Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 1, mar./jun., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.1.a03
ISSN: 2318-4620

 

 

Menos é Mais:
Os Waldorfs Downshifters

 

Elaine Azevedo OrcID
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
elainepeled@gmail.com

Daniel Coelho de Oliveira OrcID
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
daniel.oliveira@unimontes.br

 

Introdução

O fenômeno downshifting — desacelerar ou mudar para menos — mobiliza estudos nas Ciências Sociais, mas ainda carece de precisão teórica e conceitual. Azevedo e Coelho (2016) mostram que

o termo assume um tipo de comportamento social no qual os indivíduos urbanos optam por desacelerar e simplificar seus cotidianos. Buscam frugalidade e equilíbrio entre trabalho e lazer, de forma a diminuir os efeitos do estilo de vida das sociedades industriais capitalistas como a sobrecarga laboral, a depressão e o estresse. Downshifters são as pessoas que trabalham menos e consomem pouco; aceitam menos dinheiro em troca de mais horas de lazer para realizar o que pensam ser atividades essenciais na vida. Estão prontos para se envolver com atividades sustentáveis do ponto de vista ambiental. São indivíduos que buscar minimizar seu consumo, sem no entanto ter a obrigação de viver na pobreza ou no isolamento. Os adeptos da vida simples não negam, necessariamente, o progresso tecnológico ou a beleza material (...) Preocupam-se com a qualidade de vida, com meio ambiente, com questões sociais e com os direitos dos animais (AZEVEDO; COELHO, p. 2).

Esses autores compilaram diferentes movimentos e grupos que incorporam comportamentos desaceleradores como o Minimalismo discutido por Jay (2016), o Simplicidade Voluntária e o The Center for a New American Dream1 que assumem práticas de resistência ao consumo. Citam ainda o Slow Movement, cujos adeptos renunciam ao materialismo e da vida rápida em direção a uma vida devagar e “conectada”. No âmbito da Economia encontram-se diferentes abordagens desaceleradoras. O economista inglês Ernst Friedrich Schumacher já fez a apologia da pequenez no seu livro Small is Beautiful. O precursor da Teoria do Decrescimento Serge Latouche defende uma sociedade que produza e consuma menos. André Seagre e sua Economia do Suficiente enfatiza a cultura da suficiência em um mundo com menos desigualdades sociais, “menos bem estar e mais bem viver” (CAROTENUTO, 2012, s/p). Schor e Thompson (2014) debruçam-se sobre a Economia Plena, assumida por pessoas que desejam trabalhar e gastar menos e criar mais, ao mesmo tempo em que contribuem para minimizar os problemas socioambientais globais. O Freeganismo dialoga com as premissas do anarquismo verde ou eco-anarquismo e se define como um estilo de vida que busca autonomia do capitalismo e do industrialismo a partir de práticas cooperativas de autogestão e mutualismo. Movimentos com caráter panteísta também assumem premissas desaceleradoras como Satish Kumar e o Sea Change que se propõe a ajudar a fazer mudanças de hábitos a partir das diretrizes da filosofia Zen (AZEVEDO; COELHO, 2016).

Os Cultural Creatives foram pesquisados entre 1986 e 2008 por Ray e Anderson (2000). Para eles, é crescente o número de estadunidenses nos EUA, maioria de classe média, que aderem à proposta ao escolher viver uma vida equilibrada de crescimento pessoal e espiritual que assegure seu bem estar e saúde pessoal, a sustentabilidade do planeta e a qualidade de vida das futuras gerações.

Sem desconsiderar o tom demasiadamente positivo do estudo, é possível levantar algumas características, comuns ao perfil dos cultural creatives que serviram de base para as entrevistas desse estudo. Segundo Ray e Anderson (2000), os cultural creatives seriam indivíduos que:

  1. Buscam por trabalhos coerentes com seu estilo de vida e promovem ou se envolvem em propostas de autoconhecimento e desenvolvimento espiritual como: práticas de consciência corporal, workshops de gerenciamento de estresses e de desenvolvimento espiritual não necessariamente ligados à sua religião de origem..

  2. São interessados em manter relações sólidas; valorizam autenticidade e ações altruístas e voluntárias e o coletivismo. Promovem práticas de transporte coletivo e de compras, moradia e escolas cooperativas.

  3. Fomentam estilo de vida saudável a partir do consumo de cosméticos e alimentos “naturais” e/ou orgânicos. Tratam-se com Medicinas tradicionais e práticas integrativas e complementares

  4. Promovem a economia solidária e a responsabilidade socioambiental no ato do consumo; se importam-se com consumo excessivo e predatório. Ajustam seu estilo de vida às premissas de redução, reutilização e reciclagem de roupas, móveis, objetos em geral. Preocupam-se com uso de energia e transporte sustentáveis, com investimentos sociais e práticas ecológicas de moradia (ecovilas), turismo (ecoturismo), produção e consumo;

  5. Assumem a preocupação com a preservação do meio ambiente;

  6. Preocupam-se com justiça social e com ativismo político não formal. São ativistas ambientais e sociais em favor de minorias étnico-raciais, de gênero e de orientação sexual. Envolvem-se em organizações e movimentos que lutam pela paz, pelo meio ambiente e pela garantia de direitos civis e sociais.

