a compreensão das relações que constituem a sociedade brasileira, considerando que a população carcerária do país é a terceira maior do mundo (Brasil, 2023). Além disso, entender as diferentes relações e manifestações da violência é crucial para compreender as (re)configurações das práticas sociais. No que diz respeito ao cumprimento de medida de segurança, os dados indicam a existência de 1.987 pessoas (Brasil, 2023), sem fornecer informações sobre os presos provisórios e aqueles em avaliação nas triagens dos manicômios-judiciários. No entanto, esse número aumenta para 2.386 pessoas quando incluídas aquelas em tratamento ambulatorial (Brasil, 2023). Apesar de ter um número menor de presos ou pacientes, há persistência das práticas e das instituições manicomiais, espaços onde alguns sujeitos acabam passando suas vidas inteiras. Além disso, o “perfil” traçado por Diniz (2013) destaca que a população total era majoritariamente negra, pobre, com baixa escolarização e sem acesso a tratamento de saúde mental nas instituições.

A análise baseada no rastreamento dos padrões de poder coloniais vai além da mera sobreposição de saberes e poderes, envolvendo o entendimento do ethos colonial como um sistema complexo de classificação ontoepistemológica do “outro”. Isso se traduz na criação de relações sociais fundamentadas na racialização e na racionalidade instrumental, que servem como meios para diferenciar, gerenciar e governar populações (Foucault, 2008). Esse processo se manifesta de maneira particularmente evidente nas dinâmicas de encarceramento em massa, incluindo os manicômios judiciários, que são parte integrante do sistema carcerário. Como aponta Godoi, “do quarto país que mais encarcera no mundo, além de válida e interessante por si mesma, visa também a deslocar minimante o eixo geopolítico que vem organizando as análises do encarceramento em massa” (2017, p. 240).

Os inimputáveis, os “anormais” (Foucault, 2010), desde uma perspectiva classificatória excludente, não compõem o arranjo de humanidade e racionalidade da modernidade. A partir de uma postura teórico-crítica entre o “giro decolonial” e o afropessimismo, esses sujeitos, assim como aqueles classificados pela raça, são marcados historicamente por qualificações de “perigo”, “não-humanidade”, “irracionalidade” e “insanidade”, atestada pelos saberes criminológicos e psiquiátricos-legais. A condição dos sujeitos encarcerados e institucionalizados em manicômios judiciários pode ser analisada não só em um cruzamento disciplinar, mas na expressão da formação sócio-histórica brasileira assentada e originada em formas produtivas (não apenas econômicas) da escravização, sustentada pelo racismo, pela colonialidade do poder, ser, do saber dentro de uma lógica punitivista no sul do globo.

A seguir, o ensaio está dividido em três seções e considerações finais. A primeira aborda a emergência de fronteiras classificatórias coloniais, a partir dos processos de colonização dos territórios latino-americanos e a continuação dos padrões de poder através da colonialidade. Em um segundo momento a organização de saberes e poderes modernos em torno da questão do desvio da loucura e do crime, e a apropriação no Brasil. E na última seção, as persistências manicomiais e as disputas que se estabelecem a partir de movimentos sociais, Reforma Psiquiátrica e Lei Antimanicomial.

Fronteiras Coloniais

A perspectiva da modernidade não só como um marco temporal, mas também como um padrão de poder que estrutura e sustenta relações desiguais e de subalternização do “outro” – construído por ela – é uma ferramenta para entender os processos coloniais que, hoje, por meio da colonialidade de poder (Quijano, 2005) continuam a constituir arranjos e classificações sobre os seres, suas subjetividades e sobre a natureza, assim como sobre a produção de conhecimento sobre as existências.

Nesse sentido, a pesquisa parte da proposição analítica de que o Brasil, país latino-americano colonizado principalmente por Portugal, construiu-se a partir destas relações de dominação que produziram sentidos, necessidades, sociabilidades, formas econômicas, organizações políticas e sociais, desde o processo colonial, que permitiu a constituição e as bases do capitalismo e das formas de conhecimento eurocêntricos. A partir dessa relação, sustentada não só pela dependência colônia-metrópole, mas também pela necessidade da existência dessas formas de exploração, subalternização, escravização que os países– principalmente Ibéricos, França, Inglaterra e Alemanha – puderam desenvolver-se e conquistar e produzir a modernidade, a partir da América Latina e seu caráter universalizante em relação ao mundo (Quijano, 2005).

