Revista de Psicologia, Fortaleza, v.15, e024018. jan./dez. 2024

DOI: 10.36517/revpsiufc.15.2024.e024018

 

 

 

 

 

 

 

RECEBIDO EM: 23/02/2024

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 26/08/2024

VERSÃO FINAL: 28/08/2024

APROVADO EM: 04/09/2024

 

Importância da formação continuada para uma atuação crítica em psicologia escolar

Importance of continuing education for critical action in school psychology

Camila Moura Fé Maia

Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal/Brasil. Psicóloga, mestra e doutoranda pela Universidade de Brasília. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2928-2684. E-mail: cmfmaia@gmail.com

 

Regina Lúcia Sucupira Pedroza

Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília/Brasil. Psicóloga, mestra e doutora pela Universidade de Brasília. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2251-5040. E-mail: 57pedroza@gmail.com

Resumo

A prática de psicólogas escolares ainda possui marcas de um fazer individualizante, adaptacionista e patologizante, apesar da imensa produção e atuação crítica dos últimos anos. Aponta-se assim para a necessidade de formação continuada que contribua para a superação de práticas reducionistas na escola. Foi esse entendimento que pautou a construção de pesquisa com psicólogas escolares da Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal (SEEDF). O objetivo deste artigo é apresentar a análise do relato das profissionais, a partir da utilização do grupo de escuta e fala inspirado no método Balint. Foram realizados cinco encontros, com nove psicólogas. Os relatos dos encontros foram analisados e agrupados em dois grandes temas: função e atuação da psicóloga escolar; e relações entre psicóloga e demais profissionais da escola. Identificamos que há necessidade de abrir espaços de escuta e troca para que as psicólogas escolares possam refletir sobre sua atuação e transformá-la. Defendemos os grupos de discussão das práticas profissionais inspirados no método Balint como um espaço formativo em serviço, pois essa metodologia permite o engajamento e a reflexão sobre a atuação, favorecendo a articulação entre aspectos profissionais e pessoais em um processo dialogado e coletivo de conscientização sobre o fazer da psicóloga escolar.

Palavras-chave: Psicologia escolar; formação continuada; atuação crítica.

 

 

Abstract

The practice of school psychologists still has signs of an individualizing, adaptationist and pathologizing practice, despite the immense production and critical action in recent years. This highlights the need for continued training that contributes to overcoming reductionist practices at school. It was this understanding that guided the construction of research with school psychologists from the State Department of Education of the Federal District (SEEDF). The objective of this article is to present the analysis of the professionals' reports, based on the use of the listening and speaking group inspired by the Balint method. Five meetings were held, with nine psychologists. The reports of the meetings were analyzed and grouped into two major themes: role and performance of the school psychologist; and relationships between psychologists and other school professionals. We identified that there is a need to open spaces for listening and exchange so that school psychologists can reflect on their work and transform it. We defend professional practice discussion groups inspired by the Balint method as an in-service training space, as it allows engagement and reflection on performance, favoring the articulation between professional and personal aspects in a dialogued and collective process of raising awareness about the school psychologist work.

Key-words: School psychology; continuing training; critical performance.

O percurso histórico da psicologia no Brasil tem íntima relação com a educação escolar (Magalhães & Martins, 2020; Patto, 1987). A psicologia brasileira nasce respondendo às demandas da educação, em especial a partir da mensuração de habilidades e classificação de crianças quanto à capacidade de aprender e progredir pelos vários graus escolares. A inserção da psicóloga¹ na educação esteve assim, intimamente ligada com ações como aplicação de testes psicológicos, diagnóstico de estudantes e encaminhamento para classes especiais (Patto, 1987).

              Essa atuação para a classificação e para o diagnóstico, em uma perspectiva individualizante, foi amplamente criticada no Brasil a partir dos anos 1970, ganhando destaque, na década de 1980, as produções de Patto (1987, 1991). O movimento de crítica em psicologia escolar se deu, principalmente, em relação à naturalização dos fenômenos psicológicos, a partir de teorias de cunho biologizantes ou psicologizantes, que pautavam práticas classificatórias e de ajustamento. Dentre elas, a aplicação indiscriminada de testes psicológicos e a elaboração de laudos que ignoravam aspectos sociais da produção da queixa escolar, individualizando o fracasso e culpabilizando as crianças pobres e suas famílias.

Entretanto, mesmo com a imensa produção crítica dos últimos anos, bem como a divulgação das mais diversas experiências que têm um olhar mais amplo e complexo para o processo educativo e seus atores, a prática de psicólogas escolares ainda possui marcas significativas do olhar individualizante, adaptacionista e patologizante (Andrada, Dugnani, Petroni & Souza, 2019; Cavalcante & Aquino, 2019; Magalhães & Martins, 2020; Naves & Silva, 2020). Práticas consideradas tradicionais como a avaliação individual de estudantes, a testagem e o encaminhamento para profissionais da área de saúde, sem a devida consideração sobre os aspectos escolares que intervêm no processo de ensino e aprendizagem, ainda é uma constante nas escolas brasileiras (Magalhães & Martins, 2020; Viégas, 2016).

O modelo clínico-individualizante de atuação da psicologia na educação se mantém atual dentro das escolas e, inclusive, tende a se fortalecer em um momento de acirramento da organização neoliberal na nossa sociedade (Magalhães & Martins, 2020). A lógica neoliberal responsabiliza e culpabiliza, de forma crescente, os indivíduos pelos seus desempenhos nas diferentes esferas da vida, incluindo na educação.

