Revista de Psicologia, Fortaleza, v.15, e024024. jan./dez. 2024
DOI: 10.36517/revpsiufc.15.2024.e024024
RECEBIDO EM: 23/04/2024
PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 30/10/2024
VERSÃO FINAL: 07/11/2024
APROVADO EM: 14/11/2024
Sobre o Impossível da Identidade Sexual: Considerações sobre a Angústia, o Real e o Gozo
On the Impossible of Sexual Identity: Considerations About the Anguish, the Real and the Enjoyment
Paula Affonso de Oliveira
Psicóloga do Instituto Federal do Pará (IFPA) - Pará, Brasil. Doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (PPGP/UFPA), Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0209-1551. E-mail: paulaoliveira.psi@gmail.com. Endereço: Passagem João de Almeida, 93, Cep 66055-290.
Ronildo Deividy Costa da Silva
Docente do Centro Universitário Fibra – Pará, Brasil. Doutor e em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (PPGP/UFPA), Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0120-4577. E-mail: ronildosilva010@yahoo.com.br.
Resumo
O presente artigo procura articular o percurso da angústia em Freud e Lacan às teorias queer e enquanto elemento disruptivo das práticas discursivas que tratam a sexualidade como um campo de determinação de identidades. A angústia, na leitura psicanalítica, é o sinal da presença do desejo do Outro enquanto Real, desvelando a sua inconsistência, sendo esse o perigo ao qual a angústia remete, o da perda dos limites do sujeito, pois o Outro não lhe oferece garantias. Nesse sentido, propõe-se pensar que ao se defrontar com as sexualidades que recusam a norma em um contexto civilizatório caracterizado pela hegemonia de uma gramática heteronormativa, a angústia surge como um afeto capaz de operar um rompimento dos processos sociais que promovem uma sustentação identitária dos indivíduos, indicando a presença de um Real inassimilável pela cultura que aponta não somente para o caráter sempre precário das identidades humanas mas, sobretudo, para a dimensão de impossível presente nos roteiros sexuais.
Palavras-chave: Angústia; teorias queer; real, identidade; psicanálise.
Abstract
This article aims to articulate the problem of the anguish in Freud and Lacan with the queer theories as a disruptive element to the discursive practices that treat sexuality as a field of identity determination. Anguish, in the psychoanalytic concept, is the sign of the presence of the Other’s desire as Real, revealing its inconsistency, being that the danger to which anguish refers, the loss of the subject’s limits, as the Other offers him no guarantees. In this sense, it is proposed to think that when confronted with sexualities that refuse the norm in a civilizing context characterized by the hegemony of heteronormative culture, anguish emerges as affect capable of operating a rupture of the social processes that promote identity support for individuals, indicating the presence of an inassimilable real in the culture, witch points not only to the always precarious character of human identities but, above all, to the impossible dimension present in sexual scripts.
Keywords: Anguish; queer theories; real; identity; psychoanalysis.
A psicanálise tem um importante papel na discussão sobre as “novas” sexualidades, ao propor uma leitura da constituição da subjetividade a partir da singularidade e da diferença, sem dissociá-la dos fenômenos históricos, políticos e sociais. Desde os primeiros textos freudianos sobre o tema, a sexualidade foi desnaturalizada, descolada do instinto e da necessidade biológica de reprodução e compreendida pela via do pulsional, tornando a psicanálise uma teoria fundamental para as produções feministas, de gênero ou queer que buscam pensar novas torções neste debate.
Contudo, o emprego da psicanálise por estas teorias ainda não alcançou consenso. Não raro, analistas levantam questionamentos acerca da relevância destas discussões para a produção psicanalítica. Diante deste profícuo, porém tenso campo de debate é preciso escutar a indagação que essas teorias direcionam à psicanálise: afinal, a psicanálise permite o reconhecimento da alteridade, com as sexualidades abjetas e/ou dissidentes, ou é uma prática normalizante? A práxis psicanalítica acompanha as mudanças sociais ou se constituiria em um saber ortopédico?
O diálogo interdisciplinar da psicanálise com os movimentos feministas e de gênero não é recente, e iniciou ainda com a leitura crítica dos textos freudianos empreendidas por feministas norte-americanas e francesas. Mas foi a partir da década de 1960 que este diálogo recebeu novos contornos, por um lado devido ao fortalecimento do movimento que convencionou-se chamar de feminismo francês – fortemente marcado pelo diálogo entre a psicanálise (Freud e Lacan), Jacques Derrida e o pós-estruturalismo (Cossi, 2020) – e por outro, pelo estabelecimento dos seminários lacanianos e sua retomada do texto freudiano a partir dos registros do Simbólico, do Real e do Imaginário.
Algumas décadas mais tarde, com a crescente organização dos sujeitos em torno de movimentos sociais e a formulação de críticas às visões essencialistas das identidades de gênero, as Teorias Queer consolidaram-se em uma posição de êxtimo aos estudos feministas da primeira e segunda ondas, questionando seu essencialismo, sua heteronormatividade e seu binarismo. Para as autoras queer, além de fornecer uma leitura da constituição da subjetividade, a teoria psicanalítica pode indicar um meio para pensar os processos de sujeição e resistência a um simbólico falocêntrico.