O processo histórico de colonização territorial brasileiro e latino-americano, não se restringiu às terras. A colonização foi um processo que violentou sujeitos que aos olhos do colonizador não teriam as mesmas capacidades, não seriam iguais ao padrão civilizatório delimitado. Desde os primeiros viajantes, marcam-se as falas de estranhamento deste outro: estavam em um ambiente próximo ao Éden, mas viviam na barbárie; povos sem F, L, R – sem fé, sem lei e sem rei; sujeitos que tinham partes de animais, canibais, desumanos (Schwarcz, 2012).

O olhar de estranhamento, etnocêntrico e sociocêntrico (Restrepo & Rojas, 2010) do colonizador para aqueles que viviam nas terras brasileiras, está refletido nas cartas dos viajantes, nas produções sobre essas pessoas que pareciam distantes da concepção humana eurocêntrica, e prolonga-se aos “brasilianos” que também colonizaram o território. Essas primeiras formulações não se restringiam à descrição, mas avançavam na busca por qualificar e categorizar através de uma lógica de aproximação a uma desumanidade ou a um estágio anterior de humanidade.

A percepção sobre os chamados “indígenas brasileiros”, as descrições deles, as práticas de exploração e exposição dessas figuras “exóticas”, também construiu um saber sobre o outro que se baseava em definições de atraso, de suposta infantilidade das suas capacidades mentais, que por sua vez confluíam com e nas primeiras formulações e entendimentos medievais sobre aquele que precisava de salvação ou vivia na exclusão. Além das múltiplas formas de dominação dos nativos brasileiros, a racialização e o racismo como ordenador do sistema-mundo (Quijano & Wallernstein, 1992), deu-se especialmente pela escravização de pessoas negras do continente Africano traficadas para as Américas. Isso se organizou pela violência colonial, que permitiu e permite a chave humanização/desumanização para classificar e sustentar formas de dominação do sistema colonial capitalista.

Um dos marcos iniciais das formulações filosóficas é o nascimento do racionalismo moderno por meio das formulações de Descartes, principalmente em Meditações Metafísicas (1641), que “privilegia el conocimiento, la descalificación epistémica se convierte en un instrumento privilegiado de la negación ontológica o de la subalterización. Otros no piensan, luego no son” (Maldonado-Torres, 2007, p.145). É através do paradigma da razão – instrumental (Quijano, 2005) que se inicia a pensar sua forma negativa, ou seja, a desrazão, que seria o afastamento da essência do sujeito, a aproximação da animalidade, segundo Descartes (2000), o mergulho no erro e no sonho.

Tal ontologia basearia e organizaria as práticas de colonização intraeuropeias e nas colônias dos “povos abjetos aqueles que o imperialismo industrial rejeita, mas de que não pode prescindir: escravos, prostitutas, os colonizados, trabalhadores domésticos, loucos, desempregados” (Mcclintock, 2010, p.119). Dá-se autorização para a retirada do sujeito seu caráter de humano ou, ao menos, igual, em uma dinâmica de desumanização, que pode ser interpretada como uma não-ética de guerra (Maldonado-Torres, 2007), que permite que alguns sujeitos sejam passíveis de violência, violação de direitos e da morte. Na alocação no papel do “outro”, é possível desenvolver e organizar conhecimentos delimitados como universais, de forma a sustentar também o discurso da modernidade-colonialidade, que incide sobre este outro – aquele sobre quem se age, aquele sem história, aquele que deve ser assimilado no curso universalista e evolucionista da história humana.

Em consonância aos apontamentos de Wilderson (2021) sobre a nação branca definir quais seres são humanos, e quais seres são passíveis de sofrimento e violação, a persistência das violações passa a existir na medida em que esse mundo construído existe, em que as classificações racializadas, racionalizadas expõem e afirmam divisões que delimitam quem pode viver, a partir de seu “contrário”: “corpos negros são um tipo diferente de contaminante: eles são ameaças ao corpo humano ideal e à coerência psicológica da vida humana” (Wilderson, 2021).

