Revista de Psicologia, Fortaleza, v.15, e024022. jan./dez. 2024

DOI: 10.36517/revpsiufc.15.2024.e024022

 

 

 

RECEBIDO EM: 12/03/2024  

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 19/09/2024 

VERSÃO FINAL: 27/09/2024 

APROVADO EM: 05/11/2024 

 

“Que doidice é essa?”: Recortes do projeto colonial, exclusão e loucura 

“What kind of crazy is this?”: Fragments of colonial project, exclusion and mental health 

Ana Carolina Dias Ramos

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Mestra em Psicologia Social pela UERJ. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6988-536X. E-mail: anacarolina.diasramos@hotmail.com.

Laura Cristina de Toledo Quadros

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Doutora em Psicologia Social pela UERJ. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-3546-4935 . E-mail: lauractq@gmail.com

 

Resumo 

O artigo tem como objetivo discorrer acerca da historiografia e dos efeitos do projeto colonial branco eurocêntrico e patriarcal no campo da saúde mental. Perguntamo-nos qual a implicação da psicologia nesse cenário, uma vez que apostamos em uma escrita encarnada e situada, tendo como proposição metodológica uma construção artesanal de pesquisa. A partir do percurso histórico como linha de costura para organização dessa escrita, bem como de diálogos com pensadoras e pensadores decoloniais, procuramos discutir os impactos desse projeto colonial, higienista e eugenista no campo da saúde mental e suas múltiplas implicações nos marcadores sociais da diferença. Por fim, em tempos de retrocesso de políticas públicas nesse segmento, consideramos crucial o resgate dessa trajetória tanto para a contextualização de nossas práticas na saúde mental quanto para a evidência dessas desigualdades instauradas por um projeto excludente.  

Palavras-chave: Saúde mental; exclusão social; decolonialidade; loucura. 

 

 

 

 

 

 

 

Abstract 

The article has as main objective to discuss about social exclusion as an effect of a white, Eurocentric and patriarchal colonial project. Based on a historical course as a sewing line for the organization of this writing, as well as dialogues with decolonial authors, we try to discuss the impacts of this project, especially in the field of mental health, which reverberate even today. We are faced with the incidence of these harmful effects, especially on black and poor women. The eugenicist practices in search of the ideal of a whitened and purified society were pushing those who did not fit this model to the margins, out of a system of citizenship and care. We consider it crucial to rescue this trajectory both for the contextualization of our mental health practices and for the reversal of these inequalities established by an inadequate and excluding project.  

Keywords: Mental health; social exclusion; decoloniality; madness.  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O artigo tem como objetivo discorrer acerca da exclusão social como um dos efeitos do projeto colonial branco eurocêntrico e patriarcal. Tomando fragmentos de um percurso histórico como linha de costura para organização da escrita, bem como diálogos com pensadoras/es de diferentes territórios geopolíticos, procuramos refletir acerca dos impactos desse projeto no Brasil e seus desdobramentos no campo da saúde mental. Tal proposição é fruto da pesquisa de mestrado nomeada “Travessias Desnorteadoras: Ensaios Decoloniais e suas Tessituras dos Estudos da Bruxaria e da Loucura” defendida no Programa de Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), inspirada também no percurso da primeira autora no campo da saúde mental e nos desafios que ele nos exige (Ramos, 2021). 
A ideia de costurar esse diálogo encontra ressonâncias na proposição da pesquisa como um fazer artesanal (Quadros, 2015) na qual as afetações das pesquisadoras compõem-se em um fazer vivo e encorpado, desdobrando-se também na perspectiva metodológica que nos apresenta essa feitura como um
patchwork (Law, 2004), onde diversas texturas reúnem-se em composição. Segundo Quadros (2015), a artesania na pesquisa envolve caminhar entre impasses, incertezas e possibilidades. E é nelas que apostamos para rever uma história hegemônica, ainda que com muitos desafios que também nos atravessam enquanto mulheres pesquisadoras. Para a autora supracitada: “Trata-se de descrever o percurso com suas tensões e arranjos, o labirinto e as saídas possíveis nesse encontro entre o pesquisador e seu campo” (Quadros, 2015, p. 1182). Nossa metodologia articula-se também com a interseccionalidade como uma importante ferramenta analítica, entendendo-a como “uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação” (Crenshaw, 2002, p. 177). O tema em questão nos move em nossas práticas e puxa fios em nossa trajetória que ora tecemos nessa escrita.   

Considerando que propomos debates atravessados por apostas e recortes decoloniais, faz-se essencial circunscrever nossas/os aliadas/os. No entanto, vale ressaltar que, ao nos referirmos ao campo decolonial, não o tomamos no contexto desse artigo necessariamente como um campo teórico-conceitual, muito menos um campo circunscrito pelo debate travado no âmbito acadêmico. Para nós, a decolonialidade é uma luta e uma resistência frente ao projeto colonial com amplas possibilidades de interlocução, movimentação e prática. Tratamos aqui a decolonialidade como uma ética de vida que nos atravessa e nos movimenta no mundo. Entendemos, portanto, que esse campo implicado reformula nossas práticas e em concomitância, nossas teorias acadêmicas. Nossa pretensão, portanto, não é fazer uma historiografia acadêmica dos conceitos, mas enfatizar os efeitos e atravessamentos dessa ética no campo prático e de estudos aqui proposto, tal seja, o campo da saúde mental.  

