Revista de Psicologia, Fortaleza, v.15, e024011. jan./dez. 2024

DOI: 10.36517/revpsiufc.15.2024.e024011

 

 

 

 

 

RECEBIDO EM: 21/02/2024 

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 09/05/2024 

VERSÃO FINAL: 13/05/2024 

APROVADO EM: 24/05/2024 

 

Supereu, Unheimlich, Nome(s)-do-Pai - será a loucura universal? 

Superego, Unheimlich, Name(s) of the Father - is madness universal? 

Deborah Lima Klajnman

Doutora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, com cotutela pela Université Côte d´azur. Pós-doutoranda pela Universidade de São Paulo, Brasil. Orcid: http://orcid.org/0000-0002-2429-5582. E-mail: deborah.kla@usp.br. Endereço para correspondência: Av. Professor Mello Moraes, 1721 - Butantã, São Paulo – SP - Brasil, 05508-030.

Marco Antonio Coutinho Jorge

Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Pós-doutor pela Université Sorbonne Paris Nord - Unité Transversale de Recherche Psychogenèse et Psychopathologie - França. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0710-7527. E-mail: macjorge@macjorge.pro.br

 

Resumo 

Trata-se de um artigo teórico de revisão de literatura motivado por problemas que a clínica psicanalítica coloca como desafio à teoria, mais especificamente sobre o que diz respeito ao que da loucura ainda excede às teorizações de Sigmund Freud e Jacques Lacan sobre as psicoses. Neste sentido, a partir da releitura que Lacan realiza sobre a obra de Freud, as reflexões de base do estudo se dão em torno de duas principais perguntas: seria possível considerar uma certa universalização da loucura, isto é, posicioná-la para além da questão estrutural, sendo plausível afirmar que há loucura tanto na neurose quanto na psicose? E ainda: seria então viável tratar de uma clínica de gradações? Ao considerar estas indagações pertinentes à práxis clínica, elas serão examinadas a partir dos conceitos psicanalíticos de Supereu, da noção freudiana de unheimlich e da ideia de pluralização dos Nomes-do-Pai, introduzidas por Lacan ao final de seu ensino.  

Palavras-chave: Loucura; psicanálise; supereu. 

 

 

Abstract 

This is a theoretical literature review article motivated by problems that the psychoanalytic clinic poses as a challenge to theory, more specifically with regard to what about madness still exceeds Sigmund Freud's and Jacques Lacan's theorisations on psychoses. In this sense, based on Lacan's re-reading of Freud's work, the basic reflections of the study revolve around two main questions: would it be possible to consider a certain universalisation of madness, in other words, to position it beyond the structural question, making it plausible to state that there is madness in both neurosis and psychosis? And furthermore: would it be feasible to deal with a clinic of gradations? Considering these questions to be pertinent to clinical practice, they will be examined based on the psychoanalytic concepts of the Superego, the Freudian notion of the unheimlich and the idea of the pluralisation of the Names of the Father, brought up by Lacan at the end of his teaching.  

Keywords: Madness; psychoanalysis; superego.  

 

 

 A partir de uma revisão de literatura, este artigo procura trazer questões sobre o que da loucura não cabe na ampla teoria psicanalítica trabalhada por Sigmund Freud e Jacques Lacan. Se a clínica sempre se coloca como um desafio à teoria, é neste viés que este escrito se localiza, possibilitando entradas nestas discussões. A presente reflexão resulta de duas principais questões que partem da releitura de Lacan sobre a obra de Freud: é possível universalizar o conceito de loucura de modo que ele transcenda as distinções estruturais clássicas, aplicando-se tanto à neurose quanto à psicose? Diante dessa questão, seria viável considerar uma clínica de gradações? Sem pretender necessariamente respondê-las, mas considerá-las enquanto indagações pertinentes à nossa práxis, as trabalharemos neste artigo a partir dos conceitos psicanalíticos de Supereu, a noção freudiana de unheimlich e da ideia de pluralização dos Nomes-do-Pai, proposta por Lacan ao final de seu ensino. 

Neste sentido, procuramos investigar os citados conceitos em suas conexões com a clínica e com as suas possíveis articulações com a concepção de loucura para a psicanálise referenciada nas obras de Freud e de Lacan. Esse percurso possui consequências políticas, pois tende a ampliar o conceito de “loucura” para além de sua acepção psicopatológica clássica, permitindo compreendê-la enquanto condição do falasser1. 

É possível recortar do percurso clínico freudiano casos em que fenômenos característicos da loucura comparecem em sua obra sobre a histeria, com destaque para o caso de Anna O., cuja compreensão por Freud e seus possíveis diagnósticos chamam-nos atenção; ora como histeria, ora como uma psicose histérica e, em alguns momentos, como uma psicose e uma histeria crônica que se agravaria tanto a ponto de se tornar uma psicose (Breuer & Freud, 2016). 

Se a clínica nos oferece subsídios para trabalharmos com essas hipóteses-questões - os fenômenos particulares à loucura, ora como histeria, psicose histérica, psicose, ou como histeria crônica -, a teoria freudiana responde à altura. Dela, recortamos dois conceitos que nos parecem fundamentais, a saber: o de Supereu e a noção que Freud introduz de unheimlich. Elas nos interessam na medida em que podem ser uma chave para o estudo da loucura na neurose e na psicose, podendo corroborar a noção de clínica continuísta em Lacan, que podemos denominar de clínica borromeana, baseada na pluralização dos Nomes-do-Pai. Além desses dois conceitos, se fará necessária a abordagem da diferença entre as duas distintas abordagens teórico-clínicas decorrentes da concepção de Nome-do-pai e de sua pluralização.    

