Revista de Psicologia, Fortaleza, v.15, e024021. jan./dez. 2024

DOI: 10.36517/revpsiufc.15.2024.e024021

 

 

 

RECEBIDO EM: 24/03/2024 

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 18/09/2024 

VERSÃO FINAL: 26/09/2024  

APROVADO EM: 04/11/2024  

 

“Acima de tudo, eu me acho bonita”: a estética no envelhecer de mulheres negras 

“Above all, I think I’m beautiful”: aesthetics in the aging of black women 

Polliana Teixeira da Silva

Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Escolar (PGPDE) da Universidade de Brasília (UnB), Brasília – DF, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0309-4175 E-mail: fraupolliana@gmail.com

Isabelle Patriciá Freitas Soares Chariglione

Professora no Instituto de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Escolar (PGPDE) da Universidade de Brasília (UnB), Brasília – DF, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8627-3736 E-mail: ichariglione@unb.br

 

Resumo 

A colonização classificou raças, também, a partir do corpo e da estética. Ao longo dos séculos, a estética negra foi desvalorizada, implicando sofrimentos psíquicos especialmente entre mulheres negras. Contudo, a literatura sobre o tema está majoritariamente circunscrita à população infantil, adolescente e adulta, apontando para uma lacuna na compreensão do diálogo entre estética, negritude e velhice. O objetivo do presente estudo foi analisar a forma como mulheres negras idosas atribuem significados à sua estética. Para isso, foram entrevistadas 11 mulheres negras residentes do Distrito Federal, de idades variadas entre 61 e 84 anos, sendo a média igual a 68,5 anos. Os trechos foram analisados sob a ótica da Análise do Discurso, originando duas categorias para a apresentação e discussão dos resultados: (1) a fuga da estética negra como tentativa de ascensão social: memórias da juventude; e (2) a velhice como momento de cura: a remediação de feridas estéticas coloniais. Notou-se que as percepções das participantes sobre a própria estética se modificaram com o tempo, apontando para a velhice enquanto um período de ressignificações de vivências, mediadas pelo contato constante com o contexto sócio-histórico onde o indivíduo se insere. 

Palavras-chave: Estética; mulheres; pessoas negras; envelhecimento. 

 

 

 

 

 

Abstract 

Colonization also classified races based on body and aesthetics. Over the centuries, black aesthetics have been devalued, resulting in psychological suffering, especially among black women. However, the literature on the topic is mostly limited to children, adolescents and adults, pointing to a gap in understanding the dialogue between aesthetics, blackness and old age. The objective of the present study was to analyze the way in which elderly black women attribute meanings to their aesthetics. To this end, 11 black women living in the Federal District were interviewed, aged between 61 and 84 years old, with an average of 68.5 years old. The excerpts were analyzed from the perspective of Discourse Analysis, originating two categories for the presentation and discussion of the results: (1) the escape from black aesthetics as an attempt at social ascension: memories of youth; and (2) old age as a moment of healing: the remediation of colonial aesthetic wounds. It was noted that the participants' perceptions of their own aesthetics changed over time, pointing to old age as a period of resignification of experiences, mediated by constant contact with the socio-historical context in which the individual lives. 

Keywords: Esthetics; women; black people; aging. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As mulheres negras no Brasil; isto é, todas aquelas identificadas enquanto pretas ou pardas (Brasil, 2010), tiveram o seu valor subjetivo ditado, ainda no século XVI, por aqueles que outrora as escravizaram. No início do período colonial, as mulheres negras eram vistas como essencialmente produtoras, trabalhadoras do campo e da casa-grande. Todavia, frente ao crescente número de mortes de pessoas escravizadas ao longo dos séculos, as mulheres negras adquiriam um novo status diante dos senhores de engenho: não eram mais vistas apenas como força laboral, mas também enquanto potenciais fornecedoras de mão-de-obra, impactando diretamente na subjetivação de mulheres negras no decorrer dos séculos (Nascimento, 2020; Nascimento, 2021). 

Ao alocar mulheres negras escravizadas enquanto potenciais fornecedoras de mão-de-obra, os colonizadores instauraram a prática sistemática de estupro dessa população. A fim de justificar a utilização de corpos femininos negros como “incubadoras de novos escravizados”, difundiu-se a crença de que mulheres africanas e afrodescendentes eram desregradas e, portanto, precisavam ser controladas (Gonzalez, 2020; Hooks, 1995; Nascimento, 2020). Hooks (1995) afirma que a cultura branca produziu uma iconografia de corpos de mulheres pretas e pardas, representando-as como altamente dotadas de sexo e sensualidade: a encarnação do erotismo desenfreado. 

Portanto, no transcorrer dos séculos, foi consolidada a imagem da mulher negra sensual (Gonzalez, 2020). Em outras palavras, mulheres pretas e pardas tiveram suas representações consolidadas dentro da esfera sexual: são dotadas de sexo e promíscuas, mas não são bonitas. Neste sentido, Braga (2021) compreende a beleza enquanto uma produção histórica, e sabe-se que a história do Brasil alocou mulheres negras como pessoas desprovidas de beleza, já que suas características físicas estavam diretamente relacionadas à posição de subserviência, fracasso e inferioridade introjetada (Carneiro, 2011).  