O período que conhecemos como início da colonização brasileira é marcado por um conjunto de acontecimentos: invasões territoriais, tráficos humanos e saques. A essa época, a construção da raça e do gênero foram essenciais para demarcar os corpos e explorá-los, instaurando novos regimes trabalhistas, assim como novos mecanismos de hierarquização e controle.  

O século XV como início da colonização marca o investimento pela centralidade européia, configurando um novo regime geopolítico, nomeado de eurocentrismo. O globo transforma-se em um grande espaço de terra a ser “conquistada” pelos valentes e desbravadores viajantes europeus, prontos para levarem a mais autêntica civilização a áreas e povos inóspitos, através de genocídios e epistemicídios, catequização e escravização. Curioso como uma das justificativas para a colonização era “salvar de grandes injúrias a muitos inocentes mortais que estes bárbaros imolavam todos os dias” (Sepulveda, 1967 apud Dussel, 2015, p. 27). Com a pretensão de salvar os “selvagens” da barbárie, o homem branco europeu a instaura sob seus termos. 
A raça, na Modernidade, é construída como o principal marcador de hierarquização e inferiorização, estabelecendo uma separabilidade entre humanos e não humanos. Aos não humanos, o estatuto concedido é o de coisa/mercadoria. A invenção da raça constitui-se como modelo de classificação e divisão trabalhista, e essa divisão racista do trabalho sustenta o projeto colonial/moderno-capitalista (Quijano, 2005).
A colonialidade tem como pressuposto o racismo como princípio organizador, constitutivo de todas as relações de dominação da Modernidade (Grosfoguel, 2019).  

Seguindo esses importantes recortes decoloniais, nos propomos a evidenciar conexões entre o projeto colonial e as práticas eugenistas e higienistas no campo da saúde mental. Nosso objetivo é questionarmo-nos quanto à historicidade das práticas de “cuidado” e, mais do que responder, ficarmos com o problema, qual seja: de que modo o sistema colonial se atualiza nas teorias e práticas realizadas no campo da saúde mental? 

Práticas eugenistas em busca do ideal de uma sociedade embranquecida e purificada forjaram as margens para fora de um sistema de cidadania e cuidado. Como nos aponta David (2018), a mira da exclusão envolve principalmente questões de raça/cor, classe social e gênero: “A ‘construção e desconstrução do crioulo doido’ (Nascimento, 2003, p. 45) é histórica, política e social. Ela teve, no decorrer do tempo, diferentes intencionalidades e formas”.  

Alinhavando essas passagens que marcam a nossa história e seguindo nossa proposta metodológica, nossa proposição, portanto, é a de refletir acerca do projeto colonial e suas reverberações nas práticas políticas que compreendem o campo da saúde mental. A importância de tal reflexão se dá tanto por sua atualidade, quanto pelas possibilidades que podem nos trazer para repensar a política de cuidado no campo da saúde mental.  

A entrada da ciência burguesa nos grandes centros urbanos brasileiros no século XIX foi sentida mais diretamente a partir da adoção de grandes programas de higienização e saneamento. A ideia, portanto, era trazer uma nova racionalidade aos abarrotados espaços urbanos e implementar, através de projetos eugenistas, a “higienização” dos centros urbanos, onde doença, loucura e pobreza seriam eliminadas. Esse é o panorama do início do século XIX. 

Na fantasia colonial, era o corpo colonizado e racializado quem carregava os signos da doença, da anormalidade e da inadaptação ao projeto civilizatório. Para Grada Kilomba (2019), o mecanismo psíquico de recalque tem como intuito manter a branquitude como moralmente ideal, civilizada e generosa, enquanto a/o outra/o, representado pelo sujeito negro, seria o território externo do Mal, da doença e da anormalidade. Isso permitiria, portanto, que a branquitude mantivesse, em relação a si, sentimentos positivos, enquanto projeta no outro aquilo pelo qual teme reconhecer sobre si mesma, isto é, sua implicação no projeto civilizatório/colonial. Nesse sentido, portanto, a agressividade e a sexualidade, aspectos reprimidos pela sociedade branca, construiriam a fantasia colonial do corpo colonizado como ameaça, periculosidade, violência, excitação, sujeira e, contraditoriamente, desejável.   

