Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 2, 2019.
O Jornal Nacional e o rito de destituição de Dilma Rousseff
“O golpe maior que nos deu o Estado é o que se poderia chamar de efeito do ‘é assim’, efeito do ’é dessa forma”. (Bourdieu, Sobre o Estado).
A sociologia trata correntemente dos ritos de instituição através dos quais os indivíduos se tornam estatutariamente depositários do poder do Estado, que, nesse ato, lhes transfere uma parte do enorme capital simbólico que monopoliza (BOURDIEU, 2014, p. 248). O golpe de 2016 no Brasil oferece uma rara ocasião de analisar um rito de destituição em que diferentes instâncias do poder estatal convergiram no propósito de esvaziar o capital simbólico de uma Presidenta eleita por maioria em 2014. Como a eleição – e seus desdobramentos – é um rito através do qual uma pessoa se constitui como autoridade pública, de um ponto de vista simbólico, o golpe equivale a uma narrativa de desconstrução dessa autoridade. A cobertura da Globo e, em especial, o Jornal Nacional (JN) foram muito importantes1 na elaboração dessa narrativa a partir do material oferecido pelas outras instâncias de poder, notadamente o Judiciário e o Legislativo.
A pesquisa selecionou cinco edições2 do JN correspondentes aos passos decisivos do golpe em sua etapa final e as submeteu a uma análise de estrutura3 (BARTHES, 2003). Verificou-se, então, que elas se organizam de modo a desgastar o capital simbólico de Dilma Rousseff como presidenta da República, inclusive por meio da criminalização de Lula como seu fiador político. As edições analisadas foram as de 04 de março, dia da condução coercitiva de Lula determinada por Sérgio Moro; 16 de março, quando foi divulgada a gravação de uma conversa telefônica entre Dilma e Lula a respeito da nomeação deste último como Ministro da Casa Civil; 18 de abril, data da cobertura sobre a votação na Câmara dos Deputados que autorizou a abertura do processo para o afastamento da Presidenta; 12 de maio, dia da saída de Dilma e da posse de Temer como interino; e 31 de agosto, quando o Senado aprovou o seu afastamento definitivo. A cada passo, a figura de Dilma perdia sua aura de presidenta para se transformar em ré até, finalmente, sair de cena como uma página virada da história brasileira.
Apesar da força do Judiciário, do Ministério Público, do Legislativo, a convergência de interesses entre os setores conservadores abrigados nessas instâncias de poder talvez não fosse suficiente sem o apoio maciço da mídia corporativa. De fato, se o lugar institucional do golpe parlamentar foi o plenário das duas casas do Congresso, seu principal nicho simbólico foi a bancada do Jornal Nacional4.
As categorias fundamentais da análise são, de um lado, o universal encarnado pelo Estado, ao qual a Globo tenta se associar para construir sua autoimagem de veículo objetivo que também pairaria acima dos interesses particulares. De outro lado, estão aqueles confinados pelo discurso da TV e pelas práticas das instâncias de poder estatais ao lugar do particularismo, dos interesses partidários, da corrupção. Na cobertura analisada, é possível perceber um sentido recorrente de destituição da autoridade universal de Dilma Rousseff como Presidenta. Podemos começar por seu desfecho, quando esse sentido se completou, a edição de 31 de agosto de 2016, dia da votação no Senado que selou definitivamente o golpe parlamentar (SANTOS, 2017; MIGUEL, 2018). O Jornal Nacional começa destacando a notícia mais importante do dia, na voz da âncora Renata Vasconcelos: “61 senadores votam ‘sim’ ao impeachment”. Na sequência, em uma gravação, o então Presidente do STF e da sessão no Senado, Ricardo Lewandosky, proclama o resultado: “Ficando assim a acusada condenada à perda do cargo de Presidente da República Federativa do Brasil”. Estava então concluído o processo de despojamento das “vestes reais” de Dilma Rousseff, sua descida à condição de figura destituída de capital simbólico conferido pelo Estado, um longo rito de destituição que tem lugar no Congresso, mas que, como rito nacional, é encenado na TV em torno da qual se articula a nação como “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008; BECKER, 2005; GUIMARÃES; COUTINHO, 2008).
Na base do nacionalismo, está a formação dos Estados nacionais, comumente vista como uma centralização política baseada na concentração dos recursos militares e fiscais, mas que é concebida por Bourdieu (2014, p. 261) como tendo no capital simbólico uma dimensão crucial. A monopolização desta forma de capital por parte do Estado deu-se à medida que ele foi assumindo a forma de uma instância supostamente transcendente em relação aos interesses particulares, primeiro, pela separação entre a pessoa física do rei e a sua autoridade pública; depois, pela secularização dessa autoridade na figura da “nação”. Bourdieu mostra que, lentamente, como parte desse processo, um corpo de funcionários encarregados da gestão do “público” surgiu e se consolidou, passando a monopolizar poder simbólico em nome do Estado (BOURDIEU, 2014, p. 278 e ss.).
A concentração de capital simbólico define tanto a formação dos Estados nacionais quanto o surgimento da indústria cultural, processos que não foram historicamente sincronizados, mas que, no momento presente, convergem para configurar uma situação profundamente antidemocrática no Brasil, de monopólio social do direito de falar em nome “nação” pelos setores conservadores do Judiciário, do Legislativo e da mídia corporativa.
No período de vigência do lulismo, entre 2006 e 2013, a estabilidade política foi alcançada mediante concessões feitas às classes populares, especialmente as políticas sociais e o aumento do salário mínimo acima da inflação (SINGER, 2012), combinadas à manutenção da forma primordial de transferência de riqueza pública a mãos privadas, a política de juros. Cabe salientar também a pactuação com os empresários e políticos controladores dos meios de comunicação de massa. De novo, a política do ganha-ganha que marcou o ciclo lulista limitou os avanços nessa área a uma tímida tentativa de fortalecimento de um sistema público de comunicação sem o enfrentamento do problema da concentração da audiência, apesar de ser este uma prioridade apontada nas Conferências de Comunicação realizadas naquele momento. A partir de 2013, ingressamos em uma fase aguda de crise do sistema de representação política, quando o PT foi definitivamente remetido à vala comum dos partidos e seus interesses corporativos, da qual, até então, havia escapado por sua imagem de paladino da ética (COUTO; BAIA, 2005, p. 217).
No plano mais geral, o aprofundamento da crise econômica, a naturalização das conquistas sociais das classes populares e a desmobilização das forças progressistas abriram espaço para a manifestação pública da insatisfação diante do Estado, encarnado pelo governo petista. As manifestações de junho, apesar da pauta inicial de reivindicação de transporte público acessível e de qualidade (ROLNIK, 2013; MPL, 2013), foram se fragmentando em vários matizes ideológicos (SINGER, 2013). Mais tarde, a maior parte dos protestos de rua iria adquirir na mídia o sentido de um levante em defesa do “Brasil”. Isso porque, em 2014, a derrota dos setores conservadores nas eleições presidenciais por uma margem pequena de votos mostrou a viabilidade e a necessidade de investir de modo ainda mais feroz contra o laço simbólico tecido entre Dilma/Lula e as classes populares. O “reformismo fraco” do ciclo petista, quando não a oscilação dos governos em direção francamente conservadora, teceram as condições objetivas para a construção dessa narrativa.
Em 2016, completou-se uma segunda fase do esvaziamento do capital simbólico do PT pela grande mídia brasileira. O esgarçamento dos vínculos entre os líderes petistas e o “povo” é o principal sentido construído pela cobertura do telejornal. O recurso retórico fundamental é o de destituir sua autoridade universal associada à Presidência e, para isso, o JN investe em sua associação a interesses particulares, através da explicitação do caráter político de suas posições e, mais ainda, da imputação de um caráter criminoso à sua vinculação política, através do tema da corrupção5. Contra ela, a correção dos procedimentos sancionada pelo poder “politicamente neutro” do Judiciário. O tratamento moralista da corrupção baseia-se em uma idealização dos operadores da lei e de jornalistas como agentes orientados exclusivamente para o bem público e é uma das principais barreiras à sua compreensão como fenômeno histórico recorrente (AVRITZER et alli, 2012, p. 12; LIMA, 2012, p. 442; CARVALHO, 2012, p. 200).