A classificação racial instaurada pela colonização é, também, de ordem estética e corporal (Fanon, 2020). O belo é branco, e, visando tornar-se belo, deve-se se aproximar dos padrões de beleza instaurados pela branquitude. Portanto, é indubitável que a formação brasileira operou na construção dos determinantes de gênero e raça como resultado de um sistema cultural escravocrata (Silva, 2023). A beleza transpõe a esfera biológica, e é compreendida através de lentes sociais – o que, em um país de feridas coloniais ainda abertas, significa a inscrição de diferentes privilégios ou desvantagens sociais, dependendo dos atributos presentes ou ausentes em determinados corpos (Oyěwùmí, 2021). 

Em suma, ao longo dos séculos, a estética negra foi desvalorizada e apagada de registros históricos, refletindo na percepção que mulheres pretas e pardas têm sobre si até os dias atuais. Desde a infância, meninas negras são ensinadas a violentar seus cabelos, a fim de minimizar a expressividade de seus traços (Queiroz, 2019), haja vista que o cabelo cacheado/crespo se apresenta como “o mais visível estigma da negritude” (Kilomba, 2019, p. 126). Essas agressões, que podem operar em níveis micro e macro durante todo o ciclo de vida, implicam menores índices de saúde mental e autoestima entre mulheres negras, as quais comumente relatam um sentimento de insatisfação com a própria estética (Ambrosio, Fonseca, Andrade, Sousa, & Silva, 2022; Martins, Lima & Santos, 2020; Queiroz, 2019). 

Aqui, faz-se fulcral pontuar que a prevalência de tais consequências é majoritariamente investigada entre a população infantil, adolescente e adulta. Ou seja, ainda que a comunidade científica tenha alcançado grandes feitos na sistematização do conhecimento acerca da influência do passado escravocrata na percepção estética de mulheres negras sobre si, não se pode afirmar que esses achados se aplicam à população geral. Isso porque, mesmo diante de um envelhecimento populacional acelerado, permanecem escassos os estudos brasileiros que tratam especificamente sobre os diferentes processos de subjetivação na velhice (Silva, 2023). 

Ao contrário do que foi pregado pela comunidade científica durante décadas, hoje o envelhecimento é defendido como um processo complexo, multifacetado, cultural, heterogêneo e, acima de tudo, propício para a elaboração de novos aprendizados e sentidos (Bernardo & Carvalho, 2020; Neri, 2012). Em outras palavras, tal etapa de vida, a qual anteriormente era encarada como uma mera sequência de perdas e déficits, atualmente ganha uma nova roupagem e é vista como um momento de perdas e ganhos concorrentes, como qualquer outro período do ciclo humano (Neri, 2013). 

Ante o exposto, entende-se que, na velhice, as pessoas seguem capazes de atribuir sentido às suas mais diversas vivências e, a partir disso, perpetuar ou romper com paradigmas que outrora compuseram seus cotidianos. Assim, não basta investigar a realidade de crianças, adolescentes e pessoas adultas e automaticamente inferir que os achados podem ser estendidos para a população idosa. Enquanto ciência comprometida com a emancipação de populações historicamente colocadas à margem da sociedade, a Psicologia deve atuar de forma justa, considerando a maneira como diferentes fenômenos são vivenciados pelas mais variadas populações. Dito isso, o objetivo do presente artigo foi analisar a forma como mulheres negras idosas atribuem significados à sua estética, buscando compreender se o avançar da idade pode influenciar na percepção dessas mulheres sobre sua estética e seus desdobramentos na vida cotidiana. 

Método 

Delineamento de Pesquisa 

O estudo se trata de uma pesquisa transversal e exploratória, visando observar fenômenos pouco abordados na literatura científica. Além disso, esta pesquisa parte do entendimento de que as participantes do estudo são protagonistas da construção do conhecimento científico. Portanto, o presente trabalho faz uso de um método qualitativo, oportunizando um aprofundamento nas relações determinantes da realidade social e suas complexidades (Araújo, Oliveira & Rossato, 2017). Este estudo advém da necessidade de melhor analisar o processo de atribuição de significados à estética de mulheres negras idosas, a partir dos dados coletados na dissertação de mestrado intitulada “inserir após a revisão por pares”, a qual objetivou investigar as representações sociais construídas por mulheres negras do Distrito Federal sobre seus respectivos envelhecimentos. A partir dos dados coletados no trabalho original, identificou-se a relevância do estudo da estética no envelhecer, haja vista a frequência que o assunto foi mencionado nas entrevistas, bem como a significância atribuída a este fenômeno nos discursos. O projeto original foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, sob o CAAE nº.: “inserir após a revisão por pares”. 