Para que possamos compreender as relações entre loucura, manicomialização da vida, espaço urbano e projeto colonial capitalista de nação, será importante formularmos um breve panorama sobre a questão da emergência do saber médico para o país.  
Discussões sobre higiene pública predominavam nos espaços de formação médica até os anos 1880. A partir de 1890 a temática gira em torno da medicina legal e surge um novo personagem urbano chamado perito que, juntamente com a polícia, tinha como intuito explicar a criminalidade e determinar a loucura.  
É fundamental enfatizar a relevância do início da República nesse processo. Com o lema “ordem e progresso”, em 1889 novas formulações políticas ganhavam contorno. Se antes diferentes transeuntes ocupavam as ruas da cidade, provocando por vezes riso, indiferença ou sustos, com o imperativo da ordem, do progresso e o desejo da supremacia da razão, o escopo do que era considerado anormal amplia-se consideravelmente (Weyler, 2006). O processo higienista em curso visava apagar as diferenças e construir um espaço urbano onde as rígidas normais sociais fossem duramente colocadas em prática, mesmo que isso significasse punição, isolamento e exclusão social de grande parcela da população.   
Já em 1930 é o eugenismo como prática que predomina, tendo como objetivo separar a parte sã da enferma. Esse mecanismo ocupa um lugar psíquico importante na formação da branquitude enquanto território de saber-poder.  
A prática médica teve como objetivo curar um país doente (e miscigenado). As teorias da degenerescência, portanto, ocupam um lugar fundamental já que são tais teorias que sustentam a concepção de que a miscigenação é causa de problemas de saúde, por “sujar” a branquitude ao mesmo tempo em que a miscigenação se torna também a via a partir da qual o projeto de embranquecimento se materializa no Brasil. Terra brasilis: território em constante disputa política, ideológica, social.  
Com um projeto eugenista, a ideia era alcançar a perfectibilidade e a civilidade da população, com planos de extermínio da parte “adoecida” e amputando-a do então projeto de nação (Schwarcz, 1993).  

 

Corpos marginais: Laboratórios experimentais 

Foi com a vinda da família real para as terras brasilis, em 1808, que se instalaram escolas aptas para formação de médicos. Antes dessa data, a profissão era vedada aos brasileiros. Apenas em 1800 o édito real selecionou quatro estudantes do Rio de Janeiro para estudar em Coimbra. Tendo uma intensa relação com a Igreja Católica, a figura do médico torna-se responsável pela saúde do corpo, tal como o padre torna-se responsável pela saúde da alma. É no século XIX que nasce “o mito da profissão médica nacionalizada, organizada à maneira do clero e investida ao nível da saúde e do corpo de poderes semelhantes aos que este exercia sobre as almas.” (Foucault, 1977, p. 35). Tal qual a medicina, a construção da psicologia como ciência e processo de higienização foi essencial para as bases do higienismo. Embora haja uma diferença cronológica significativa entre a chegada da medicina em terras brasilis, no século XIX, e o início da profissão da Psicologia brasileira, no século XX, o que queremos enfatizar é como ambas contribuem para o projeto higienista e racista da sociedade brasileira, embora em tempos distintos. Nesse sentido, cabe-nos questionar qual implicação da psicologia nesse cenário. A que interesses serviam as demandas e respostas buscadas pela psicologia nos séculos XX e XXI? 
 

    No confronto com a ordem política estabelecida pelos interesses agrários, o ideário liberal constituiu a mais importante base teórica dos intelectuais e de outros membros das camadas médicas descontentes com seu alijamento do poder e suas benesses. Foi nessa condição e articulada a esses interesses que a Psicologia teve condições para se desenvolver. Ou ainda, pode-se dizer que a Psicologia que aqui se desenvolveu esteve articulada a esses interesses e a um projeto específico de modernização do País. (Antunes, 2012, p. 54). 
 

Com o projeto eugenista de construção de uma nação pura, as intervenções médicas e psicológicas minavam enfaticamente os corpos pauperizados e pretos. Diversas teorias médicas e psicológicas, tais como as teorias de Bénédict Augustin Morel, construíram-se afirmando o carácter degenerativo da miscigenação e diversos testes violentos foram realizados nos corpos colonizados. Inusitados vínculos entre doença e raça foram feitos, como o caso da sífilis que, em artigo de 1894, carregava relação com fatores psíquicos e intelectuais das raças, vista como sinal de degenerescência. Também temos os casos das relações que as epidemias supostamente carregavam com a população negra e indígena, já que as doenças nos afastavam do ideal civilizatório que almejavam. Para a elite, os problemas sanitários das cidades relacionavam-se a múltiplos personagens urbanos: leprosas/os, loucas/os, prostitutas, pobres e pretas/os (Antunes, 2012). Segundo a intelectualidade branca brasileira, era preciso um amplo processo de higienização do espaço urbano, o que envolvia a retirada de tais personagens do espaço público. 

A antropometria encontrava criminalidade, loucura e degenerescência nos corpos tornados marginais. Doentes e/ou criminosas/os, cabia aos médicos, e mais tarde aos psicólogos, diagnosticar o Mal do Brasil e curá-lo. A doença torna-se um espetáculo de degradação humana e a loucura, uma exposição da degenerescência (Lobo, 2015). Vide os passeios realizados no Hospital Psiquiátrico de Bicêtre, onde as/os insanas/os eram a distração dominical dos burgueses de rive gauche. Aqui no Brasil, a Colônia, o Hospital Psiquiátrico de Barbacena, também era um passeio para a burguesia (Arbex, 2019), assim como outros hospitais colônia de psiquiatria ao longo dos séculos XIX e XX. Corpos de insanas/os eram expostos vivos ou mortos. Uma imensa espetacularização do sofrimento humano esteve/está em curso na construção do ideal eugênico – construção, essa sim, monstruosa.   