Consideramos como possíveis contribuições desse estudo a oportunidade da realização de elaborações teóricas de problemas clínicos e a formulação de hipóteses-questões subsidiadas pelas considerações teóricas de Freud e de Lacan sobre a loucura. 

Supereu  

Na primeira tópica freudiana o aparelho psíquico foi dividido em inconsciente, pré-consciente e consciente. Na segunda tópica, apresentada em 1923, as instâncias estruturantes passam a ser Eu, Isso e Supereu. O Eu, como representante do mundo externo, pode ser considerado como o senso comum e a razão que, para caminhar ao lado do Isso, enquanto possuidor de força e vontade própria, precisa controlá-lo2.  

Freud formula que o Eu é uma parte modificada do Isso e que nele há uma gradação, a saber: o Supereu, segmento que possui menos relação com a consciência. O conceito de Supereu é introduzido por Freud de forma gradual, inicialmente a partir do termo Ideal do Eu, no ensaio “Sobre o narcisismo: uma introdução” (Freud, 1914/1996b). Em seguida, no artigo “As pulsões e seus destinos” (Freud, 1915/2013), o Supereu aparece embrionariamente, ainda não nomeado, como a instância crítica responsável pela ação sádica no interior da estrutura do sujeito (Jorge & Ligeiro, 2021). 

 O termo Ideal do Eu volta a aparecer em “Luto e Melancolia” (Freud, 1917/1996c), mas só é estruturado com propriedade em “O Eu e o Isso” (Freud, 1923/2011). A partir da tentativa de compreensão da neurose e do mecanismo do recalque, e ainda se confundindo com o conceito de Eu, no artigo de 1914, Freud descreve um possível agente psíquico que garantiria a satisfação narcísica originada no Ideal do Eu, possuindo a função de inspecionar e medir a diferença entre o Eu real e o Eu ideal, como um agente que se auto-observa.  

Ainda sem utilizar propriamente o termo Supereu, no ensaio “Luto e Melancolia”, Freud (1917/1996c) realiza algumas distinções entre a melancolia e o trabalho de luto a partir dos conceitos de narcisismo e de Ideal do Eu. A principal diferença entre os artigos de 1914 e de 1917 encontra-se no fato de que, no primeiro, o objeto amado é o Eu, e no segundo, há uma confusão, a partir da perda do objeto amoroso na melancolia, entre o objeto perdido e o Eu. Tendo como parâmetro a reação a essa perda, Freud diferencia o luto da melancolia. 

No luto, observa-se uma continuação do investimento no objeto perdido, o que suscita desinteresse no mundo externo e dificulta o encontro de outro objeto. No entanto, através da intervenção do princípio de realidade, o Eu possui ferramentas para notar que o objeto amado já não existe mais. Assim, depois de muitas tentativas de investir e desinvestir no mundo externo, a libido circula novamente e, dessa forma, o Eu pode investir em um novo objeto, momento em que o trabalho consciente de luto se finaliza.  

Na melancolia há um mecanismo diferente e inconsciente, pois a perda do objeto, nesse caso, suscita uma cisão no Eu. Através da identificação narcísica com o objeto perdido, a perda é introjetada como se fosse relativa ao próprio Eu, o que gera um alheamento do mundo. Essa cisão divide o Eu em duas partes. Na primeira, há a identificação com o objeto perdido, e na segunda, há a constituição do agente crítico que o julga como se fosse o próprio objeto perdido, atacando-o com agressividade, sem discernimento de que está, na verdade, se “auto-atacando”. Assim como o enlutado, o melancólico retira a libido do mundo externo, diminui sua capacidade de amar, no entanto, ataca a si mesmo, e possui uma angústia de ser punido a qualquer momento. 

 Ao tratar da melancolia, Freud constata que a insatisfação está atrelada ao objeto amado perdido e que ocorre um deslocamento das autorrecriminações do objeto perdido para o Eu. A noção desse agente crítico que aparece na cisão do Eu, apenas no caso da perda de objeto na melancolia, como pontuamos, é expandida por Freud: 

Nossa desconfiança de que o agente crítico, que aqui se separa do Eu, talvez também revele sua independência em outras circunstâncias, será confirmada ao longo de toda a observação ulterior. Realmente, encontraremos fundamentos para distinguir esse agente do restante do Eu (Freud, 1917/1996c, p. 253)3. 

Freud (1933/2010b) figura o Supereu como uma instância que abarca as funções do Ideal do Eu, da auto-observação e da consciência moral. Além disso, o inclui como um destino possível da pulsão de morte, principalmente como o responsável pelo sentimento de culpa. Através de todas essas atribuições do Supereu, ele é incumbido do olhar que observa, assim como da voz que condena e pune. Nessa mesma conferência, Freud situa o Supereu como fundamental instância do funcionamento psíquico, ressaltando os casos em que tal instância pode se converter em um rígido perseguidor para o Eu ao tornar-se excessivamente austero. Nesses casos, verifica-se uma tensão constante entre o Eu e o Supereu, que pode ser expressa através do “sentimento de culpa”, o que ele retoma também em “Psicologia das massas e análise do Eu” (Freud, 1921/1996e). 