Ao pontuar as delimitações da nação branca (Fanon, 2008) e as implicações para a constituição de uma sociedade moderno-colonial, considera-se que, além da condição não-humana em que a população negra está localizada - o que implica não-dor, não-sofrimento - estas classificações partem de um sistema de pensamento que define também o que é racional. De certa forma, incidindo sobre a produção da normalidade humana, essa racionalidade define formas de pensar, de estruturar a fala, o conhecimento, o corpo, e determina quem é humano, quem é sujeito do conhecimento e quem não é. Aqueles não racionais estariam assim em uma condição de animalidade, de “animais não-racionais”, um estágio anterior e infantil que precisa de intervenção.

Para compreender a origem das práticas psiquiátricas e jurídicas sobre corpos que são criminalizados e institucionalizados nos manicômios-judiciários, há de se ter no horizonte de análise que o racismo não está apenas nessa prática isolada, considerando que o marcador social da raça prevalece das dinâmicas de criminalização e aprisionamento, mas também nas formas constitutivas das instituições jurídicas. O racismo constitui mais do que práticas e discursos oficiais e não-oficiais, mas é parte da formação ontológica e epistemológica do que se delimita como mundo, do Estado-nação, do capitalismo, como força motriz que funda a modernidade – como espaço-tempo e como ontologia.

Podemos entender o racismo é uma relação produtiva da estruturação de um sistema econômico, político, social, um sistema de pensamento que funda esse mundo como se conhece. Ao passo que funda diferentes existências no mundo, essa forma de classificação através da raça delimita categorias que definem a humanidade – como condição - e desumanização – como um processo. As violências coloniais contra as pessoas negras e indígenas escravizadas foi e continua sendo uma condição que sustenta o estado moderno capitalista do mundo ocidental, de forma a serem constitutivas das formas jurídicas e psiquiátricas.

Organização Colonial dos Saberes-Poderes

O ordenamento jurídico adotado pelo Brasil, especialmente por seus cruzamentos teóricos, permitiu a emergência de uma forma de conjunção jurídico-psiquiátrica, que pode ser considerado parte de processos mais amplos que, dadas as relações em um sistema-mundo moderno-colonial, ressoam em países da chamada periferia global. Nesse sentido, a emergência do desvio pela loucura e pelo crime no seio das políticas de Estados europeus, que, posteriormente constitui as práticas alienistas, proto-psiquiátricas, psiquiátricas e criminológicas brasileiras.

A partir do século XVII, na Europa, principalmente na França, com a emergência da organização epistemológica do racionalismo moderno, fruto de questionamentos filosóficos que atravessam a história – nem sempre de forma linear - e diferentes correntes teóricas, possibilitou-se classificar o que antes não era ordenado – como a loucura no Renascentismo – de forma a excluir da sociedade europeia, por meio das internações, loucos, prostitutas, mendigos, desempregados, etc. O internamento não visava um tratamento, mas sim a seguridade da elite e do Estado. Excluía-se, portanto, aqueles que fossem um problema a ordem e que fossem improdutivos (Castel, 1978).

As transformações seculares, foram desde os antigos leprosários como lugares de reclusão para pessoas “indesejáveis” como os mendigos, as prostitutas e os loucos, dando seguimento ao Grande Enclausuramento, até a intensificação de construção das casas correcionais, estabelecimento de controle de moralidades e recolhimento dos desviantes da moral e ameaçadores para a ordem estatal, ainda que não tivesse a intencionalidade do tratamento psiquiátrico.

              Em um movimento contrário ao grande enclausuramento, emerge a conhecida desinternação mobilizada pela medicina psiquiátrica de Phillipe Pinel. Pinel trouxe o caráter da medicalização e do tratamento não mais como terapêutica, mas com a intencionalidade de sanar a emergente doença mental. Esse novo discurso está aliado às crenças na cientificidade médica. A partir da alienação chega-se à doença mental identificável pela ciência e assim passível a utilização de um método.

No momento em que a doença mental é definida e localizada nos saberes médicos científicos, também é desenvolvida sua categorização nos saberes psi como fonte potencial de perigo, isto é, a psiquiatria, a psicopatologia, psicossociologia, psicocriminologia e psicanálise não se restringem ao discurso, mas constituem a própria instituição, o indivíduo psicológico e a psiquê (Foucault, 2006). Em Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental (2007), o médico elabora um dos primeiros discursos oficiais sobre a periculosidade dos loucos, como aqueles que podem a qualquer momento serem tomados por um “demônio” causador do mal, da discórdia, até mesmo da morte. Essa psiquiatria pineliana, segundo Portocarrero (2002), desenhou as linhas da prática psiquiátrica brasileira até o século XX.