Participantes 

O presente estudo contou com uma amostra de 11 mulheres negras do Distrito Federal, com idades variadas entre 61 e 84 anos, sendo a média de idade equivalente a 68,5 anos. Dentre elas, duas são casadas, uma é separada judicialmente e oito são divorciadas. Além disso, oito possuem Ensino Superior completo e três estudaram até o 2º grau. De acordo com o Estatuto da Igualdade Racial (Brasil, 2010), a classificação racial “negra” inclui pessoas autodeclaradas pretas e pardas. Apenas uma participante se declarou parda, enquanto as demais se identificaram enquanto mulheres pretas. A fim de preservar suas identidades, foram utilizados nomes de deusas da beleza em diferentes culturas para representar as participantes do estudo. Tal escolha se deu visando colocá-las em posição de detentoras de belezas culturalmente reconhecidas, indo na direção oposta aos estereótipos e representações comumente atribuídas a essa população. As informações compiladas sobre as participantes podem ser conferidas na Tabela 1. 

Os critérios de inclusão foram ser uma mulher autodeclarada negra com 60 anos ou mais, residir no Distrito Federal e responder ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Excluíram-se da amostra todas as mulheres idosas negras que apresentaram algum problema visual, auditivo ou cognitivo que as impediu de responder à entrevista, bem como um quadro ansiogênico ou depressivo grave indicado por profissionais de saúde ou pela família, dada a sensibilidade do tema abordado. 

Instrumentos 

O instrumento principal da pesquisa original foi uma entrevista semiestruturada, constituída por cinco questões norteadoras: (1) o que é envelhecer para você?; (2) como é ser negra para você?; (3) você acredita que sua juventude enquanto mulher negra foi diferente da juventude de mulheres negras hoje?; (4) você sente que ser uma mulher negra impactou no seu envelhecimento?; e (5) como você espera que mulheres negras envelheçam hoje em dia? 

A escolha desse instrumento se deu porque, apesar de possuir um roteiro como base, as entrevistas permitem a emergência de outros conteúdos a partir do que está sendo discutido nos encontros. Conforme explicitado, nenhuma pergunta abordou especificamente o tema da estética. Todavia, muitas mulheres espontaneamente trouxeram suas percepções sobre tal fenômeno ao discorrer sobre as questões supracitadas, configurando um nicho a ser melhor explorado. Assim, a realização do presente estudo contou com trechos das entrevistas semiestruturadas realizadas no trabalho original, os quais mencionaram os significados atribuídos à estética no diálogo com o envelhecer. 

Procedimento Metodológico 

Os procedimentos foram organizados em duas etapas: (1) Recrutamento e Seleção, operacionalizada a partir da divulgação da pesquisa em um jornal importante da região e em redes sociais, até alcançar as participantes por meio de uma amostragem por conveniência e, posteriormente, de suas indicações, configurando um método “bola de neve”; e (2) a Entrevista, iniciada com a apresentação do TCLE, seguido pela aplicação de um questionário sociodemográfico e da entrevista semiestruturada individual. As entrevistas foram integralmente transcritas e, para a construção do presente artigo, foram selecionados os trechos relacionados à percepção sobre a estética no envelhecer de mulheres negras idosas. 

Análise de Dados 

Os trechos foram analisados sob a ótica da Análise do Discurso, abordagem em expansão para investigações científicas sobre a subjetivação de indivíduos nos diversos contextos sociais (Nogueira, 2008). Na Análise do Discurso, entende-se que os significados são construídos pelo diálogo entre sujeito e coletivo, e que o ser humano opera como porta-voz dos sentidos elaborados neste encontro. Neste sentido, a partir da adoção da Análise do Discurso no presente estudo, tornou-se possível identificar as relações semânticas nos discursos das mulheres entrevistadas, viabilizando um aprofundamento nos sentidos atribuídos pelas mesmas à estética no envelhecer. 

Resultados e Discussão 

Por meio da Análise do Discurso, foram identificadas duas categorias de análise como base para a apresentação e discussão dos resultados: (1) a fuga da estética negra como tentativa de ascensão social: memórias da juventude; e (2) a velhice como momento de cura: a remediação de feridas estéticas coloniais. Essas categorias serão apresentadas, discutidas e elucidadas pelas falas das participantes, contendo suas reflexões sobre estética, explorando a gama de sentidos construídos sobre diferentes facetas do fenômeno em análise. 

A Fuga da Estética Negra como Tentativa de Ascensão Social: Memórias da Juventude 

A discussão sobre estética e beleza não se restringe ao simples gosto ou desgosto de determinados traços físicos. Pelo contrário, debater valores estéticos e suas construções sociais perpassa pela compreensão do mundo ocidental enquanto um projeto colonial. Braga (2021) aponta para a emergência de dois polos opostos de beleza impostos pelo poder hegemônico escravocrata: (1) a beleza moldada pela moral e bons costumes, atribuída à mulher branca que, ao longo da história documentada do Brasil, foi alocada como a perfeita representação da mãe, esposa e dona de casa (Nascimento, 2021); e (2) a beleza objeto, conferida às mulheres negras, as quais ocupavam a posição de objeto de desejo e de fetiches sexuais de homens brancos, sendo vistas como “burros de carga” do sexo (Gonzalez, 2020). 