Desde “O Eu e o Isso”, Freud (1923/2011) afirma que o Supereu é herdeiro do complexo de Édipo, representando para o adulto um ímpeto de obediência tal como a criança possuía com os pais. No manuscrito publicado em 1931, Freud elabora e aprofunda o tema de formação do Supereu, reafirmando a origem provinda do complexo de Édipo e identificando-o, assim como já havia feito no ensaio de 1923, como uma das formas de saída desse difícil processo psíquico. Processo esse realizado a partir da identificação e introjeção do pai, mas não do pai real, que será reconhecido pelo adulto mais tarde – nos adverte Freud –, e sim da figura que somente existia para a criança pequena enquanto onipotente. É essa figura idealizada que permanecerá por toda a vida existindo através de uma instância moral proibidora, punitiva e que terá que se haver com a diferença colocada pelo reconhecimento dos pais reais do adulto: “[...] encontramos o Supereu cujas exigências são tão grandiosas que incessantemente demandam do Eu o impossível. Um Supereu assim costuma criar alguns grandes homens, muitos psicóticos e muitos neuróticos” (Freud, 1931/2017, p. 63). 

Dessa forma, fica claro que tal saída encontrada para o complexo de Édipo - que inclui a identificação e incorporação do pai idealizado - pode, ao mesmo tempo, trazer solução para os conflitos e novos problemas para o Eu, a partir do seu lado reprovador (Freud, 1931/2017). Isso explica por que o pai pode ser tão poderoso a ponto de ser igualado a Deus, gerando uma série identificatória de libido Eu, Pai e Deus – série essa que pode se configurar tão fortemente, a ponto de ser possível que se perca a referência ao mundo externo, que poderia se contrapor a tal identificação. Para esse tipo de situação, Freud sugere um destino possível: “acabam no hospício” (Freud, 1931/2017, p. 65).   

Essa composição do Supereu, que possui como base o Eu e a autoridade dos pais, assim como dos seus ditos, explicita automaticamente o aspecto duplo e contraditório do Supereu, que suporta, dentre as suas finalidades, recalcar os sentimentos ambivalentes de amor, desejo e hostilidade das crianças pelos pais. 

Com suporte na leitura de Didier-Weill (1996), podemos pensar que as vozes do Supereu, provenientes da autoridade dos pais, podem seguir dois caminhos diferentes: um em que ele não se desenvolve para além da identificação com o objeto primordial; e outro em que, além da identificação, há o desenvolvimento para a lei do interdito. Através dessas duas possibilidades, perguntamos: como podemos investigar o funcionamento do Supereu no caso da psicose, ao pensar pelo viés de uma clínica estruturalista? Uma hipótese possível é a de que, nessa estrutura, o Supereu não avançaria para a segunda fase, já que não há a inscrição da lei paterna.  

Poderíamos dizer que o Supereu permaneceria na primeira fase, funcionando de forma arcaica (Didier-Weill, 1996), o que explicaria a fenomenologia psicótica, como os delírios e alucinações, através daquilo que retorna no real devido à não inscrição do significante do Nome-do-Pai. Nessa forma arcaica, haveria no mandamento do Supereu uma impossibilidade de escolha (Didier-Weill, 1996), o que nos leva a pensar na loucura e seus atos de impulsivos.  

Como exposto, há na ideia de Supereu um paradoxo, que também pode ser expresso da seguinte forma: o mal-estar que ele é capaz de gerar não possui origem nas exigências opostas à pulsão, mas sim pelo fato de que, nessas reivindicações, a satisfação do Supereu está presente. O campo do gozo, criado em Lacan a partir de concepções freudianas, pode localizar essa satisfação paradoxal da pulsão. Para explorar mais esse problema, retomemos “Totem e Tabu” (Freud, 1913/2012), no qual encontramos a referência essencial de Lacan (1957-58/1998a) ao Nome-do-Pai, a partir de um duplo aspecto estruturante ao qual o mito se refere.  

Ao mesmo tempo em que a morte do pai garante a barra, a inacessibilidade do gozo total àquele que não vai mais gozar de todas as mulheres, ela instaura a dívida simbólica. O assassinato do pai “é o momento fecundo da dívida através da qual o sujeito se liga à vida e à Lei” (Lacan, 1958/1998c, p. 563). Podemos dizer que essa dívida está intimamente ligada ao Supereu, ou seja, é preciso ir além dele, na medida em que para instaurar a lei é necessário matar o pai. Sendo o Supereu, ou apenas a sua primeira fase, oposto à Lei simbólica promovida pelo Nome-do-pai, que carrega o significante do assassinato do gozo sem limites. Se o pai gozador é o Supereu, como enuncia Lacan (1972-73/1985, p. 10): “O superego é o imperativo do gozo – goze!”, ele é o pai da não castração, da ordem daquilo que não é mais possível de satisfazer completamente, já que a castração caracteriza uma perda de gozo ao localizar o gozo em um objeto, e não mais em todos. De um lado está o gozo, regido pela Lei do Supereu, e no outro sentido está o desejo, regido pela Lei simbólica.  

O Supereu está preocupado em avaliar e medir a distância entre o que se é e o que se deveria ser ou ainda o que se gostaria de ser. Logo, ele é uma lei, mas uma lei que não legaliza, e sim que impõe regras. Diferentemente do desejo, que é vinculado à inscrição da lei simbólica, situado ao lado oposto dele. Como nos esclarece Lacan (1960/1998d, p. 841): “A castração significa que é preciso que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo”.  

Outra possibilidade pode ser examinada a partir de uma leitura da dimensão foraclusiva do Supereu, trazida também por Didier-Weill (1996), juntamente com o que Freud havia pressentido ao afirmar, em 1914, uma aproximação entre o Ideal do Eu e o delírio de observação. Poderia, então, essa possibilidade nos guiar na direção de uma continuidade entre a neurose e a psicose? Sabendo que a hipótese de uma clínica continuísta, diferente da estruturalista, distingue não as classes, mas os modos, as variações, nos perguntamos: seria possível legitimar uma análise menos fixada na diagnóstica estrutural e mais passível de diferentes nuances, formas de estar no mundo não tão fixadas?  