A corrupção é o principal recurso retórico no trabalho de destituição da autoridade universal alcançada por Dilma Rousseff como Presidenta do Brasil e de Lula como ex-presidente6. Mas cabe ressaltar que somente um estudo de recepção permitiria analisar as formas predominantes de interpretação desses discursos pelas diferentes classes e frações de classe. O que nos cabe aqui é mostrar o “contrato de leitura” (FAUSTO NETO, 1996) proposto pelo JN a seus telespectadores, as linhas pontilhadas que ele sugere que sejam completadas pelo receptor no processo de construção de sentido e que apontam para certos “efeitos” ou direcionamentos, tais como a “legalidade” e a “objetividade” da atuação das forças golpistas.
Quando interesses de classe particulares emergem no debate público revestidos de uma autoridade universal, estamos diante da universalização e da naturalização, que são momentos decisivos do funcionamento da ideologia (MARX; ENGELS, 1996). Ao constatar que os possuidores dos meios de produção são também, como classe, os possuidores dos meios de produção simbólicos, Marx explica a principal razão pela qual “as ideias das classes dominantes são, em cada época, as ideias dominantes” (MARX; ENGELS, 1996, p. 72). Ao alcançar as classes mais baixas, tais ideias e representações já perderam sua marca de origem e podem aparecer, não como um ponto de vista construído a partir de uma posição específica no espaço social, mas como aquilo que “simplesmente é”. Passamos assim, da universalização à naturalização.
O Estado moderno ocidental é, por definição, a encarnação do universal, tamanho o poder simbólico que concentra (BOURDIEU, 2014, p. 314). O esvaziamento da autoridade universal conferida a Dilma pela vitória nas eleições de 2014 só pode ser feito por instâncias estatais que se colocaram acima da Presidência. A corrupção é um recurso retórico particularmente importante nessa empreitada porque é a constatação da permanência de interesses particulares no interior do Estado, que aparece como uma traição ao caráter sagrado do poder estatal, embora ela esteja inscrita na própria estrutura deste poder, uma vez que ele corresponde a “cadeias de dependência e, a cada um dos elos da corrente, institui-se a possibilidade de um desvio” (BOURDIEU, 2014, p. 362).
Em relação a Dilma e a Lula, a corrupção funciona como um meio de separar a pessoa física, que tem uma existência familiar e partidária, da figura representante do poder universal do Estado. Na dinâmica do golpe parlamentar, há uma desestabilização temporária da partilha daquela autoridade universal, uma vez que a mídia, o Judiciário, o Congresso, a Polícia Federal e o Ministério Público disputam com a Presidência o direito de falar em nome da “nação”. A representação que a Globo constrói de cada uma das instâncias de poder nessa narrativa se define por uma posição específica no espectro que vai do mais particular ao mais universal. O Congresso, por exemplo, é representado como uma arena de disputas crivada de particularismos. Na outra ponta, estariam o STF e o juiz Sergio Moro, diletas encarnações da universalidade. De novo, interessa começar pela edição de 31 de agosto. O JN traça o desenho das divergências em torno da votação que destituiria Dilma Rousseff e que poderia também cassar seus direitos políticos por oito anos. Aliados de Dilma defendiam a separação em duas votações, para que ela tivesse a chance de manter seus direitos políticos, enquanto o PSDB tachava tal separação de inconstitucional.
Em várias passagens da cobertura, depois de mostrar os partidos em disputa, a Globo costura uma narrativa que culmina com o arbítrio do representante do STF, que preside a sessão no Senado e que lhe confere legitimidade. Na reportagem citada, a respeito da reivindicação de separar a votação da perda de mandato daquela referente aos direitos políticos, Júlio Mosquéra diz: “Lewandowski resolveu acolher o pedido do PT. Determinou que fossem duas votações, e nos dois casos os favoráveis ao impeachment teriam que reunir pelo menos 54 dos 81 votos”. Há uma tendência a apresentar os representantes dos partidos como defensores de uma posição particularista e depois fazer aparecer o STF como a instância superior que arbitra os conflitos, de modo que a cobertura deslegitima a política7 em nome de uma suposta pureza moral encarnada pelo poder judiciário.
A transubstanciação dos particularismos em universal tem dois momentos na cobertura: o primeiro é o da votação que estabelece a maioria. O segundo é a chancela ou do STF ou do “povo nas ruas”, como avalistas da “nação”. A autoridade do Congresso no telejornal se mantém apenas quando, através da maioria, forma-se um consenso que apaga as marcas das lutas particularistas travadas na votação. Mas o segundo e mais decisivo momento é a chancela da “nação”. Especialmente no caso em que cabe ao STF concedê-la, a legalidade dos procedimentos aparece como garantia de legitimidade do processo, configurando um efeito que podemos chamar de “o rito é a prova”. Na edição de 31 de agosto, o relato do JN sobre a manutenção dos direitos políticos de Dilma Rousseff tem o sentido de mostrar a suposta imparcialidade do STF, já que Lewandosky acatou o pedido dos partidários da Presidenta e separou em duas as votações sobre o seu afastamento e a manutenção dos seus direitos políticos.
Fica claro, entretanto, que a ênfase na legalidade do golpe parlamentar é o recurso retórico preferido por um dos lados da disputa. Vejamos a reportagem de Júlio Mosquera, na mesma edição de 31 de agosto: “A senadora Ana Amélia, do PP, falou da legalidade de o todo processo, com participação do Ministério Público, Supremo, Câmara e Senado. E disse que o país amadureceu com o impeachment.” Cada instância de poder adiciona a sua cota diferencial de legitimidade ao processo. E o próprio Lewandosky, no curso da votação, usou o respeito aos procedimentos como argumento para conformar os conservadores diante da derrota pontual em relação à manutenção dos direitos políticos de Dilma:
Tem que respeitar os procedimentos, os dispositivos regimentais sob pena, senador Collor, de um deputado pertencente à bancada do Partido dos Trabalhadores atravessar a praça, ingressar eventualmente com mandado de segurança e invocar direito líquido certo. Senador Aluísio Nunes sabe disso. E nós corremos o risco de interromper o nosso julgamento ou invalidarmos o julgamento depois de terminarmos o julgamento.
Já a chancela do “povo nas ruas” foi o recurso preferencial na edição sobre a votação na Câmara em 18 de abril8 que teve a difícil tarefa de fazer um dos episódios mais grotescos da história do país aparecer como uma festa da democracia. Renata Vasconcelos introduz assim a reportagem sobre o impacto dos acontecimentos do dia sobre os telespectadores: “O Brasil passou o domingo acompanhando a sessão de votação no Plenário da Câmara, o Congresso estava lotado”. Ou seja, se os representantes não estavam à altura de sua responsabilidade, o certo é que, por meio da TV, era a nação que endossava o processo. Ao fim da edição, o sentido vai se fechando na fala da âncora, seguida de depoimentos de pessoas nas ruas e pela seguinte conclusão:
Pra todas essas pessoas, o domingo foi invadido por uma vontade tão grande de fazer parte desse processo que tanto o taxista que assistia pelo celular em Belém, quanto quem se refrescava na sorveteria do interior de São Paulo conseguia acompanhar tudo. Entre os muros da Esplanada e as manifestações em todo o país, as maiores aulas de convivência pacífica vieram, quem diria, de dentro de muitas casas: (entra depoimento de um entrevistado na rua) “A mãe das minhas filhas tem 21 anos e ela… Presidente pra ela é… Ela tinha opinião contrária a minha e… tudo bem, tudo bem, porque tem que vencer mesmo é a democracia, é a Justiça… Tem que ser decidido é o melhor pra nação”.
A parcela conservadora do Judiciário foi um dos principais componentes do bloco de poder responsável pelo golpe parlamentar, juntamente com o Congresso e a grande mídia corporativa. Um de seus papéis foi o de fornecer a matéria-prima para que veículos como a Globo pudessem investir no “efeito legalidade”, ou “o rito é a prova”, que recobriu cada uma das etapas do processo, incluindo o ataque a Lula, nas edições de 04 e 16 de março, dias da condução coercitiva e da divulgação da conversa telefônica entre ele e Dilma. Não por acaso, em todas as edições analisadas com exceção da primeira, o JN rememorou os passos do processo, avalizando o respeito aos procedimentos que faz com que o golpe possa assumir a forma de um impeachment9, o que se explicita na fala do ministro do STF Dias Tóffoli, na edição de 12 de maio: “Não se trata de um golpe. Todas as democracias têm mecanismos de controles. E o processo de impeachment é um tipo de controle”.