Uma psicanálise coadunada com os estudos queer necessitaria, portanto, reconhecer os limites do sujeito identitário. Nesse sentido, o feminino surge como um conceito fundamental: termo polissêmico, remete, na obra freudiana, ora aos polos opostos de passividade (feminino) e atividade (masculino) presentes no psiquismo, ora à sexualidade feminina adulta calcada no conceito de feminilidade. Conceito que foi sendo paulatinamente deslocado, tornando-se central para pensar o limiar da diferença que produz infamiliaridade e angústia – talvez por desvelar os limites e possibilidades de uma leitura da singularidade –, encerrando a diferença em si e emergindo como um dos caminhos para pensar a alteridade.
Justamente por isso, considera Arán (2009) o feminino foi perscrutado pelos saberes médicos, sociais e políticos ocidentais ao longo dos séculos, numa tentativa de exclusão e apagamento. Freud (1922/2013) inclusive interpreta o genital feminino como associado ao horror, retomando a metáfora da cabeça da medusa que paralisa os homens que se atrevem a olhar diretamente para ela. Mas este não seria também o destino de todos os corpos que recusam as determinações simbólicas e imaginárias que recobrem os corpos postulados como “normais”?
Em tempos de políticas calcadas na identidade e cerceamentos cada vez maiores das experiências fora da norma, a discussão queer vem resgatar o potencial subversivo dos sujeitos marginalizados, por meio do questionamento acerca da fragilidade das construções identitárias e das potencialidades presentes em pensar uma política que não seja mais calcada na diferença sexual.
Nesse sentido, este trabalho busca tecer uma leitura das contraposições entre as noções de identidade e de abjeto a partir dos conceitos de angústia (Freud, 2014; Lustoza, 2006) e objeto a (Lacan, 2005a). A aposta aqui é que com a formulação do objeto a e sua implicação para o sujeito desejante, a sexualidade passa a ser marcada por um campo Real de indeterminação e construção cambiante que, na presença do abjeto, faz emergir a angústia.
Sexualidade, Multiplicidade e Indeterminação: os Estudos Queer
As teorias queer ganham força no final da década de 1980 e são assim nomeadas – no plural – por não proporem uma unificação teórica, mas sim a abertura para a pluralidade e a diferença. Amparadas em um paradigma ético, político e estético de apropriação e de subversão linguística, estas teorias buscam questionar a centralidade que a identidade tomou no debate sobre a sexualidade, como afirma Morton (2002, p. 121, tradução minha): “Ser gay [e poderíamos acrescentar aqui, ser mulher, em algumas vertentes do movimento feminista] é ter uma simples identidade; ser queer é entrar e celebrar o espaço lúdico de uma indeterminação textual”.
A própria nomenclatura escolhida para nomear o movimento já aponta para seu caráter de subversão: a palavra queer, traduzida livremente do inglês como estranho, bizarro, passou a ser empregada em meados de 1920 como uma designação pejorativa para homens homossexuais, sendo posteriormente retomada por estas teorias como uma celebração da diversidade sexual e da reivindicação de espaços centrais nos debates acadêmicos e políticos para estes corpos que sempre foram marginalizados.
Nesse sentido, as teorias queer questionam não somente as normas heterossexuais e identitárias que regem o debate político, mas também os próprios movimentos sociais que, na busca por garantia de direitos, acabaram sujeitando-se à estas normas. Butler (2017, p. 108) ressalta como o “aparelho jurídico produz o campo de possíveis sujeitos políticos” e, ao produzi-los transforma-os em “sujeitos do Estado”, criando assim um paradoxo: na tentativa de incluir-se como grupo legítimo na garantia de direitos, minorias (re)produzem gramáticas normativas ancoradas em uma lógica identitária e ontologizante, excluindo e marginalizando aqueles sujeitos que recusam a identificarem-se com uma norma que ainda é a da diferença sexual.
Não basta, nesse sentido, declarar-se mulher, LGBT ou negro, é preciso realizar uma crítica radical, rompendo com qualquer política calcada em uma noção de identidade mais ou menos bem fixada e em uma sexualidade organizada de forma normativa, propondo enfim, uma celebração das sexualidades plurais e dissidentes. Não se trata aqui de questionar a importância da luta por garantia de direitos, mas de entender que enquanto estas lutas estiverem calcadas em uma identidade que pretende ser unificada haverá sempre uma massificação dos corpos e, portanto, a exclusão da pluralidade (Preciado, 2011).
A aposta, então, dos estudos queer é de recusa ao essencialismo, empregando a desnaturalização e a desconstrução como principais instrumentos analíticos. Não somente o gênero deve ser pensado dessa forma, mas o sexo também, pois não há elemento natural ou biológico a priori. O que entendemos como natural é antes significado culturalmente, surge de uma inscrição cultural, política e, principalmente, jurídica, que legisla sobre os corpos determinando quais sexos serão estabelecidos e quais performances serão esperadas destes.