Não foram poucos os “casos monstruosos”, onde anormalidades físicas e psíquicas eram constatadas e documentadas em imagens fotográficas, tendo grande incidência nos corpos pauperizados e pretos; doenças contagiosas e deformadoras se transformavam em um grande espetáculo porno-fotográfico (Schwarcz, 1993). 

Paralelos entre loucura e raças “inferiores” foram traçados pelos médicos da época, como nesse exemplo do Brazil Medico, revista fundada em 1887: 
 

    Claro está que um branco imbecil será inferior a um preto intelligente. Não é porém, com excepções que se argumenta. Quando nos referimos a uma raça, não individuallisamos typos della, tomamo-la em sua accepção mais alta. E assim procedente vemos que a casta negra é o atraso; a branca o progresso a evolução… A demencia é a forma em que mais avulta os negros. Pode-se dizer que tornam-se elles dementes com muito mais frequência, por sua constituição, que os brancos. (Schwarcz, 1993, p. 293). 
 

Em 1890, com a instauração da República, o Hospício D Pedro II passa a se chamar Hospital Nacional dos Alienados e sua administração torna-se de responsabilidade estatal. A saída da Santa Casa de Misericórdia, porém, trouxe uma preocupante baixa orçamentária à instituição, que sobrevivia, em grande parte, da ajuda financeira de igrejas e ricos doadores cristãos que exerciam a prática da doação acreditando na dupla salvação: tanto daquela miserável, pobre, louca/o quanto de si próprio aos reinos do céu, longe daquele esculhambado purgatório-inferno denominado democracia brasileira. 

Na época, a maioria das teorias da psiquiatria brasileira associavam os problemas psiquiátricos aos problemas culturais, embora tenham existido diferentes concepções teóricas, como veremos ao longo dessa escrita. O discurso eugênico fazia uso da biologia para legitimar concepções racistas, misóginas e classistas. É a partir desse caldeirão de acontecimentos que surge a Liga Brasileira de Higiene Mental (HBHM). Fundada em 1923, no Rio de Janeiro, seu objetivo inicial foi melhorar a assistência oferecida aos doentes mentais. A partir de 1926, no entanto, o foco começa a migrar para uma prevenção da doença mental, apresentando ideais eugênicos. A ideia da prevenção psiquiátrica era atuar antes do surgimento da doença mental, no período pré-patogênico. O alvo, então, torna-se o sujeito normal e não mais o enfermo (Costa, 2011). 

A proposta eugênica foi explorar os efeitos físicos e psíquicos produzidos pela miscigenação das raças. O regime republicano, a abolição da escravatura, a imigração europeia, a migração de ex-escravizadas/os para as cidades agravavam o inferno das tensões sociais e colocavam em questão a viabilidade do sistema político vigente. 

Os intelectuais, em sua maioria membros da elite branca, preocupavam-se em construir uma base ideológica que justificasse a desorganizada democracia brasileira. Para tais intelectuais, a crise do período republicano referia-se menos à política e mais ao clima tropical e a constituição étnica do povo. Para a elite branca, éramos um povo preguiçoso, ocioso, relaxado, pouco propenso ao trabalho e dado aos pecados da carne. Problemática colonial onde o corpo e a terra dos povos colonizados são visualizados como inferiores. 

Para o movimento eugênico, havia uma herança genética de doença mental herdada. O que os eugenistas queriam impor era uma moral da raça que se opusesse à moral individualista católica. A defesa da eugenia incluía sobretudo o ideal de uma nação higienizada como sinônimo de saúde. Nesse cenário, proposições médicas e psicológicas foram fundamentais para construção e legitimação científica de princípios eugênicos. Exemplo disso foram as avaliações e exames pré-nupciais sugeridos pelos médicos do século XX, cujo intuito era garantir filhas/os que supostamente se aproximassem do ideal de desenvolvimento da nação. Em outros termos, a avaliação era realizada para mapear a porcentagem da criança nascer ou não negra (Costa, Passos & Gomes, 2017). 

As intensas mudanças políticas que estavam ocorrendo no Brasil no início do século XX, resultaram no golpe de outubro de 1930. Esse movimento conduzido por representantes da camada média, como intelectuais e militares, foi marcado pela implementação do processo de industrialização no Brasil e com isso a Psicologia transforma-se em um importante instrumento científico para a conformação do novo trabalhador, afeito aos processos industriais (Antunes, 2012). Esse momento, portanto, torna-se essencial para a consolidação da psicologia no Brasil.  
Cabe-nos, portanto, questionarmo-nos quanto à implicação da psicologia brasileira na produção das bases do eugenismo e no projeto de nação. Colheremos pistas com Antunes (2012, p. 58): 

 

    A psicologia se desenvolve, se fortalece e se consolida como ciência e profissão, na medida de sua capacidade de responder às necessidades geradas por um projeto político, econômico e social dirigido pela nova classe dominante, a emergente burguesia industrial, que tem na modernização a base para suas realizações no campo das ideias e da gestão de seus negócios e da sociedade. 
 

