Revista de Psicologia, Fortaleza, v.15, e024017. jan./dez. 2024

DOI: 10.36517/revpsiufc.15.2024.e024017

 

 

 

RECEBIDO EM: 29/02/2024

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 22/07/2024

VERSÃO FINAL: 23/07/2024

APROVADO EM: 02/09/2024


Enfrentamento e Maternidade no contexto da Fibrose Cística: estudos de caso


Coping and Maternity in the context of Cystic Fibrosis: case studies

Juliana Laux Soares Schenkel

Universidade do Vale do Rio dos Sinos, RS, Brasil. Mestre em Psicologia. E-mail: juliana.laux@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2670-0550.

Tagma Marina Schneider Donelli

Universidade do Vale do Rio dos Sinos, RS, Brasil. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Bolsista Produtividade CNPq. Email: tagmad@unisinos.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3083-0083.

Tonantzin Ribeiro Gonçalves

Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, RS, Brasil. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Saúde. Bolsista Produtividade CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0249-3358


Resumo

A Fibrose Cística (FC) é uma doença genética crônica que afeta vários órgãos e sistemas. O estudo buscou compreender a experiência da maternidade de mulheres vivendo com FC e as estratégias de enfrentamento durante a gestação e a chegada do bebê. Foi realizado um estudo qualitativo com dois casos a partir da análise de entrevistas semiestruturadas com mulheres da Região Sul do Brasil. As entrevistadas relataram medo, insegurança, preocupações em permanecer vivendo com os filhos. As mulheres tiveram vivências dramáticas no pós-parto, por causa de infecções decorrentes da FC e repercussões na saúde física e mental. Apesar dos desafios físicos, tornar-se mãe foi uma conquista que gerou esperança e motivação para continuar o tratamento da FC. A despeito do esforço emocional, elas lidaram de modo resiliente com a maternidade no contexto da FC, ora utilizando estratégias ativas, ora por meio do apoio social, o que facilitava a organização dos cuidados com os filhos e próprio tratamento. Conclui-se sobre a necessidade de acolher e compreender os aspectos subjetivos e do contexto social e familiar das mães vivendo com FC que lidam com um tratamento contínuo e desgastante. 

Palavras-chave: fibrose cística; maternidade; estratégias de enfrentamento; pesquisa qualitativa.



Abstract

Cystic Fibrosis (CF) is a chronic genetic disease that affects multiple organs and systems. The study aimed to understand the motherhood experience among women living with Cystic Fibrosis (CF) and their coping strategies during pregnancy and the arrival of the baby. A qualitative study was conducted involving two cases, based on the analysis of semi-structured interviews with women from the Southern Region of Brazil. The participants reported fear, insecurity, and worries about staying alive for their children. Women had dramatic experiences in the postpartum period, because of infections caused by CF and repercussions on physical and mental health. Despite the physical challenges, becoming a mother was an achievement that generated hope and motivation to continue the CF treatment. Despite the emotional effort, they dealt resiliently with motherhood in the context of CF, sometimes using active strategies, and sometimes through social support, which facilitated the organization of care for the children and their treatment. It is concluded that there is a need to embrace and understand the subjective aspects and the social and family context of mothers living with CF who deal with continuous and exhausting treatment.

Keywords: cystic fibrosis; motherhood, coping strategies; qualitative research.

 

A Fibrose Cística (FC) é uma doença sistêmica, de caráter crônico que compromete vários órgãos e sistemas, principalmente o pulmão, pâncreas e fígado, trazendo inúmeras limitações (Athanazio et al., 2023). Os tratamentos atuais possibilitam um aumento da sobrevida dos pacientes ampliando a expectativa média de vida em torno dos 50 anos de vida (Allen et al., 2023). O tratamento envolve consultas ambulatoriais regulares e, quando necessário, internações para antibioticoterapia via intravenosa (Athanazio et al., 2017; 2023). 

Para ter uma boa qualidade de vida as pessoas vivendo com FC (PVFC) devem aderir a uma rotina rígida de cuidados como nebulizações com diferentes antibióticos e solução salina, exercícios de fisioterapia respiratória, exercícios físicos, alimentação hipercalórica e ingestão de enzimas pancreáticas (Dalcin et al., 2009). Seguindo o tratamento à risca, muitas PVFC têm uma vida ativa e de considerável qualidade, incluindo a possibilidade de se tornarem pais. Para os homens, isso é possível com fertilizações, enquanto para as mulheres a gestação se dá por métodos naturais (Frayman, Chin, Sawyer & Bell, 2020).

Embora as mulheres vivendo com FC (MVFC) possam conceber e engravidar com sucesso, alguns estudos mostraram que a gravidez está associada a redução da função pulmonar no período até dois anos após o parto (Cohen-Cymberknoh et al., 2021; Jain, Kazmerski & Taylor-Cousar, 2023). A maternidade no contexto da FC exige atenção pré-natal detalhada pois, durante a gestação, infecções respiratórias agudas podem ser críticas e se associam a maior risco de hipertensão materna, insuficiência placentária, sofrimento fetal, mortalidade materna e neonatal (Jain, Kazmerski & Taylor-Cousar, 2023; Osmundo, Athanazio, Rached & Francisco, 2019). Gestantes vivendo com FC precisarão de mais consultas pré-natais e terão maior chance de hospitalização e uso de antibioticoterapia intravenosa prolongada (Osmundo et al., 2019). Os problemas mais comuns ocorrem quando a função pulmonar já é fraca, destacando-se parto prematuro, maior taxa de cesárea, dificuldades para amamentar, complicações maternas e neonatais (Cohen-Cymberknoh et al., 2021; Osmundo et al., 2019). 