Essa classificação, reforçada pelo ideal de branqueamento, impôs uma gama de movimentações intrapsíquicas às mulheres negras brasileiras. Foi disseminada a crença de que, após a abolição da escravatura, o Brasil deveria embranquecer sua população em prol de uma suposta purificação étnica (Carone, 2014; Silva, 2023). Ou seja, espalhou-se que o ser humano ideal é branco, pois todos os adjetivos positivos estariam atrelados a essa identidade – inclusive, a beleza. Portanto, “a fuga da negritude é a medida da consciência de sua rejeição social” (Carneiro, 2011, p. 73). Neste sentido, é possível afirmar que a fuga da negritude acontece, também, no âmbito estético, conforme exposto pelas participantes do estudo. 

Mizael, Barrozo e Hunziker (2021) defendem que mulheres negras são estimuladas desde a infância a buscar diferentes procedimentos estéticos, na tentativa de reduzir a expressividade fenotípica de sua negritude. Muitas vezes, essa influência advém do próprio convívio familiar, isto é, de mães e pais que impulsionam suas filhas para este tipo de “cuidado”. Essa ideia foi corroborada pelas mulheres negras idosas entrevistadas que, ao revisitar sua juventude, citaram episódios ilustrativos desse desconforto com os próprios traços, nutrido dentro e fora de casa. 

Meu pai gostava de mulheres de cabelo comprido, e meio que ele sempre teve (uma mulher de cabelo comprido), até uma ruptura. Não de separação, mas uma vez minha mãe foi alisar o cabelo e ele caiu, e então teve um marco na relação deles: meu pai deixou de ir ao cinema com ela, essas coisas. Essa coisa de cabelo comprido, na nossa época, era coisa de mulheres brancas, né? Dificilmente o nosso cabelo vai ser comprido assim. (Afrodite) 

Eu sempre tive o cabelo bem crespo. Lembro como se fosse hoje: na minha formatura do ginásio, a minha mãe me fez usar uma peruca para ir à festa, à formatura. Eu usei uma peruca que estava muito em moda na época. Peruca para eu não ir com aquele cabelo crespo, aí minha mãe foi e alugou uma peruca no salão, e dizia “você tem que estar com o cabelo assim, porque esse cabelo seu não está arrumado, não fica bom” . . . Quando eu ia para algum lugar e tinha que estar bem arrumada, eu tinha que alisar o meu cabelo ou usar peruca. (Lada) 

Nesses discursos, pode-se observar que as microagressões cometidas contra mulheres negras estão presentes desde o início de sua trajetória – seja presenciando dinâmicas de poder envolvendo outras pessoas, seja vivenciando os efeitos diretos dessas mulheres, dentro ou fora do ambiente familiar. Nascimento (2020) afirma que a identidade negra brasileira é construída a partir de significados e representações de atores sociais, localizando-se no seio de grandes conflitos subjetivos herdados pelo passado escravocrata do país. Deste modo, cabe pontuar que, desde as primeiras etapas de desenvolvimento humano, já se inicia o processo de internalização de determinados símbolos perpetuados pelo sistema colonial. Abramowicz, Rodrigues e Cruz (2012) alegam que, aos quatro anos de idade, uma criança já passou por uma série de movimentações internas subjetivas, interiorizando preconceitos arraigados no imaginário social brasileiro. Não é por acaso que, após relatar ter presenciado essa transformação no relacionamento de seus pais, Afrodite mencionou: “Quando eu me lembro de ter alisado o cabelo na adolescência . . . Eu acho que foi mais uma vaidade de não querer parecer negra, né?” (Afrodite). 

Infere-se que, a partir das discriminações proferidas pelo próprio pai em relação à sua mãe, somadas às mais variadas outras violências que Afrodite pode ter presenciado ou vivenciado, emergiu a vontade, por vezes inconsciente, de fugir de sua própria negritude. Kilomba (2019) entende o racismo enquanto um fenômeno constituído por três pilares: (1) a construção da diferença; (2) a hierarquização da diferença; e (3) o poder. Segundo a autora, a branquitude foi definida como a norma social, construindo a diferença entre “eles” e “os outros” e, consequentemente, alocando todos aqueles que se diferenciavam desse padrão no patamar de seres inferiores, perpetuando seu poder histórico, econômico, social e político. 