Manicomialização da vida: Projeto de nação e interseccções entre raça e gênero 

Como sinalizado ao longo dessa escrita, o projeto nacional brasileiro está recheado de associações entre doenças, “degenerescência” e raça. Nessa complexa teia, torna-se importante a inclusão de outro marcador social: o gênero. Entendendo a interseccionalidade como ferramenta analítica, iremos realizar um breve panorama sobre o projeto de nação brasileiro, as subjetividades femininas e suas multiplicidades, assim como suas implicações nas políticas eugenistas.  
É pensando nesse projeto de nação que a subjetividade feminina branco-burguesa se encontra em constante vigilância. Controladas, vigiadas e punidas, as mulheres brancas também poderiam habitar os entornos fechados das paredes dos manicômios ou mesmo de suas casas, terreno-reclusão para que pudessem exercer, enfim, o trabalho do cuidado, essencial para o capital e ao mesmo tempo desqualificado e não remunerado.  

Nesse contexto, mulheres não brancas encontram-se em uma encruzilhada, pois é certo que influía sobre nossos corpos as teorias eugenistas e racistas, assim como o discurso misógino, tornando-nos terreno para as maiores violências e espetacularizações de sofrimentos físicos e psíquicos. De todo modo, múltiplas foram as brechas produzidas para tornar a vida possível. 

O terreno da loucura, muito além de uma estrutura psíquica, diz respeito, também, a uma macroestrutura de governo, de nação e de colônia que antecede os pressupostos científicos e, por vezes, o endossam. Afinal, que histórias essas loucas trazem que se pretende calar e exterminar? Que histórias essa estrangeiridade, nomeada loucura, nos conta acerca de sustentarmos o desejo pela diferença?  
Dispositivos mecânicos de contenção e o trabalho físico eram considerados terapêuticos. Como registrado em
Holocausto Brasileiro (2019) de Daniela Arbex, jornalista brasileira, muitos presos, em sua maioria pobre e preta, trabalhavam diariamente em regimes escravocratas para as companhias/empresas ao redor do hospício de Barbacena. Torturas foram amplamente disseminadas nos corpos aprisionados, loucos e em sua maioria pretos e pobres. O uso da violência era prática da herança escravagista. Não à toa, portanto, o ingresso de todos nas Santas Casas de Misericórdia estava condicionado à pureza de sangue: não ter ascendência branca, judia ou moura e ser casado com mulher não aceita socialmente ou que não se enquadrasse nos critérios vigentes da época era motivo para o enclausuramento (Lobo, 2015). Dessa forma: 
  

   Para os alienistas de meados do século, os loucos haviam caído nas armadilhas de mundos fantasiosos, em geral desenvolvidos a partir de uma imaginação sem freios. Eles deviam ser tratados como crianças incapazes, e requeriam uma dose de rigorosa disciplina moral, retificação e retreinamento no pensar e no sentir. A função do manicômio deveria ser praticamente a de uma escola reformatória. (Garcia, 1995, p. 85). 
 

O enclausuramento em massa do povo preto em instituições participa da política de branqueamento da polis. Enclausura-se e disciplina-se os inumanos, inadequados à concepção eugenista e colonial de cidade. A manicomialização da vida tem, também, suas raízes no crescimento das cidades durante os séculos, na disciplinarização do trabalho, na vigilância dos corpos (e por consequência de suas sexualidades) e no aburguesamento da vida: 
 

   A loucura dentro dos hospícios emerge para o século XX, o século da psicanálise, mas também o da afirmação da psiquiatria como ciência positiva e das práticas terapêuticas desumanas como a lobotomia, prêmio Nobel de Medicina de 1955, o eletrochoque e as drogas convulsivas. Esse panorama começaria a mudar somente por volta dos anos 60, quando ganham corpo os primeiros movimentos de contestação à psiquiatria tradicional. (Garcia, 1995, p. 95, grifos do autor). 
 

A partir do século XVII o que se entendia por loucura é redefinido. Sob a cultura burguesa, o papel da loucura passa a ser pensado como degeneração, desrazão e doença mental. Esvaziado de seu caráter profético, premonitório, sagrado e/ou trágico, o louco tornou-se um doente/enfermo (Garcia, 1995). E, por já estar na linha de desqualificação, subordinada ao homem, evidenciada por seu caráter emotivo, a mulher definida por seus ciclos fisiológicos – menstruação, gestação, menopausa – tinha na perspectiva iluminista de Diderot a subordinação como destino (Tamizari, 2019). 
 

Gênero e suas armadilhas: Outras marcações tornam-se urgentes 

A produção da cultura burguesa erigiu subjetivações femininas brancas de mulheres confinadas ao lar e ao silêncio. Qualquer tentativa de autonomia passou a ser encarada como possível distúrbio psíquico. Uma “castração criativa” (Garcia, 1995) ganha terreno nas possibilidades de existência das mulheres. Enquanto à mulher branca, lar e silêncio, às mulheres pretas e não brancas, perpetuação e continuidade de trabalho forçado, subalterno e desqualificado. Como documenta Daniela Arbex (2019), foi por apresentarem um comportamento considerado desviante para os valores da sociedade da época que muitas mulheres foram levadas à Colônia, manicômio localizado em Barbacena: 
 

   Muitas ignoradas eram filhas de fazendeiros as quais haviam perdido a virgindade ou adotavam comportamento considerado inadequado (…). Esposas trocadas por amantes (…). Havia também prostitutas (…) enviadas (…) após cortarem com gilete os homens com quem haviam se deitado, mas que se recusavam a pagar pelo programa. (idem, p. 30). 
 