Em meados do século XIX a psiquiatria se consolidou como uma ciência positivista, isto é, com saberes, métodos e objetos definidos. Passou a centrar-se em uma medicina biológica, que buscava o conhecimento de seu objeto, limitada à observação, e à descrição de distúrbios nervosos. Essa disciplina precisava expor sua importância sobre um objeto, considerando as disputas entre a medicina já consolidada e uma medicina de algo que nem sempre está ali, visível, mas pode estar no que escapa aos olhos da medicina tradicional.

Em solo brasileiro, os efeitos das apropriações e das novas formulações sobre a necessidade de organização social emergiram como política e práticas de Estado, primeiramente com a vinda da corte portuguesa em 1808 e, após, com os processos de reorganização das formas sociais, políticas e econômicas baseadas da escravização, que, por pressões externas, deixaram de ser a forma base de acumulação. Neste período, as teorias criminológicas e psiquiátricas formuladas na Europa entram na incipiente medicina social e de Estado-nação.

Os processos de transformação da colônia em sede da corte, assim como o fim da escravização, geraram uma mudança no ordenamento social brasileiro, a partir do crescimento populacional, da liberação desestruturada e desorganizada dos ex-escravizados, da falta de moradia, alimentos e saneamento básico. A busca da medicina social atrelada ao controle e à organização social, encontra nos sujeitos degenerados, monomaníacos, “loucos, idiotas, imbecis, dementes” (Lobo, 2015, p.58) um impasse “racional”. Entre disputas sobre a origem e a causa das anormalidades, confrontaram-se teses de salvação até punição. E, ancorou-se em um saber relacionado às políticas racializadas do século XIX e início do século XX, que, combinadas com inexistência da integração social, culminam na exclusão política, cultural, socioeconômica, traduzem-se na incorporação dos sujeitos a partir da criminalização.

A partir dos processos de criminalização e de teorias auxiliares aos processos de formação social, como a miscigenação, definem-se hipóteses e definições biologicistas de inferioridade, especialmente de degeneração das raças – desde o fatalismo até a possibilidade de “salvação”. Essas hipóteses eugenistas, fortemente influenciados pela teoria de Emil Kraepelin (1856-1926), fortaleceram os discursos sobre os perigos e vantagens da miscigenação das raças (Duarte, 1986), e são reformuladas, renovadas e propagadas por nomes como Conde de Gobineau, Nina Rodrigues que tomam a centralidade do debate médico.

O surgimento histórico dos mecanismos desenvolvidos pela criminologia, e, cruzados com os saberes médicos (alienistas e proto-psiquiátricos), surgem como ponto de apoio para “novas técnicas de gestão das massas humanas, capazes de controlá-las, fixá-las e de produzir indivíduos úteis do ponto de vista da produção e dóceis do ponto de vista político” (Rauter, 2003, p.15). Schritzmeyer (2004) aponta que esse saber médico foi viabilizador da legitimação dos discursos eugênicos no país, o qual, em uma conjunção com o campo jurídico, autorizou a “sentença-diagnóstico” como forma de controle e punição no sistema penal para sujeitos “monomaníacos”, acusados de crimes sem explicação, categorizações associadas à loucura sem delírio, como diagnóstico frequente aos “anormais” (Foucault, 2010), detentoras de uma “periculosidade”. Essa categoria teve grande influência para as políticas de criminalização e de criação do inimputável no Brasil. Os poderes e saberes direcionaram-se a um ideal de desenvolvimento social, racial, econômico, que utilizou a naturalização das diferenças raciais para dar suporte à política de embranquecimento como sinônimo de civilização da antiga colônia.

Os dois dispositivos de cerceamento de liberdade, o carcerário e o manicomial, demonstraram similaridades durante os processos históricos, desde seu desenvolvimento desorganizado até a seu ordenamento disciplinar, e encontraram-se no século XIX. No novo século, o “impasse” da racionalidade do crime foi resolvido com a conjunção desses dois saberes. Nesse novo modelo jurídico manicomial, caberia ao psiquiatra realizar a perícia e, pelo laudo, determinar a condição mental e a periculosidade do sujeito. A periculosidade como conceito/característica expõe o descontrole de algumas pessoas, que não podem estar soltas, fruto da política de controle social.