Ambrosio (2020) defende que, para a população negra, não restou qualquer oportunidade de deslocamento do lugar de subalternidade sob o olhar das pessoas brancas. Todavia, entende-se que a fuga da negritude é internalizada como a única ferramenta para deixar de ser “o outro” e passar a ser visto como ser humano completo, ascendendo socialmente. Essa tentativa de embranquecer também foi exposta por outras entrevistadas: “Na minha época, a gente tinha que usar cabelo alisado, porque, se não, as pessoas achavam feio.” (Hator);  

A minha filha tem o cabelo pixaim feito o meu, e o cabelo do pai dela é muito liso. Aí, quando ela era criança, ela dizia “eu nasci com o cabelo da minha mãe, mas eu queria o cabelo do meu pai”. (Oxum) 

Entre esses relatos, há um elemento em comum: o cabelo. Sabe-se que o cabelo foi comumente associado à feminilidade ao longo dos séculos. Contudo, o cabelo cacheado ou crespo, tipicamente negro, tornou-se alvo da branquitude hegemônica (Kilomba, 2019). Isso porque a padronização estética do cabelo estabeleceu o cabelo liso e longo como o equivalente ao cabelo “bom” e “comportado”, por se aproximar dos cabelos observados entre a população branca. O discurso de Lakshmi aponta para as violências direcionadas aos cabelos diferentes do tal padrão: 

Quando eu era criança, o meu cabelinho, que não tinha como “tratar”, viveu na “trancinha”. E era uma trancinha que, na época, ninguém sabia organizar. Ninguém sabia organizar trancinha do jeito que se organiza uma trança hoje, então a trancinha ficava toda em pé, e eu vivia sendo chamada de “capeta” e “demônio”. (Lakshmi) 

Frente a isso, mulheres negras se deparam com episódios de dissociações de si e de sua identidade desde cedo (Ambrosio et al., 2022), implicando menores índices de autoestima e de qualidade de vida (Queiroz, 2019). Mas qual a finalidade dessa excessiva mutilação dos próprios cabelos? Diante de todos esses malefícios, será que existe algo percebido como um objetivo concreto a ser alcançado? O que se tenta alcançar, em termos de vida cotidiana, ao buscar embranquecer suas características físicas tipicamente negras? 

Ao analisar os padrões dos discursos aqui retratados, percebe-se que todas essas mulheres negras idosas expõem os desconfortos com seus respectivos traços físicos durante sua juventude. Mais especificamente, elas discorrem bastante sobre os impactos que a beleza tem nas esferas de trabalho e de relacionamentos amorosos – dois grandes polos da trajetória de desenvolvimento humano. No que tange ao diálogo entre estética, negritude e trabalho, percepções interessantes surgiram, conforme retratado: “Lá no serviço têm os homens, a mulherada, todo mundo pomposo, jovem, bonito, e eu aqui esmirrada, sabe? . . . . Eu era sempre esmirrada, alisava o cabelo, aquela coisa toda.” (Inanna). 

Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Serpa, 2024), apontam que, embora as mulheres negras sejam um grande quantitativo de força de trabalho do país, esta é a camada social que mais apresenta índices de desocupação ou subutilização laboral. O estudo indica que a taxa de mulheres negras desempregadas no último trimestre de 2023 equivale a 9,2%, enquanto a média nacional é de 7,4%. Segundo as entrevistadas, portar uma estética negra implicou enfrentar dificuldades nos ambientes de trabalho, as quais se iniciaram nos próprios processos de contratação vivenciados.  

O servidor público não sabe o que é uma entrevista de emprego . . . entre a ‘loirinha’ e a gente, (a empresa) vai escolher a outra, se a gente não estiver com o cabelinho bem arrumadinho, bonitinho, assim, educadinha, né? (Hator) 

Eu saí da entrevista toda feliz, né? Eu sabia que eu tinha feito uma boa prova ali. Falei ‘nossa, o emprego é meu’. Aí passou um dia e nada de telegrama, nada, nada, nada . . . Quando um dia, eu tinha uma entrevista no mesmo bloco e encontrei com uma menina branca que tinha feito aquela entrevista comigo, e ela disse “você acredita que eu fiquei com aquela vaga? Não sei como, mas eu fiquei! Foi sorte, porque minha nota foi baixíssima!”. Aí, na hora, mesmo sem entender a parte do racismo, eu pensei comigo “é alguma coisa errada comigo, né? É porque ela é bonita, né? E eu sou feia”. Pensei assim, sabe? (Hedone) 

Os discursos supracitados apontam para o fato de que, ainda que mulheres negras configurem uma parcela expressiva da força de trabalho brasileira, elas não ocupam os espaços de crescimento social e material no mundo laboral, sendo constantemente desqualificadas e retiradas de qualquer processo indutor de promoção social nesta esfera (Botelho & Costa, 2022). Vale lembrar que essa ideia se faz presente não apenas no mundo corporativo, mas também na esfera acadêmica, visto que, ao adentrar este espaço, pessoas negras presenciam tensões advindas dessa ocupação de espaço enquanto um movimento político, desencorajando sua permanência e ascensão (Maia, 2022).  