A “sexualidade normal” é efeito de um conjunto de estratégias e discursos utilizados para forjá-la e a sua própria reprodução como se fosse natural é fruto de discursos hegemônico que impõem limites aos corpos a partir de estruturas dicotômicas. Os sujeitos são atravessados por estes discursos, em um constante movimento de sujeição e assujeitamento, mesmo que inconscientemente, a estas normatizações (Butler, 2017).
É neste campo de discursividade sobre o sexo que se constrói uma concepção de sexualidade calcada em termos binários, na qual prevalece a heteronormatividade: a concepção de que vivemos em uma sociedade pautada por uma linearidade entre sexo, gênero e orientação sexual; com a heterossexualidade como caminho natural para os sujeitos:
O sistema heterossexual é um aparato social de produção de feminilidade e masculinidade que opera pela divisão e fragmentação do corpo: recorta órgãos e gera zonas de alta intensidade sensória e motriz (visual, tátil, olfativa...) que depois identifica como centros naturais e anatômicos da diferença sexual (Preciado, 2017, p. 22).
A pretensa naturalidade que sexo e gênero adquirem em nossa cultura tomariam o contorno de meras performances, como nomeia Butler (2013), isto é, produções e reproduções heteronormativas reiteradas ao longo do tempo a ponto de serem tomadas como naturais, como uma essência de gênero:
Nesse sentido, o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero. [...] não há identidade de gênero por trás das expressões do gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias “expressões” tidas como seus resultados (Butler, 2013, p. 48, grifo da autora).
A noção de que há um sexo real ou natural não se sustenta para esta autora, mesmo entre sujeitos cisgêneros, pois estes são sempre conjuntos performativos esperados e reificados socialmente. Estes corpos, é preciso ressaltar, não são somente discursos, ganham materialidade em suas performances, recebendo um peso, uma atribuição e um lugar a partir de como se posicionam – ou são posicionados – nesta gramática (Butler, 2019).
Neste cenário, abrem-se dois caminhos: os corpos que importam, que se organizam a partir das normas de gênero estabelecidas, e os corpos ininteligíveis e marginalizados, que não importam e, por isso, não adquirem materialidade e são constantemente invisibilizados, ocupando o lugar vazio destinado aos corpos abjetos.
Importante destacar, no entanto, que em nenhum momento o abjeto refere-se somente aos corpos fora de uma norma heterossexual, ou mesmo que todos os sujeitos marginais à norma sofrem pela exclusão social. Butler, em entrevista posterior indica a dificuldade de definição do termo em função de sua amplitude e do risco quase constante de que a mera nomeação destes corpos enquanto tal possa produzir uma normatização:
Entretanto, prevenindo qualquer mal-entendido antecipado: o abjeto para mim não se restringe de modo algum a sexo e heteronormatividade. Relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas 'vidas' e cuja materialidade é entendida como “não importante” (Prins & Meijer, 2002, pp. 161-162).
Abjetos seriam justamente os sujeitos alijados do campo do ser, ontologicamente destituídos – que no campo da sexualidade emergem como os que recusam uma estrutura identitária rígida. Estes, até pelo efeito que produzem, se apresentam enquanto potências políticas, estéticas e/ou éticas.
São corpos que apesar de – ou justamente por – desafiarem as normas provocam repúdio e exclusão, mas também possíveis aberturas. Por isso, a temática do abjeto entrelaça-se com a psicanálise no campo da angústia e do objeto a. Se estes sujeitos encarnam a angústia do outro frente ao indeterminado é porque desvelam a própria falência do indivíduo consciente de si e apontam para o sujeito cindido da psicanálise.
O Percurso da Angústia em Freud
Mas afinal, o que desperta o abjeto que causa uma espécie de repulsa? Seria possível tecer uma relação entre essa rejeição social e o abjeto por meio da leitura sobre a angústia e o objeto a? Partindo desses questionamentos, faz-se necessário esboçar algumas considerações pontuais acerca do caminho da angústia de Freud à Lacan – do efeito do recalque ao “não é sem objeto” (Lacan, 1962-1963/2005a, p. 113) –, destacando a sua produção identitária e o que pode nos dizer sobre o sexual.
Este tema está presente na obra freudiana desde os primeiros escritos psicanalíticos. Partindo de um esforço para fornecer uma análise sobre o que denominou de neuroses de angústia, Freud (1985/1996) distingue o que seria a produção da angústia – um afeto temporariamente despertado por um componente exógeno – da neurose de angústia, uma resposta somática crônica a um estímulo endógeno.
Freud (1985/1996) dedica-se neste texto ao estudo da neurose, descrevendo-a pela dimensão econômica, na qual a angústia teria uma origem sexual: quando não há liberação da energia sexual física e um certo quantum de tensão sexual acumula no organismo, há a descarga desta energia sem que se ligue a uma representação psíquica, o que definiria a angústia. Esta seria, portanto, física e não psíquica, demonstrando uma prevalência somática às custas, na neurose de angústia, de um empobrecimento da vida psíquica.