Esse modelo também encontra respaldo nas expectativas de outros atores da comunidade escolar (Naves & Silva, 2020; Pereira-Silva, Andrade, Crolman & Mejía, 2017) ou aparece no imaginário social de muitas pessoas ao se pensar a atuação da psicóloga escolar (Negreiros et al., 2022). A psicóloga na escola seria aquela a lidar com o “aluno-problema” em uma perspectiva clínico-individualizante.

Assim, entendemos que o processo de individualização e patologização das dificuldades de escolarização é uma questão que se mantém relevante para a psicologia escolar e educacional. Consideramos que esse modelo de atuação por parte de psicólogas aponta para a necessidade ainda flagrante de se fazer a autocrítica dentro da área, bem como de formação que contribua para a superação de uma forma reducionista do fazer psicológico na escola.

Psicologia escolar e formação continuada

Entendemos que o ponto de partida para essa autocrítica deve ser de cunho epistemológico. Martín-Baró (1996) já apontava como a psicologia atendeu historicamente, de maneira predominante, a população mais rica e se focou nas raízes pessoais dos problemas, esquecendo-se dos fatores sociais. Com este enfoque e esta clientela, ficaria nítido que a psicologia é ideológica, pois serve aos interesses da ordem social estabelecida, convertendo-se “em um instrumento útil para a reprodução do sistema” (Martín-Baró, 1996, p. 13).

O autor aponta também como a psicologia atua pautada no individualismo e no ahistoricismo (Martín-Baró, 2006). Individualismo ao assumir como sujeito último da psicologia o indivíduo como entidade de sentido em si, separado da coletividade. De acordo com o autor, “o individualismo termina reforçando as estruturas existentes ao ignorar a realidade das estruturas sociais e reduzir os problemas sociais a problemas pessoais” (Martín-Baró, 2006, p. 9, tradução nossa). Ao mesmo tempo, o ahistoricismo presente na ciência e na prática psicológica levam-nos a adotar modelos estrangeiros como universais, transhistóricos, podendo induzir a uma grave distorção da realidade concreta em que se encontram a população com a qual trabalhamos.

O rompimento com o individualismo e ahistoricismo por parte da psicóloga implica a compreensão de que a dificuldade no processo de escolarização, o sofrimento psíquico ou qualquer outro fenômeno psicológico, tem total relação com as condições objetivas da vida dos sujeitos em questão. Isso pois as capacidades individuais, as especificidades psicológicas de cada ser só se desenvolvem ao longo da história de vida do indivíduo, na relação com outros seres humanos, em condições concretas da realidade social no qual está inserido e a qual transforma com sua ação, com seu trabalho. Significa dizer que o desenvolvimento do que é tipicamente humano se dá na e pela apropriação ativa dos conteúdos produzidos historicamente, isto é, em íntima relação com a aprendizagem (Vigotski, 1933/2021).

Essa compreensão se torna especialmente importante ao pensarmos em uma sociedade capitalista como a brasileira, onde há imensa desigualdade social e educacional e, portanto, nas possibilidades de apropriação dos bens historicamente produzidos. Se a psicóloga naturaliza o psiquismo, ela está atuando no ocultamento das condições que estão em sua gênese, muitas vezes, condições de desigualdade social.

Além disso, compreender o psiquismo constituído a partir das condições objetivas em que se dão a vida das pessoas, implica reconhecer os fatores econômicos, sociais, políticos e culturais que são fonte de seu desenvolvimento. Implica igualmente entender que há limites para a atuação da psicóloga, uma vez que ela não tem competência para agir diretamente sobre todos esses fatores. Tomar ciência desse limite é imprescindível tanto para fundamentar expectativas mais realistas sobre sua atuação, como para compreender o que realmente pode fazer a psicóloga escolar (Autor/supressão).

Defendemos assim que é imperativa uma formação da psicóloga escolar que leve em consideração os processos de constituição do psiquismo em uma sociedade desigual. Uma psicologia com perspectiva descontextualizada e individualizante no âmbito educativo pode ter relação com uma formação em psicologia que historicamente privilegiou o modelo clínico de atuação, pautado na psicometria e em psicodiagnósticos (Lopes & Silva, 2018). Essa formação afasta as psicólogas das discussões sobre realidade cotidiana da escola e do contexto em que a escola está inserida, levando-as a focar sua atuação no aluno que não aprende, indivíduo isolado, em uma compreensão do humano a partir de si mesmo.

Entendemos assim, ser fundamental a compreensão da realidade educacional brasileira por parte das psicólogas, tanto a partir de uma formação crítica, como da vivência do cotidiano escolar, com seus desafios e possibilidades. A vida escolar é constituída por uma rede de complexas relações, em que se fazem presentes os interesses individuais e de grupos; as condições sociais, culturais e econômicas da comunidade em que a escola se insere; além de ser permeada pelos discursos e práticas engendrados pelas políticas públicas educacionais.

O cotidiano nas escolas é entendido, assim, como espaço-tempo primordial de pesquisa e atuação da psicologia (Naves & Silva, 2020). É ele que permitirá, em fecunda articulação com os conhecimentos teóricos, a compreensão da realidade escolar. Assim, será muitas vezes no próprio fazer, em contato com o que chamamos de “chão da escola”, que a psicóloga vai conhecer as demandas educacionais e os sujeitos concretos do processo de escolarização. É nesse espaço também que pode perceber suas dificuldades e limitações, e assim as próprias necessidades formativas.