Como já exposto em algumas pesquisas, a gênese de sua origem está ligada a formulações morais, religiosas ocidentais (Barros-Brisset, 2011), mas toma sua forma especialmente direcionada às intenções da psiquiatria em se afirmar como ramo da medicina no século XIX na Europa, necessitando entender seu objeto para ser um dos saberes que poderia disciplinar, normalizar e gerir algumas populações que poderiam causar desarmonia para as práticas de Estado.

Periculosidade é o centro gravitacional de nossa política criminal que segue a máxima racista-colonial: outrificar para desumanizar, alinhavando o medo de corpos que representem a antítese do padrão branco, ideário que fundamenta a programação do sistema de controle racial por ter sua essência na hierarquização de existências, considerando muitas desprezíveis (Góes, 2020, 156).

O modelo construído para o “tratamento” da questão criminal é um dos núcleos do Estado moderno e não foi superado. Esse modelo se baseia na dualidade da responsabilidade subjetiva, anteriormente era caracterizada como objetiva, e é atravessada por qualificações morais que compõem. A pessoa é punida se for responsabilidade subjetiva for comprovada, mesmo que seja “inimputável”, portanto, ela é responsável pelo que ela e recebe uma “retribuição” pela sua conduta e pela possibilidade de agir de alguma forma desviante (periculosidade).

O sistema jurídico se autoriza a tomar decisões de “sequestro” (Azevedo & Capra, 2018) a partir do veredicto médico, por seu saber técnico. O cruzamento disciplinar permite a emergência de uma instituição específica, como resultado de longas disputas entre campos de saberes, o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico e de seu “objeto”, o louco-criminoso – o abarcado pelo campo jurídico e pela psiquiatria legal.

                            Desde a criação do primeiro manicômio judiciário, multiplicaram-se em solo brasileiro as instituições chamadas de Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, onde a punição sobrepõe-se a qualquer tratamento (Carrara, 1998), e o tratamento confunde-se com a punição – através da utilização de altas doses de medicação e da contenção mecânica para “tratar” inimputáveis. Além das práticas médicas e psicológicas, o cruzamento com a punição fica mais evidente quando agentes penitenciários convivem diariamente com enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, uma vez que a imprevisibilidade de sujeitos periculosos e o possível cometimento de crimes, não caberia apenas aos saberes psi (Foucault, 2006).

              A legislação brasileira até 1980 permitia a existência das duas condenações, pela pena privativa de liberdade e pela medida de segurança, o que pode ser avaliado como uma punição do ato, e outra a punição e “tratamento” do sujeito. Entretanto, também estava em disputa a afirmação da doutrina jurídica, “duas concepções ou representações divergentes do indivíduo, mais particularmente do criminoso, em nossa sociedade: o paradigma "clássico" e o paradigma "positivo" (Fry & Carrara, 1986, p.3). Atualmente, há a exclusão da pena, por absolvição sumária ou imprópria, quando o sujeito é considerado inimputável. Contudo, pelas formas de punição-tratamento, pela persistência da “periculosidade”, pela indeterminação temporal, ou mesmo pela equiparação do tempo de internação ao tempo da pena, não há de fato a absolvição da pena, mas a união das formas de punição em um dispositivo de internação compulsória.

Essa alternativa é baseada na periculosidade do sujeito, ou seja, na sua imprevisibilidade, na probabilidade de agir de forma agressiva e delituosa, nas virtualidades que sua personalidade, seu transtorno e suas condições materiais de existência e como estas se apresentam em direção a delito e a comportamentos desviantes. A característica que é mobilizada é, então, um tipo de acordo entre o direito e a medicina que, após um século e meio de discussão em solo brasileiro, assentaram-se em um “co-gerenciamento” entre segurança pública e tratamento/punição, uma lógica se estabelece a partir de um prognóstico que determina a virtualidade da ação periculosa, e de um tempo estipulado para tratamento em “condições iguais ou piores do que aquelas propiciadas pelo sistema carcerário destinados aos apenados” (Azevedo & Capra, 2018, p.138).

 

Disputas ainda em curso

O campo dos movimentos sociais teve e tem grande protagonismo nas disputas e nas conquistas de direito e nas críticas ao sistema ideológico que construiu a inimputabilidade e as formas de punição-tratamento destinadas aos “loucos-criminosos”. Há uma longa trajetória construída pela Luta Antimanicomial aliada a atores e práticas da Psicologia Social, que tiveram atuação na tentativa desinstitucionalização da “loucura”. Luchmann e Rodrigues (2007), reconstituindo a história da trajetória dos movimentos antimanicomiais no Brasil, apontam o movimento social em sua pluralidade, reconhecendo que historicamente as lutas se articularam de diferentes formas por diferentes atores sociais, não apenas nas esferas institucionais.