Não obstante, é perceptível a internalização de símbolos sociais discriminatórios nessa dimensão laboral, tendo em vista que as desigualdades relatadas não são entendidas pelas participantes como fruto de uma estrutura racista, mas sim, de qualificações meramente individuais. Somado a isso, há, também, a percepção sobre um suposto desprovimento de beleza na juventude, quando analisada sob a ótica dos relacionamentos amorosos. Em suma, observou-se que as participantes do estudo relataram experiências de preterimento e de desconfortos em certos ambientes onde a beleza é destacada. Ao rememorar suas vivências de estética e amor na juventude, as mulheres entrevistadas expuseram: “Um dia um amigo me apresentou para um outro cara, branco, e esse cara falou ‘essa mulher é bonita de corpo, mas é negra’.” (Atarte). 

Eu não namorava, eu não paquerava. Eu nunca queria ir à festinha, porque eu sempre achava que eu poderia ser a mais feia, a mais gordinha, baixinha, “bunduda”, e ninguém era assim. As referências que eu tinha eram as meninas que conviviam comigo, então eu mesma já me excluía das coisas, assim. (Freia) 

Meu pai era sócio do clube de negros; então, quando tinha alguma festa lá, aí a gente encontrava negros, aí eu era bonita. Fora isso, eu não era bonita, né? Fora isso, eu ia acompanhar minhas amigas nas festas, mas eu não dançava, ninguém me chamava para dançar. (Hator) 

Em um país construído a partir da dominação de identidades não brancas, os ideais de beleza possuem raízes históricas profundas e se pautam em ideologias racistas (Thomas & Vieira, 2019). Neste sentido, Fanon (2020) discorre sobre como mulheres negras são relegadas a um lugar de rejeição em âmbitos amorosos, visto que o ato de se relacionar com uma mulher negra em um país colonizado não representa uma ascensão social de quem as escolhe. Afinal, estabelecer um relacionamento amoroso com uma mulher negra nada mais seria do que caminhar na direção oposta à dignificação, isto é, ao branqueamento.  

Muitas mulheres negras empreendem esforços de embranquecimento estético a fim de receber alguma visibilidade afetiva (Fernandes, 2018). Contudo, é evidente que cabelos alisados e trajes descaracterizados não configuram uma transição racial, e nem alteram o cenário romântico-amoroso em que mulheres negras brasileiras se situam. Mizael et al. (2021) retratam que a falta de uma parceria romântica, o abandono e o preterimento afetivo-sexual são episódios comuns na trajetória de mulheres pretas e pardas no Brasil, indicando uma correlação entre a presença de determinados traços fenotípicos e as vivências de não ser escolhida no âmbito amoroso. 

Todos esses pilares aqui discutidos apontam para uma crença em comum manifestada pela amostra deste estudo: a de não ter sido “bonita o suficiente”, ou “branca o suficiente”, durante a juventude. Esse peso foi identificado na medida em que as participantes da pesquisa discorriam sobre suas adolescências e adultez. Na velhice, porém, os discursos são outros. 

A Velhice como Momento de Cura: a Remediação de Feridas Estéticas Coloniais 

Por muito tempo, as pessoas idosas foram compreendidas pela ciência sob o enfoque da improdutividade, da deterioração e da inutilidade frente às sociedades capitalistas, as quais valorizam a capacidade produtiva como fator central na vida daqueles que as integram (Silva, 2023). Ao longo de mais de 50 anos do século XX, a gerontologia mirava o envelhecer como um caminho oposto ao desenvolvimento humano (Neri, 2012). Entretanto, diante da emergência do envelhecimento, enquanto um fenômeno presente na maior parte dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, novas investigações vêm ganhando força, transformando a maneira como a velhice é entendida atualmente. 

Maia e Ferreira (2011) defendem que as modificações sociodemográficas ao redor do mundo contribuíram para que a velhice passasse a ser concebida não apenas como o acúmulo de anos vividos, mas também como um período de adoção de estratégias, habilidades e recursos para mediar os potenciais desafios e se adaptar à nova realidade. Não é por acaso que pesquisas recentes abordam a relação entre mudanças comportamentais, psicológicas e sociais associadas à velhice e aspectos culturais presentes na trajetória de desenvolvimento humano (Bernardo & Carvalho, 2020; Gao, 2021). Portanto, é fundamental abordar o envelhecimento como uma etapa de vida em que novos símbolos e significados são construídos de maneira dinâmica, complexa e multifacetada. 

Partindo desse entendimento, é coerente afirmar que as percepções relacionadas à estética de mulheres negras idosas podem ter se transformado no decorrer de suas vidas. Na primeira categoria de análise, discutiu-se o peso atribuído à beleza ao longo da juventude. Mas, ao serem indagadas sobre como elas mesmas se enxergam hoje, e como se sentem vistas pelo mundo exterior, as participantes elaboraram discursos em uma outra vertente: “Eu acho, assim, que pela minha idade, eu não estou muito caída, com o rosto com aquele semblante muito envelhecido . . . Então, eu acho que a pele negra, ela ajuda no envelhecimento, nesse sentido.” (Vênus); “Às vezes eu me encontro com alguns amigos, muitos brancos, e eles sempre dizem ‘nossa, você passou formol, né? Não envelhece nunca!’, e eu gosto disso.” (Lakshmi). 