Tornar-se mãe é um evento marcante e envolto em diversas adaptações familiares, subjetivas e sociais, sendo que no contexto da FC esse processo se soma ao enfrentamento de uma doença crônica que exige tratamentos e cuidados diários. As estratégias de enfrentamento são definidas como um conjunto de pensamentos, comportamentos e emoções empregados para gerenciar situações estressantes, sendo um processo ativo e dinâmico, resultado de avaliações subjetivas sobre si e o mundo (Folkman & Moskowitz, 2004). Estudos qualitativos e quantitativos sobre a parentalidade em PVFC exploraram tópicos mais gerais como vivência e manejo da parentalidade e do tratamento (Barker, Moses & O’Leary, 2017), implicações clínicas da paternidade (Bianco, Horsley & Brennan, 2019), impacto psicológico e ajustamento à maternidade (Cammidge, Duff, Latchford & Etherington, 2016; Ullrich, Bobis & Bewig, 2015), necessidades psicossociais e educacionais de pais (Hailey, Tan, Dellon & Park, 2019), experiência de tornar-se pai e mãe (Jessup, Li, Fulbrook & Bell, 2018) e qualidade de vida de MVFC que gestaram (Schechter et al., 2013).

Dentre os poucos estudos qualitativos sobre o tema, um estudo dos EUA abordou as preocupações com a saúde reprodutiva de 10 MVFC (Ladores, Bray, Landier, Cherven & Meneses, 2018). A maioria das entrevistadas desejava ter filhos e apesar de temerem a morte precoce, que os filhos tivessem vidas limitadas por causa da doença, se preocuparem pelas lutas diárias e o fardo do tratamento, elas expressaram esperança e determinação em engravidarem e serem mães (Ladores et al., 2018). Um estudo britânico descreveu o impacto negativo inicial de se tornar mãe no manejo do tratamento da FC (Cammidge et al., 2016). Com o tempo, porém, as 11 entrevistadas relataram uma adaptação positiva, relatando que a adesão e a motivação para o tratamento até melhoraram após a maternidade (Cammidge et al., 2016). Em outro estudo, com delineamento misto, se avaliou 73 MVFC alemãs e revelou que elas lidavam bem com o estresse parental considerando situações normativas (Ullrich et al., 2015). Os autores sugerem que mães com doenças crônicas vivem processos emocionais complexos frente aos quais, porém, podem mostrar notável resiliência (Ullrich et al., 2015). 

Por fim, duas recentes revisões sistemáticas com 13 estudos analisaram a experiência da parentalidade em PVFC (Jacob, Journiac, Astrologo & Flahault, 2020; Milo & Tabarini, 2022). Se enfatizou ser necessário um apoio mais qualificado das equipes de saúde para tomada de decisão relacionada à parentalidade no contexto da FC, embora ter filhos tenha sido uma experiência positiva apesar das implicações de saúde das PVFC. A parentalidade exige grande reorganização do cotidiano, embora as mães e pais vivendo com FC mostraram estratégias de enfrentamento eficientes e receberam apoio social (Jacob et al., 2020; Milo e Tabarini, 2022).

De modo geral, a literatura descreve que, apesar das dificuldades com o tratamento contínuo, dos medos e preocupações quanto à gestação, com o bebê (se terá ou não a doença), com a própria saúde (pelos possíveis declínios na função pulmonar), é possível maternidades e paternidades bem-sucedidas. As preocupações com o tempo curto de convivência com os filhos por causa da progressão da doença também é um tópico recorrente, tendo como pano de fundo a necessidade de ajustamento psicossocial diante das tarefas parentais e do tratamento. 

Não foram localizados estudos brasileiros sobre a maternidade no contexto da FC e como essas mulheres lidam com a maternidade e os desafios da doença. Portanto, o presente estudo objetivou compreender a experiência da maternidade de MVFC, enfocando o processo de tornar-se mãe e as estratégias de enfrentamento durante a gestação e a chegada do bebê.

Método

Delineamento

Foi um estudo de casos múltiplos de caráter qualitativo e exploratório em que se busca descrever, explorar e compreender de forma profunda as similaridades e diferenças entre casos a partir de cruzamentos e sínteses interpretativas (Yin, 2015). 


Participantes

As duas participantes faziam parte de um estudo qualitativo mais amplo com amostra de conveniência de adultos portadores de FC, moradores em um estado da região Sul do Brasil, que analisava as estratégias de enfrentamento da doença. Para investigar sua experiência de maternidade, foram incluídas na presente análise as duas mulheres que foram mães no contexto da FC dentre as que participaram do estudo maior, permitindo uma análise comparativa. Umas das MVFC teve o filho após o diagnóstico, e a outra antes do diagnóstico, porém, em um momento que já referia sintomas da doença.

Instrumentos

Foi utilizado um questionário sociodemográfico e clínico para obter dados gerais como idade, escolaridade, status ocupacional, situação familiar, bem como sobre o histórico da doença e de tratamento, sendo usados alguns dos itens do Cystic Fibrosis Questionnaire-Revised (CFQ-R) (Quittner, Modi, Watrous & Davis, 2000). O roteiro semiestruturado da entrevista foi construído pelas autoras e abordava temáticas como a trajetória da convivência e estratégias de enfrentamento da doença desde o diagnóstico até o momento atual; relações familiares e apoio social; sentimentos frente a doença e o tratamento; resolução de problemas.