A busca por novas formas de atuação em psicologia escolar perpassa um compromisso com a transformação da educação que pode ser favorecido por formação continuada. Entendemos que, a partir do desejo de transformação, a formação continuada pode possibilitar processos de conscientização, isto é, processos de reflexão crítica sobre o fazer que permite, inclusive, criar fazeres novos. A conscientização “supõe uma mudança das pessoas no processo de mudar sua relação com o meio ambiente e, sobretudo, com os demais” (Martín-Baró, 1996, 17). É, portanto, um processo ativo, que ocorre a partir da intervenção do sujeito em seu meio, na relação com os outros, ou seja, no coletivo. A conscientização assim, não se dá por imposição, mas no diálogo, e permite desnaturalizar as vivências cotidianas, abrindo possibilidades de ação.

A conscientização de psicólogas escolares também é um tema debatido desde a década de 1980 por Patto (1987), que afirmou que a psicóloga precisa tomar consciência de sua própria exclusão. Excluída no sentido de que “é relegada, pelo sistema, à condição de concessionária involuntária da violência, com poder técnico para conduzir os excluídos da escola (diretores, professores, alunos, pais e funcionários em geral) a instalarem-se sem atritos em sua condição de exclusão” (Patto, 1987, p. 205).

Desse modo, compreendemos ser fundamental a formação continuada da psicóloga escolar para que ela consiga perceber a realidade da escola e de como ela nela se insere, para que possa buscar a superação de um modelo clínico-individualizante e patologizante de atuação. Além disso, a formação continuada, ou formação em serviço, pode contribuir na ressignificação de concepções e práticas dessas profissionais, implicando em uma atuação que seja comprometida com uma educação de qualidade para todos.

A complexidade dos processos de mudança no contexto educativo demanda das profissionais de psicologia “o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e características pessoais que infelizmente não tem sido objeto de especial atenção nas instituições que formam psicólogos” (Martinez, 2009, p. 176). Segundo a autora, o desenvolvimento de determinadas características por parte de psicólogas escolares tem se mostrado favorável a uma prática profissional em prol da mudança em seus contextos de atuação. Entre elas: sensibilidade em relações aos outros, habilidades comunicativas, força e solidez nas argumentações, coerência, e habilidade para negociar e gerenciar conflito.

Diante do exposto, compreendemos que a formação em serviço da psicóloga escolar deve ser favorecedora da articulação entre aspectos profissionais e pessoais, técnicos e subjetivos em um processo dialogado e coletivo de conscientização para a emancipação. Portanto, afirmamos que a formação pessoal é parte importante da formação continuada de psicólogas escolares.

Foi esse entendimento que pautou a construção da pesquisa com psicólogas escolares da Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal (SEEDF), no formato de grupo de discussão em uma perspectiva formativa, descrita na próxima seção. O grupo de discussão é parte da pesquisa de mestrado de uma das autoras. O objetivo deste artigo é apresentar a análise do relato das profissionais, a partir da utilização do grupo de escuta e fala inspirado no grupo Balint.

Metodologia

Para a realização da pesquisa adotamos um método que busca compreender o fenômeno psicológico em sua natureza cultural, dinâmica e em transformação, necessitando de metodologias que abarquem essa peculiaridade do objeto de estudo (Vygotski, 1931/1995).

Visando compreender a atuação das psicólogas escolares, abarcando a complexidade e historicidade desse fazer, construímos uma metodologia inspirada no método Balint (1988), descrito adiante. Essa escolha se deu por entender que essa metodologia proporcionaria a emergência de falas que expressassem concepções, práticas, emoções e contradições vividas no cotidiano da escola, a partir de grupos de discussão das práticas profissionais.

A pesquisa passou pela avaliação e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, sob número CAAE 69089823.0.000.5540.

Contexto e participantes.

O trabalho foi realizado com 8 psicólogas e 1 psicólogo das Equipes Especializadas de Apoio à Aprendizagem (EEAA) de uma Regional de Ensino de uma Região Administrativa do Distrito Federal. As EEAA são compostas de profissionais com formação em pedagogia e em psicologia, e têm como objetivo promover a “melhoria da qualidade do processo de ensino e de aprendizagem, por meio de ações institucionais, preventivas e interventivas, que buscam subsidiar o aprimoramento das atuações profissionais dos atores das instituições educacionais e promover a melhoria do desempenho dos alunos” (Governo do Distrito Federal, 2010). O convite foi feito a todas as profissionais de psicologia dessa Regional (mesmo que, em alguns encontros, não estivessem todas presentes), identificadas neste trabalho de P1 a P9, de modo a preservar suas identidades. Os encontros tiveram duração aproximada de uma hora e trinta minutos e foram coordenados por umas das autoras.

Procedimentos metodológicos: o grupo de análise das práticas profissionais inspirado no Grupo Balint.

              O grupo de análise das práticas profissionais se constitui enquanto um dispositivo que reúne profissionais de uma mesma categoria com um coordenador que conduzirá a reflexão do grupo (Autor, supressão). Cada participante apresenta um relato sobre um momento de sua prática que seja conflitante, ao qual o grupo vai reagir.