No caso das mulheres, seus comportamentos foram sendo interpretados em função de suas especificidades fisiológicas: o útero e os ovários seriam considerados locais que predispunham a doenças mentais (Engel, 2007). Os psiquiatras darwinistas argumentavam que o cérebro das mulheres era menos eficiente e, portanto, o desgaste intelectual as deixava mais suscetíveis às doenças, incluindo a esterilidade (Garcia, 1995).  

A prática da psiquiatria carrega uma forte relação com o controle moral. Tratando a loucura como um problema moral, qualquer comportamento atípico ou de inadaptação ao trabalho e/ou sexual (no caso masculino branco ou preto), ao lar (no caso feminino branco) ou na dupla cisão trabalho/lar – realizando na maioria das vezes trabalhos de herança escravocrata em lares, misturando-se o trabalho manual de origem escravista com a naturalização do amor materno em mulheres (no caso das mulheres pretas e não brancas) – poderia indicar insanidade. 

Para os moralistas, faltava às/aos insanas/os força de vontade, coragem e disciplina para tornarem-se boas/ns cidadãs/ãos. Os psiquiatras insistiam em procurar a causa da insanidade no corpo para que fosse possível estabelecer uma base física. Com teorias racistas e misóginas, os psiquiatras produziam discursos persecutórios localizando o Mal nos corpos pretos e nas mulheres. Mecanismo psíquico de externalização do Mal como problema da/o Outra/o, para os psiquiatras – tal como para os colonizadores – o Mal localizava-se em um território circunscrito: tamanho do crânio, estudos dos ossos (Schwarcz, 1993), tamanho da vagina e ciclos fisiológicos (Garcia, 1995) foram alguns dos campos que participaram dos estudos psiquiátricos na busca pelo Mal. 

Influenciados pela perspectiva darwinista social de seleção natural, onde os mais aptos não apenas sobrevivem como são os que merecem sobreviver na construção de uma nação saudável (Schwarcz, 1993), os psiquiatras darwinistas acreditavam que a doença mental era hereditária. Para eles, a humanidade passa por estágios evolutivos de progresso, indo do mais simples ao mais complexo. Nesse sentido, a interracialidade é um dos fatores negativos, influenciando na imagem já degredada que as terras colonizadas como o Brasil tinham na história da humanidade. A “miscigenação” era sinônimo de degradação e a raça “pura” (branca) era o estágio de evolução a que se almejavam chegar. Múltiplos discursos racistas e misóginos entraram em cena; a insanidade era vista como uma involução. A imensa massa anômala de loucas/os incivilizada(o)s, desorganizada(o)s e indisciplinada(o)s, impediam a Ordem e o Progresso do ideal republicano brasileiro. Os psiquiatras estavam implicados em procurar e descobrir o que apenas seus olhos atentos estavam aptos: a insanidade como Mal dá sinais corporais, principalmente, se for um corpo preto ou não branco ou mulher ou pobre ou imigrante africano/asiático ou epiléptico (David, 2018).  

A teoria da degenerescência, formulada por Bénédict Augustin Morel, pensador franco-austríaco, na década de 1850, transformou-se em referência no campo da saúde mental. Sob esse viés, a intervenção social que a psiquiatria formulava ia ao encontro da defesa da família (branca). Importante para a construção da teoria eugenista, a degenerescência atuou como instrumento disciplinar, construindo um campo científico de suposto embasamento teórico ao regime nazista. 

As degenerescências de Morel, para repugnância, espanto ou prazer de alguns, foram catalogadas e expostas em um atlas repleto de espetacularização de “variedades doentias”, fossem elas físicas, mentais ou morais. Diante do fatalismo da hereditariedade, Morel supunha a noção de progresso e intervenção preventiva. Para o pensador, a degenerescência não era uma evolução negativa, mas sim um desvio, um desarranjo contagioso (Lobo, 2015). No Brasil, a degenerescência esteve fortemente relacionada à miscigenação racial assim como à construção discursiva misógina: 
 

    Para os médicos, todas as mulheres rebeldes eram mentalmente perturbadas, e, dentre todas as doenças nervosas do fin de siècle, a histeria e uma de suas manifestações particulares, a anorexia nervosa, eram mais identificadas com o movimento feminista. Tanto observações clínicas quanto o preconceito sexual contribuíram para essa associação. Os médicos alertavam que a histeria e a anorexia geralmente apareciam em jovens mulheres rebeldes. Para os darwinistas, as chamadas mulheres rebeldes ou Novas Mulheres tinham sido tentadas a estimular seu cérebro em busca de realizações intelectuais, no cenário literário ou na vida pública, contra todas as leis da psicobiologia, e transformaram-se em pessoas egocêntricas. Por esse motivo acabavam histéricas, mas, uma vez ensinadas a se limitarem ao seu lugar e ao âmbito do lar, a se acostumarem a ser mandadas e a se submeterem às autoridades de seus pais, irmãos e maridos, os médicos garantiam que não teriam problemas em manejar suas mentes e elas se recuperariam (Garcia, 1995, p. 59). 
 