É importante assinalar a presença, desde 1914, da associação entre o que futuramente seria o conceito de Supereu e sua referência às questões da neurose e psicose, principalmente a partir da noção de delírio: 

O reconhecimento desse agente nos permite compreender os chamados delírios de sermos [...] vigiados, que constituem sintomas tão marcantes nas doenças paranoides, [...] ou intercalados numa neurose de transferência. [...] Um poder dessa espécie, que vigia, que descobre e que critica todas as nossas intenções, existe realmente. Na realidade, existe em cada um de nós em nossa vida normal [...] (Freud, 1914/1996b, p. 102, grifo nosso).  

Segundo Freud, esses delírios apontam sua origem “[...] pois o que induziu o indivíduo a formar um Ideal do Eu [...] surgiu da influência crítica de seus pais (transmitida a ele por intermédio da voz) [...]” (Freud, 1914/1996b, p. 102), juntamente com “aqueles que o educaram e lhe ensinaram, a inumerável e indefinível corte de todas as outras pessoas de seu ambiente – seus semelhantes – e a opinião pública” (p. 102). Sendo assim, ao examinar a formação do Supereu a partir da influência crítica dos pais, transmitida através da voz, podemos fazer uma correlação com a alucinação auditiva, fenomenologia comumente atribuída à psicose, mas que Freud não parece atribuir exclusivamente a essa estrutura, ao menos nesse momento.  

A partir dos fragmentos colhidos, encontramos, através do conceito de Ideal do Eu, uma das ideias embrionárias do que pode ser articulado com uma possível clínica continuísta em Freud, já que ele relaciona claramente os delírios auditivos provenientes do Supereu com a “vida normal” (Freud, 1914/1996b, p. 102), o que pode ser entendido como base constitutiva para ambas as estruturas. Freud (1917/1996, p. 65) pontua a passagem da observação para perseguição, isto é, a observação como uma condição que estaria para todos os sujeitos, enquanto a perseguição estaria para os “doentes mentais”, caso em que essa instância se destacou do Eu de forma errônea, passando para a realidade externa. 

Ainda em “Totem e tabu”, há outra ideia freudiana que nos permite articular a noção de Supereu ao nosso principal tema, ao possibilitar o embasamento da teoria de uma clínica continuísta a partir de um apontamento desse ensaio: “A consciência moral é a percepção interna da Verwerfung de certos desejos” (Freud, 1913/2012, p. 142). O termo “consciência moral” indica mais um momento em que Freud inicia a construção da noção de Supereu através da relação entre esse conceito e a ideia de não ruptura entre neurose e psicose, quando ele se refere a uma Verwerfung para além da psicose. Para Freud, há, na origem da consciência moral, uma foraclusão que é estrutural, ou seja, existe no processo de constituição do sujeito, tanto na neurose quanto na psicose, o que Lacan (1954/1998b, p. 389) traduz da seguinte forma: “A Verwerfung corta pela raiz qualquer manifestação simbólica”. 

Pensando na problemática da distinção entre uma clínica estrutural descontinuísta e uma clínica continuísta, seria a dimensão superegoica uma forma de diferenciar a neurose e a psicose no primeiro caso? Que poderia se relacionar com a ideia de loucura, como aquela que transita nas duas estruturas, numa dimensão muito intensificada, se assim podermos dizer, do Supereu? Dentre as experiências alucinatórias, as audioverbais são muito frequentes, o que nos leva a indagar: o quanto isso se relacionaria com o Supereu? Lacan (1962-63/2005a, p. 275) aponta um caminho teórico a partir de uma reflexão: “[...] acreditamos conhecê-lo bem, a pretexto de conhecermos seus dejetos, as folhas mortas, sob a forma das vozes perdidas da psicose, e seu caráter parasitário, sob a forma dos imperativos interrompidos do Supereu”.  

Diferentemente de quando essa voz não se incorpora, elas permanecem separadas e, por isso, perdidas, fazendo parte do próprio sujeito, mas vivenciadas em uma dimensão externa, onde podemos localizar o seu caráter intrusivo e real. Nessa acepção, o Supereu provê certezas estrangeiras, mas seriam tão estrangeiras assim? Isso nos remete ao próximo item, em que abordaremos o ensaio freudiano Das Unheimliche (Freud, 1919/2010a). 

Unheimliche  

Freud (1919/2020a) inicia o ensaio discorrendo sobre a noção de estética e, por vezes, é assim que o seu texto é conhecido, circunscrevendo uma teoria da beleza e das qualidades do sentir. No entanto, acreditamos que seu conteúdo vai muito além disso, logo, investigá-lo pode gerar importantes frutos para nossa pesquisa. 

O termo unheimlich, ao ser mediado pela tradução da palavra inglesa uncanny, possui a sua versão mais conhecida na língua portuguesa como “O estranho” (Freud, 1919/1996d), tradução que foi por décadas a mais utilizada no Brasil. Todavia, a escolha da palavra inglesa e portuguesa não parece alcançar os meandros que carregam seus possíveis significados. A questão da tradução do termo é problematizada pelo próprio Freud, que aborda a dificuldade encontrada em diversas línguas para traduzir a palavra original alemã escolhida por ele, tão rica de ambiguidades e sentidos. 

 Para o português e também para o italiano, a dificuldade residiria em definir a noção sem rodeios, já que essas línguas parecem se contentar com termos que descreveriam de forma indireta o pensamento que Freud desejava exprimir. Em português, é recorrente a utilização da expressão “estranho familiar” para se referir ao unheimlich freudiano. Numa recente tradução para a língua portuguesa, realizada diretamente do alemão (Freud, 1919/2010a), foi empregada a palavra “inquietante”, aliás, congruente com a tradução inquiétant estrangité, classicamente adotada por psicanalistas e tradutores de língua francesa. Se tomarmos seu uso comum em português e compararmos com a definição de unheimlich feita pelo próprio Freud neste artigo, tal tradução também parece não dar conta do campo semântico que é abarcado pelo original alemão. 