Procedimentos de Coleta

Os convites para participar da pesquisa foram divulgados em redes sociais e junto à Associação Gaúcha de Assistência a Mucoviscidose (AGAM) que encaminhou interessados. O contato inicial se deu por telefone ou mensagens por WhatsApp, a fim de convidar as participantes e encaminhar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As entrevistas ocorreram em 2020 na modalidade online devido a pandemia da Covid-19. Foi aplicado o questionário sociodemográfico e as entrevistas, com duração de 60 e 90 minutos, foram conduzidas pela primeira autora, gravadas em áudio e transcritas.

Procedimentos Éticos

O estudo obedeceu às diretrizes das Resoluções do Conselho Nacional de Saúde nº 466/2012 (Brasil, 2012) e nº 510/2016 para pesquisas em ciências sociais e humanas (Brasil, 2016). O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da XX (CAAE XX). Além do TCLE, se obteve carta de anuência da AGAM. Os nomes utilizados são fictícios e dados que pudessem identificar as participantes foram modificados ao longo do relato.

Análise dos Dados

Primeiro, cada caso foi lido e analisado individualmente a partir dos seguintes eixos: 1. Desejo de ser mãe e o período da gestação, 2. Parto, primeiros momentos e pós-parto, 3. Exercício da maternidade e relação mãe-filho/a. Como eixos transversais foram analisadas as estratégias de enfrentamento e o apoio familiar e social. Na segunda etapa, foi realizada a síntese, comparando os casos na perspectiva de mães vivendo com FC (Yin, 2015).


Resultados e Discussão

Os casos são apresentados individualmente e, em seguida, realiza-se a síntese, buscando destacar as particularidades e aspectos comuns entre ambos.

Caso Ana

Ana tem 30 anos, era natural de uma capital da região nordeste, profissional da saúde com pós-graduação, era casada e morava com o marido e filho. Dois anos antes da entrevista, devido as complicações da FC, entrou para a fila de transplante pulmonar e, por isso, mudou para uma capital da região Sul. Foram com ela, o filho e o marido. Sobre o diagnóstico, contou que aos 11 anos realizou uma lobectomia (remoção cirúrgica de um dos lobos do pulmão), revelando que os sintomas já eram presentes desde a infância, embora o diagnóstico da FC tenha se confirmado na adolescência. Ela relata ter feito várias investigações quando criança em busca de algum diagnóstico, incluindo testes de suor para identificar a FC. Mas foi só quando completou 17 anos que os valores de referência do teste de suor mudaram, aumentando o ponto de corte para 60mg de cloreto de sódio, que o diagnóstico de FC foi fechado. Sempre apresentou mais sintomas respiratórios do que digestivos, mas, após o diagnóstico, começou a tomar as enzimas pancreáticas e ganhou 10 kg, o que Ana achou muito bom. No momento da entrevista, ela tinha capacidade pulmonar total de 19% e fazia uso de oxigênio nasal contínuo. Trabalhava nas mídias/redes sociais com divulgação de informações sobre a doença e no incentivo à doação de órgãos, além de vender produtos em uma loja virtual que possuía. O filho de Ana, Augusto, tinha dois anos e não tinha a doença. 

Desejo de ser mãe e a gestação.

Ana tinha desejo de ter filhos, mas duvidava se poderia tê-los com a doença, pois pensava que MVFC eram estéreis, assim como os homens. Quando buscou saber sobre a possibilidade de ser mãe relatou não ter recebido apoio do médico que a acompanhava na época que apenas lhe disse que não poderia engravidar, sem mais explicações. Contudo, o desejo de ser mãe parecia urgente para Ana, pois precisava efetivar logo seus planos de vida: 

Sempre quis ter filho, no início, eu tinha que viver logo, pra estudar logo, casar logo, ter filhos, ter a minha vida logo, né?! Então sempre quis ter, esse desejo de ter filho. Quando eu perguntei uma vez para um médico lá de [cidade], se eu podia engravidar, ele falou que não! E aí ele só falou não e também eu não quis perguntar mais.

Ana disse que também não teve espaço com outros profissionais de saúde para falar sobre seus planos de ser mãe, o que lhe trazia muitas dúvidas. Não sabia se era capaz de gestar devido a situação física gerada pela doença ou se isso não seria recomendado e poderia agravar sua saúde. Consoante ao seu desejo, ela se desafiava sem usar anticoncepção:

Eu tinha essa vontade, achava que não podia, nessa dúvida de eu acho que eu não consigo engravidar, porque eu pensava dessa forma, porque antes de me casar eu tive outro relacionamento de três anos e nunca engravidei, nunca tive um susto! (...) Passava períodos sem usar [anticoncepcionais], porque eu tinha certeza de que eu não podia engravidar e que eu não iria engravidar.

A possibilidade de não poder ter filhos era algo que conversara com o parceiro, enquanto usava anticoncepcionais de modo irregular, estando aberta a chance de engravidar: 

Aí eu falei para ele [companheiro]: “Por conta dessa doença talvez eu não possa ter filho e tal”. E ele nunca levou muito a sério. (...) Foi nessa pausa que eu engravidei! E foi uma coisa que eu sempre quis, apesar de não ter planejado assim.

Ao descobrir a gravidez, Ana relatou uma vivência ambivalente, um misto de susto, medo e muita satisfação. A vinheta a seguir, indica a euforia e o sentimento de plenitude após a notícia, o que causou estranheza no companheiro: 

Quando eu voltei para casa, no carro, eu chorava e ria! Eu chorava com medo e depois começava a rir! Ele [companheiro] falava: ‘Meu Deus, tá louca?’ E aí foi um período que eu fiquei assim, depois no outro dia eu estava radiante, me achando um máximo porque eu ia ser mãe e tinha um bebê crescendo na minha barriga, seria lindo e ponto!