Envelhecer sendo uma mulher negra impactou, sim. Impactou porque todo mundo fala que eu fiquei mais bonita. Todo mundo fala. Todo mundo diz que eu não envelheci. O meu envelhecimento, se você quer saber, está sendo mais bonito do que quando eu era jovem. Aparência mesmo. (Inanna) 

É notório que, desde os primórdios de sua subjetivação, a estética vem operando como um elemento central majoritariamente negativo na compreensão das participantes acerca de suas vivências. Todavia, esse cenário parece se alterar quando se atinge a velhice. Em outras palavras, muitas mulheres destacaram a aparência física como um aspecto positivo da interseção entre geração, raça e gênero. Como se, com o passar dos anos, seus traços inimigos se transformassem em aliados. 

Aqui, cabe a reflexão de que a maioria dos estudos referentes à relação entre estética, gênero e raça está circunscrita à investigação de experiências de pessoas jovens e adultas. Neste sentido, é evidente que há um peso maior atribuído às esferas relacionais e laborais nessas etapas de vida, visto que é na juventude e na vida adulta que os indivíduos começam a se constituir pelas vias do trabalho e dos relacionamentos românticos. Em suma, é na adultez emergente que os sujeitos fazem escolhas determinantes em âmbitos cruciais do curso de vida, tais como o amoroso e o laboral, visando integrar os interesses pessoais com as oportunidades disponíveis (Gobbo & Dellazzana-Zanon, 2023). Mas, na velhice, será que essas são as prioridades das mulheres negras? 

Silva (2023) aponta para o fato de que a maior parte dos estudos sobre negritude retrata as dificuldades enfrentadas por essa população, levando-se em conta o passado colonial ainda tão presente. Mesmo dentro da área do envelhecimento, sabe-se que as poucas pesquisas publicadas sobre o diálogo entre raça e geração também enfatizam os obstáculos vivenciados por pessoas negras idosas, haja vista o estudo de Rabelo et al. (2018). Entretanto, é imprescindível destacar que as participantes do presente estudo elucidaram a estética como um ponto positivamente significativo repetidas vezes. Isto é, apesar das vivências negativas relacionadas à percepção sobre beleza durante a juventude, uma parcela expressiva das mulheres negras idosas entrevistadas trouxe espontaneamente a beleza como um marco vantajoso de seu envelhecimento. E, ao discorrerem melhor sobre tal transformação de olhar, chama a atenção o discurso de Lakshmi: “Na minha época, não tinha as coisas boas e bonitas que têm hoje para a pele negra, para os cabelos negros, os vestuários.”. 

A mulher mais nova entrevistada para o presente trabalho tinha 61 anos de idade em 2022, tendo nascido no ano de 1961, ao passo que a mais velha, de 84 anos de idade, nasceu em 1938. Durante suas infâncias e juventudes, o Movimento Negro Unificado (MNU) passava por fortes repressões, as quais o impediram de retomar o ativismo pela igualdade racial até 1978 (Theodoro, 2014). Foi só a partir do final da década de 1970, então, que as demandas de reparação histórica negra passaram a ser lentamente sistematizadas e discutidas – período esse em que as mulheres negras entrevistadas já viviam experiências de busca por emprego, formação de grupos sociais, criação de vínculos afetivos, entre outras. Portanto, pode-se dizer que as participantes viveram muitos anos sem colher os frutos da batalha dos movimentos sociais, impactando diretamente na forma de ser e estar no mundo. 

Silva (2023) aponta que os movimentos negros exercem um papel fundamental na ressignificação da negritude em solo brasileiro. Isso pois uma das principais pautas do movimento negro é, de fato, fixar o conceito de “raça negra” a partir de um resgate positivo de toda a bagagem histórica e cultural dos ancestrais, almejando provocar mudanças tanto nos padrões simbólicos, quanto nos ideais estéticos impostos na colonização (Braga, 2021). Então, dentre as várias conquistas advindas das articulações dos movimentos sociais por igualdade racial, está, também, a valorização da estética negra. Sob esta ótica, Lada cita: 

Eu acho que as mulheres negras de hoje, elas mesmas se colocaram em uma posição onde elas se valorizam mais, enfrentam melhor a discriminação do que na minha época . . . . Elas se aceitam melhor, né? Você vê? Antigamente, as mulheres negras alisavam o cabelo, passavam um monte de coisa, não se aceitavam. Hoje, a juventude negra, preta, ela se aceita como ela é, entendeu? (Lada) 

Percebe-se, então, que as próprias entrevistadas reconhecem a transformação na percepção de pessoas pretas e pardas no que diz respeito à estética negra. Em outras palavras, as participantes do estudo, agora idosas, identificam mudanças significativas na sociedade, as quais culminaram em um outro tipo de relação estabelecida entre negritude e estética – tanto para a população jovem, quanto para elas mesmas. 