O “efeito legalidade” se combina a um “efeito objetividade”, que é a dimensão jornalística da mesma captura da universalidade vista no plano das instâncias de poder estatais. A Globo procura construí-lo de várias maneiras, sendo a mais importante delas o recurso a figuras de autoridades supostamente inquestionáveis, o STF, demais instâncias do Judiciário, em especial o “herói” Sérgio Moro, a Polícia Federal, o Ministério Público e, em menor escala, as lideranças dos partidos favoráveis à saída de Dilma. As forças partidárias, por definição, não têm o mesmo poder de atração para o discurso universalizante no contexto da grave crise do sistema de representação política. Pelo contrário, são elas que tentam se associar a autoridades supostamente pautadas pelo “interesse público”, inclusive a Globo em sua pretensão à objetividade. Forma-se, assim, uma espécie de cadeia de transferência de capital simbólico entre as diferentes instâncias de poder estatal e a grande mídia corporativa, com muitos atos de homologação recíproca.
Outra forma da emissora tentar se colocar acima das disputas é reproduzir argumentos contrários ao golpe, emitidos por lideranças do PT e dos partidos aliados, dentro e fora do Congresso. Nesses casos, existe todo um trabalho de enquadramento10 da fala pelos repórteres ou âncoras, de modo a situá-la como mera expressão de um ponto de vista pouco convincente. Na edição de 31 de agosto, coube à senadora Vanessa Grazziotin, do PCdoB, ocupar esse lugar, na reportagem de Júlio Mosquéra:
A senadora Vanessa Grazziotin do PCdoB criticou o processo de impeachment. Voltou a dizer que Dilma não cometeu crime de responsabilidade, que ela era vítima de perseguição política, iniciada logo depois da reeleição dela, em outubro de 2014: (senadora) “Infelizmente para o registro não só do momento, mas para o registro da história, a maioria vai cassar uma Presidente inocente. Não cometeu nenhum crime e aqui não há nenhum hipócrita. Aqui não há nenhum ingênuo pra saber que todos sabemos que ela não cometeu crime, mas a decisão é política”.
Contra a ladainha repetitiva dos defensores de Dilma, a chancela de um processo de impeachment.
A desigualdade típica de uma sociedade de classes se expressa como maior ou menor possibilidade de angariar uma aura de universalidade para os discursos, conforme a posição no espaço social. Os partidos de esquerda têm uma dificuldade nesse sentido porque precisam falar de diferenças e de divisões, de interesses e de privilégios. Seu discurso tende a buscar romper com a universalização e, ao fazer isso, tende a assumir um lugar particular no espectro político-ideológico. Já o jornalismo, por sua pretensão à objetividade, é vocacionado para a produção de mitos, naquele sentido barthesiano explicitado anteriormente, de um modo de significação caracterizado por ocultar a dimensão conotativa da linguagem em sua dimensão denotativa. No mito, a avaliação da experiência aparece como um dado da realidade. É o oposto de um discurso que tenta revelar seus postulados e que se enuncia como parcial. Neste ponto, comunga com a direita a pretensão da universalidade. Como lembra Barthes, tratando do caso francês, o partido da burguesia nunca tem esse nome, pelo contrário, tende a se apresentar como um partido nacional (2003). Isso é parte do privilégio de poder transformar retoricamente a sua visão de mundo em uma apresentação do mundo de pretensa objetividade.
Não restam dúvidas: o verde e o amarelo foram as cores do golpe. Se nas ruas, os enquadramentos patriótico, sindical-partidário e autonomista dos manifestantes (ALONSO; MISCHE, 2015) se confrontaram para, eventualmente, se separar, na mídia, o primeiro ganhou destaque e valoração positiva como “vontade do povo”. Ou seja, das visões particulares em disputa desde, pelo menos, 2013, foi aquela que recebeu o selo de universal. Deputados e senadores golpistas portaram bandeiras do Brasil e cantaram o hino nacional durante as votações. Já o discurso de Dilma depois de afastada mostra a dificuldade em assumir uma posição de fala universalizante, dificuldade esta que é reforçada pela maneira como o JN enquadra os discursos contrários a sua própria posição, utilizando verbos particularistas tais como “dizer”, “classificar”, “chamar”, “repetir”, “negar” que supõem se tratar apenas de um ponto de vista, e não dos fatos.
Na edição de 31 de agosto, o âncora William Bonner introduziu assim o trecho do discurso de Dilma reproduzido no telejornal:
Logo depois da aprovação do impeachment, Dilma Rousseff fez um pronunciamento. Repetiu que é vítima de um golpe e disse que vai fazer uma oposição enérgica e incansável: (Dilma) “Hoje, o Senado Federal tomou uma decisão que entra para a história das grandes injustiças. Os senadores que votaram pelo impeachment escolheram rasgar a Constituição Federal, decidiram pela interrupção do mandato de uma Presidenta que não cometeu crime de responsabilidade. Condenaram uma inocente e consumaram um golpe parlamentar. [corte na fala] A descrença e a mágoa que nos atingem em momentos como esse são péssimas conselheiras. Não desistam da luta. Ouçam bem: eles pensam que nos venceram, mas estão enganados. Sei que todos nós vamos lutar. [corte na fala] Haverá contra eles a mais determinada oposição que o governo golpista pode sofrer. [corte na fala] Espero que saibamos nos unir em defesa de causas comuns a todos os progressistas, independentemente de filiação partidária ou posição política. Proponho que lutemos todos juntos, contra o retrocesso, contra a agenda conservadora, contra a extinção de direitos, pela soberania nacional e pelo restabelecimento pleno da democracia. Saio da Presidência como entrei: sem ter incorrido em qualquer ato ilícito, sem ter traído qualquer dos meus compromissos, com dignidade e carregando no peito o mesmo amor e admiração pelas brasileiras e brasileiros, e a mesma vontade de continuar lutando pelo Brasil”.
Esta última expressão é muito elucidativa das tensões que atravessam os discursos esquerdistas com alguma pretensão à universalidade. Ao dizer que é preciso “lutar pelo Brasil”, Dilma explicita o pertencimento ao campo político que é, por definição, um espaço cindido. O ponto alto a esse respeito é a oposição entre “nós” e “eles”. Na cobertura, a política, ao contrário da moral, aparece como o antiuniversal. Trazê-la à tona é questionar as pretensões universalizantes das instâncias de poder como o Judiciário e a própria Globo, é tentar mostrar que, em algum nível, também são “partidárias”. Mas explicitar a política é também abdicar do universal. No final do seu discurso, o verbo “lutar” diminui o efeito universalizante de “Brasil”. Todo o trecho é marcado pela combinação entre, por um lado, uma posição assumidamente particularista como na menção às forças progressistas, e, por outro lado, a defesa dos “brasileiros e brasileiras”.
Na outra ponta do espectro político, opera-se uma inversão, também cara às ideologias, que faz com que os interesses mais particularistas assumam as cores nacionais. Na cobertura, as disputas partidárias entre os favoráveis e os contrários à saída de Dilma servem de pano-de-fundo para que, por contraste, a Globo e o poder judiciário ostentem a pretensão de estar acima delas e pareçam transcender o próprio espaço social, dentro do qual os atores ocupam posições específicas a partir das quais se definem seus interesses e suas visões de mundo. A balança, símbolo da justiça, é também a figura retórica que Barthes identificou em casos similares a esse, nos quais o emissor, depois de apresentar posições conflitantes, mostra-se como o eixo equilibrado que consegue ir além delas (BARTHES, 2003). Então, através dessas instâncias de poder, um dos lados da disputa recebe seu crivo de legitimidade, momento em que se converte também em suporte do universal.
A fórmula acima foi usada na edição do dia 16 de março de 2016, praticamente toda dedicada à conversa gravada entre Lula e Dilma que foi interpretada como se a nomeação do ex-presidente como Ministro da Casa Civil fosse um estratagema para livrá-lo de Moro ao passar a ser julgado pelo STF devido ao foro privilegiado adquirido com o cargo. Toda a edição se dedica a “mostrar” uma trama palaciana engendrada pelos dois de modo a subtrair Lula da mão forte do herói Sérgio Moro e produzir o efeito de que, por sua associação criminosa com Lula, a posição de Dilma havia se tornado insustentável. Vejamos então a escalada11 daquela edição do JN:
William Bonner – Boa noite.
Renata Vasconcelos – Boa noite.
WB – A crise no Governo Dilma Rousseff atinge o ponto mais alto.
RV – Luís Inácio Lula da Silva é nomeado Ministro-Chefe da Casa Civil.
WB – Ele sai do alcance de Sérgio Moro, o juiz federal do Paraná responsável pela Lava Jato.
RV – E passa a ter o chamado foro privilegiado pelo Supremo Tribunal Federal.