Ana relatou ter passado por uma gestação tranquila, realizando seus exercícios respiratórios regularmente. Porém, no último trimestre contraiu uma infecção com uma bactéria de difícil tratamento (Bukodelica Cepácia) e que podia levar a necessidade de transplante: “Eu já estava com esse condicionamento físico bom [antes da gravidez] e foi super boa a minha gestação até o 7º mês”. Como se verá na próxima categoria, essa intercorrência ocasionou um parto prematuro e um agravamento da sua situação de saúde.

Parto, primeiros momentos e pós-parto.

Ana contou, emocionada, como foi o parto do filho: “Eu tive essa infecção que acelerou o meu parto, porque o corpo estava expulsando o Augusto, então no final do 7º mês eu entrei em trabalho de parto!”. Com detalhes, falou do temor de não estar viva para ver o bebê: “Eu não tinha medo de perder ele, eu tinha medo de não sobreviver para ver ele”. Ao vê-lo, relatou sentimentos de conquista e felicidade:

Foi lindo quando puxaram ele e colocaram em cima de mim, ai meu Deus! Ele calou...ele chorou, chorou e quando colocou aqui (no peito), se calou! E eu sempre digo para as minhas amigas que não são mães, é a melhor sensação do mundo. Nenhuma experiência no mundo se compara a de ter um filho, nenhuma!!!

Ana passou por dificuldades no pós-parto, teve grande perda da função pulmonar e passou a precisar de oxigênio contínuo. Ela menciona como lidou com essa situação: 

Quando eu me tornei mãe foi exatamente na mesma hora eu soube que eu precisava ir para lista de transplante. Então foi uma coisa muito… [expressão de impacto], foi um adoecimento muito rápido e brusco, digamos assim. Eu tive que reagir rapidamente entende, porque eu não tinha tempo para sofrer. Quando eu descobri que eu precisava fazer o transplante meu médico falou eu tinha 3 dias ou 4 dias de ter tido o meu filho. 

Ao ter que enfrentar rapidamente o problema, sem tempo para dar ênfase aos sentimentos, encontrou o apoio da família: 

Ele era muito pequenininho e precisava de mim e aí foi, ou eu ficava... Passei esse tempo bem desesperada. "Como assim ele vai crescer e talvez não tenha mãe?" Ou então: "Como ele vai se apegar a mim e já vai me perder?" Então nesse período eu fiquei muito assim, porém, minha família me ajudou muito e aí eu consegui virar a chave, mas toda a vez que eu lembro dessa cena, desse momento que o médico falou eu fico, parece que eu revivo.

No relato acima, Ana lembrou do drama logo após o parto, evocando preocupações com o futuro de Augusto, se participaria do seu crescimento e se ele sentiria a falta da mãe. Apesar da sensação de desamparo e impotência frente ao risco de morrer, o apoio da família foi importante para que ela conseguisse lidar com as demandas objetivas da doença e se preparar para o transplante. Ao mesmo tempo, preservava a vinculação precoce com o filho, exercendo a maternidade que, como se verá, lhe fornecia também resiliência frente a FC. 

Exercício da maternidade e relação mãe-filho.

Ana descreveu que o nascimento do filho a fez mudar a forma como lidava com os problemas como, por exemplo, em situações de sentir que não daria conta das dificuldades. Segundo ela, ser mãe a tornou “mais forte”: 

Mudou eu acho que depois que eu me tornei mãe eu fiquei mais forte né...é antes eu pensava muito, quando eu tinha algum problema eu não tinha o pensamento que eu tenho hoje em relação a... “é só uma fase vai passar” ...e tudo bem. Antes não, eu realmente ficava mais triste e pensava que talvez eu não fosse conseguir.

Ana contou que nos primeiros momentos com o filho não buscou ajuda, pois estava motivada a cuidá-lo sozinha e conseguia dar conta do bebê e da rotina de tratamento. Porém, quando a criança começou a ficar mais tempo desperta, percebeu que a demanda atencional e de cuidados com o filho incidiria sobre sua capacidade de manejar as tarefas relativas ao seu tratamento. Nessa época, se reorganizou e passou a receber apoio da mãe e de uma babá: 

No início foi um pouco difícil porque ele era muito pequenininho e eu não queria que ninguém fizesse nada, eu queria amamentar, eu queria dar o banho, eu queria trocar as fraldas. E era bom porque ele dormia muito né, recém-nascido. Então dava para eu me organizar em relação ao tratamento e cuidar dele e, mas logo na sequência, logo que veio ficar maior, mais tempo acordado, minha mãe me ajudava muito e também eu tinha ajuda de uma pessoa na minha casa como se fosse uma babá.

A possibilidade de contar com apoio contingente tornava mais fácil para Ana lidar com a rotina de tratamentos sem se preocupar com os cuidados do filho, embora buscasse preservar momentos específicos com Augusto: 

Então quando eu precisava fazer a minha fisioterapia, a nebulização essas coisas, é, sempre tinha alguém para ficar com ele. Na verdade, me ajudava muito, muito em tudo. O único momento que eu não abria mão era na hora do banho! Sempre dei banho em Augusto, o resto todo eu deixava que minha mãe ou a moça fizesse. Mas isso depois de um tempo né, no início como eu falei só eu tocava no meu gordinho!

Outra forma que Ana tinha de enfrentar os desafios da FC era o sentimento de gratidão, priorizando o que estava vivendo no presente e percebendo o passado como um aprendizado, embora reconhecesse a fragilidade de sua vida: 

Hoje em dia eu consigo viver bem e eu já me peguei pensando que como eu sou mais feliz hoje, estranho né?! Como eu consigo me sentir mais feliz hoje, tipo numa condição tão imprópria para se sentir feliz, sei lá!? Mas eu consigo me sentir muito feliz hoje por tudo que eu vivo, porque hoje eu consigo viver cada detalhezinho.