Posteriormente, conforme o caminhar de suas teorizações, a dimensão dinâmica torna-se mais prevalente, com o enquadre da angústia a partir do conflito entre instâncias psíquicas – sem nunca perder de vista o componente econômico de aumento e descarga da energia libidinal.
Considerando já a sua origem psíquica, a angústia aparece vinculada ao recalque. Qualquer representação contrária ao princípio de prazer resultaria em um conflito psíquico no qual o recalque atuaria como defesa do aparelho para afastar o desprazer advindo da manifestação consciente da representação (Freud, 1915/2010). Nesse sentido, a angústia seria um dos destinos do afeto transformado após o recalcamento, que seria mais aceitável psiquicamente do que o desprazer gerado por tal manifestação.
Contudo, se há em Freud um texto central sobre o tema é, sem dúvida, Inibição, sintoma e angústia, publicado em 1926. Há neste uma passagem fundamental que renova o estudo da angústia, decorrente da análise dos traumas ocasionados pelas neuroses de guerra e da consequente elaboração do conceito de pulsão de morte: de efeito do recalque, a angústia torna-se sua causa:
O problema de como surge a angústia na repressão pode não ser simples; mas temos o direito de nos apegar à ideia de que o Eu é a genuína sede da angústia, e de rejeitar a concepção anterior de que a energia de investimento do impulso reprimido é transformada automaticamente em angústia. Se antes me expressei desse modo, forneci uma descrição fenomenológica, não uma exposição metapsicológica (Freud, 1926/2014, p. 22)
A angústia permanece como afeto, contudo, não é mais o recalcamento da representação ao qual estava originalmente ligada que deixa a angústia como energia de livre circulação. Após 1926, esta indica um sinal de perigo para o Eu, produzindo, em situações traumáticas, o recalcamento. O Eu aparece como a sede da angústia. Freud (1923/2011) define esta instância como uma superfície corporal do aparelho psíquico que se tornou diferenciada do Id por sofrer uma organização, mas mantém a sua mesma fonte de energia.
Este sinal remeteria, segundo Freud (1926/2014), a uma angústia primordial e originária, cujo protótipo seria o trauma do nascimento, no qual o recém-nascido é pela primeira vez exposto a um aumento exponencial de excitação. As manifestações posteriores, estariam relacionadas a estados de desamparo frente a estas excitações traumáticas.
O perigo da perda de objeto, ou a sua rememoração, atualizaria estes traumas primordiais. Diante de novas experiências ameaçadoras de perda de objeto, a angústia circularia e, como defesa, o Eu operaria o recalque do conteúdo ameaçador. Nesse caso, o sintoma aparece como uma formação de compromisso para evitar o seu surgimento.
Retomando o caso de fobia do Pequeno Hans e o medo de ser devorado no Homem dos Lobos, Freud (1926/2014) conclui que a angústia não advém do afeto desligado no processo de recalcamento, mas da própria instância repressora, o Eu. A fobia é a neurose paradigmática para análise por permitir desvelar o funcionamento da angústia de castração, que ressignifica a posteriori todas as vivências já sofridas pelo sujeito.
A castração surge, por conseguinte, enquanto a principal fonte de atualização da angústia, sendo componente condutor da neurose para o sujeito, tanto nas manifestações histéricas quanto obsessivas. O complexo de castração, descrito como o dano narcísico por perda corporal ligado ao genital, decorre da fase fálica, cuja principal característica é a fantasia da existência de apenas um sexo. Nessa fase não há uma primazia genital, como ocorrerá na vida adulta, mas a primazia de somente um genital, o pênis, descrita como um primado do falo.
É justamente por essa primazia que o menino é introduzido no complexo edípico: o menino tem a mãe como objeto de desejo, contudo, ao perceber a ausência do pênis nas mulheres, teme pela integridade de seu órgão, experimentando a angústia de castração; é pelo temor de sofrer esse dano narcísico que ele abandonará a mãe enquanto objeto sexual e identificar-se-á com o pai.
A castração traz consigo o medo da perda de amor do objeto, fornecendo uma representação para esta angústia, traduzida na formulação de que a perda do genital iguala-se a perda de amor. O risco pulsional de fragmentação interna corporal presente nesta primária angústia infantil é substituído então por uma falta externa e localizável. Contudo, o falo somente adquire uma potência imaginária a partir de sua ligação com a castração e seu valor não é adquirido pela presença do mesmo, mas a partir do momento que passa a representar a falta.
É interessante acrescentar aqui que para Freud a castração enquanto fato real, marcado no corpo, aparece no mito de Totem e tabu (Freud, 1913/2012), quando o pai primevo realmente emascula seus filhos homens e os expulsa da horda primitiva. A angústia de castração infantil é uma fantasia filogenética atualizada na ontogênese via complexo edípico e amparada pela mínima diferença corporal relacionada à posição do sujeito perante a interdição do incesto.