WB – O juiz Moro suspende o sigilo.
RV – A Justiça Federal torna público os grampos telefônicos do ex-presidente.
WB – Um deles de hoje à tarde.
RV– Lula recebeu ligação da presidente Dilma.
*Passagem trecho gravação
Dilma – Alô.
Lula – Alô.
Dilma – Lula, deixa eu te falar uma coisa.
Lula – Fala, querida.
Dilma – Seguinte, eu tô mandando o Bessias junto com o papel pra gente ter ele e só usa em caso de necessidade, que é o termo de posse, tá?
Lula – Aham. Tá bom. Tá bom.
Dilma – Só isso. Você espera aí que ele tá indo aí.
Lula – Tá bom, eu tô aqui. Eu fico aguardando.
Dilma – Tá?
Lula – Tá bom.
Dilma – Tchau.
Lula – Tchau, querida.
*Estúdio
WB – Os grampos têm indício forte de que os objetivos de Lula para o Ministério foi mesmo tirá-lo do alcance do juiz Moro.
RV – E indicam que o ex-Presidente tentou influenciar várias autoridades pra se proteger.
WB – Uma edição extra do Diário Oficial publica a nomeação do agora ministro Lula.
RV – Quarta-feira, 16 de março.
WB – O Jornal Nacional está começando agora.
O termo “indícios fortes” alça a gravação ao estatuto de uma prova material e consagra a Globo como avalista de tal prova. Na reportagem de Delis Ortiz, a fórmula que destacamos como título desse item explicita a posição pretensamente universalista da Globo ao fixar a interpretação criminalizadora da conversa entre os líderes petistas:
O Governo tenta convencer que a nomeação do ex-Presidente tem caráter estrutural, de reforço pra alterar os rumos da economia e de ânimo para a relação com o Congresso. Argumentos à parte, fato é que Lula no Ministério indica direito ao foro privilegiado. Isto é, ele escapa das mãos do juiz Sério Moro, de Curitiba, porque a investigação contra ele passará para o procurador geral da República, Rodrigo Janot, e o juiz do caso será o Ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal.
Curiosamente, o “efeito objetividade” pretendido acima se baseia na incorporação de muitos elementos melodramáticos pela narrativa. O melodrama é uma matriz cultural de longuíssima duração, tendo ganhado forma ainda na Idade Média e inspirado muitas produções posteriores, como o folhetim, o cinema, a telenovela. Como nos lembra Barbero (1991), a principal marca que o cristianismo impôs ao melodrama foi a polarização entre o bem e o mal na construção de personagens que são a encarnação de um ou de outro, através de uma simplificação da constituição psíquica e das diversas motivações que orientam os seres humanos em sua trajetória pelo espaço social. Na telenovela e no cinema de massas, o melodrama costuma se organizar em torno da ascensão do “bem” e decadência do “mal”, com a salvação do “fraco” até então disputado pelos dois polos. No trecho em questão, o herói Sérgio Moro, com o apoio da Globo, suspende o sigilo das gravações para revelar a trama palaciana e assim salvar o “povo” da opressão.
A cobertura dos momentos cruciais do golpe pelo JN traz uma marca fundamental do melodrama, a perspectiva moralizadora e, portanto, despolitizada, da crise política que o Brasil atravessa. O problema é que ela faz isso sem assumir seu estatuto de ficção, mas, pelo contrário, pretendendo apenas retratar o que se passa. Temos aí uma negação da política em nome de um ideal de pureza moral que a Globo e as demais instâncias de poder que chancelam o golpe parlamentar reclamam para si. Voltando especificamente para a escalada que reproduzimos acima, ela é pautada na oposição entre Dilma/Lula como figuração do mal versus Moro/Globo como figuração do bem. A este respeito, Lula deu sua contribuição particular ao se comparar a uma jararaca na entrevista coletiva que deu à imprensa depois de sua condução coercitiva, na edição de 04 de março. Naquele dia, em estúdio, já na introdução de uma fala de Lula, William Bonner sinalizava o perigo, para quem ainda suspeitasse que a operação Lava Jato estava indo longe demais na quebra dos direitos dos investigados, como na decretação de uma condução coercitiva para quem não tinha se recusado a depor: “Lula também disse que os acontecimentos de hoje deram a ele a vontade de voltar a participar de manifestações no Brasil inteiro. Chegou a mencionar a possibilidade de concorrer à Presidência da República e por fim, se disse fortalecido, apesar de magoado”.
Naquele contexto, a declaração de Lula adquire o sentido do perigo que relativiza a vitimização também cara ao melodrama e que poderia favorecê-lo. Tal sentido é reforçado pela metáfora da cobra:
(Lula) Quero que vocês saibam que o aconteceu hoje, embora tenha me ofendido, embora tenha magoado, sabe, a minha história. Embora eu tenha me sentido ofendido, porque não precisava disso, eu me sinto ultrajado, como se fosse prisioneiro. Apesar do tratamento cortês dos delegados da Polícia Federal, eu quero dizer, se quiseram matar a jararaca, não bateu na cabeça dela. Bateram no rabo e a jararaca está viva como sempre esteve. (Aplausos).
Logo na sequência, William Bonner diz:
A Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, negou conceder liminar ao ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva para suspender investigações contra ele em São Paulo e no Paraná, sobre o triplex em Guarujá e o sítio em Atibaia. Rosa Weber disse que não há ilegalidade irrefutável a ponto de indeferir as acusações do Ministério Público.
Mais uma vez, depois de uma posição de fala situada como particularista, entra uma autoridade do STF para colocar as coisas no seu devido lugar.
Segundo a mitologia cristã que inspira o melodrama, a serpente (Lula) – seria o animal perigoso e sedutor que leva os puros de coração – (o “povo inocente”) – à ruína. Esse sentido reaparece na edição de 16 de março, que trata do grampo de conversa entre os dois ex-presidentes. Nela, Delis Ortiz afirma: “Lula seguirá trabalhando na sedução dos caciques do PMDB. Ele recebeu do presidente do Senado, Renan Calheiros, o aceno de que pode ir em frente. Eles ainda terão um encontro. O vice, Michel Temer, também é alvo da investida de Lula nessa articulação”. Tendo levado Lula ao extremo da particularização que é a criminalização, restava então reforçar a sua proximidade com Dilma, como o fez a âncora Renata Vasconcelos introduzindo a reportagem sobre a reação da Presidenta: “A Presidente Dilma Rousseff manifestou solidariedade ao ex-Presidente Lula”.
Assim a Globo pretendia “mostrar” um Lula criminoso e uma Dilma cúmplice no ataque ao “povo brasileiro”. Depois de reproduzir falas favoráveis e contrárias ao golpe parlamentar, tanto no Congresso quanto no STF, o JN recorre à “fonte pura” do poder da nação: o povo nas ruas, cuja chancela permite a um dos polos até então tratado como particularista assumir a forma do universal. Do estúdio, a âncora chama repórteres ao vivo de Brasília, do Rio e em São Paulo, todos mostrando a indignação popular. O primeiro relata assim a manifestação:
Boa noite, Renata. Boa noite a todos. Os manifestantes começaram a chegar aqui ao Palácio do Planalto por volta das 5 da tarde, bem antes até da divulgação da gravação entre a Presidente Dilma e o ex-Presidente Lula, que foi divulgada um pouco depois. Esses manifestantes vieram aqui para protestar contra a nomeação, pela Presidente Dilma, do ex-Presidente Lula como ministro-chefe da Casa Civil. A gente vê essas imagens aéreas aí (interrupção por barulho de fogos), nesse momento aqui em frente ao Palácio do Planalto. Segundo a Polícia Militar, cerca de duas mil e quinhentas pessoas. Esse número até foi atualizado agora pouco para cinco mil pessoas postadas aqui em frente ao Palácio do Planalto. A Presidente Dilma Rousseff saiu daqui do Palácio do Planalto por volta das 7h35 da noite. Foi para o Palácio do Alvorada. Mas os manifestantes continuaram aqui. Eles não aceitam a nomeação, do ex-Presidente Lula, como Chefe da Casa Civil. Os protestos são pacíficos. Em nenhum momento houve violência, nem por parte da Polícia Militar, nem por parte dos manifestantes. Os manifestantes só não pode… é, é, é, a Guarda Presidencial está postada logo depois da mureta de proteção para evitar qualquer invasão, mas não houve essa invasão. Um grupo de deputados da oposição chegou aqui logo depois do início do protesto, mas demorou pouco. Foi logo embora. Houve alguns deputados também que chegaram a ser expulsos pelos manifestantes, que não queriam a presença de, de alguns deputados protestando aqui junto com eles.