Frente ao risco de morte, Ana acreditava que o vínculo entre mãe e filho lhe fortalecia, pois ser mãe lhe trouxe mais autoconfiança e dedicação quanto ao seu tratamento: 

Meu filho também é um ponto de equilíbrio para mim, ele também me segura muito, sabe? E eu ter tido ele foi como se Deus dissesse assim: “Olha eu vou te dar uma coisa que tu vais...pra tu se cuidar ainda mais". Então ele é o meu ponto de equilíbrio e eu tiro forças todos os dias dele!

Para lidar com o exaustivo tratamento e o agravamento da doença após o parto, Ana se focava na relação com o filho e na busca por transcendência espiritual, o que a auxiliava a se engajar ativamente nas tarefas diárias de autocuidado. Ela buscava preservar os momentos vividos com Augusto, cultivar sentimentos positivos e de gratidão pela conquista do filho e não focava em preocupações com o futuro, sobre o que não tinha controle. Apesar da saúde comprometida após a gravidez, Ana não tinha arrependimentos e via que a maternidade lhe dava persistência para enfrentar a doença e permanecer o maior tempo possível com o filho. 

Caso Bárbara

Bárbara tinha 44 anos, morava em sua cidade natal situada na região metropolitana de uma capital da região Sul. Era casada e morava com o marido e a filha de 11 anos que chamaremos de Bia. Bárbara recebeu o diagnóstico de FC aos 35 anos, embora seus sintomas tivessem começado na adolescência, sendo que teve um período de piores exacerbações a partir dos 24 anos. Ao investigar, os primeiros testes resultavam negativo para a FC. Bárbara relatou que sempre fez natação e acreditava que isso a ajudou com os sintomas. Ela se formou e se pós-graduou na área da gestão de negócios e, atualmente, trabalhava como consultora e palestrante. Ela se casou aos 28 anos e, para gestar, tentou dos 30 aos 33 anos, tendo após isso uma gestação natural e, segundo ela, tranquila. No pós-parto teve infecção respiratória por Pseudomonas Aeruginosa necessitando de antibioticoterapia via intravenosa. Essa é uma bactéria comum que possui tratamento, porém, pode gerar infecções graves e risco de morte para PVFC. Quando a filha tinha 2 anos de idade percebeu muita dificuldade para respirar ao brincar com a criança. Nesse momento se motivou novamente a investigar sua condição clínica e recebeu o diagnóstico de FC. Durante a entrevista estava com capacidade pulmonar respiratória total de 80% e sentia-se bem. Um fato importante é que antes de Bárbara receber o diagnóstico, a sua irmã foi diagnosticada com FC quando morou em outro país, onde teve maior facilidade e acesso ao diagnóstico especializado. Por isso, Bárbara suspeitava do seu diagnóstico antes de ter a filha.

Desejo de ser mãe e a gestação.

Bárbara queria muito ser mãe e planejava isso. Contudo, não estava certa sobre se poderia engravidar, pois mesmo sem ter o diagnóstico, desconfiava de que algo não ia bem com sua saúde: “Quando eu tive neném, tentando ter filho com os 30 eu comecei a tentar, não tinha condição. Eu fiquei dos 30 aos 33 anos tentando engravidar e não conseguia, até que eu consegui e daí me bateu o medinho!”. Bárbara também temia a possibilidade de a filha nascer com a FC, já que tinha um caso na família. Quando finalmente engravidou, relatou que a gestação foi tranquila, mas teve infecção respiratória durante a gestação e no pós-parto: “Os 33 [anos] quando eu engravidei tive que fazer dois homecare, um foi no meio da gestação e outro quando eu voltei do hospital”.

Bárbara estava insatisfeita por ter a saúde ameaçada e percebia que algo não estava normal. Ao mesmo tempo, desejava estar sempre bem e no controle das situações. Assim, o acesso ao serviço de atenção domiciliar lhe permitia prescindir da internação para a administração do antibiótico intravenoso, o que não é comum para a maioria das PVFC no Brasil, as quais precisam paralisar sua vida para receber a medicação no hospital. 

Parto, primeiros momentos e pós-parto.

Bárbara trouxe breves memórias sobre o parto, destacando que naquele momento passou a ter maior consciência sobre o seu grave estado de saúde e que havia algo errado devido aos recorrentes episódios de infecções respiratórias. Contudo, o diagnóstico ainda demorou mesmo em meio a várias investigações com especialistas em FC. A necessidade de atenção e cuidados com a filha se somavam a sua busca constante de estar no controle das situações, o que pode ter contribuído para o atraso na investigação dos sintomas: 

Fiz a cesárea e aí tive que vir de homecare para casa aí eu tomei consciência: “Não esse negócio, eu devo ter alguma coisa”. Eu tomei a consciência de que era alguma coisa séria. Levei mais 2 anos para o diagnóstico, não por orgulho, vaidade, por não poder ser fraca.

No relato a seguir, Bárbara traz um dos momentos mais difíceis para ela nos primeiros dias após o parto. Além de lidar com o estresse físico e emocional do puerpério, havia a dor e o cansaço físico relativo à cesariana e a infecção respiratória concomitante: 

Fiquei internada, os 3 dias que a Bia ficou lá, depois eu já saí em homecare, mas aqueles 15, 17 dias a mais em casa aquilo foi punk! Vou te dizer que recém ter saído, de estar fraca da cirurgia com o neném pequeno e mais o homecare, ali acho que foi o mais pesado.