Para que o objetivo do grupo seja alcançado, o coordenador deve atuar de forma a criar um ambiente acolhedor, sem julgamentos de valor e críticas, assegurando-se que todos tenham a possibilidade de fala e escuta. O clima de confiança criado possibilita que o participante fale livremente, aceitando mais facilmente seus erros, omissões e limitações apontados e discutidos pelo grupo. Isso é possível quando o participante sente que tais faltas são compreendidas e mais ainda quando percebe que não é o único a cometê-las (Balint, 1988). Essa aceitação das falhas, permite também que o profissional possa rever as formas de relacionar-se, abrindo espaços para mudanças de postura frente aos problemas enfrentados, a partir de uma articulação mais fecunda entre a dimensão pessoal e profissional dos envolvidos.

Inspiradas, portanto, nessa metodologia dos grupos Balint, construímos uma proposta de grupo de discussão das práticas profissionais de psicólogas escolares que atuam na SEEDF. Consideramos que a escolha de uma metodologia inspirada nesse grupo é coerente com a perspectiva de uma pesquisa criticamente engajada que objetiva a criação de espaços de reflexão e de transformação da realidade escolar. Privilegia, como forma de construção da informação, a relação entre pesquisador e sujeitos pesquisados e entre sujeitos pesquisados entre si, permitindo o comprometimento dos participantes, sua implicação no processo de pesquisa, possibilitando a qualidade na construção da informação.

Antes de iniciar os encontros, foram esclarecidos às participantes os aspectos éticos da pesquisa, bem como o formato do grupo e sua proposta de ser um espaço de fala e reflexão sobre as práticas profissionais, a partir da discussão de situações que suscitassem angústia nas psicólogas ali presentes. Foi explicitado que, no primeiro momento de cada encontro, cada participante apresentaria um relato sucinto sobre um momento de sua prática profissional que estivesse sendo vivido como conflitante ou angustiante. Em seguida, o grupo votaria no relato que seria discutido posteriormente de maneira aprofundada. Após a fala mais detalhada da angústia trazida, as demais participantes seriam convidadas a fazer perguntas ou problematizar pontos que julgassem importantes. Ao final do encontro, a fala seria reconduzida à participante cujo relato foi o mais votado, para que pudesse concluir contando os impactos percebidos frente à discussão feita.

Durante os encontros, foram feitas anotações, e logo após, eram registradas detalhadamente em diário de anotações as falas das psicólogas e impressões. A partir da leitura do material produzido, e tendo como base os objetivos e pressupostos teórico-metodológicos deste estudo, realizamos a análise dos discursos feitos durante os encontros, traçando uma abordagem compreensivo-interpretativa.

Resultados e discussão

As informações construídas ao longo da pesquisa são apresentadas a seguir juntamente com a reflexão sobre elas, em um tensionamento constante entre as construções teóricas utilizadas e o momento empírico. Os relatos dos encontros foram analisados e agrupados em dois grandes temas, aqueles que se mostraram foco principal dos debates pelas psicólogas escolares, quais sejam: a função e a atuação da psicóloga escolar; e as relações entre psicóloga e demais profissionais da escola.

A função e a atuação da psicóloga escolar.

A temática sobre a função da psicóloga escolar e suas possibilidades de atuação permearam as discussões do grupo em praticamente todos os encontros. Em um deles, essa foi a questão mais votada pelo grupo, a partir da fala de P8: “Tenho muitas angústias em relação à SEEDF. A função da psicóloga escolar não é avaliar, só que quando falo isso, fico para escanteio pelos colegas pedagogos, que perguntam: ‘se você não vai avaliar, vai fazer o quê?’”.

Essa questão da avaliação foi debatida pelo grupo e foram questionadas quais as normativas que definem a função da psicóloga escolar, em especial a função de avaliadora. Apesar de identificarem na Orientação Pedagógica do Serviço (GDF, 2010) a prescrição de uma atuação institucional, levantaram que o termo de posse e a própria prova do concurso para ingresso na SEEDF tinham um foco maior em avaliação e diagnóstico das crianças com queixa escolar. Dessa forma, falaram que ainda não está claro, na SEEDF, a função da psicóloga, havendo uma expectativa de avaliação. Isso aparece na fala de P8, que diz acontecer a seguinte prática em uma de suas escolas: “deu problema na escola, encaminha para equipe e avalia”. A profissional relatou que faz um trabalho individual com aluno, pai ou professor e que isso influencia na percepção que as pessoas têm sobre o seu trabalho.

P2 foi outra profissional que disse constantemente ouvir a pergunta “se vocês não aplicarem testes, o que vão fazer?”. O grupo disse ser comum essa pergunta, necessitando argumentar frequentemente com seus superiores sobre qual o trabalho da psicóloga. Afirmaram que os gestores da escola e da própria Regional de Ensino demonstram não saber o que deveria fazer uma psicóloga escolar. Cabe pontuar, entretanto, que apesar de afirmarem não ser função da psicóloga avaliar, não falaram propositivamente, nesse momento, quais seriam suas funções. Inclusive, uma das soluções pensadas pelo grupo foi a de que a SEEDF deveria capacitar mais as psicólogas em avaliação.

Essas falas e o desejo, aparentemente contraditório, por mais formação em avaliação psicológica, vão ao encontro do que tem sido discutido pela literatura da área (Cavalcante & Aquino, 2019; Magalhães & Martins, 2020; Naves & Silva, 2020). A crítica ao modelo clínico-médico de avaliação gerou, nas profissionais, uma certeza do que não fazer. Entretanto, apesar de haver mudanças nos modelos de atuação, ainda não estão consolidadas, no cotidiano das profissionais, as possibilidades de uma atuação mais crítica e criativa (Martinez, 2009; Naves & Silva, 2020). O recurso acaba sendo, nesse caso, o fortalecimento do papel de avaliadora por meio de formação nessa área.