Como imagem, o “povo” do lado de fora do “Palácio” aciona uma visão corrente e melodramática do levante popular contra os príncipes despóticos. Cansada de seus representantes, a “nação” comparece ao centro do poder para exigir que sua vontade seja feita. Eis a base imaginária do golpe parlamentar, uma base pacífica e apartidária que não faz confusão e não se alia aos políticos para permanecer impoluta.
É preciso enfatizar que essa construção também é objeto de contestação por parte das vozes contrárias à saída de Dilma, não somente pela reação nas redes sociais mas também pelo contra-ataque empreendido pelos atores situados no campo do poder. Nas edições analisadas, a reação aparece quando são apontados todos os particularismos envolvidos na gestação da pretensa universalidade. A este respeito, talvez o episódio mais significativo tenha sido o questionamento feito por Lula quanto aos vieses do Judiciário, do Ministério Público e da Globo no dia de sua condução coercitiva, 04 de março de 2016. Nessa edição, fica claro o enquadramento da fala de Lula pela Globo, que esvazia o seu sentido contestador e a coloca como uma versão que tenta se contrapor aos fatos. A âncora informa que, ao ser liberado, ele fez um discurso em que começou criticando a condução coercitiva, já que nunca se negou a depor, tendo comparecido três vezes diante das autoridades para esclarecer elementos ligados às investigações sobre a propriedade de um sítio em Atibaia e de um apartamento no Guarujá. Mais uma vez, sua fala explicita a dimensão da luta e o faz se contrapondo a uma instância carregada de autoridade universal, o Ministério Público:
E eu jamais me recusaria a prestar depoimento aqui. A minha briga com o Ministério Público Estadual era porque o procurador já fez um prejulgamento, e se ele já tinha prejulgado, não havia por que eu ir prestar o depoimento no Ministério Público Estadual. Entramos com uma liminar e conseguimos que o juiz, que eu não precisaria prestar depoimento, mas o Moro não precisaria, não precisaria ter mandado uma coerção da Polícia Federal na minha casa de manhã, na casa dos meus filhos, sabe? Ã, ã, na casa de companheiros como o Paulo Okamotto, como a Clara Anti, como funcionários do Sindicato… Não precisava. Era só ter convidado. Antes dele, nós já éramos democrata. Antes dele, nós já fazíamos as coisas corretas nesse país. Porque enquanto muitos dele não faziam nada, eu tava lutando pra que esse país conquistasse o direito de liberdade de expressão, o direito de uma imprensa livre, o direito de candidatura de partido político, o direito de greve. Então era só ter comunicado que nós iríamos lá. Lamentavelmente, eles preferiram utilizar a prepotência, a arrogância. Um show e um espetáculo de pirotecnia. E que enquanto os advogados não sabiam nada, alguns meios de comunicação já sabiam.
Todo o trecho é muito significativo pela ambiguidade resultante da tentativa de Lula em universalizar o PT ao associá-lo à democracia ao mesmo tempo em que explicita um lugar particular no espectro político, pela menção ao pré-julgamento do Ministério Público Estadual de São Paulo e à ideia de luta.
Mais interessante ainda é destacar os recursos que a Globo emprega para enfraquecer o contradiscurso que reproduz. Para começar, o fato de reproduzi-lo aparece como uma prova de isenção. Além disso, faz uso daquela oposição entre fato e versão que já vimos anteriormente a partir do respaldo das instituições judiciárias e policiais, como no trecho seguinte, em que, no estúdio, William Bonner diz: “O ex-Presidente ignorou os motivos divulgados pelos investigadores para incluir os filhos dele na operação de hoje. E lamentou os transtornos causados à família”. A fala do âncora também tenta esvaziar a identificação que uma parte mais pobre do público poderia sentir com a opressão manifesta no trecho do discurso em que Lula lembra que Marisa Letícia trabalhou como doméstica desde a adolescência. É a explicitação de uma posição de classe, a mais assimétrica em relação à universalidade pretendida pelas instituições que falam em nome do Estado e, por conseguinte, da nação. A Globo tenta diluir essa identidade entre Lula e trabalhadoras domésticas através da associação do ex-presidente às empreiteiras, que cumprem a dupla função de serem símbolos da criminalidade e de uma posição mais alta no espaço social. Mais adiante, depois de reproduzir o trecho do discurso em que Lula tematiza o ódio de classes contra o PT devido às políticas de inclusão, William Bonner diz: “Ao falar sobre os presentes que recebeu como presidente, Lula não se referiu à Construtora OAS, que, segundo os investigadores, pagou pela mudança dele e pelo armazenamento daqueles objetos”. Essa introdução à fala seguinte enquadra o discurso de Lula como, no mínimo, duvidoso:
Vocês sabem o que é que é alguém sair da presidência com 11 container de acervo sem ter onde pôr? Cês sabem o que é sair com cadeira, com trono, com papel, com tudo que vocês possam imaginar. Se somar todos os presidentes da história desse país, desde Floriano Peixoto, eu fui o que mais ganhei presente, porque viajei mais, porque trabalhei mais, porque viajei o mundo. Eu tenho até trono da África. O que é que eu faço com isso?
Depois da declaração autoelogiosa do ex-presidente, a Globo relembra o caso do sítio Atibaia e sua relação com a Odebrecht: “O presidente também falou do sítio que, segundo o Ministério Público, foi reformado por conta da Construtora Odebrecht. Lula voltou a dizer que a propriedade é de amigos. E procurou desqualificar aquilo que os investigadores da Lava Jato consideram ser indícios de que seria ele o dono do imóvel”. Depois desse enquadramento, soa deslocada a resposta de Lula às acusações do Ministério Público, em que afirma o quão ridículo é a investigação da compra de um pedalinho como parte do que nomeia como “espetáculo midiático”. Para finalizar a reprodução da primeira parte do discurso, a Globo sintetiza o que o telespectador deve reter, na voz de William Bonner: “Lula também fez uma defesa das empreiteiras que contrataram palestras dele. E minimizou o fato de serem envolvidas nos desvios de dinheiro da Petrobras”.
Eis o ponto de máxima polarização entre Lula e a Globo, porque, nesse mesmo discurso, ele coloca a mídia sob a linha de tiro. A âncora Renata Vasconcelos introduz assim a fala de Lula a esse respeito:
O ex-Presidente fez críticas à cobertura que a imprensa está dando às investigações da Lava Jato. [Lula] Eu não tô indignado com, com jornalista não. Eu tô indignado com o comportamento de determinados meios de comunicação. Eu tô indignado com o julgamento precipitado. Hoje quem condena as pessoas são as manchetes. Hoje amedrontam o poder judiciário. Hoje amedrontam o Ministério Público. Hoje amedrontam a Polícia Federal e amedrontam os políticos.
Em escala decrescente de universalidade, todas as instituições estariam sujeitas ao poder da mídia, segundo Lula. Ao mesmo tempo, a fala sugere que, se tais instituições não podem ser alvo de uma crítica tão aguda, a mídia pode, especialmente a Globo.
Contra o “ataque” sofrido, a emissora escolhe a estratégia da vitimização: “Equipes que trabalhavam na cobertura do depoimento do ex-Presidente Lula da… do ex-Presidente Lula foram hostilizadas hoje”. Na sequência, o JN relata a intimidação sofrida pelos repórteres na manifestação a favor do ex-presidente:
Um grupo de manifestantes cercou os repórteres Renato Biazzi e Davi Curen, em frente ao aeroporto de Congonhas. Como a gente viu há pouco, a repórter Maiara Teixeira, do Profissão Repórter, fazia algumas entrevistas em frente ao diretório do PT, quando uma mulher pediu que ela se identificasse. Ao dizer que era do Profissão Repórter, programa da TV Globo, um grupo tentou arrancar a câmera, mas Maiara conseguiu sair ajudada por militantes. Os jornalistas Roberto Covalique e Marco Antônio Gonçalves, foram xingados em frente à casa do ex-Presidente Lula em São Bernardo. A polícia precisou afastar dois manifestantes.