No final do século XIX e início do século XX, no Brasil, emergem as teorias liberais que supõem “igualdade” – embora fosse evidente a distinção e subalternização de mulheres brancas em detrimento dos homens brancos e de negros/as em detrimentos de brancos/as. A teoria liberal configura-se como mais um dos braços da colonialidade. A essa época, discursos científicos foram construídos com o intuito de naturalizar uma certa divisão de gênero (essencial ao capital): aos homens (brancos), racionalidade e inteligência, às mulheres (brancas), docilidade. Essa divisão binária de gênero organiza os papéis sociais de ambas as partes. 

A medicina e a psiquiatria tiveram papel fundamental na construção binária de gênero, tendo como uma de suas principais funções o controle dos corpos e das sexualidades de mulheres. Desse modo, os transtornos mentais estariam intrinsecamente relacionados com a biologia, ou melhor, com o organismo feminino. A menstruação, o período da gravidez, o parto e o pós-parto transformam-se em dados científicos para averiguação e posterior constatação de uma doença mental. É recorrente, ainda nos dias de hoje, mesmo que com outras roupagens, a concepção de que o período menstrual torna as mulheres mais frágeis e susceptíveis à loucura. A empreitada realizada pelos “homens de bem” à procura incessante do Mal, encontraria então, os corpos a priori insanos das mulheres, definidos e diagnosticados a partir de nossa organicidade (Engel, 2007). 

A predisposição à doença estaria relacionada à fisiologia do corpo de mulher e nossos processos fisiológicos passam a ser patologizados. Violações no corpo feminino tornam-se parte constituinte do discurso médico-científico. Averiguar, olhar, mexer, invadir e retirar partes íntimas como vagina e clitóris fizeram parte dos procedimentos médicos.  

Para Cesare Lombroso (1835-1905), pensador italiano, por exemplo, a menstruação trazia de modo latente uma certa perversidade erótica desdobrada na frigidez que caracterizavam as mulheres (Arruda, 2017). Além dessa contribuição científica, Lombroso também foi o principal expoente da antropologia criminal, onde argumentava que a criminalidade era um fenômeno físico e hereditário (Schwarcz, 1993). A influência das teorias lombrosianas também apareceram no campo da doença mental: 
  

    Os estudos sobre loucura, um dos primeiros domínios de aplicação da frenologia, tinham nesse modelo científico a base para as novas concepções e para a justificação de seus métodos de tratamento ‘moral’ sobre o indivíduo e para o estabelecimento de conclusões que traçavam as ligações entre a loucura individual e a degeneração de cunho racional. (Schwarcz, 1993, p. 65). 
  

Nina Rodrigues (1862-1906), médico e antropólogo maranhense, influenciado pelas teorias lombrosianas, adicionou outro indicador nos estudos sobre feminilidade e delinquência. Em seus estudos sobre o hímen, Nina constrói a hipótese de que as meninas negras apresentavam um formato de hímen similar a um hímen rompido e isso seria um sinal de comportamento sexual desviante e inadequado (Arruda, 2017) – além de pressupor uma anormalidade. Como nos aponta Engel, a histeria era um diagnóstico realizado principalmente em mulheres negras: 
 

   As mulheres nas quais predominava superabundância vital, um sistema sanguíneo ou nervoso mui pronunciado, uma cor escura ou vermelha, olhos vivos e negros, lábios dum vermelho escarlate, boca grande, dentes alvos, abundância de pêlos e de cor negra, desenvolvimento das partes sexuais, estão também sujeitas a sofrer desta neurose (Engel, 2007, p. 344). 
 

As práticas psiquiátricas da época foram um dos braços que ajudaram na construção do racismo científico, aproximando raça/cor e loucura, degeneração e inferioridade. Os discursos misóginos também aproximaram corpo biológico feminino (assim como o pobre e miserável) a essas características. Obras como a de Henrique Roxo ajudaram a construir um escopo científico para o controle social cada vez mais rigoroso (Engel, 1999). 

Como projeto político ideológico, mas vendendo-se como ciência, a eugenia implementou práticas sociais de controle da população, em especial dos pobres, mulheres, crianças, prostitutas, negros, homossexuais e pessoas com deficiência, estimulando a internação compulsória em hospitais psiquiátricos, visando tanto a adequação dos indivíduos quanto de um padrão nacional de identidade definido por tais práticas (David, 2018).  
Para Jurandir Freire Costa, pensador brasileiro, em
História da Psiquiatria no Brasil (2011), as estatísticas psiquiátricas eram interpretadas de acordo com componentes racistas, sendo utilizadas como estigma racial. Desse modo, por exemplo, os/as portadores hereditários/as de predisposição da sífilis eram identificados/as como os indivíduos não brancos/as, construindo todo um aparato científico para a já vigente constituição eugênica brasileira. As estatísticas eram o próprio fundamento médico, ainda que esses dados não tenham levado em consideração determinantes sociais.  