Realizando, portanto, um esforço para minimamente contornar a dificuldade de tradução, tentemos analisar mais a fundo o significado do termo unheimlich, que permite abarcar o que há de mais familiar e, ao mesmo tempo, o que se torna completamente estrangeiro. Para isso, façamos como Freud (1919/2010a), que utilizou o conto de Ernst Hoffmann para explorar o tema através do efeito inquietante que provoca. 

O conto “O homem de areia”, de Hoffmann, descreve a experiência do personagem principal, Nataniel, ao se apaixonar por uma boneca cujo vulto feminino não poderia ser observado de perto. Desconhecendo que se tratava de uma boneca, ele é posto em uma situação de estranho fascínio por ela. Essa atmosfera cria para os leitores uma grande incerteza, não permitindo saber se tal objeto de desejo é ou não um ser animado, o que, de certa forma, sugeriria ter como efeito estranheza e angústia (Hoffmann, 1816, como citado em Freud, 1919/2010a).  

No entanto, para Freud, o efeito de estranheza causado no leitor do conto não é consequência da incerteza do personagem Nataniel sobre a boneca Olímpia ser ou não ser um objeto sem vida, como aponta o ensaio outrora realizado por Ernst Jentsch, mas sim o temor de perder os olhos, expresso pelo mesmo personagem.  

Para Freud, a explicação para tal temor teria suas origens nas recordações infantis de Nataniel, que não conseguia afastar de sua mente as lembranças ligadas à morte misteriosa de seu amado pai. Além disso, Nataniel recordava-se que, para convencer os filhos a dormir, sua mãe costumava intimidá-los, dizendo-lhes que o terrível homem da areia estava chegando. Discurso esse que vinha acompanhado da ameaça de ter os olhos arrancados por ele. Ligada a isso, havia também a lembrança de uma cena de um homem que visitava o seu pai; visita que Nataniel acreditava ser o homem de areia. A partir desse momento, o conto confunde o que seria delírio do personagem e o que teria factualmente ocorrido.   

Freud (1919/2020a) se pergunta se o conto narrava o delírio de um menino possuído por pura angústia ou uma situação factualmente real. O fato é que Nataniel sucumbe a acessos de loucura, em que seu delírio se mescla com a recordação da dolorosa morte do pai e com o momento em que o vendedor de barômetros lhe parecia oferecer “olhos” para vender, quando, na verdade, eram apenas “óculos”. Tudo se passa como se o efeito da vivência inquietante produzisse uma experiência de loucura. 

Aquilo que é terrificante no conto de Hoffmann o é pela impossibilidade de ser traduzido em palavras. Em outros termos, algo de real está em jogo: “Tudo o que deveria ter permanecido oculto e secreto, mas veio à luz” (Schelling, [s.d.], como citado em Freud, 1919/2010a, p. 243). A inquietante estranheza suscitada nesse fenômeno é própria do retorno do recalcado e nos assegura de que se trata de algo do próprio sujeito, da ordem da repetição, que se impõe como inescapável, podendo se apresentar pela compulsão à repetição, que retorna sempre ao mesmo lugar - o do recalque originário. 

Aquilo que é estranho é pontualmente articulado ao retorno do recalcado, ou seja, o que causou mal-estar retorna através de um aspecto assustador. Nesse sentido, tomado pela inquietante estranheza, o efeito é a angústia. O fenômeno do estranho concerne, portanto, ao que não se pode apreender entre a estranheza e a familiaridade, abarcando um recalcado que deveria permanecer recalcado. Segundo Marco Antonio Coutinho Jorge (2010; 2022, p. 300), o núcleo do ensaio do estranho deve ser situado na dimensão das fantasias incestuosas com o objeto materno, do mesmo modo que o ensaio freudiano sobre o “Bate-se numa criança”, escrito no mesmo ano que “O estranho”, é um texto sobre as fantasias incestuosas com o objeto paterno. Segundo Jorge ainda, esses dois textos não só manifestam a última elaboração de Freud sobre o inconsciente enquanto recalcado, como também abrem as portas para o inconsciente real, mais além do simbólico e articulado à pulsão de morte. 

Portanto, o estranho não é nada alheio ao sujeito, mas sim familiar e há muito estabelecido para ele, e que somente se afastou devido ao processo do recalque (Freud, 1919/2010a). Trata-se do interno exterior, de algo próprio do sujeito, mas em que ele não se reconhece, o que parece se aproximar muito da ideia da denegação (Freud, 1925/2016). Talvez a diferença entre a concepção de denegação e a de estranho seja que o fenômeno do estranho porta no retorno do recalcado a perda de um traço identificatório. Quando Freud não se reconhece no reflexo do trem, por exemplo, ele não se identifica mais com a sua imagem a partir daquilo que retorna como insuportável, o real do passar dos anos. Em última instância, a proximidade da morte se presentifica em sua própria imagem (Freud, 1919/2010a). 

É interessante observar que o ensaio Das Unheimliche foi publicado em 1919, no entanto, segundo uma carta que Freud escreve a Ferenczi, e também de acordo com uma nota em “Totem e Tabu”, suas ideias tiveram origem, no mínimo, em 1913, antes mesmo de o ensaio “O narcisismo”, de 1914, ser publicado, e provavelmente próximo de sua data de escrita, o que nos sugere a ideia de que ambos os textos se relacionam intimamente. Além disso, a leitura freudiana possibilita uma interligação entre os artigos de 1914 e de 1919, já que aquilo que é estranho é tributário ao narcisismo, pois só há estranheza, no sentido do unheimlich freudiano, onde há familiaridade.  