Angústia, Falta e Objeto a: Leituras Lacanianas
A temática da angústia é retomada por Lacan (1962-1963/2005a) em seu Seminário 10 – A angústia, quando constrói uma nova abordagem da mesma a partir do retorno ao texto Inibição, sintoma e angústia. Este seminário torna-se emblemático para desenvolvimento da teoria lacaniana, devido à formalização do objeto a e à discussão elaborada em torno do registro do Real, que posteriormente levam Lacan a declarar – não sem um fundo de exagero – que o conceito de objeto a foi sua única contribuição genuína para a psicanálise.
Para enquadrar o tema da angústia, afirma Lacan (1962-1963/2005a), é preciso retomá-la em sua relação fundamental com o desejo do Outro, pois a angústia é sinal do reconhecimento deste desejo. Analisando a constituição do sujeito, é no momento da inscrição simbólica, no qual o sujeito é cindido a partir da inscrição de uma marca significante, que um resto sobra, nomeado de objeto a:
Em relação ao Outro, o sujeito dependente desse Outro inscreve-se como um cociente. É marcado pelo traço unário do significante no campo do Outro. Não é por isso, se assim posso dizer, que ele corta o Outro em rodelas. Há, no sentido da divisão, um resto, um resíduo. Esse resto, esse Outro derradeiro, esse irracional, essa prova e garantia única, afinal, da alteridade do Outro, é o a (Lacan, 1962-1963/2005a, p. 36).
Este resto não recoberto pela imagem especular é justamente a causa da angústia, sendo o resultado da incidência do Outro sob o ser em uma operação de divisão que funda o sujeito, apresentada por Lacan (1962-1963/2005a) no Seminário 10. Inicialmente há um primeiro tempo, ainda mítico, o campo do ser, onde ainda não há sujeito e, portanto, não há operação divisiva, apenas um gozo que desconhece o Outro.
Com a introdução no Simbólico e o banho de linguagem, o Outro incide sobre o ser, dividindo-o, estabelecendo assim um segundo do tempo da operação: a cisão do sujeito. Desta, cai um resto, que é nomeado por Lacan (1962-63/2005a) de objeto a. É preciso ceder algo, diz-nos Lacan, para ter acesso ao Simbólico: este é segundo tempo, o tempo da angústia, da falta do Outro que introduz o Outro barrado. Esse Outro lacaniano não é completo, coeso e coerente, mas um Outro que falta, e esta insere o sujeito na estrutura como sujeito também barrado.
No terceiro tempo temos, enfim, o resultado da operação subjetiva de divisão, no qual o sujeito barrado emerge, subtraído de seu objeto a, que vai se constituir no lugar do Outro. Este é o tempo do desejo, marcado pela falta e pelo desconhecimento deste resto que cai e que permanece sempre na condição de enigma para o sujeito e de única garantia da alteridade do Outro.
A angústia, nessa fórmula, é sinal da presença do desejo do Outro. Esse é o perigo ao qual a angústia remete: o da perda dos limites do sujeito, não da perda do objeto, pois o objeto a, afinal está desde sempre perdido. Lustoza (2006) indica que neste seminário são descritos três registros do Outro, o Imaginário, o Simbólico e o Real: o desejo do Outro no plano Imaginário diz respeito a não identidade do sujeito, fadado a se identificar com o outro; no simbólico, tem a função de fornecer as diretrizes para a estruturação do Imaginário. Nesses dois registros o sujeito se oferece como tamponamento da falta do Outro.
O desejo do Outro enquanto Real, que estaria em jogo na angústia, desvela a inconsistência do Outro. É nesse sentido que a angústia remete a perda dos limites do sujeito, pois o que ela nomeia é justamente que este Outro não oferece garantias ao sujeito, pelo contrário, apenas revela sua contradição (Lustoza, 2006).
É por não existir um saber sobre a falta que a angústia surge sob a forma de um enigma para o sujeito: “che vuoi?”. O que queres de mim?, questiona o Outro, indicando a presença de um desejo destinado a nunca ser satisfeito (Lacan, 1958-1959/2016, p. 24). O momento da angústia é, como nos fala Lacan (1962-1963/2005a), o momento em que a falta falta, isto é, quando há a presença de um objeto no lugar destinado à castração, no lugar de um objeto a que deveria faltar. Logo, o que faz o sujeito recuar é a possibilidade de positivar sua castração, fazer dessa o que falta ao Outro.
Nesse sentido, temos a sua implicação para o corpo: a constituição do sujeito prevê uma constituição corporal imaginária iniciada pela introdução no campo da linguagem. Nesse processo de recobrimento do corpo próprio, algo se perde, um resto, precisa cair do ser para que se constitua enquanto sujeito. É este resto que reaparece no lugar previsto para a falta, produzindo angústia no sujeito, justamente por não poder mais ser incorporado ao corpo, por não ser mais especular, visto ser da ordem do Real. Segundo Lacan (1962-1963/2005a, p. 184), é o jogo entre angústia e objeto que desvela o sujeito enquanto Real: “nessas estruturas denuncia-se a ligação radical da angústia com o objeto como aquilo que sobra. Sua função essencial é ser resto do sujeito, o resto como real”.