A tensão gerada pelas contradições apresentadas levou P7 a questionar se a mudança não estava justamente nas mãos das próprias psicólogas. Disse também que “nossa presença é muito tímida nas escolas, às vezes”. O grupo concordou em parte, mas levantou a questão do atendimento a diferentes escolas (itinerância) como um fator a dificultar a realização de um trabalho diferente.

Uma possibilidade, entretanto, sugerida por P4 foi a de usar os momentos coletivos de formação das EEAA para repensar o fazer da psicóloga escolar. Essa ideia foi acolhida pelo grupo, e P5 arrematou que seria interessante fazer isso junto com as pedagogas das EEAA, de forma que a própria equipe compreenda e fortaleça o trabalho das psicólogas escolares. A profissional P7 finalizou dizendo que é o posicionamento delas que faz a diferença.

Essa temática também retornou em outro encontro, em especial a atuação da psicóloga na função de assessoramento ao professor. “Vou repetir a questão da assessoria. Tô precisando elaborar. Estamos precisando melhorar, mas não sei o quê. . . . Tem a demanda urgente e o que a gente queria fazer” (P7).

O assessoramento ao trabalho coletivo é uma das dimensões de atuação prevista na Orientação Pedagógica das EEAA, se constituindo enquanto “estratégia de intervenção que auxilia a instituição educacional na conscientização dos processos educativos, tanto no que se refere aos avanços, . . . quanto aos desafios” (GDF, 2010, p. 71).

A psicóloga que teve seu caso escolhido para a discussão naquele dia retomou a importância da atuação da psicóloga no assessoramento ao professor. Entretanto, pontuou algumas dificuldades em realizar esse trabalho, considerando que ainda há, segundo ela, uma expectativa de psicoterapia ou de avaliação no que se refere ao papel da psicóloga na escola. Os professores ficam frustrados quando isso não ocorre. De uma ou outra forma, segundo ela, ficam aquém frente às expectativas e ao próprio trabalho.

Essa expectativa não acontece apenas nessa Regional, se relacionando à atuação historicamente estabelecida das psicólogas na escola. Como pontuado anteriormente, há ainda a expectativa que esse profissional atue no diagnóstico e atendimento individual dos “alunos-problema” (Negreiros et al., 2022; Pereira-Silva et al., 2017).

A discussão caminhou para a necessidade de mudanças estruturais no trabalho da psicóloga escolar. P7 disse que “a gente espera que venha de cima”, retomando o que havia falado em outro encontro sobre a responsabilidade das próprias psicólogas nas mudanças. Disse, entretanto, que não se tem tempo para parar e mudar. Outras profissionais passaram a apontar as dificuldades encontradas para realizar o assessoramento, tais como: itinerância; comparação em relação a profissionais que auxiliam nos aspectos didáticos; falta de espaço e tempo de encontro com os professores, acarretando em menos oportunidades de assessoria.

Percebemos que as psicólogas sentem a necessidade de mudança, compreendem que possuem responsabilidade nessa transformação, entretanto, também apontam para as condições de trabalho que favorecem a manutenção da atuação como está organizada atualmente. Dentre elas, o tempo necessário à reflexão para pensar e reorganizar essa atuação.

Um contraponto levantado foi a da profissional P2 que pontuou que sua realidade enquanto psicóloga que atua nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio é distinta: “meu mundo real é mais assessoria”. Compreendemos assim que há possibilidades dentro da própria SEEDF de uma atuação da psicóloga que não seja focada em avaliação e diagnóstico das queixas escolares. Entretanto, pensar em novas possibilidades aparenta não ser um processo fácil e é muitas vezes solitário. Isso aparece na fala de P2: “Fico insegura, todo mundo fazendo diferente”.

A discussão se voltou, em seguida, para a diferença entre o que é normatizado para a atuação de psicólogas escolares na SEEDF e as distintas expectativas percebidas no cotidiano da escola. Um exemplo foi a fala de P3, que questionou a necessidade de fazer, no início de todo ano, uma apresentação para os demais profissionais da escola sobre como é o trabalho da EEAA. Ela relatou que explicam a atuação mais institucional da equipe, mas que essa ação não surte efeito nas expectativas dos professores. P2 disse, brincando, que é necessário sim fazer essa apresentação todo ano, pois professor “não aprende, que nem aluno”. P6 perguntou se não falam uma coisa nas apresentações e fazem outra durante o ano.

P3 acrescentou outra dificuldade: “quando o professor está sozinho, ele até te entende. No grupo, se fortalecem”. No seu entendimento, ao conversar individualmente com o professor, geralmente conseguem chegar em acordo em relação a várias questões. Entretanto, quando os professores estão em grupo, como no conselho de classe, por exemplo, eles acatam menos o que é dito pela psicóloga. P6 então colocou que as psicólogas têm que “fazer a cabeça do professor de qual é o seu trabalho”. Falou ainda que a assessoria tem que ser constante, que isso “quebra a resistência” do professor.

As falas das profissionais nos remetem à relação histórica estabelecida entre psicologia e pedagogia, em que a primeira seria o subsídio científico da segunda, havendo um processo de subordinação da pedagogia escolar à psicologia educacional (Magalhães & Martins, 2020). A partir dessa relação, psicólogas escolares seriam aquelas a dar respostas, cabendo ao professor apenas acatar as decisões das mesmas. Posturas que questionam a atuação da psicóloga são vistas como embate. As discussões que se seguiram também foram permeadas por essa questão.