Em sua apresentação sobre o estranho, o fenômeno do duplo é apontado como o tema de estranheza que mais se destaca, podendo apresentar-se sob diversas formas, assim como distintos modos de identificação. Para Freud, tal fenômeno é constitutivo, fato ao qual todos estamos sujeitos, mesmo que momentaneamente. Outro ponto a sublinhar é o caráter defensivo desse fenômeno descrito em 1919. O Eu, inconformado com as suas limitações, com a sua mortalidade e em busca de proteção, coloca no exterior todo o material estranho que causaria desprazer. Segundo Freud, no narcisismo primário, o duplo pode ser pensado como um mecanismo relacionado ao princípio de onipotência, assim como uma tentativa de negação da própria morte. Porém, em um segundo momento, ele passa a evidenciar, para além da morte, a castração, a impotência e a fragmentação da imagem narcísica, podendo tornar-se fonte de angústia (Freud, 1919/2010a). 

Tais recortes apontam para a noção de constituição do sujeito, que pode ser articulada à ideia de gradação e intervenção superegoica como um divisor de águas entre a neurose e a psicose, se tratarmos de uma clínica estrutural. Podemos dizer que, nessa mesma clínica, o fenômeno do duplo pode ser vivenciado de forma diferente na neurose e na psicose. Assim como a instância superegoica, que na neurose a instância é experimentada como se proviesse do interior do sujeito e, na segunda, como do exterior. 

Na conferência XXXI, Freud também aproxima esta inquietante estranheza do recalcado.  

Os sintomas são derivados do recalcado, são, por assim dizer, seus representantes perante o eu; mas o recalcado é território estrangeiro para o eu – território estrangeiro interno – assim como a realidade (que me perdoem a expressão inusitada) é território estrangeiro externo (Freud, 1917/1996d, p. 63). 

Essa terra, à qual Freud se refere ao mesmo tempo como estrangeira e interna, nos parece dar lastro para a criação, por Lacan, do neologismo “êxtimo”, para tratar do que é, concomitantemente, mais íntimo e mais externo ao sujeito. Neologismo utilizado também ao se referir a das Ding, enquanto o êxtimo mais primitivo, “[...] essa exterioridade íntima, essa extimidade, que é a Coisa” (Lacan, 1959-60/1991, p. 173). 

 Lacan (1968-69/2008, p. 241) retoma esse neologismo para falar do ponto vazio da estrutura. Ao situar o lugar do objeto a nos diz: “[...] ele está num lugar que podemos designar pelo termo ‘êxtimo’, conjugando o íntimo com a exterioridade radical. [...] o objeto a é êxtimo”. 

O psiquiatra e psicanalista Marcel Ritter, em uma intervenção durante a jornada de cartéis em Strasbourg, no dia 26 janeiro de 1975, questiona Lacan sobre algumas palavras alemãs, utilizadas por Freud, que possuem em comum o mesmo prefixo “un-“: Unbewusste, unheimlich e Unerkannt. Esta última, retirada da A interpretação dos sonhos, é, de acordo com Marcel Ritter, muito mal traduzida pelo termo “desconhecido”, expresso na seguinte passagem: “Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido [Unerkannt]” (Freud, 1900/1996a, p. 556).  

Logo, se o termo Unerkannt é articulado à questão do “umbigo do sonho”, ele o é no ponto em que o sonho é enigmático, ou seja, ponto em que se interrompe a possibilidade de sentido. Freud, nessa passagem, afirma que esse ponto do sonho é o mais próximo ao Unerkannt, que possui finalmente a sua mais exata tradução no termo não-reconhecido. Nas palavras de Ritter: “É um ponto constituído por uma massa de pensamentos que nunca chegamos a desmanchar, mas que mantém um único ponto de ligação com o restante do conteúdo do sonho: um ponto de falha na malha que o constitui” (s/p). Em resposta à intervenção colocada por Ritter, Lacan (1975/1994, s/p, tradução livre) indica que “[...] há um real pulsional unicamente na medida em que o real é o que na pulsão eu reduzi à função de furo [trou]. Quer dizer, aquilo que faz com que a pulsão seja ligada aos orifícios corporais”. 

Essa questão, que ele especifica como borda do furo, portanto, localiza a presença de um ponto de real não simbolizado e que se coloca como opaco, demonstrando a existência de um ponto fora do sentido, que indica a impossibilidade de reconhecimento do recalque originário. Dito de outro modo, seria um tipo de imersão no desconhecido, nesse ponto que escapa ao saber e que se repete justamente por não cessar de não ser conhecido. Lacan nos lembra que a noção de “umbigo”, extraída da expressão “umbigo dos sonhos” utilizada por Freud (1900/1996a), é assaz pertinente. O termo “umbigo”, literalmente, indica um orifício corporal que, apesar de fechado, permaneceu por nove meses aberto, sendo a troca que garantia a vida ao infans. Nesse sentido, além de indicar um resto e lembrar que teve um antes, aponta para a marca de onde viemos e, ao mesmo tempo, indica aonde se vai (Lacan, 1975/1994).  