Ampliando os elementos para sugerir que os manifestantes são contrários à liberdade de imprensa, William Bonner menciona o repúdio da ABERT (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), da FENAJ (Federação Nacional de Jornalistas) e da ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) a “qualquer tipo de violência que impeça os profissionais de imprensa de cobrir fatos de interesse da sociedade”. Por fim, a Globo reafirma seu alinhamento ao “interesse nacional” quando William Bonner diz: “A TV Globo repudia esses atos e se solidariza com seus profissionais, que não fazem mais do que relatar com isenção e profissionalismo fatos relevantes para os brasileiros”. O questionamento da objetividade leva o JN a uma posição defensiva e a uma disputa aberta com Lula pela defesa dos “brasileiros”. A condução coercitiva e seu enquadramento pela Globo foram um passo decisivo na preparação do golpe parlamentar, já que Dilma aparece como uma criação do ex-presidente e as figuras de ambos são implicadas uma com a outra, na cobertura.
O rito de destituição de Dilma, apesar de ter se completado somente em 31 de agosto, teve seu momento mais forte na edição de 12 de maio de 2016, quando a aceitação do processo de impeachment pelo Senado afastou a Presidenta eleita e determinou a posse do vice Michel Temer. Antes disso, em 18 de abril de 2016, um dia depois do domingo em que a Câmara autorizou o Senado a abrir o processo contra Dilma, o JN construiu a passagem da figura de Presidenta à figura de ré. William Bonner abre assim o primeiro bloco do jornal: “Pouco mais de 12 horas depois da votação da Câmara, o Senado recebeu hoje à tarde o pedido de impeachment da Presidente Dilma Rousseff”. Mais, uma vez, o JN recorre ao “efeito legalidade”. A repórter Zuleide Silva enfatiza essa dimensão:
De carrinho, com 12 mil e 44 páginas, foi assim que a pilha de documentos, o processo de impeachment da Presidente Dilma chegou ao Senado. Na sequência, formalmente, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, passou tudo para o presidente do Senado, Renan Calheiros. Amanhã à tarde, no Plenário, vai ser feita a leitura da denúncia e da autorização da Câmara, para que o processo siga adiante. Depois, o presidente do Senado, Renan Calheiros, vai discutir com líderes, o ritmo dos próximos passos.
Na sequência, a repórter ainda rememoraria os passos seguintes, nos quais fica claro que o respeito às normas teria que ser chancelado por quem, na cobertura, ocupa o lugar da máxima instância universal: o STF. Continua a repórter:
O Supremo Tribunal Federal determinou que o rito a ser seguido no impeachment seja o mesmo usado no afastamento do então Presidente Fernando Collor. Assim, a partir deste momento, o processo passaria a ser comandado pelo Presidente do Supremo, o ministro Ricardo Lewandowski. A mesma comissão de senadores que atuou na etapa anterior passará então a analisar as acusações. A Presidente Dilma, já como ré, vai ter um prazo ainda não definido para se defender. Testemunhas vão ser ouvidas, provas coletadas, a comissão vai então fazer um novo parecer, que vai ser então votado pela própria comissão e depois no Plenário. Se for rejeitado, o processo é arquivado e a Presidente Dilma, reassume o cargo. Se for aprovado novamente por maioria simples, aí sim começa o julgamento. A Presidente Dilma poderá comparecer pessoalmente para se defender. E o impeachment só é aprovado com o voto de 54 dos 81 senadores. Rejeitado, a Presidente reassume o mandato. Se for aprovado, a Presidente é condenada, perde o cargo e fica inelegível por 8 anos. E Michel Temer assume definitivamente o cargo até a conclusão do atual mandato, em 2018.
A reportagem é uma preparação para as etapas seguintes do rito que findaria por afastar Dilma da Presidência. Chamamos a atenção para a importância do uso da linguagem jurídica, que serve para tecer uma aproximação semântica entre a figura de Dilma e o universo da criminalidade, onde testemunhas são ouvidas e provas são coletadas. Mas é sem dúvida a antecipação da imputação da condição de ré a Dilma que mais dirige a interpretação do trecho para aquilo que é o sentido geral da edição em seu conjunto: “Dilma é uma criminosa”.
A denúncia dos vieses jurídicos e midiáticos que conduziram ao golpe parlamentar, inclusive pelos atores ouvidos pelo JN, obriga as instâncias de poder a explicitar a regularidade do processo na voz de William Bonner:
Os presidentes do Supremo e do Senado anunciaram que vão compor em conjunto um roteiro pra determinar os próximos passos do processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff. Esse roteiro vai ser elaborado pelas assessorias jurídicas do Senado e do Supremo, e será submetido a todos os ministros do STF pra verificar se estará de acordo com a Constituição, com a lei dos crimes de responsabilidade e com o rito do impeachment de Fernando Collor.
Um segundo aspecto a ser ressaltado é que, no relato das disputas na Câmara durante a votação na edição de 18 de abril, fica clara a maneira pela qual o JN situa a oposição como particular em alguns momentos, quando fala da polarização em relação aos partidos aliados da Presidenta, mas a trata como o polo passível de ser universalizado. Um trecho da mesma reportagem evidencia isto com toda a clareza: “A continuidade do processo de impeachment recebeu 100% dos votos de 9 partidos: PSDB, Democratas, PPS, Solidariedade, PRB, PSC, PSL, PV e PMB. A Presidente recebeu 100% dos votos de três partidos: PT, PCdoB e PSOL”. De um lado, os votos são para o impeachment, já laureado de legitimidade; de outro, os poucos partidos que votaram na Presidenta. Uns são votos para o Brasil; outros, para Dilma. Enquanto a oposição falava em salvar o país, o PT e seus aliados apareciam falando em luta.
Mas é a edição de 12 de maio que encena o momento mais forte do rito de destituição. Já na escalada, o telejornal assume um sentido solene de pretensa responsabilidade histórica:
Renata Vasconcelos – 12 de maio de 2016.
William Bonner – 6h33 em Brasília.
RV – Os votos de 55 senadores aprovam a abertura de processo de impeachment.
WB – O afastamento de Dilma Rousseff por até 6 meses.
RV – Ela se aproxima de simpatizantes ao deixar o Palácio do Planalto.
WB – Repete no discurso que é vítima de um golpe.
RV – E diz que vai lutar até o fim.
WB – Michel Temer se torna Presidente em exercício do Brasil.
RV – Dá posse aos novos ministros.
WB – E no primeiro pronunciamento oficial fala em confiança.
RV – Em manter e aprimorar os programas sociais.
WB – Em reequilibrar as contas públicas.
RV – Em combater o desemprego.
WB – Diz que vai promover reformas fundamentais sem mexer nos direitos adquiridos.
RV – Defende a Operação Lava Jato.
WB – E um governo de salvação nacional, contra a crise econômica.
[Trecho discurso Michel Temer]
Michel Temer – O diálogo é o primeiro passo para enfrentarmos os desafios para avançar e garantir a retomada do crescimento.
RV – Nossos repórteres mostram os bastidores da sessão histórica que durou mais de 20 horas no Senado.
WB – As trajetórias políticas de Dilma e de Temer.
RV – E os próximos passos do encaminhamento do impeachment no Senado, sob o comando do Presidente do Supremo Tribunal Federal.
WB – Boa noite.
RV – Boa noite. O Jornal Nacional está começando.
O trecho encena o rito de destituição que reduz Dilma definitivamente à condição de pessoa física ao retirar-lhe a autoridade universal de Presidenta do Brasil. Simultaneamente, é o rito de instituição de Temer, um vice-presidente sem expressão política que precisa ser investido de alguma autoridade através da associação aos interesses da nação. A este respeito, a crise econômica foi fundamental para traduzir, na linguagem acessível da perda do emprego e da queda na renda, os “crimes” do PT. Se alguém ainda suspeitasse da injustiça em curso, esse último recurso seria a garantia de que o caminho adotado era o melhor para o “Brasil”. Ao dar posse aos ministros, afirmar que vai manter os programas sociais e combater a crise econômica, é como se Temer se colocasse à altura do desafio de “salvar a nação”. Ao mesmo tempo, a figura de Dilma que começa sendo o objeto preferencial da narrativa vai se esmaecendo ao longo da escalada, e de toda a edição, como uma carta saindo do baralho. Após informar o seu afastamento, o telejornal já mostra Dilma do lado de fora do Palácio para em seguida engatar a construção da nova realidade de Temer presidente.