  7. São reticentes frente à ciência e à tecnologia, mas não prescindem das integrações tecnológicas e da vida com qualidade e conforto.

Em estudos empíricos, Nelson e colaboradores (2007) estudaram indivíduos ligados a organização Freecycle que pratica a cultura da dádiva. Schor e Thompson (2014) e Hanore (2011) exploraram o fenômeno para além do consumo, a partir de uma variedade de práticas cotidianas definidas como sustentáveis.

No caso desse estudo, optou-se por abordar famílias vinculadas a Pedagogia Waldorf. Assume-se aqui que as famílias que escolhem esse tipo de Pedagogia estão buscando, para além de uma escola diferenciada, um estilo de vida downshifting.

Essa afirmação é endossada por Pinto (2009, p. 45) em sua pesquisa com famílias Waldorf ao mostrar que os “sinais de contracultura que permeiam a Pedagogia Waldorf” estão presentes também nas famílias que optam por essa pedagogia, “traduzindo, em certo grau, na identificação dos agentes envolvidos com uma mesma cultura”.

De acordo com essa autora, a investigação de famílias das camadas médias a partir da sua opção de escolarização dos filhos vem ganhando maior atenção no campo acadêmico. Isso porque a escolha da instituição de ensino pode determinar um perfil particular da comunidade escolar. Ou seja, no caso essa escola “não-tradicional”, ou “alternativa”, seria, de certa forma, o reflexo de um “estilo de vida não tradicional” dessas famílias. Essa foi a força motriz da escolha desse grupo, bem definida por Carlgreen e Lingborg (2006, p. 201): “(...) com o termo ‘Pedagogia Waldorf’ estamos nos referindo à arte de educar criada por Rudolf Steiner; não se trata de uma coletânea de métodos pedagógicos, mas sim de uma postura de vida”.

Pinto (2009, p. 46) reforça essa citação e mostra que a construção de uma “identidade partilhada” se impõe de forma especialmente marcante nas Escolas Waldorf a ponto de:

o termo “Waldorf”, de nome próprio, passou a ser recorrentemente utilizado como adjetivo, remetendo a um “estilo de vida” que se refere, não só às escolas, mas a características de objetos, comportamentos e a todos os atores sociais envolvidos com esta pedagogia. Assim, o uso dos termos: “aluno Waldorf”, “mãe Waldorf”, “professor Waldorf”, entre outros, aponta a importância que essa identidade escolar assume para a constituição também do habitus familiar neste contexto (PINTO, 2009, p. 46).

Essa mesma autora observou que o grupo em questão se encaixa na chamada nova pequena burguesia, estrato que compõe a maioria dos indivíduos que busca práticas pedagógicas que se opõem ao tradicional. Sob as premissas e termos bourdieuanas, essas famílias buscam substituir a “tensão pelo relaxamento”, a “disciplina pela criatividade e liberdade” e o prazer — não só autorizado, mas também exigido — como elemento propulsor de suas ações, sob uma postura de “hostilidade à hierarquia”. Dessa forma, esse grupo ao se alimentar de comidas “naturais”, vestir-se com roupas de puro algodão, seda ou linho, usar brinquedos de madeira, lã pura e cera de abelha e materiais reciclados ou recicláveis, distingue-se da cultura dominante, retoma premissas e práticas cotidianas tradicionais reproduzindo um estilo de vida alternativo que trava uma luta contra o “conservadorismo das classes dominantes” (PINTO, 2009, p. 48-49).

Explorar como esses atores se comportam frente a essa opção é o objetivo desse estudo de maneira a contribuir para compreender esse difuso comportamento social.

Pedagogias desaceleradoras

De forma geral, a educação moderna é herdeira da tradição epistemológica racionalista e mecanicista e caracterizou-se por instituir uma forma de ensinar centralmente voltada para a aprendizagem cognitiva conceitual. A escola baseada no que Payne e Wattchow (2009) chamam de take away pedagogy.

Ao pensar a análise educacional a partir da perspectiva weberiana, Carvalho (2006) destaca que no processo de educação hegemônico o aluno tem apenas o dever de cumprir um tempo previamente determinado, em um processo cuja o aspecto principal é a homogeneização e a racionalização. Neste sentido, a lógica institucional da maioria dos sistemas escolares se reflete na materialização antilibertária dos indivíduos, conforme seus próprios fins institucionais.