Para concluir esse ponto, recortemos um trecho do texto freudiano Die Verneinung: “O mau, aquilo que é estranho ao eu e que se encontra fora, é inicialmente idêntico a ele” (Freud, 1925/2016, p. 23). Vejamos que, apesar da palavra unheimlich não ser utilizada por Freud, que optou por utilizar o termo Fremde, a mesma palavra em português “estranho” é utilizada nessa versão para situar uma condição que é, ao mesmo tempo, interna e externa ao eu. Isso nos indica uma proximidade da questão teórica que estamos desenvolvendo e sua relação, ao nosso ver, com a concepção de recalque originário, de das Ding como o núcleo do real e de umbigo dos sonhos como o que é Unerkannt. Série de ideias que sinaliza um real impossível de reconhecer, de capturar pelo simbólico. 

Nome(s)-do-Pai 

Para continuar o nosso percurso de investigação, pontuemos dois momentos do ensino e da clínica da psicose de Lacan localizados nos anos 1950, baseado na inscrição ou não do Nome-do-Pai, e nos anos de 1970, fundado no seu recurso à topologia e ao nó borromeano.  

Apoiado, inicialmente, no pensamento de Claude Lévi-Strauss sobre as leis estruturais, Lacan leva em conta a enunciação em vez dos enunciados. Assim, ao realizar a referência à estrutura como aquela da linguagem, concede primazia ao significante e pensa a estruturação do aparelho psíquico organizada como um dialeto, em que cada estrutura possui a sua linguagem própria. As três estruturas propostas por Lacan são formas de o sujeito responder à castração. Nesta primeira clínica chamada de estruturalista, o sujeito, organizado pelo significante do Nome-do-Pai, teria, frente a este, três opções: recalcar, desmentir ou foracluir. O efeito dessas ações seria, respectivamente, a estruturação do aparelho psíquico como uma neurose, uma perversão ou uma psicose.  

Para explicar melhor, Lacan (1956-57/1995) menciona, a partir de uma metáfora, essas diferentes estruturas e suas relações com o gozo. Metaforicamente, a neurose seria representada por uma odalisca com véu; a perversão seria apenas o véu e a psicose seria somente a odalisca. Com isso, temos um bom exemplo do efeito que tem na vida do sujeito a estruturação do aparelho psíquico a partir do significante do Nome-do-Pai.  

A neurose é marcada por uma relação entre sujeito e objeto de desejo, em que a regra, o enquadramento, é determinada pelo recalque. Já no caso da psicose, em que não há recalque, essa relação existe de outra maneira. A foraclusão do Nome-do-Pai e, portanto, de uma proteção ao gozo, gera uma dificuldade que é por vezes suplementada por uma rigidez do registro imaginário. Esse efeito poderia, então, ser observado frequentemente em delírios formas de fantasia em que o poder dialético do simbólico perdido as reduz ao imaginário - e alucinações, nas quais o que foi foracluído do simbólico retorna no real.  

Trinta anos após sustentar os seus seminários na International Psychoanalytical Association (IPA), Lacan, ao iniciar a abordagem de um tema precursor, propondo a pluralização do Nome-do-Pai – temática que questionava o pai –, é excomungado da associação internacional. Nesta única aula de novembro 1963, denominada de “Nomes-do-Pai”, que ficou conhecida como “o seminário inexistente”, localizamos um marco importante entre esses dois momentos do ensino lacaniano. A partir da proposição lacaniana de que cada um invente um Nome-do-Pai para si, visto que o Nome-do-Pai falha sempre, os nomes do pai que podem vir em suplência à essa falha podem ser variados.  

Ele não retomará propriamente o tema da pluralização do Nome-do-Pai, recusando-se mesmo a publicar a única lição desse seminário, mas seu ensino, ao longo dos anos, evidencia a marca dessa transição. A transição do singular para o plural e do Nome-do-Pai como relativo, e não mais absoluto. A partir desse momento, o ensino lacaniano se concentra na teoria dos nós, na qual o simbólico perde a primazia sobre o imaginário e o real – este último ganhando cada vez mais relevância.  

Destarte, enquanto a clínica do ensino lacaniano da década de 1950 é uma clínica estruturalista, descontinuísta, que possui como essência a oposição e a diferença, a clínica do ensino da década de 1970 está relacionada ao enodamento ou ao não enodamento, podendo ser ele borromeano ou não. A oposição da primeira clínica, apesar de tripartite – neurose, psicose e perversão –, se funda numa bipartição, isto é, a partir da noção de Bejahung, afirmação primordial, relacionada à neurose e à perversão, e de verwerfung, foraclusão, relacionada à psicose. 

Enquanto na clínica estruturalista o significante do Nome-do-Pai é a referência, operando enquanto metáfora paterna, na clínica estabelecida na década de 1970 o que está em voga é uma certa universalidade da foraclusão, já que ela supõe a pluralização do Nome-do-Pai. Portanto, após o final da década de 1960, mais efetivamente no seminário RSI (1974-75), Lacan introduz a topologia dos nós e ao nó de Borromeu, como uma amarração em que o desenlace de um desses registros desorganizaria o nó como um todo. 

Entre os seminários RSI e O sinthoma (Lacan, 1975-76/2005b), surge para Lacan a questão sobre se o sujeito pode se sustentar pelo nó a três ou pelo nó a quatro e acaba se decidindo pela segunda opção. A possibilidade de se criar e de se manter o laço social estaria, então, articulada à presença de uma invenção singular que amarrasse os três registros. Essa invenção seria uma construção de um novo lugar subjetivo para aquilo que serviu de entrada ao tratamento.  

No seminário seguinte, O sinthoma (1975-76), o significante é apontado como equivalente ao sinthoma, separando, assim, a função paterna da função de nomeação: “Constatei que, se os três nós mantiverem-se livres entre eles, um só triplo, que toma parte em uma plena aplicação de sua textura, ex-siste, ele é efetivamente o quarto. Ele se chama sinthoma” (Lacan, 1975-76/2005b, p. 55). 