Tal fato remete à discussão sobre as potencialidades da velhice enquanto etapa de desenvolvimento humano em constante diálogo com aspectos culturais e sociais, compreendendo que pessoas idosas participam plenamente de assuntos referentes às mais diversas esferas da sociedade (Saad, 2016). Isto é, as mulheres negras idosas aqui entrevistadas acompanharam a história viva da luta racial no Brasil e participaram ativamente dessas transformações, ressignificando suas vivências e percepções por meio dessa relação entre o passar da idade e essas movimentações. Na velhice, portanto, novos significados foram criados no que tange à estética, frutos das possibilidades presentes no envelhecimento enquanto etapa de vida complexa e multifacetada. 

Assim, emerge o questionamento: essa nova percepção de estética se deu por conta dos avanços da militância racial? Por meio do contato com uma parcela da nova juventude negra, que estabelece outra relação com seus respectivos traços fenotípicos? Pela representatividade nas mídias e indústrias, que atualmente fabricam produtos específicos para cabelos, peles e corpos negros? Pelo próprio processo de envelhecimento, que pode implicar um senso de libertação de padrões estéticos socialmente impostos às mulheres jovens? 

Essa é uma questão que permanece em aberto, visto a escassez de estudos que investiguem especificamente a realidade senescente no Brasil. Todavia, cabe observar que, aparentemente, há a remediação de uma ferida colonial no envelhecimento. Pode-se dizer que as participantes do presente estudo se empoderam na velhice, considerando o empoderamento enquanto um exercício de resistência que reduz barreiras sociais e possibilita um maior controle sobre os recursos materiais e simbólicos de vida (Alves, Jesus & Murta, 2022), ampliando o bem-estar dessas mulheres negras idosas em relação à sua própria estética. 

Em um de seus célebres ensaios, Hooks (2019) defende que “amar quem somos começa com a compreensão das forças que produziram quaisquer hostilidades que sentimos em relação à negritude e a ser mulher, mas também significa novas formas de pensar sobre nós mesmos” (p. 124). E, no que se refere à estética, é possível afirmar que essas mulheres se movimentam na direção de ressignificar suas respectivas vivências conjugadas de gênero, geração e raça, passando a olhar para si mesmas com mais carinho. Não é por acaso que, no fim de sua entrevista, Gea sintetizou o que foi exposto até aqui ao relatar: “Eu sou uma pessoa que, acima de tudo, eu me acho bonita.” (Gea). 

Considerações Finais 

O presente estudo buscou elucidar a velhice enquanto etapa de vida igualmente relevante para as investigações científicas. Conforme explicitado anteriormente, é notório que a maior parte dos estudos sobre desenvolvimento humano se circunscrevem à camada infantil, adolescente e adulta, implicando a percepção de que esses achados automaticamente se aplicam à realidade da população idosa, quando, na verdade, pessoas idosas configuram uma camada social com características e potencialidades próprias inerentes a esse momento de vida. 

Não obstante, para além de reconhecer a velhice enquanto uma configuração única de experiências, é essencial compreender a singularidade desse processo, dependendo de quem o vivencia. Ao se considerar toda a trajetória das pessoas negras no Brasil desde o século XVI, entende-se que práticas de preconceito e discriminação seguem em voga em território nacional, tornando árdua a emancipação e equidade do povo brasileiro – fato esse que pode ser evidenciado na literatura, considerando-se o quantitativo expressivo de pesquisas acerca do sofrimento negro no Brasil. Todavia, é a partir das pesquisas específicas sobre envelhecimento humano que se torna possível descobrir as ressignificações que pessoas negras idosas podem construir com o avançar da idade. 

Sabe-se que a liberdade propriamente dita ainda é recente para pessoas pretas e pardas brasileiras, especialmente para aquelas socializadas como mulheres. Talvez o século XXI seja o primeiro momento histórico em que mulheres negras têm a possibilidade de olhar com mais carinho para si, mesmo que sua vida pregressa tenha sido marcada por sentimentos negativos em relação à própria negritude. As mulheres negras idosas aqui entrevistadas vivenciaram transformações intensas na sociedade durante seus mais de 60 anos de vida, desde o contato com pessoas da família, que até pouco tempo eram escravizadas, até o surgimento do movimento negro e a ascensão dos debates sobre equidade racial no Brasil. Ao atingirem a velhice, as participantes do presente trabalho podem estar configurando a primeira camada negra feminina capaz de usufruir não apenas de deveres, mas também de direitos. E qual o peso revolucionário dessa constatação? 

Ante o exposto, cabe afirmar que este relato de pesquisa avança não apenas na discussão sobre a velhice enquanto uma etapa de vida relevante, como também no debate sobre os diferentes elementos presentes nas variadas velhices. Estudar a população negra brasileira é, antes de tudo, reafirmar o compromisso ético da Psicologia enquanto ciência que busca promover autonomia, liberdade e emancipação das populações estruturalmente marginalizadas. Deste modo, espera-se que, a partir das ideias aqui apresentadas, novos horizontes possam ser vislumbrados na pesquisa acadêmica, incentivando demais estudos que se comprometam com esses fenômenos tão caros para a vida humana. 

 

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