Desde a década de 70, marca-se movimentos denunciando o sistema nacional de assistência psiquiátrica do governo militar, e reivindicações acerca de aumento salarial, redução de número excessivo de consultas por turno de trabalho, críticas à cronificação do manicômio e ao uso do eletrochoque, e anseios por melhores condições de assistência à população e pela humanização dos serviços. É possível perceber que a luta por direitos e a luta antimanicomial é construída por diferentes pessoas, envolvendo principalmente trabalhadores da saúde, familiares e associações recém-criadas, para repensar a lógica manicomial.

No momento de redemocratização, no ano de 1987, acontece o II Congresso do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, no qual é escrita a Carta de Bauru, que é um marco na luta antimanicomial. A carta, organizada por trezentos e cinquenta trabalhadores da saúde, expressa pela primeira vez uma manifestação pública e organizada pelo fim dos manicômios no Brasil. Nesse mesmo encontro, é organizado o movimento antimanicomial e é definido o dia 18 de maio como Dia Nacional de Luta Antimanicomial, destinado a repensar os direitos de cidadania das pessoas com sofrimento psíquico intenso e defender a recusa do papel de agente da exclusão e da violência. Surge a Articulação Nacional da Luta Antimanicomial, mais uma vez é a articulação social que se organiza para a reivindicação das pautas antimanicomiais, e o Estado o mesmo ao qual se recorre às forças jurídicas e legais para assegurar direitos, o ator e a força contrária a desinstitucionalização. Entre 1987 e 1993, foram articulados alguns movimentos, incluindo a consolidação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA), e realizado o I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial em Salvador/BA.

Nos anos 2000, o Movimento Antimanicomial consegue seu primeiro encaixe institucional no sentido de que a partir do legislativo é desenvolvida a chamada “Lei Antimanicomial” ou Lei da Reforma Psiquiátrica (10216/2001), em que são dispostas regulamentações para o tratamento de pessoas com transtornos mentais. Dentre elas estão as condições estruturais das instituições, as intencionalidades do tratamento – o que inclui a reinserção social, as predisposições da forma terapêutica aplicada, as formas de internação, e os direitos das pessoas com transtornos mentais. Em contramão a todos os avanços sobre as discussões acerca dos manicômios, ainda que indique caminhos, a sua “forma”, o manicômio judiciário não é citado no documento, o que deixa uma brecha sobre a institucionalização em hospitais de custódia e tratamento psiquiátricos.

Além disso, a partir da judicialização e da condenação pelo caso Ximenes Lopes, a Reforma Psiquiátrica brasileira e Lei Antimanicomial (10216/01) consolidaram parte da luta histórica no âmbito legal e ao propor modalidades de tratamento primários fora de instituições hospitalares e asilares, como a criação de Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), com o acompanhamento e o apoio familiar e comunitário. Entretanto, além de não ser um processo homogêneo no território brasileiro (Silva 2013), os manicômios judiciários e os sujeitos inimputáveis não estão no texto da lei. Apenas na Resolução nº5 do Conselho Nacional de Política Criminal, em 2004, são admitidas as modificações da Lei Antimanicomial para o cumprimento de medida de segurança, todavia não implementadas nos manicômios judiciários brasileiros, que permanecem sob a guarda das Secretarias de Segurança e não de Saúde.

Em algumas perspectivas, a atuação do judiciário, é incorporada como mobilização do direito (Correia & Magno, 2021) no sentido de contribuir para uma estratégia mais ampla de mobilização política (Scheingold, 2004) agenciada pelos movimentos sociais. Correia & Magno (2021) apontam que dessa mobilização utilizam-se estratégias em torno da garantia de direitos e concretização de políticas públicas em torno da saúde mental.

              Em 2014 o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), elaborando as Equipes de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAPs), criadas pela Portaria GM/MS nº 94/2014 (Brasil, 2014). As EAPs foram elaboradas para acompanhar o processo criminal até a sua extinção, para atuar como dispositivo conector entre a Justiça Criminal, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no acompanhamento das medidas de segurança.