Na sequência, o primeiro bloco apresenta a votação no Senado, em que se dá a lenta e conflituosa emergência do universal a partir da miríade de vozes dissonantes, bem como o apagamento do conflito uma vez que a maioria tomou uma decisão. Depois da fala de senadores favoráveis ao golpe, o repórter tematiza a passagem das vozes dos senadores à voz do Senado, do pronunciamento do presidente da comissão, senador Raimundo Lira, passando pelas falas da acusação e da defesa, até o juízo final:
Heraldo Pereira [repórter] – Já passava das 5h30 da manhã quando o senador peemedebista Raimundo Lira, que presidiu a comissão que aprovou o relatório pela admissibilidade do processo de impeachment contra a Presidente Dilma, subiu à tribuna. Ele falou depois de outros 70 senadores e defendeu que o Plenário aceitasse a admissibilidade do processo de impeachment. Sen. Raimundo Lira, PMDB-PB [presidente da Comissão do Impeachment] – “Defini com clareza três pontos fundamentais que balizaram a minha forma de exercer essa nobre tarefa. Primeiro, comportamento suprapartidário. Segundo, imparcialidade na condução dos trabalhos. E terceiro, não permiti que a maioria esmagasse a minoria.”
HP – Quase no fim vieram a acusação e a defesa. O relator do processo, Antônio Anastasya, do PSDB, falou da existência de indícios de crimes de responsabilidade e citou a decisão mais recente, do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki, em defesa do rito do impeachment, pra reforçar o posicionamento de que o julgamento de mérito do processo cabe ao Senado.
A disputa semântica em torno das palavras “golpe” e “impeachment” tem como foco a legitimidade do processo, que é alcançada através da legalidade ritualizada nas instâncias de poder e encenada na cobertura da Globo. O “comportamento suprapartidário”, a “imparcialidade na condução dos trabalhos” e a chancela do ministro do STF garantem o efeito de “normalidade democrática”. Isso fica evidente na maneira como o repórter introduz um trecho do discurso do advogado de defesa de Dilma, José Eduardo Cardozo.
Heraldo Pereira – Ele voltou a classificar como golpe o impeachment contra Dilma. José Eduardo Cardozo [então advogado-geral da União] – “Há golpe com direito de defesa. Justamente para simular a legitimidade. E é o que ocorre nesse processo... Por isso, senhor presidente, volto a concluir, afirmo: está nesse momento condenando uma mulher honesta e inocente”.
O trecho é muito interessante porque explicita a diferença de estatuto entre o “golpe” e o “impeachment” na cobertura: o advogado classifica como golpe o que é um impeachment. O uso de um verbo particularista, como vimos, estabelece que “argumentos à parte, fato é...”. A expressão “golpe com direito de defesa” também é muito cheia de significado, porque indica a ambiguidade da posição dos antigolpistas participantes do processo, sua adesão pela participação (com direito à defesa) e sua recusa ao denunciar a distância entre legalidade e legitimidade.
Depois de mostrar os defensores de Dilma como rabugentos que reclamam sem razão, o repórter sintetiza o sentido de tudo o que foi dito antes: “Passadas quase 21 horas e meia, chegou o momento da votação. A peemedebista, Senadora Rose de Freitas, chegou em cadeira de rodas. 78 senadores estavam presentes. 40 votos, maioria simples, estavam suficientes para aprovar a abertura do processo. Em menos de 2 minutos, o resultado.”
O debate extenso é a garantia de que houve, sim, direito à defesa, e o tempo curto para a votação indica que não houve dúvidas: Dilma é culpada. Para encerrar o rito, o presidente do Senado proclama o resultado: “‘Sim’: 55 [ao fundo senadores comemorando]. ‘Não’: 22. O parecer foi aprovado”. O peso da maioria é o primeiro momento da universalização da posição particular pró-golpe, o que é reforçado pela notícia de que senadores até então aliados votaram a favor da saída de Dilma. O efeito é de que o PT teria ficado sozinho, como particular que é, diante da constatação da verdade por parte dos demais partidos.
Concluído o rito de destituição no espaço imaginário da nação construído pela Globo a partir do plenário do Senado, era importante mostrar Dilma sendo reduzida à condição de pessoa comum, como prova da efetividade do rito e da força do universal que não está nela, mas no “povo” representado pela Globo e pelas instâncias de poder estatais. Em estúdio, William Bonner chama a reportagem:
A Presidente afastada, Dilma Rousseff, recebeu apoio de manifestantes na saída do Palácio do Planalto. Logo que foi informada oficialmente do afastamento, ela disse em discurso que vai lutar até o fim.
Zuleide Silva – Pouco antes das 10 da manhã, a ainda Presidente, Dilma Rousseff, deixou o Palácio da Alvorada e foi para o Planalto. Vinte e oito dos trinta e dois ministros do governo dela foram exonerados na véspera. Dilma Rousseff já tinha chegado ao Planalto quando o primeiro secretário do Senado, Vicentinho Alves, do PR, seguiu para lá. Foi informada oficialmente do afastamento. O momento em que Dilma Rousseff foi intimada para se afastar temporariamente da Presidência da República não foi aberto para a imprensa, mas esse salão do Palácio do Planalto já estava lotado. Todos esperando uma declaração dela. O senador disse que ela estava tranquila.
Do ponto de vista da encenação do rito, é uma pena que o momento da queda tenha sido vedado à imprensa, mas nem por isso o aparato jornalístico vai demonstrar algum pudor em entrevistar os mais próximos em busca da reconstrução do instante em que Dilma, ao acatar a decisão, reconhece que não é mais a encarnação do universal que, como Presidenta, pretendeu ser.
Mais uma vez, o enquadramento do discurso de Dilma esvazia a sua pretensão à universalização, já que Zuleide Silva diz: “Em seu pronunciamento, cercada pelos agora ex-ministros, senadores e deputados do PT e do PCdoB e assessores, Dilma Rousseff fez um balanço dos governos petistas”. Chamada apenas pelo nome próprio, Dilma aparece preocupada com os “governos petistas”, ao contrário de outras chaves de interpretação possíveis de seu discurso:
O que está em jogo é o respeito às urnas, a vontade soberana do povo brasileiro e a Constituição. O que está em jogo são as conquistas dos últimos 13 anos, os ganhos das pessoas mais pobres, e da classe média, a proteção às crianças, os jovens chegando às universidades e às escolas técnicas, a valorização do salário mínimo, os médicos atendendo a população, a realização do sonho da casa própria, com mais, com “Minha Casa, Minha Vida”. O que está em jogo é também a grande descoberta do Brasil, o pré-sal. O que está em jogo é o futuro do país, a oportunidade e a esperança de avançar sempre mais.
Depois da clara pretensão da Presidenta em representar os interesses da maioria, a Globo reafirma o caráter particularista do governo Dilma na forma como introduz os trechos reproduzidos no telejornal, através de uma escolha cuidadosa dos verbos que caracterizam o discurso como discurso, e não como relato dos fatos: “Repetiu que é vítima de uma oposição que não aceitou a derrota nas urnas”. Dilma Rousseff:
Desde que fui eleita, parte da oposição inconformada pediu recontagem de votos, tentou anular as eleições, e depois passou a conspirar abertamente pelo meu impeachment. Mergulhar um país num estado permanente de instabilidade política, impedindo a recuperação da economia, com um único objetivo: de tomar à força o que não conquistaram nas urnas. Meu governo tem sido alvo de intensa e incessante sabotagem. O objetivo evidente vem sendo me impedir de governar e assim forjar o meio ambiente propício ao golpe. Quando uma presidente eleita é cassada sob acusação de um crime que não cometeu, o nome que se dá a isso, num mundo democrático, não é impeachment, é golpe.
O trecho situa Dilma e o PT em uma posição política particular, e a passagem do “impeachment” ao “golpe” é a tentativa de destituir a oposição de sua pretensão à universalidade. Assim como na disputa discursiva entre Lula e a Globo que vimos anteriormente, a posição entre os atores é muito desigual, porque de um lado, está quem só pode falar em nome de uma parcela da sociedade e, de outro, estão os que monopolizam o direito de falar em nome da nação. Toda a cobertura visa inverter a posição majoritária do PT, conquistada nas urnas e, por isso, revestida da autoridade universal da Presidência da República, em uma posição mais do que minoritária, sectária até, de quem defende os interesses de um partido ou de uma quadrilha. No ponto máximo do rito de destituição, a tendência reaparece mais uma vez. Introduzindo a fala final de Dilma, Zuleide Silva diz que “ela não vê motivos para afastamento e que lutará até o fim”. Dilma Rousseff: “Não cometi crime de responsabilidade. Não há razão para o processo de impeachment. Não tenho contas no exterior. Nunca recebi propinas. Jamais compactuei com a corrupção. Jamais vamos desistir. Jamais vou desistir de lutar. Muito obrigado a todos”. Reclamações à parte, a repórter encerra a cobertura e, com ela, o momento mais importante do rito de destituição, a partir do qual a Presidenta aparece despojada de suas “vestes reais”: “Dilma terminou o discurso e foi para o lado de fora do Palácio do Planalto”.