Esse novo contexto teórico não substitui o primeiro, mas o complementa. A partir dos trilhos dessa elaboração, culminada com o trabalho da escrita de Joyce, Lacan não joga fora o que havia sido elaborado sobre o pai, mas produz um novo sentido ao denominado sint(h)oma. Sendo assim, podemos compreender que a consequência teórica dessa abordagem é a clínica borromeana, que vai ao encontro do que estamos trabalhando. 

A ideia da universalidade do delírio proposta por Lacan (1978/2010, p. 35): “[...] todo mundo é louco, ou seja, delirante”, lida à luz da proposta da pluralização do Nome-do-Pai, marca ainda mais a reviravolta do seu ensino e a história da psicanálise. Quando Lacan passa a se referir ao Nome-do-Pai no plural, ele também nos leva a crer que há algo foracluído na neurose, e não apenas na psicose, como era estabelecido no axioma anterior da clínica chamada de estrutural.  

Ao traçar esse caminho, podemos indagar também as possibilidades de escolha do sujeito de se localizar na estrutura que o organiza psiquicamente, assim como os recursos simbólicos de cada sujeito, sendo mais ou menos consistentes para lidar com o real, muitas vezes avassalador. A partir disso, nos indagamos sobre o que permite que um neurótico responda em alguns momentos através de fenômenos psicóticos e como um psicótico pode, muitas vezes, ter recursos semelhantes ao de um neurótico. Ao abordar esse tema, os dois momentos do ensino de Lacan são importantes, mas o último ganha mais ênfase.  

Acreditamos que a relativização do Nome-do-Pai, juntamente com a sua pluralização, demarca um redimensionamento da teoria lacaniana e oferece instrumentos novos para a prática diagnóstica e fundamentais para o dimensionamento da escuta analítica.   

Em nossa leitura, é esse o ponto em que a obra freudiana se encontra com a aposta conceitual lacaniana de que todos sujeitos são delirantes (Lacan, 1978/2010). Aqui, vislumbra-se a possibilidade de uma ampliação da clínica na medida em que a questão não é mais incluir os sujeitos em classificações diagnósticas, mas considerar que, para além do tipo clínico, há um tipo de gozo particular de cada sujeito. A clínica borromeana surge, então, como paradigmática da clínica psicanalítica para qual a singularidade é mais fundamental do que o típico clínico no qual ele está inserido. 

Considerações Finais 

Examinamos resumidamente neste trabalho duas perguntas: seria possível considerar a categoria de loucura para além da questão estruturalista, sendo plausível tanto na neurose quanto na psicose? Seguindo este mesmo viés de investigação, seria então possível falar de uma clínica de gradações? Tais indagações nos impulsionaram a examinar a problemática da loucura em suas trilhas da clínica estrutural e da clínica borromeana. Percorremos, a partir dos conceitos de Supereu, a noção freudiana de unheimlich e a ideia de pluralização dos Nomes-do-Pai, trazida por Lacan. 

 A partir desse recorte investigativo, destacamos que aquilo que se encontra do lado do sentido está também ao lado da loucura e, desse modo, buscar um sentido no real compreende diretamente a ideia lacaniana de “Todo mundo delira”. Generalizar a loucura não é, portanto, banalizá-la, mas quer dizer que, assim como todos são tomados pelo real, todos precisam construir a sua própria bricolagem4. Nesse sentido, é possível pensar em um ponto de loucura inerente ao ser falante (falasser). Considerar uma dimensão da loucura que é ao mesmo tempo única e concernente a todos significa também retirar a loucura do senso patológico e incorporá-la a uma dimensão do ser falante. 

Como em qualquer trabalho que se predispõe a realizar uma nova investigação, este também possui pontos que demandam mais elaborações, possíveis somente no âmbito da interlocução. Sendo assim, torná-la parte de um artigo significa submeter a hipótese de que a loucura generalizada situada em Lacan aparece desde Freud. É com as reafirmadas considerações que colocamos essa ideia à prova da realidade, compartilhando as teorizações com os leitores interessados na temática e na psicanálise. Em outras palavras, buscar um sentido naquilo que não há sentido, que Lacan define como real, se aproximaria da sua afirmativa “Todo mundo delira”. Nesse percurso, é imprescindível destacar que não se trata de generalizar a loucura, a ponto de banalizá-la, mas considerar que o real é aquilo com o que nos precisamos a ver, e logo, construir um próprio saber fazer com ele (savoir y faire) (Lacan, 1976-77). 

Nesse viés, seria possível considerar um ponto de loucura inerente ao ser falante (falasser), isto é, uma dimensão da loucura que é única e concernente a todos, o que nos possibilita também retirar a loucura do senso patológico e incorporá-la a uma dimensão do ser falante. Esta pode ser, portanto, uma chave de leitura para percorrer Lacan em seu retorno a Freud.  

Referências: 

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Termo utilizado por Lacan a partir do seminário RSI (1974/1975), como noção que condensará o sujeito do significante, a ideia de um ser de fala, juntamente com a substância gozante. Delimita-se que o sujeito do significante, da falta-a-ser, se apoia a posteriori no falasser.   

Fazemos alusão a analogia freudiana realizada na obra “O eu e o isso” (1923) quando o autor se refere às instâncias psíquicas e à situação do cavaleiro: o eu, em sua relação com o isso. 

Em todas as citações, trocamos “id” por “isso” e “ego” por “eu”. 

O termo bricolagem é utilizado no sentido de costurar e reinventar, isto é, neste contexto, uma espécie de fazer singular com os restos de gozo que podem ser recortados ao longo de uma análise.