Entretanto, as tensões anti-hospitalocêntricas e antimanicomiais foram descartadas em detrimento de processo jurídico-psiquiátrico estigmatizante, pela presença do “crime” e da sentença criminal de pessoas com transtornos mentais. As conquistas das lutas antimanicomiais aparecem principalmente no momento de desinternação, a partir dos residenciais terapêuticos como possibilidade de vida após o manicômio judiciário, mas são marcadas pela demora, pela dificuldade em conseguir vaga e parecem ser uma forma encontrada para dar continuidade ao controle e vigilância daqueles que não podem estar livres na sociedade, como a solução para um problema “sem solução”. Nesse ponto, há uma desconsideração do que seria a função das proposições antimanicomiais e anti-hospitalocêntricas.

Ainda, tratando-se da punição-tratamento intra manicômio judiciário, sua existência e sua forma de desenrolar-se cotidianamente marcam a prevalência do processo de medicalização do crime em casos de inimputabilidade. Ao considerar essa pulsão que mobiliza os discursos e as práticas manicomiais judiciárias, é possível compreender que sua continuidade no contemporâneo não se dá por um tratamento de fato, mas por um manejo social necessário para a manutenção de dada ordem social normativa, “a medicina se converteu em uma dimensão das tecnologias políticas de controle social” (Mitjavila, 2019, p.126), acontecimentos que foram historicamente constituídos, mas que tomam outros contornos no atual contexto.

Os acontecimentos recentes, nas últimas décadas, demonstram algumas instabilidades em relação às conquistas do movimento antimanicomial, advindas de posições do legislativo e do executivo brasileiro. Em um “contramovimento”, políticos de direita e extrema direita iniciaram um desmonte das políticas de saúde voltadas às pessoas com transtornos mentais e usuárias de drogas (em conflito com a lei ou não). Em 2017, é noticiado no G1 – São Paulo, o pedido do prefeito João Dória (PSDB) à justiça, para ser feita a internação compulsória de usuários de drogas. Em 2019, no jornal online O Globo, uma matéria relata uma nota do Ministério da Saúde em que é defendido o eletrochoque como tratamento, o aumento de leitos para internação e comunidades terapêuticas para usuários de drogas. Em 2019, o ex-presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei de internação compulsória para dependentes químicos, enfraqueceu a política de acompanhamento às pessoas internadas em manicômios judiciários, mesmo ano que o presidente é denunciado na Organização das Nações Unidas (ONU) por exonerar peritos e acabar com salários do órgão de combate à tortura. Neste mesmo ano, o vereador Fernando Holiday (PATRIOTA) apresentou um projeto de internação compulsória às mulheres com “propensão a abortar”.

Os setores conservadores e contrarreformistas no campo da saúde mental, inseridos no governo do ex-presidente Bolsonaro, tentaram extinguir os serviços das EAPs, citadas anteriormente, por meio de uma portaria do Ministério da Saúde, emitida em junho de 2020. Em função da pressão exercida por diversos movimentos sociais, instituições e órgãos estatais, a portaria foi revogada (Correia & Magno, 2021). Contudo, os serviços continuam a apresentar cortes orçamentários e diminuição significativa de profissionais da saúde mental (Romanini et. al., 2022).

Ainda, retomando ações alinhadas aos princípios da Reforma Psiquiátrica, o Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução número. 487, de 15 de fevereiro de 2023 (Brasil, 2023), para estabelecer uma Política Antimanicomial do Poder Judiciário, no âmbito do sistema de justiça criminal, assegurando os direitos das pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial em conflito com a lei. Tal Resolução determina a extinção dos HCTPs, e estabelece o prazo de seis meses para que a autoridade judicial competente determine a interdição parcial de estabelecimentos, alas ou instituições congêneres de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil, com proibição de novas internações em suas dependências e o prazo de até 12 meses para a interdição total e o fechamento dessas instituições (Brasil, 2023).

Em um contexto político de mudança, após o fim do governo Bolsonaro - extremamente fechado e posicionado contra a pauta antimanicomial, como já apontado - há, novamente, a atuação através de mecanismos institucionais, especificamente o judiciário. Um novo encaixe institucional, parece unir as condições de oportunidade políticas e jurídicas, através mobilização estratégica do direito, o ativismo de alguns atores envolvidos na elaboração da resolução - como o jurista Haroldo Caetano e a psicóloga Fernanda Ottoni -, na tentativa de mobilizar o direito enquanto poder com efeitos normativos, tanto do cumprimento da Lei 10216/2001, quanto da condenação na Corte Interamericana e de outros artefatos e atores para avançar em direção às demandas do tratamento de saúde e da desinstitucionalização.