A junção do discurso científico racista com o discurso científico misógino produziu um escopo teórico onde o corpo de mulheres não brancas era duplamente subalternizado e amplamente psiquiatrizado. A patologização e psiquiatrização da sexualidade operava principalmente no corpo das mulheres pretas. O projeto eugenista serviu para construir e reforçar a suposta ideia de superioridade branca, importante para a construção do “Brazil-colônia”, assim como para patologizar o povo preto, indígena e descendentes de asiáticos (David, 2018), além de ajudar na construção das bases racistas da criminologia, erigindo as supostas fundações científicas para “apontar o criminoso antes do crime”, onde ser preta/o e/ou pobre já indicaria sinal de periculosidade. De fato, no Brasil, é um perigo ser uma/u preta/o pobre! 

Depois dos anos de 1930, o racismo científico e a política de branqueamento abrem espaço para outro protagonista: o mito da democracia racial. Seus germens já existiam na sociedade brasileira, mas foi a partir de 1930 que se falou abertamente sobre o termo, reforçado amplamente pela branquitude intelectual. Gilberto Freyre, em sua obra Casa Grande e Senzala (1933), é considerado um precursor desse movimento. Não é, nesse momento, nossa intenção enveredar sobre essa questão, mas cabe ressaltar o quanto esse “mito” articula o racismo no país e recalca uma discussão crucial que impacta nas políticas públicas de saúde e educação, ratificando as desigualdades e produzindo sofrimento. 
  

Considerações finais 

O projeto nacional é um projeto em disputa. Nesse sentido, é essencial fabricar parâmetros para a normalidade e anormalidade na construção da nação brasileira, uma vez que esse projeto é eugenista, se propõe homogêneo, violento, em suma, colonial. 
Para as/os anormais – entendendo a anormalidade no projeto colonial como característica de personagens urbanos indesejáveis, tais como loucas/os, prostitutas, pauperizadas/os, pretas/os, não heterossexuais etc. – os manicômios fizeram parte de um projeto de cidade que se propôs moderno. A colonialidade pretende exterminar diferenças e a loucura é uma das diferenças insuportáveis para o suposto progresso do projeto colonial. Aprisionados dentro das instituições, corpos loucos ocupam um local estratégico e contraditório para o projeto de nação: corpos subalternizados e desqualificados, tornam-se também, essenciais aos pilares da colonialidade e à gestão e controle dos corpos.  

Partindo da pergunta disparadora desse texto “Que doidice é essa?” colocamos em cena os pilares de um projeto colonial higienista e eugenista. Aquilo que sob muito esforço se pretende invisibilizar não cessa de aparecer: os corpos excluídos do projeto colonial, as mulheres loucas, pretas/os, pobres, travestis, não heterossexuais, sexualidades e corpos “desviantes”, todas/os essas/es personagens intensamente marcadas pelo controle e poder colonial são também justamente quem nos dão mais pistas de como resistir à colonialidade.   

Habitar as margens e insistir na vida, em detrimento da morte, é também dar contorno à realidade. Enquanto profissionais da saúde, temos o compromisso político de construir outro lugar social para o que é considerado loucura, lugar esse que não passe pela anormalidade, pelo fracasso ou pela doença. Porém, com toda a linha histórica sobre a qual discorremos aqui, refletimos: Seria o fracasso uma pista metodológica importante? 

O fracasso pode aparecer como pista valiosa para fazer brecha ao projeto colonial, uma vez que conduz à possibilidade da rachadura e das quebras de um pacto colonial silencioso, recalcado e extremamente violento. Experiências de fracasso no projeto colonial trazem consigo pequenas brechas de potencialidades múltiplas, subversivas e demolidoras, destruições estratégicas que operam para afirmar a vida, em detrimento da morte. Esse é o fracasso das/os supostas/os fracassadas/os: afirmar radicalmente a vida, as diferenças, as pluralidades, o múltiplo, no olho do furacão, no olho de Deus, do Estado, da Nação. Nesse sentido então, quem sabe a aposta não seria, enfim, fracassar? Fracassar o projeto destrutivo colonial, fracassar o projeto de exclusão, apagamento e extermínio das diferenças, para que possamos experienciar a cidade e a vida em suas múltiplas possibilidades de transformação, sem com isso patologizar, demonizar ou punir as diferenças que circulam as ruas. Para que possamos construir uma sociedade mais inclusiva, temos o compromisso de acolher as diferenças que constituem os outros e a nós mesmas. Esse exercício é composto por múltiplos desafios, mas precisamos recordar que não estamos sozinhas e um trabalho contra colonial coletivo já está em curso, prosseguir é preciso. Novas políticas e novos imaginários tornam-se urgentes, afinal política é, também, imaginação. Cabe às nossas práticas o compromisso ético de seguir. 
Os efeitos dessa história colonial reverberam ainda hoje, sejam através de práticas ou teorias no campo da saúde mental. Em tempos de retrocessos de políticas públicas nesse campo, consideramos crucial o resgate dessa trajetória tanto para a contextualização dos fazeres e saberes na saúde mental quanto para a atenção às nossas implicações frente as desigualdades instauradas por um projeto civilizatório e excludente. 

 

 
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Agradecimentos

Essa pesquisa pôde contar com o financiamento da FAPERJ durante todo o período vigente.