Parecia claro que naquele momento Bárbara precisava, com urgência, de ajuda para lidar com os próprios cuidados e com os da bebê recém-nascida. Porém, ela relatou não ter recebido o apoio do marido, de familiares ou de algum profissional. Ela contou, de forma dramática, o quanto se sentia desamparada e com dificuldade para pedir ajuda, pois queria cuidar da filha e manejar seu problema de saúde sozinha. Ela demonstrou grande raiva do marido, relatando como ele estava, na época, alheio a todo estresse que ela vivia. Bárbara se via ressentida e decepcionada com o companheiro, uma vez que, segundo ela, no casamento anterior, ele ajudara a cuidar das outras duas filhas quando pequenas:

Lá no início ele me deixou, olha assim eu programei a morte dele, eu visualizei tudo! Eu estava de homecare recém-saída do hospital eu estava ali no 15º dia em casa, era 21 dias de antibiótico e quando eu podia dormir vinha a [profissional de saúde] me aplicar e daí tinha o neném, tinha a adaptação toda. Ali foi pancada! E ele [companheiro] dormia! E aí um belo dia, 4 da manhã e eu com a síndrome das pernas inquietas, ela tinha refluxo, eu segurava com as mamadas, ela nasceu em julho era muito frio. Eu estava no meio do processo e ele dá aquela roncada quando eu entrei naquele sono maravilhoso, eu ouvi aquilo e aí tinha um reloginho cor-de-rosa na bancada que era os 15 minutos do refluxo, ela de pezinho aqui [no colo], com medo de deixar cair, vou largar essa criança ali. Eu visualizei tudo! [...] Geralmente eu trocava a fralda antes da amamentação por causa do refluxo pra não trocar depois. Eu olhei faltava 15 para às 4 da manhã, às 4 vou colocar ela na cama bonitinha, vou lá ferver água e vou virar na orelha dele pra matar que nem porco!

Após esse episódio, ela buscou apoio de uma psicóloga para lidar com a raiva e a frustração. O casal recebeu apoio psicológico, o que facilitou o engajamento dos dois nos cuidados de Bia e permitiu que a participante pudesse se organizar com o tratamento, descansar e aproveitar a filha. Esse também foi um momento de elucidação para Bárbara, pois percebeu o quanto o sentimento de impotência lhe desestruturou: 

Eu preciso te dizer o quanto real foi, porque eu poderia ter ido. E aí quando eu a botei na cama, ela dormiu e pensei que precisava de ajuda. Foi essa a minha reação e fui à psicóloga, estou mal, estou com raiva dele. Então ali a gente teve um momento complicado, passou também! Ali eu senti, não era fibrose ainda né [não recebera o diagnóstico], mas eu tinha o tratamento todo, eu estava cansadíssima, era uma loucura.

Apesar de entrar em contato com os pensamentos e emoções relacionados à ameaça a sua vida, o que significava para ela admitir fraqueza, Bárbara continuava a negar os graves sintomas físicos relativos à doença, retardando por mais dois anos o diagnóstico, como se detalhará na próxima categoria. 

Exercício da maternidade e relação mãe-filha.

Antes de Bia nascer, Bárbara trabalhava três turnos e logo percebeu a necessidade de mudar a rotina de trabalho. Ela avaliou isso de modo positivo para sua saúde: “Depois que a Bia nasceu e tudo mais, eu dei hora pra iniciar e parar.” Ela sofria diante do sentimento de perda de controle na época e o alto grau de exigência que tinha consigo mesma, apesar do crescimento a partir dessa vivência: 

Ali foi pancada! E a coisa de excesso de ter que ser a mulher maravilha né. Hoje eu já penso, nossa, mas por que eu não contratei uma enfermeira? Não pensei, não me preparei para situação, nenhuma amiga me disse para contratar uma enfermeira. Eu achava que tudo eu tinha que fazer. Nossa! Se eu tivesse o segundo [filho]...

Quando questionada sobre se alguém já havia atrapalhado seu tratamento, Bárbara refere que o nascimento da filha, apesar de ter passado por um momento dramático em sua vida sem muito amparo: “Ninguém, mas talvez a Bia quando era bebê.” Porém, a terapia auxiliou o casal e também ela mesma a perceber o quanto tinha dificuldade de pedir ajuda: “Ele [marido] se atinou…foi junto na terapia até. É que eu não tinha o hábito de pedir ajuda, eu achava que ele tinha que saber o que eu queria né, então tinha todo uma coisa de orgulho, de exigência.” Bárbara também sentiu medo da filha ter a mesma doença que ela, mesmo sem saber do diagnóstico de FC na época: “Sempre tive muito medo de que ela tivesse, até os 5 meses ali quando eu fui fazer o teste do pezinho e o teste dos eletrólitos do suor no [hospital], aí eu tive muito medo também, na gravidez eu tive medo.”

Segundo Bárbara, a maternidade e a FC impuseram mudanças frente ao autocuidado, ajudando-a a reconhecer o quanto suas próprias características atrapalhavam na adoção da rotina de tratamento e poderiam, inclusive, afetar a relação com a filha. Portanto, a vivência da maternidade parece ter feito com que ela percebesse a gravidade e a piora nos sintomas, o que passou a lhe preocupar, pois sentia que precisava ter saúde física para cuidar da filha: 

Ela [FC] e minha filha, foram marcos importantes. Um veio por causa do outro. Sim, de eu me observar e me colocar limites, na minha autoexigência em relação a trabalho. (...) Quando ela fez 2 aninhos foi em 2011, foi que eu resolvi, não agora comecei a ficar sem fôlego para correr atrás de uma criança de 2 anos. Aí eu comecei a ficar mais atenta, mas só quando a Bia fez 2 anos eu comecei a sentir que o bicho estava pegando mesmo. O pulmão não estava legal.