P3 trouxe então momentos em que é chamada sem necessidade, para intervir em situações em que o próprio professor poderia realizar uma mediação. Explicou que essas urgências dificultam o exercício das atividades planejadas, inclusive de assessoria. P7 disse perceber que o professor está se desresponsabilizando, se destituindo do poder e da responsabilidade que tem.

Foi levantado, se, por outro lado, não seria aquela uma oportunidade de assessoria. Não seriam esses momentos de se estar junto com o professor de forma a pensar alternativas de atuação, que não apenas chamar a psicóloga? P8 disse então que “não dá para fazer muito nesse sentido”. Ela colocou: “vou criar o embate? Não tô lá todo dia. Tem que ter muito jogo de cintura, se não o pessoal fecha a cara”. Disse ainda que na situação da psicóloga na escola, “é um contra todos”. P6 fez coro dizendo que “nós que somos as psicólogas, nós que temos que dar uma palavra final”.

Percebemos que a mudança na atuação da psicóloga escolar perpassa a necessidade de superar a relação assimétrica historicamente constituída entre psicologia e pedagogia, em que profissionais de psicologia, muitas vezes se colocando como aquelas que detêm os conhecimentos necessários para resolver os problemas escolares, ultrapassam os limites de sua atuação e da ciência psicológica (Magalhães & Martins, 2020). Compreendemos, entretanto, que a psicóloga deve ser alguém a construir uma relação de troca com o professor. Ao criar, intencionalmente, espaços de reflexão junto a ele, possibilitaria seu aprendizado a partir das situações cotidianas e concretas do seu dia a dia. Assim, não necessariamente a psicóloga precisa organizar formações estruturadas para assessorar o professor, podendo fazê-lo a partir de uma reflexão conjunta no cotidiano.

Ficou evidente, a partir dessas discussões, que existem muitas angústias das profissionais sobre sua atuação. Essas angústias indicam a necessidade da formação continuada para pensar o fazer da psicóloga escolar, bem como sobre a relação da profissional com os demais atores da escola.

As relações entre psicólogas e demais profissionais da escola.

O grupo foi delineando, a partir dos encontros, algumas das dificuldades encontradas no seu fazer nas escolas. Além das angústias frente às funções das psicólogas escolares, apareciam dificuldades na relação com os demais profissionais da escola.

  O conflito com uma professora da escola de P6 foi o tema escolhido por ela e pelo grupo em um dos encontros. Ele se deu a partir de uma intervenção em sala de aula feita por P6, junto com a pedagoga de sua equipe, em um momento de observação de um aluno que, segundo ela, estava excluído de uma atividade coletiva da turma. Segundo P6, a professora agiu como se a “estivesse chamando para o ringue”. O grupo colocou que, na defesa da criança, as psicólogas acabam entrando em embate com o professor. Esse posicionamento de oposição ao professor apareceu em outras falas que se seguiram, em especial de P8: “Tem briga que a gente não pode comprar, se não acabam com a nossa raça”. “Nesses casos, trabalho individualmente com o aluno, porque se for brigar com o professor, aí já viu” (P8).

P3 fez um contraponto, dizendo que, na mesma situação, agiria diferente. Ela avaliou que P6 tinha passado por cima da autoridade da professora. “Eu teria perguntado antes para a professora. Não interessa o que ela fez. Na sala de aula, o professor é a autoridade” (P3). Essa interpretação diferente foi, ao final do encontro, debatida por P6: “choquei com a atitude de P3 um pouco”, mas depois falou que todas as falas dos colegas, inclusive a de P3, a ajudou a pensar novas estratégias para lidar com as pessoas da escola, de ter mais sensibilidade para essas relações, que a psicóloga pode ser um ator para as mudanças nessas relações.

Essa fala relaciona-se ao fato de que, durante o encontro, foi levantada a possibilidade de a psicóloga escolar atuar na mediação das relações na escola, ao que colocaram que a itinerância seria um empecilho, pois não criam vínculo com a escola e muitas vezes não conhecem a cultura de cada instituição de ensino. P8 propôs que o ideal seria que pudessem levantar o perfil das psicólogas da SEEDF de modo a adequá-las às diferentes demandas de trabalho: uma psicóloga organizacional, uma avaliadora e outra que mediasse conflitos.

Evidenciou-se que apesar de discussões teóricas sobre as diferentes possibilidades de atuação, a psicóloga muitas vezes ainda atua de maneira individualizante, não enxergando seu papel na mediação das relações dentro da escola, em uma perspectiva mais abrangente e complexa de atuação. Martinez (2009, 2010) aponta essa como uma das possibilidades de atuação da psicóloga escolar a partir de seu papel psicossocial dentro da escola. Compreendemos que a psicóloga pode atuar no sentido de mediar as relações interpessoais, trabalhando na escuta dos significados presentes e proporcionando um espaço de diálogo em que seja possível a construção de um caminho para o coletivo, e não apenas para cada ator individualmente (Autor, supressão).

Repensar a relação com os demais profissionais na escola aparenta ser uma necessidade do grupo, uma vez que três profissionais relataram também terem passado por conflitos ou com a gestão da escola, ou com a pedagoga, tendo sido chamadas na Regional. Segundo o grupo, há uma diferença de tratamento na Regional em relação às psicólogas: “Eles querem a psicóloga, mas quando a psicóloga chega, boicotam ela” (P6).