O a aparece como um objeto que antecede o próprio corpo na constituição do sujeito, um pedaço destacável que, no entanto, veicula algo da identidade do mesmo. O objeto a circunscreve, portanto, uma hiância entre gozo e desejo, posto que para o desejo é preciso contornar o corpo, ultrapassar sua fantasia, e se reencontrar com o impossível da satisfação. Nesse sentido, a mulher aparece como mais angustiada que o homem justamente por não estar tão relacionada à castração, visto que sua falta é corporal e a sua entrada no Édipo já depende do reconhecimento desta.
Logo, o que se destaca no texto lacaniano é que se a falta é simbólica, do significante, a angústia não se circunscreve a este campo, é da ordem daquilo que não engana. O afeto que não é sem objeto vincula-se a um Real inassimilável o qual o simbólico não recobre, fazendo furo no significante. O Real denuncia tanto a incompletude da fantasia imaginária quanto a precariedade da suposta eficácia do simbólico.
Se a fantasia surge como estrutura que visa tamponar a falta do Outro e organizar o sujeito diante deste, a angústia emerge como estrutura que atesta a presença do objeto pulsional parcial sem o invólucro imaginário. A partir destas breves pontuações sobre a teoria da angústia de Freud à Lacan, é possível pensar os limites da constituição identitária da sexualidade e a produção da angústia frente ao abjeto.
Angústia, Objeto a e Gozo: o Real e a Queda dos Roteiros Sexuais
Butler (2017), tecendo uma ampla crítica da concepção identitária do humano, destaca justamente a demanda simbólica, estruturada pela lei, como constituinte da identidade. Apoiado no Imaginário, o inconsciente seria a instância insubmissa, permanecendo como lugar de contestação à pretensa totalização simbólica:
Se o objetivo do nome interpelado é consumar a identidade a que se refere, ele começa como um processo performativo que acaba descarrilado no imaginário, pois o imaginário certamente se preocupa com a lei, é estruturado por ela, mas não lhe obedece diretamente. Para os lacanianos, então, o imaginário significa a impossibilidade da constituição discursiva – isto é, simbólica – da identidade. A identidade jamais será plenamente totalizada pelo simbólico, pois o que ele não põe em ordem surge no imaginário como uma desordem, um lugar onde a identidade é contestada (Butler, 2017, p. 104).
A inclusão do inconsciente na produção da sexualidade afasta a produção de Butler da crítica corrente feita às teorias queer, a de que a sexualidade é compreendida somente em seu caráter discursivo, reproduzindo paradigmas imaginários e simbólicos da identidade sexual (Cunha, 2013). As estratégias pós-identitárias de leitura do sexual seriam falhas por excluírem da equação o registro do Real.
É interessante ressaltar, no entanto, que Butler (2017) descreve uma concepção de Imaginário muito próxima do que Lacan denomina como o registro do Real, afirmando que é a partir da instância imaginária que o sujeito resiste ao simbólico. Enquanto na teoria lacaniana vemos sendo progressivamente construído o Real como o registro que faz furo no simbólico.
No livro Nomes do pai, Lacan (1953/2005b) introduz os três registros fundamentais na experiência humana. Comentando o trabalho analítico, define-os da seguinte maneira: o Simbólico remete à estrutura da linguagem que organiza o social; o Imaginário, inserido também na ordem da linguagem, diz respeito à relação com o pequeno outro, o semelhante e a constituição do corpo; e o Real é da ordem do impossível.
O Real, acrescenta, corresponde à introdução na relação dual de um terceiro, de um furo na díade imaginária, de tal modo que esta desvanece e precisa dar lugar a outra coisa – esta é a natureza da angústia (Lacan 1953/2005b). O Real surge, então, como furo, aquilo que escapa; enquanto o Imaginário oferece estofo ao simbólico, produzindo uma suposta unidade aos sujeitos: “Em primeiro lugar, uma coisa não poderia nos escapar, a saber, que há na análise toda uma parte de real em nossos sujeitos que nos escapa” (Lacan 1953/2005b, p, 13).
Logo, o Imaginário, longe de fornecer resistência ao simbólico, dá consistência a ele. Na constituição sexuada seria o que permite a união de uma estrutura simbólica, como a identidade sexual, com uma suposta materialidade física dos corpos, estabelecendo um binarismo que imaginariamente, e somente nesta dimensão, aparece como o visível – porém ilusório – da diferença sexual.
A inserção na linguagem transforma os seres em corpos simbólicos, individualizados e distintos uns dos outros, mas ao fazê-lo mata-os, retira a carne dos corpos transformando-os em seres falantes, como relembra Quinet (2004, p. 62), “a linguagem mortifica a carne para constituir o corpo como tal”.