 

Considerações Finais

Historicamente, a forma classificatória da inimputabilidade e da caracterização pela “periculosidade” ultrapassou as definições legais, a partir de dinâmicas de sujeição, controle e dominação, de tal forma que fez emergir um sujeito alvo de políticas penais, distantes do direito à saúde. A destinação ao locus híbrido e privilegiado de soterramento dos corpos marginalizados, o manicômio judiciário, faz parte dessa lógica de controle, punição e gerenciamento das populações “perigosas” nas cidades. Como aponta Mallart (2019), os hospitais de custódia e de tratamento psiquiátrico são o destino final de uma trajetória existencial dessas práticas punitivas, patologizantes e controladoras dos corpos negros e pobres. Desde a expulsão para as margens das cidades, dos sistemas de saúde e de medicalização, das passagens por Fundações de Atendimento Socioeducativos (FASE), passando pelos presídios tradicionais, o “apartheid de fato” (Vargas, 2017, p.88) já está sendo traçado nas “findas linhas” subterrâneas (Mallart, 2019) das impossibilidades colocadas à população capturada, principalmente, pela desumanização e criminalização no Brasil.

O final das linhas, para aquelas e aqueles sentenciados ao cumprimento de medida de segurança de internação é, muitas vezes, uma forma de morte social e biológica. Há a persistência da lógica manicomial que, contrariando a Lei antimanicomial 2001/06, permite que os internos permaneçam até o fim de suas vidas aprisionados, superando os anos que teriam em uma pena comum. O tratamento não acontece, nem poderia acontecer em locais que servem como depósitos de pessoas destinadas à morte por meio de políticas estatais, de segurança e “saúde”, marcam uma experiência coletiva e individual, especialmente, uma “experiência histórica, a experiência presente, a experiência futura, a morte social, da perspectiva da negritude, como um dado trans-histórico” (Vargas, 2017, p.95).

Os processos sócio-históricos e os contextos atuais de tentativas de mudanças indicam a necessidade de investigar e contribuir para a produção científica sociológica desta temática, que não se restringe apenas à privação de liberdade, mas também envolve uma sobreposição de saberes-poderes que inferem e produzem um outro tipo social, o "anormal" (Foucault, 2010). Este tipo pode ser considerado inimputável, ou seja, aquele que não pode ser responsabilizado penalmente, mas é percebido como perigoso, justificando assim a necessidade de sua institucionalização jurídico-manicomial. Permitindo, portanto, a análise da construção dessa categoria, compreendendo como ela é historicamente afetada pelos padrões de poder que moldam a sociedade moderna brasileira e seus paradigmas, identificando como eles se compõem e se complementam ao longo do processo na formação do sujeito "louco-criminoso" e inimputável.

Nesse sentido, a abordagem inclui a formação do jurídico qualificado a partir da união histórica de dois saberes-poderes, não apenas com base nas contribuições de Foucault (2010), mas também na compreensão das dinâmicas racializadas das relações sociais, originadas da colonização e da colonialidade-modernidade (Quijano, 2005; Restrepo, 2010; Rojas, 2010), como fatores intrínsecos à classificação, reconhecimento e destinação desses sujeitos, indo além dos dados sobre encarceramento.

No horizonte analítico, percebe-se que essa sujeição e aprisionamento híbrido contribuem para a existência do mundo como o conhecemos, alimentando a institucionalização, o adoecimento e o esquecimento social. Esse processo segregatório, ao mesmo tempo que, pelo mesmo sistema de justiça, permite a liberdade (Godoi, 2017, p.235) e as definições de sanidade para alguns, nega essas mesmas oportunidades para outros. A análise do processamento criminal "híbrido" (jurídico e psiquiátrico) apresenta uma das possíveis formas de rastrear as relações sociais que se articulam, disputam e convergem nas sentenças-diagnósticos neste arranjo moderno-colonial. Tais relações muitas vezes remetem às classificações e percepções acerca do inimputável, revelando uma dupla estigmatização da pessoa que comete um crime e encontra-se em sofrimento psíquico, frequentemente privada do tratamento de saúde.

 

 

 

 

 

 

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