Na discussão sobre o assunto, elencaram as expectativas frente ao trabalho como possíveis entraves na relação com os demais, uma vez que o que se esperava era que as psicólogas “laudassem os meninos”. Além disso, retomaram a questão do vínculo com a escola, dificultado pela itinerância. Colocaram também a importância de reforçar qual o papel da psicóloga na escola, que deveria estar nítido para gestores e demais profissionais escolares.

Percebemos que a indefinição da psicóloga escolar sobre seu papel gera angústia nessa profissional bem como impacta nas relações com os demais profissionais. Segundo Martinez (2010), essa situação pode acarretar em uma rejeição implícita por parte dos outros integrantes do coletivo escolar, devido à “representação de sua incapacidade para resolver os problemas que afetam o cotidiano dessa instituição” (p. 40).

A inserção da psicóloga no cotidiano escolar, trabalhando de maneira colaborativa, é uma forma de contribuir para a melhoria do processo de aprendizagem a partir da especificidade de sua formação. Assim, assumir um papel de superioridade frente aos demais profissionais da escola dificulta o estabelecimento de relações de respeito e colaboração, base para a transformação da realidade escolar. Ao despir-se de um “suposto saber” atribuído a psicólogas, como identificado pelo grupo, cria-se uma abertura para pensar junto com os professores em possibilidades de enfrentamento dos desafios da escola.

Considerações sobre os grupos de discussão das práticas profissionais.

Frente aos relatos apresentados, consideramos que a metodologia inspirada no grupo Balint se mostrou um espaço de fala e de escuta, de acolhimento e de reflexão das profissionais envolvidas. O grupo pôde falar livremente do que as angustiava na sua atuação profissional, se escutar, questionar práticas, abrindo possibilidades de conscientização e mudança.

Dessa forma, entendemos ser essa metodologia uma possibilidade de formação continuada, em uma perspectiva pessoal e profissional, uma vez que permite o engajamento e mobilização emocional e reflexiva do profissional para pensar as problemáticas vividas em seus contextos concretos de trabalho. O profissional é convidado a comparecer como um todo, não apenas cognitivamente, mas também afetivamente. É um espaço em que, inclusive, esses afetos podem ser acolhidos, compreendidos, ressignificados e utilizados como motor para mudança.

Como analisado por Balint (1988), o clima de confiança estabelecido no grupo permite a fala espontânea e engajada do profissional, e isso se dá principalmente quando este percebe não ser o único a passar por situações conflitantes. O grupo pôde falar de suas práticas, suas dúvidas, erros e acertos, diminuindo a angústia relacionada ao trabalho na SEEDF. Isso se exemplifica na fala de P6: “a angústia não vai sumir do dia para noite, mas que pelo menos é algo compartilhado. Tô me sentindo desobrigada de fechar diagnósticos”.

Outro sentimento que pôde ser acolhido nos encontros do grupo foi o de solidão, ou isolamento, em especial na relação com profissionais não psicólogos, bem como a sensação de não terem forças para ir contra uma maioria. O debate sobre o isolamento profissional aparece na literatura da área (Autor, supressão; Lopes & Silva, 2018; Martinez, 2009), e possui relação com a atuação histórica de psicólogas escolares. A prática conhecida de atuar em uma salinha na escola, avaliando estudantes e dando diagnósticos, em uma perspectiva individualizante, reforça esse sentimento de isolamento. Além disso, essa atuação também traz implicações nas expectativas dos demais atores escolares em relação ao fazer da psicóloga, que podem ser frustradas diante da ação concreta da profissional que busca fazer diferente.

Os desafios, assim, para a atuação da psicóloga escolar em uma perspectiva crítica são muitos, entretanto, é fundamental que ela se entenda como sujeito ativo, capaz de problematizar e tensionar as demandas que lhes chegam (Martinez, 2009). O necessário fortalecimento da profissional para ocupar esse papel, porém, não se dá de maneira espontânea. É necessário criar espaços coletivos em que seja possível construir essas possibilidades de desenvolvimento, entre eles os momentos de formação em serviço.

Essa necessidade de espaços formativos em serviço, entretanto, se vê dificultada pela correria do dia a dia no fazer educacional, que acaba se caracterizando por ações pontuais, voltadas aos problemas imediatos e, muitas vezes, sem maiores possibilidades de reflexão. (Andrada et al., 2019). Percebemos isso na fala das psicólogas. Ao apontarem que existem demandas urgentes e o que gostariam de fazer, falaram também sobre serem chamadas, constantemente, para “apagarem incêndios”. Foi também o que se evidenciou pela fala de P7 sobre ser positiva a criação do espaço de reflexão, uma vez que “geralmente não temos tempo de parar e mudar”.

Assim, os encontros do grupo inspirado na metodologia Balint puderam ser esse espaço em que se sai do automatismo da prática funcional, permitindo uma reflexão sobre o fazer psicológico. A proposta do grupo não é solução imediata dos problemas profissionais (Autor, supressão). A circulação da palavra, a escuta de diferentes perspectivas, constituem possibilidades de reflexão que permitem sustentar as contradições das práticas profissionais, sem buscar soluções rápidas e simplistas. A suspensão das soluções prontas permitiu que o grupo se implicasse no que lhe afligia, mobilizando reflexões e possibilidades de ação.

As condições para o surgimento e acolhimento das contradições é mais um dos fatores fundamentais da metodologia utilizada. Ao falar sobre sua prática profissional, esta ganha concretude e pode ser confrontada com a prática idealizada ou desejada pela pessoa (Autor, supressão). O olhar do outro, a escuta de alguém que está de fora da situação concreta, torna mais fácil, para o profissional que fala, compreender sua própria prática.