A mãe relatou o temor de que a FC afetasse negativamente o desenvolvimento e a relação com a filha, sendo que o crescimento da filha a auxiliou a aceitar sua condição: 

A minha filha, logo no início ela imitava tosse quando era pequenina, e tinha umas coisas assim que: "ah, porque?!" Depois que ela entendeu o processo, entendeu a minha irmã [que também vivia com FC], agora ela entende, se ela tem aula de sistema respiratório ela levanta o braço e conta: “Minha mãe tem fibrose cística”!

Bárbara mencionou que durante a pandemia do Covid-19 buscou o apoio da Bia (filha) para lidar com a situação. A filha se sentiu mais solitária e Bárbara passou a conversar mais com ela, muitas vezes, lembrando das formas de contágio e do risco que corre se contrair o vírus. Bia estava entendendo melhor a condição de saúde da mãe e buscava informações na escola. Assim, percebeu-se que o enfrentamento da doença tinha como ponto de apoio a relação mãe e filha, que foi fonte importante de motivação nos momentos difíceis. 

Síntese e discussão conjunta dos casos

O estudo revelou como a experiência da maternidade possibilitou alterar e flexibilizar o repertório das estratégias de enfrentamento da FC, ampliando o sentido de vida para Ana e Bárbara, como encontrado por Sandelowski e Barroso (2003) entre mulheres vivendo com HIV. Ter filhos era uma fonte de esperança para as mulheres, constituindo parte de sua identidade. Percebeu-se também uma dualidade similar da maternidade no contexto da FC e do HIV, sendo a doença percebida como ameaça de vida e a gravidez, um incentivo a ela (Sandelowski & Barroso, 2003). No presente estudo, a gestação também provocava medo, insegurança, preocupações por causa do risco de vida, das complicações, e a gravidez foi significada como uma conquista, gerando esperança e motivação para continuar o tratamento. Os momentos que expressaram essa realidade aconteceram principalmente no parto e pós-parto, pois ambas relataram vivências dramáticas e de perigo à vida (Cammigde et al., 2016). 

Ana e Bárbara relataram a importância de ser mãe para o autocuidado, principalmente para manter a rotina de tratamento. Esse achado coaduna com os de Ulrich, Bobis e Bewig (2015), revelando que as mães com FC demonstram resiliência para lidar com a maternidade apesar do início da experiência demandar adaptações e um grande trabalho emocional. 

Apesar de Bárbara e Ana estarem em fases diferentes de vida (uma com filho pequeno e outra com a filha pré-adolescente), elas demonstraram angústias parecidas quanto a sua saúde e em permanecer vivendo com os filhos. Em especial, Ana demonstrou muito temor pela possibilidade de não acompanhar o filho de apenas dois anos, pois estava com a saúde em maior risco depois de um pós-parto complicado e isso era fonte de motivação para dedicar-se no tratamento. Ladores, Bray, Landier, Cherven e Meneses (2018), em sua pesquisa qualitativa com jovens MVFC, apontaram que a maioria desejava ter filhos embora temessem intensamente a experiência da gestação e de se tornarem mães por causa da condição crônica e do fardo do tratamento. Todavia, as MVFC expressaram esperança e determinação em engravidar e serem mães, sendo que tais incertezas as motivavam para buscar saúde e manter relacionamentos sólidos, em consonância ao encontrado no nosso estudo. Ana e Bárbara, apesar dos temores, não desistiram do seu desejo e o nascimento dos filhos parece ter ampliado o engajamento no tratamento da FC. Para Bárbara, a maternidade inclusive impulsionou a busca pelo diagnóstico definitivo. Ademais, as duas mães não expressaram arrependimentos pela maternidade, concordando com outros estudos (Jacob et al., 2020).

O desejo da maternidade e a concretização da gestação foi vivido pelas participantes solitariamente e permeado de dúvidas e falta de informações. Elas não sabiam dos riscos de gestar no contexto da FC, seja por não ter o diagnóstico (caso Bárbara) ou por falta de acolhimento da equipe de atendimento (caso Ana). Sobre isso, é importante pontuar as dificuldades de comunicação dos profissionais da saúde sobre a maternidade no contexto da FC. Sabe-se que as MVFC tendem a ser desestimuladas a serem mães por vias naturais pelos profissionais de saúde, já que a doença pulmonar grave representa risco aumentado para perda irrecuperável e significativa da função pulmonar durante a gestação (Osmundo et al., 2019; Cohen-Cymberknoh, 2021). De fato, Ana vivenciou grande perda de função pulmonar após o parto, o que a levou para a lista de transplante.

Dessa forma, para as PVFC, ainda é um tabu falar sobre ser mãe, pois muitos profissionais acabam fazendo recomendações eminentemente técnicas, furtando-se do cuidado individualizado e integral (Jessup et al., 2018; Ladores et al., 2018; Milo & Tabarini, 2022). No caso de Ana, mesmo tentando compartilhar as dúvidas sobre a maternidade, o profissional desconsiderou seu desejo de ser mãe, não esclarecendo sobre os reais riscos e possibilidades. É preciso entender que, sabendo ou não sobre os riscos, muitas mulheres seguirão com seus planos de maternidade, sendo preciso respeitar sua autonomia. Portanto, é necessário apoiar essas mulheres para que tomem decisões informadas e para que vivam a maternidade nas melhores condições possíveis. A qualificação das equipes de saúde para abordar os problemas relatados por mães e pais que vivem com FC, tanto para planejar como para apoiar a parentalidade, ainda precisa ser endereçada (Jacob, Journiac, Astrologo & Flahault, 2020).