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THOMPSON, John. O escândalo político – poder e visibilidade na era da mídia. Petrópolis: Vozes, 2002.
A Pesquisa Brasileira de Mídia mostra claramente a predominância da TV como veículo de radiodifusão mais importante do país (PBM, 2015). Além disso, a mesma pesquisa mostra o caráter policlassista da audiência da TV, o que lhe confere uma importância singular na imaginação da “nação”.↩
Uma grande dificuldade para os estudos de mídia no Brasil é a inexistência de um arquivo público em que pudesse estar disponível todo o conteúdo veiculado em radiodifusão no país, a exemplo do INA francês. Para esse estudo, tivemos que cotejar o material disponível no site da Globo com aquele disponível no youtube e efetuar uma checagem ponto a ponto para ter certeza de que obtivemos cada edição na íntegra.↩
O método empregado se baseia no conceito barthesiano de “mito”, que permite analisar a maneira como a ideologia se organiza, configurando certo “modo de significação” em que um signo primeiro serve de significante para que outro signo se construa. Ao fazer isso, oculta a dimensão valorativa, conotativa da linguagem, por trás da dimensão descritiva, denotativa. Na produção de mitos, uma foto, uma imagem em movimento, um índice estatístico, um dado econométrico, uma gravação telefônica são usados para naturalizar valores embutindo-os em uma aparente descrição dos fatos. O mito opera a universalização e a naturalização simultaneamente, pretendendo mostrar “o que simplesmente é” e ocultando o fato de que um relato sobre o mundo é sempre uma interpretação situada. Por isso, ele é muito apropriado para mostrar de que maneira, no plano da linguagem, se opera a transubstanciação do “particular” em “universal”, como certa visão de mundo pretensamente se converte em uma mera apresentação dos fatos.↩
Na abordagem dos escândalos políticos, Thompson defende a centralidade da mídia como âmbito central da vida política (THOMPSON, 2002).↩
O tema da corrupção permite a moralização do debate e tem sido usado pela mídia brasileira desde a Era Vargas para minar a autoridade de lideranças que não agradam completamente às elites, das quais, vale lembrar, também fazem parte os empresários da comunicação. (AMORIM, 2015).↩
Como é sabido, a tentativa de esvaziamento do capital político e simbólico do PT pela grande mídia nacional não vem de hoje, haja vista a munição gasta para tentar evitar a reeleição de Lula, em 2006, com o chamado “escândalo do Mensalão” (LIMA, 2007). Naquele ano, o fracasso da empreitada sugeriu que as relações entre a mídia e o público são muito complexas, crivadas de “mediações” tais como os vínculos familiares, associativos e religiosos, além dos contextos político e econômico, cujo sentido os grandes veículos contribuem para construir, mas a partir de dinâmicas sociais que não controlam. (HALL, 2003; BARBERO, 2001; BIROLI; MIGUEL, 2013).↩
Analisando a cobertura das convenções nacionais do PT, do PSDB e do PV em 2010, Sanglard e Leal identificaram a tendência do JN de realçar os aspectos negativos da política, bem como a predominância do escândalo político como enquadramento preferencial nas notícias sobre o tema (2010).↩
Na verdade, esse recurso já vinha sendo utilizado de modo sistemático. Cf. textos de Bia Barbosa e Helena Martins disponíveis em www.cartacapital.com.br e www.cartacapital.com.br.↩
Infelizmente não é possível discutir, nos limites desse texto, outra base de justificação do golpe que podemos chamar de “o crime é a crise”. Frequentemente, depois de relembrar o respeito aos procedimentos jurídicos e legislativos usados no afastamento de Dilma, o JN fazia uso de dados sobre queda do emprego e da renda, além de aumento da inflação, para traduzir em linguagem mais acessível e direta os erros cometidos pelo PT e pela Presidenta, já que o jargão jurídico e político pode ter o sentido, para as classes populares, de impor uma distância respeitosa, como mostrou Bourdieu em relação ao caso francês (BOURDIEU, 2007). A análise precisa manter em foco o caráter policlassista da audiência da TV no Brasil (Cf. Pesquisa Brasileira de Mídia, 2015) para, dessa forma, mesmo sem alcançar a dimensão da recepção, se aproximar de uma “sociologia dos leitores” defendida por Erick Neveu (2001), que leva em conta a posição do veículo no campo da oferta de opiniões político-ideológicas, definida por seu público. Um veículo como a Globo e um programa como o JN tem um papel importante de legitimação do jogo político diante das classes populares pouco mobilizadas, quer para incentivar a sua adesão ao projeto conservador, quer para simplesmente reforçar a sensação de que “isso não é para elas”.↩
A noção goffmaniana de “enquadramento” tem sido usada para apontar a maneira como a produção jornalística opera destacando os elementos que considera mais importantes nos fatos e tecendo a sua chave interpretativa preferencial. (Cf. GITLIN, 1980; ENTMAN, 1993). Aqui, ela será usada para assinalar a forma predominante de incorporação dos contradiscursos à narrativa do golpe, que tende a esvaziá-los ao associá-los ao polo particularista.↩
A escalada é a abertura do telejornal, quando são lidas as manchetes daquela edição.↩
Resumo:
A sociologia trata correntemente dos ritos de instituição através dos quais os indivíduos se tornam estatutariamente depositários do poder do Estado (BOURDIEU, 2014). Mas o golpe de 2016 no Brasil oferece uma rara ocasião de analisar um rito de destituição em que diferentes instâncias do poder estatal convergiram no propósito de esvaziar o capital simbólico da Presidenta da República eleita em 2014. Se o lugar institucional do Golpe foi o plenário das duas casas do Congresso, seu principal nicho simbólico foi a bancada do Jornal Nacional (JN). Seguindo os passos decisivos da fase final do longo rito de destituição, analisamos cinco edições do JN, selecionadas em função da relevância para o propósito da pesquisa, de reconstituir analiticamente a narrativa de desconstrução da autoridade universal de Dilma Roussef enquanto Presidenta. São elas: a de 04 de março, dia da condução coercitiva de Lula determinada por Sérgio Moro; a de 16 de março, quando foi divulgada a gravação de uma conversa telefônica entre Dilma e Lula a respeito da nomeação deste último como Ministro da Casa Civil; a de 18 de abril, data da votação na Câmara dos Deputados que autorizou a abertura do processo para o afastamento da Presidenta; a de 12 de maio, dia da saída de Dilma e da posse de Temer como presidente interino; e a de 31 de agosto, quando o senado aprovou o afastamento definitivo da Presidenta. Utilizamos, para tanto, a análise de estrutura (BARTHES, 2003), buscando evidenciar o modo como se constitui hoje o monopólio social da ideia de “nação”, uma vez que um dos polos da disputa costuma ser apresentado como baluarte do “interesse nacional”, enquanto na outra ponta do espectro político, os atores são retratados pelo JN como particularistas, ligados a interesses partidários e criminosos.
Palavras-chave:
Jornal Nacional; Dilma Roussef; Golpe; Impeachment; Nação.
Abstract:
Sociology is currently concerned with the rites of institution through which individuals become the custodians of state power (BOURDIEU, 2014). But the coup of 2016 in Brazil offers a rare opportunity to analyze a rite of dismissal in which different instances of state power converged on the purpose of emptying the symbolic capital of the elected President of the Republic. But if the institutional place of the coup was the Plenary of the two houses of Congress, its main symbolic niche was the Jornal Nacional. Following the decisive steps in this long process, we analyzed five editions of the JN, selected according to the relevance for the purpose of the research: The March 4, day of the coercive conduction of Lula determined by Sérgio Moro; The March 16, when it was announced the recording of a telephone conversation between Dilma and Lula regarding the appointment of the latter as Minister of the Civil House; The April 18, the date of the vote in the Chamber of Deputies that authorized the opening of the process for the removal of the President; The May 12, the day of the dismissal of Dilma and the inauguration of Temer; And the August 31, when the Senate approved the definitive dismissal of Dilma. For this purpose, we use content analysis (BARTHES, 2003) seeking to demonstrate how the social monopoly of the idea of “nation” is constituted today, since one of the poles of the dispute is usually presented as a bulwark of “national interest” while in the opposite side, actors are portrayed by the JN as particularists, linked to partisan and criminal interests.
Keywords:
Jornal Nacional; Dilma Roussef; Coup; Impeachment; Nation.
Recebido para publicação em 02/07/2018
Aceito em 06/08/2018.