Entendemos que a metodologia Balint, justamente por permitir um espaço de confiança, em especial de uma única categoria, garante um momento de compartilhamento livre dos julgamentos que geralmente a psicóloga encontra na relação com pedagogas e outros profissionais da escola (Autor, supressão). A psicóloga pode se desarmar, sair da posição que precisa dar respostas, escutar com mais acolhimento as sugestões e reflexões das colegas, abrindo possibilidades reais de mudança. Durante os encontros, houve momentos em que foi possível questionar se o que a psicóloga escolar afirmava sobre o seu fazer condizia com sua prática. Também foi possível que uma profissional se posicionasse frente à fala de uma colega, dizendo que faria diferente na mesma situação. Mesmo isso gerando estranhamento ou desconforto, não foi sentido como ataque, como muitas vezes acontece na relação com profissionais de outras categorias. O saber acolher as diferentes visões sobre o seu fazer é fundamental no processo de construção de uma prática coerente. Ter um espaço de confiança em que isso é possível pode permitir uma mudança de postura necessária da psicóloga na relação com os demais profissionais da instituição.

É importante ressaltar que não negamos os determinantes históricos que levaram à situação atual da psicologia escolar como conhecimento e prática classificatória e patologizante. O contexto atual colabora para a alienação da psicóloga que não se percebe, muitas vezes, como estando a serviço da patologização e da exclusão de muitos estudantes.

Entendemos, porém, que o grupo pôde suscitar questionamentos e a consequente responsabilização da profissional pela mudança em suas práticas. Falas como a de P7 questionam o posicionamento da psicóloga frente à mudança, dizendo que “a gente espera que venha de cima”. A mesma profissional ainda disse que o “nosso posicionamento que faz a diferença”. Essas reflexões apontam que os encontros do grupo puderam ser espaço de conscientização das profissionais, de elas começarem a perceber o seu papel ativo nas relações com os demais. O processo de conscientização permite às pessoas não apenas descobrir as origens do seu fazer, mas também de pensar o horizonte no qual se quer chegar (Martín-Baró, 1996).

Os benefícios da metodologia podem assim ser exemplificados na fala de P6 no dia do último encontro: “passei a me olhar diferente, repensar várias coisas, e inclusive uniu mais o grupo de psicólogas. Essas discussões ajudaram a não me sentir sozinha e até repensar meus posicionamentos” (P6).

Enfim, compreendemos que a metodologia utilizada possibilitou a escuta e sustentação das contradições e tensões do fazer psicológico na escola, sem buscar reduzir questões complexas a respostas simplistas. Além disso, permitiu o encontro coletivo de possibilidades frente a desafios vivenciados na atuação da psicóloga escolar.

Considerações finais

A formação continuada para profissionais de psicologia é fundamental, uma vez que as práticas profissionais ainda demonstram uma prevalência na perspectiva de atuação dita tradicional. Essa perspectiva, entretanto, vem sendo tensionada por novas possibilidades, que apesar de amplamente debatidas na literatura, ainda apresentam barreiras para se consolidarem na prática.

Entendemos que isso possui relação com condições históricas e objetivas do fazer da psicóloga escolar. Um foco historicamente individualizante, articulado à lógica neoliberal na educação, alimenta as expectativas que muitos ainda têm de um fazer focado no aluno problema, ou na família, ou no professor isoladamente, sem considerar as relações sociais e as condições materiais em que os sujeitos se constituem.

No caso das profissionais pesquisadas, o histórico da psicologia escolar, a cultura de testagem dentro da própria Secretaria de Educação, as expectativas dos outros profissionais da escola, bem como as dificuldades na relação com gestores e professores são elementos que constituem tensões, e são sentidas como um quadro de incertezas sobre o papel da psicóloga escolar e suas possibilidades de atuação. Provavelmente é frente a essa angústia que o recurso a práticas tradicionais se mostra como uma possibilidade de segurança.

              Nesse sentido, evidencia-se a importância de espaços formativos que possibilitem a construção sobre o fazer psicológico na escola de um modo reflexivo que realmente articule a teoria e o fazer. Que permita que as profissionais possam pensar a realidade e sua atuação de forma crítica e colaborativa, reconhecendo limites e possibilidades, e construindo ações que verdadeiramente contribuam para a transformação da escola.

Finalizamos assim que há necessidade de espaços formativos para as profissionais de psicologia que não sejam apenas normatizações sobre o que deve ou não a psicóloga fazer na escola. É imprescindível que a formação continuada em serviço envolva espaços de escuta e troca para as psicólogas escolares de maneira a acolher suas angústias. É a partir da escuta da profissional e do que para ela é vivenciado como conflitante, que se torna possível sua implicação e desejo de mudança. A mobilização frente às incertezas sobre o papel da psicóloga escolar seria, assim, o ponto de partida para que possamos construir conjuntamente questionamentos e reflexões sobre a atuação que sejam significativas para a profissional e lhe permita superar práticas tradicionalmente reducionistas ou individualizantes.

 

 

Referências

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Agradecimentos

Este trabalho contou com o apoio financeiro da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal, por meio de afastamento remunerado para estudos de uma das autoras.

 

Colocaremos o termo no feminino, não de forma excludente, mas para ressaltar que a maioria das profissionais de psicologia são mulheres. Para maiores informações, cabe a análise do Censo da Psicologia Brasileira de 2022 (Conselho Federal de Psicologia, 2022).