Argumenta-se que é importante transcender a lógica de recomendações puramente biomédicas e fomentar a comunicação clara entre profissional e paciente, ampliando a percepção dos riscos implicados na decisão de se tornar mãe. Considerar as questões físicas, em conjunto com os aspectos subjetivos e o contexto social das mulheres, deve fazer parte de uma abordagem assistencial que estimula a autonomia responsável diante do tratamento e das escolhas da sua vida. Ter a equipe de FC apoiando as decisões sobre a gravidez e a parentalidade são vitais e isso precisa ser comunicado abertamente. As equipes de saúde precisam de uma compreensão detalhada e baseada em evidências para fornecer informações sobre ter filhos no contexto da FC.

A busca por apoio social é um modo central de enfrentamento de situações de difícil manejo no contexto da FC. Em ambos os casos analisados, o apoio de profissionais e familiares foi decisivo para a saúde das mulheres, facilitando a organização individual e a adaptação da rotina da família na transição para a maternidade e frente ao complexo tratamento da FC, coadunando com outros estudos (Cammidge et al., 2016; Milo & Tabarini, 2022). As mães do nosso estudo mostraram diferentes percursos na busca por apoio para lidar com a maternidade no contexto da FC, também considerando a distinta disponibilidade das suas redes. Ana passou por mais dificuldades devido a gravidade do seu quadro de infecção e as complicações decorrentes. Entretanto, ela parecia contar com uma rede mais contingente e estar mais aberta para receber o apoio da família, ao expressar suas dificuldades. Bárbara, por sua vez, tinha uma rede mais restrita e, ao mesmo tempo, não conseguia pedir ajuda devido a sua autoexigência. Assim, o apoio social foi central para que as mães lidassem com o tratamento diário e os cuidados dos filhos, o que corrobora com a literatura (Cammidge et al., 2016; Barker et al., 2017; Jessup et al., 2018). 

Além do enfrentamento focado no apoio social e familiar, a literatura destaca o uso de estratégias com foco no problema (Hailey et al., 2019) e nas emoções, como resiliência, esperança e pensamento otimista (Jacob et al., 2020; Milo & Tabarini, 2022) entre mães vivendo com FC. Nos casos analisados, as mães expressaram usar tais estratégias, manifestando também a necessidade de focar no momento presente tendo em vista a possibilidade de morte precoce, a exemplo de outras pesquisas (Cammidge et al., 2016; Ladores et al., 2018). Ademais, Ana enfatizou sentimentos de gratidão e o empenho em viver intensamente cada momento com o filho.

Considerações Finais

Os achados do estudo evidenciaram que a experiência de se tornar mãe foi enfrentada de modo resiliente pelas participantes. Suas trajetórias revelaram dificuldades e conquistas no contexto da FC diante do que construíam modos de enfrentar as situações, ora focando ativamente no tratamento, ora buscando apoio social e vivendo o momento presente. O apoio de familiares e amigos facilitava as adaptações, além do vínculo entre mãe e filho/a. Portanto, a experiência de ser mãe impulsionava o enfrentamento da doença. 

Para as PVFC, o caminho do desenvolvimento é desafiador desde os primeiros sintomas, pelas incertezas do diagnóstico e prognóstico, pelo tratamento exaustivo e pelas exigências e limitações que a doença vai impondo paulatinamente (Mc Hugh, Mc Feeters, Boda & O`Neil, 2016; Ladores et al., 2018). Para as MVFC, concretizar o desejo da maternidade se coloca como outro desafio. Os profissionais da saúde parecem perceber o desejo como um risco para a saúde e tendem a contraindicar a gestação ou então não favorecem decisões reprodutivas informadas, por temor de estimular essa vontade. Entende-se ser necessário acolher e compreender os aspectos subjetivos e o contexto social e familiar de cada MVFC. Nesse sentido, é necessário que as equipes de saúde atuem de modo sensível junto às MVFC, para garantir o direito à informação e sua autonomia de escolha, ampliando seu senso de controle da situação. O estudo revelou que apesar das dificuldades e limitações trazidas pela doença, a experiência da maternidade e a relação com o filho/a trouxe motivação para o autocuidado, fornecendo esperança e novos sentidos de vida para as mulheres. 

As PVFC estão vivendo cada vez mais e, por isso, atentar para a parentalidade se torna indispensável para a atenção à saúde de modo integral. Apesar das ressonâncias entre os achados do estudo e a literatura quanto à experiência das MVFC, novas pesquisas ainda são necessárias para abarcar situações de maternidade com filhos mais velhos e entre mulheres em maior vulnerabilidade social. Dentre as limitações da pesquisa, destaca-se que as participantes do estudo tinham alta escolaridade e classe social, o que pode ter facilitado o apoio social e o acesso a saúde. Ainda, uma delas foi entrevistada muitos anos após o parto, o que pode ter influenciado os achados não apenas pelo viés de memória, mas por ter vivido outro momento quanto ao tratamento da FC. Assim, os achados da nossa pesquisa podem subsidiar ações de atenção integral à saúde das MVFC, além de apoiar intervenções para qualificar o cuidado em saúde. Entende-se que reconhecer o direito da maternidade de mulheres que vivem com FC deve ser o ponto de partida para um cuidado em saúde consoante as necessidades desse público, uma vez que ter filhos pode ser uma experiência que abre novos significados para a vida e o tratamento, se atrelando às estratégias de enfrentamento da doença.

Referências

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Agradecimentos

Agradecemos as mulheres que participaram desta pesquisa.