O que entendemos por sexuado, então, é um roteiro simbólico constituído para recobrir os corpos: masculino e feminino seriam, portanto, meros lugares vazios, vazios no Real, como destaca Cunha (2013), por isso não há saber sobre a diferença sexual, sendo os sujeitos condenados a construir posições imaginárias e simbólicas para lidar com o Real do sexo.
Se, para Butler (2019), não há materialidade corporal – é efeito discursivo –, para a psicanálise o corpo é indeterminação. O corpo e a diferença sexual não podem ser completamente simbolizados, portanto, trata-se de conceber o modelo da diferença sexual não com uma ancoragem material nos corpos, o Real do sexo como o órgão sexual em si, mas pensar que este pode ser interpretado como pura diferença lógica (Cunha, 2013). O estofo imaginário e simbólico viria justamente interpretar, sobrepor algo de palpável a este furo.
O fato, como relembra Soler (2005), é que os sujeitos se identificam muito pouco com a sua anatomia. Inclusive, ressalta ela, toda a construção freudiana do complexo de Édipo indica justamente esta passagem para um corpo sexuado que nada tem de natural. Os processos identificatórios que culminam em uma escolha de objeto e fazem parte de todo o caminho edípico descrito por Freud, descrevem também os meios pelos quais a pulsão polimorfa torna-se “unimórfica”, quando “o simbólico assegura seu domínio sobre o real” (Soler, 2005, p. 137).
A passagem pelo Édipo corresponde a inclusão de um Outro que determina resoluções normativas e padronizadas para o complexo de castração, em um caminho que inclina para a saída heterossexual:
Com o complexo de Édipo e as diferentes identificações por ele geradas, portanto, Freud dá consistência a um Outro do discurso. Um Outro que ata suas normas, seus modelos, suas obrigações e suas proibições à identidade anatômica. Um Outro, pois, que imporia uma solução padronizada para o complexo de castração – a solução heterossexual –, rejeitando qualquer outra para o campo do atípico ou do patológico. Um Outro, para dizê-lo com Lacan, que, ao erigir os semblantes apropriados para ordenar as relações entre os sexos, nos diz o que devemos fazer como homens ou como mulheres (Soler, 2005, p. 137).
Isso porque a sexualidade humana é o que faz frente a qualquer enquadramento possível do Outro. Enquanto lidarmos com o Real e o objeto a, estamos em um campo de resistência à assimilação, que demarca o não esgotamento do humano em uma fórmula identitária. Nesse sentido, o conceito de objeto a desvela qual referência à sexualidade estamos lidando: ao necessariamente preceder a identidade sexual, demonstra quão indeterminada é a sexualidade humana, pois o desejo não é regulado pela identificação, orientação ou sexo, mas pela falta de objeto (Cunha, 2013).
O a surge como o incorpóreo, indicando a ligação entre o simbólico e o corpo, mas permanecendo como gozo fora do corpo, contudo, mantém seus efeitos neste por meio do pulsional e do afeto. Estas manifestações, assinalam, segundo Quinet (2004, p. 69), um “discurso do real”, um saber inconsciente da ordem do impossível, que mesmo assim transforma, nas análises, os corpos em “mesa de jogo” no qual disputaram o saber possível – do consciente – e o não saber inconsciente.
O objeto a e o Real unem-se a um terceiro elemento da tríade, que é o gozo. Desde seus primeiros seminários, Lacan (1972-1973/2008) aborda o gozo como elemento central, dedicando-se, a partir da década de 1970, a pensar duas modalidades de gozo: um gozo masculino e fálico e um gozo feminino Outro.
Essas modalidades, é importante esclarecer, não se vinculam ao sexo ou ao gênero, muito menos são expressões de uma orientação sexual. A sexuação, como nomeia, diz de uma posição do sujeito diante de seu próprio gozo, de um Real impossível que faz furo no Simbólico.
Dessa forma, afirma, há duas maneiras de posicionar-se. A primeira, masculina, é regida pelo todo fálico, isto é, pela castração enquanto universalidade da posição – todos os homens são castrados. É um gozo que nomeia e significa, recobrindo simbolicamente os corpos e produzindo os semblantes fálicos do ter e do ser, enquanto o gozo Outro é o do furo, da des-razão e do impossível. O gozo feminino não é universal, parte da singularidade e é constituído no um a um (Lacan, 1972-1973/2008).
Pensar essa tríade, composta de gozo, Real e objeto a, é demarcar que há sempre uma dimensão de impossível, de indeterminado nos sujeitos, é apontar para a falência da identidade e dos projetos de ontologização do humano. Não temos identidade fixa porque o Real é recoberto simbolicamente, mas isto não preenche o furo nem a falta, tornando-se aquilo que de mais infamiliar (Das Unheimlich) há para o sujeito.
Considerações Finais
Lima e Vorcaro (2017), retomando o tema do infamiliar em articulação com a política, indicam um caminho para pensar a relação entre o abjeto e a angústia que ele provoca. Os autores descrevem a angústia como o processo no qual o objeto a, aquele que deveria permanecer oculto, emerge, provocando, um rompimento das defesas do Eu:
Por causa disso, Lacan (1962-1963/2005a) avança a formulação de que a angústia não é sem objeto; pelo contrário, ela se deve à presença, na cena, do objeto a, que deveria permanecer oculto, mas foi trazido à luz, desafiando os protocolos de identidade que o eu construiu como sua defesa frente ao desejo inconsciente, sendo o perigo da angústia justamente o iminente desvanecimento dessa defesa egóica (Lima & Vorcaro, 2017, p. 477).
Os processos identificatórios que constituem o Eu enquanto instância se estruturariam como suas defesas, organizando-o em uma suposta unidade que vem a ser externada pelos sujeitos – cindidos sempre – como uma identidade. Nesse sentido, qualquer perturbação ameaçaria a constituição identitária, sendo a angústia um efeito do esgarçamento do Eu diante da presença daquele que evoca o objeto a (Lima & Vorcaro, 2017). Não se trata aqui de discutir o aparecimento do objeto a em si na cena, coisa da ordem do impossível, mas de qualquer objeto que se apresenta nessa série como tendo um brilho da presença desse objeto que deveria faltar.
A angústia emerge, portanto, de um rompimento da autonomia do Eu, da quebra da identidade mais ou menos bem sustentada simbolicamente e na fantasia dos sujeitos, desafiando os protocolos normativos de identidade e identificação ao colocar o indivíduo frente a uma experiência de questionamento de si.
Como afirmam Nicolau e Oliveira (2021, p. 246), não há estrutura, imaginária ou simbólica que recubra todo o sujeito, há sempre um “ponto paradoxal de inconsistência que atesta a incompletude do simbólico e a ausência de autonomia do sujeito”. O que esses corpos queer, abjetos e dissidentes apontam é justamente para este momento em que a angústia atesta essa falência, revelando algo da ordem do impossível, de uma indeterminação presente em um corpo e uma posição que resiste à normalização, ao recobrimento fálico e à identidade.
Se estes corpos podem apresentar qualquer potência, política e/ou estética é por recusar as normas, manter-se fora dos protocolos hegemônicos. Estar diante desses corpos pode despertar angústia justamente por ser como defrontar-se diretamente com o desejo do Outro, quando na verdade busca-se olhar a repetição de si mesmo.
Não estamos distantes aqui da metáfora da cabeça da medusa, descrito por Freud ao falar do horror que gera a visão do genital feminino, pois, o que este horror desvela é de outra ordem, do Real, da falência dos semblantes e da ausência de garantias. O encontro com o abjeto desperta, segundo Lima e Vorcaro (2017, p. 477):
Algo que, de certa maneira, remete o eu desses sujeitos ao fundo contingencial e ficcional de sua própria história, às contingências da história infernal de seu próprio desejo, o que não pode ser enfrentado sem angústia. Ainda mais quando o eu desses sujeitos depara com o que para eles é terrível, monstruoso, à beira do inumano, produzindo-lhes o horror de lidar com o pulsional mais além do interior de um regime normativo, isto é, defrontando-se com sujeitos cujos semblantes tensionam os limites de reconhecimento do próprio humano.
O sujeito torna-se, por um momento, um estrangeiro de si mesmo, reconhecendo no outro algo de seu próprio desejo e âmago que é desconhecido para si. O inumano, o abjeto aparece como uma metáfora para destacar justamente o que ex-iste, existe fora dos semblantes e das mascaradas que os sujeitos adotam para não saber sua própria verdade, a verdade do desejo.
Não à toa a resposta frente a estes fenômenos de mais profunda infalimiaridade e de perda das identificações costuma ser o retorno mais aferroado às suas próprias premissas identitárias, aos semblantes tão bem marcados das posições de ser e ter o falo, feminino e masculino. E também, como resposta ao outro, a violência, destituição física do outro e de tudo o que nele me afeta.
Contudo, este momento de reconhecimento pode também ser um momento de abertura para uma subversão. Esvaziar o Imaginário – e consequentemente tornar o simbólico mais dissolvido – é exatamente pensar o momento possível em que a entrada sempre disruptiva do Real faz enlace com o campo da indeterminação produzida pelo desinflacionamento das determinações simbólicas/imaginárias na normatividade social, isto é, é nesse momento de abertura que se poderá produzir um outro engajamento do sujeito em uma demanda impossível de reorganização – quiçá subversão – do sistema que dá consistência ao simbólico.
Trata-se, afinal de não ceder a um pensamento calcado em um fechamento ontológico e pensar, criticamente, possibilidades de abertura no campo do sujeito – tentativas de análises que já vem sendo realizadas por diversas teorias de queer e de gênero. Afinal, se a análise é o espaço privilegiado para o surgimento destas experiências disruptivas, então é preciso trabalhar os meios de levar sua lógica para outros campos além da clínica.
Referências
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