De acordo com Hanore (2011), a busca pela excelência de resultados nas escolas do mundo anglo-saxônico é uma tentativa de copiar o modelo do Leste asiático. Nas últimas décadas, os governos passaram a adotar a doutrina baseada na “intensificação”; em mais deveres de casa, mais exames e na rigidez curricular. Neste cenário, Maurice Holt (2002) publicou um manifesto em defesa do “Ensino Devagar”. Seu argumento sugere que sobrecarregar crianças com informação na maior velocidade possível demonstra o mesmo pensamento determinístico que governa a produção do fast food:

(...). O que se busca é uma concepção de prática educativa definida em termos de conteúdo e sequência e acessada a partir de objetivos previamente combinados e passiveis de serem expressos numericamente. A relação entre o professor e o aluno deve ser tão previsível quanto possível, e a variação entre um professor e outro pode ser compensada padronizando os encontros de aprendizado e dificultando as formas de avaliação. Se o propósito da educação é fornecer os conhecimentos e habilidades que o mundo dos negócios necessita, esta abordagem fast food reduz os custos, padroniza recursos e reduz a formação de professores a um processo baseado na escola. Acima de tudo, a eficácia da operação pode ser medida e os resultados podem ser utilizados para controlar o processo e seus funcionários — os professores (HOLT, 2002, p. 5, tradução dos autores).

Esse paradigma moderno-educacional-racionalista tende a apoiar o modo de produzir das sociedades industriais capitalistas. Gohn (2012) compila diferentes autores que sinalizam que o paradigma marxista assumiu a escola moderna como locus social encarregado de sistematizar tanto a reprodução quanto a produção e a transmissão do conhecimento, sob uma racionalidade que favorece as virtudes do capital — o cálculo, a eficiência, a precisão — em detrimento da formação humana. Em Althusser, a escola é analisada como mera reprodutora de uma ordem social difundindo ideologias de aceitação de formas de dominação existentes. Mészáros questiona a educação capitalista voltada para o consumo, a posse e o ter em detrimento do ser e da convivência e do desenvolvimento livre dos sentidos.

No Brasil contemporâneo, sob um cenário político-econômico de austeridade e de moral capitalista do tipo dependente, a recente aprovação da reforma do Ensino Médio2 é um bom exemplo dessa visão de educação que tem como premissa o determinismo tecnológico-inovador e a ideologia do capital humano — leia-se trabalhadores vinculados ao setor terciário, de serviços e de comércio, predominando ocupações informais, de baixa qualificação e baixo valor de remuneração — como motor de desenvolvimento econômico com base no neoliberalismo (MOTTA; FRIGOTTO, 2017).

O movimento de Pedagogia Crítica em Paulo Freire já reconhecia as tendências autoritárias da educação moderna e vinculava o acesso conhecimento à dissolução do poder e à capacidade de tomar atitudes críticas e coletivas.

Para além de Freire, desde o início do século XX, várias propostas de pedagogia têm buscado reintegrar a experiência subjetiva, estética e lúdica no processo de aprendizagem, descartada na educação moderna em função da ênfase ao racionalismo estrito. Tais abordagens sugerem considerar o desenvolvimento emocional e afetivo, o cultivar da sensibilidade, do lúdico e das habilidades sociais das crianças, para além do seu desenvolvimento racional e cognitivo (SILVA, 2015). Essa autora percebe a Pedagogia Waldorf como uma iniciativa educacional que segue tais premissas e segue na contramão da tendência hegemônica e aceleradora das instituições escolares que assumem os pressupostos e diretrizes destacados pelo paradigma educacional moderno.

Essa proposta de educação foi concebida e concretizada pelo filósofo austríaco Rudolf Steiner, em 1919, é atualmente praticada em mais de 900 instituições escolares nos cinco continentes (dentre as quais 62 estão no Brasil). Esse método dialoga com a proposta de educação criativa e integral do ser humano definida pelo educador Cipriano Luckesi como a prática formativa “imbuída do desenvolvimento das múltiplas dimensões do educando — a cognitiva, a afetiva, a social, a estética, a ética” (SILVA, 2015, p. 112). No senso comum, são escolas conhecidas como “não tradicionais” ou “alternativas”.

Ballion (1982), citado por Pinto (2009), ao caracterizar os estabelecimentos de ensino Waldorf, os identificou como inovadores por sua criatividade pedagógica e pelo extremo cuidado com a realização pessoal do educando originário de frações modernistas das camadas favorecidas.

A ideia da proposta Waldorf reverbera com o ideário pedagógico colocado em prática no sistema educacional finlandês, sob as diretrizes descritas por Bastos (2017): respeito à manutenção da infância; menor carga horária para a instrução formal em sala de aula e menos deveres de casa e mais tempo para o lazer e práticas experienciais; eliminação de artifícios pedagógicos de separar os educandos por capacidade acadêmica em grupos; ausência de testes padronizados para avaliação de rendimento escolar; apoio acadêmico baseado na individualidade de cada aluno; preparação para a vida e não para a avaliação; valorização da criatividade e de todas as formas de vocação e tendências individuais; valorização igualitária de todas as áreas de conhecimento; tanto do saber técnico, como das habilidades manuais e do saber da área das Humanidades (artes, poesia, música, Ciências Sociais). O autor endossa que na Finlândia, ao contrário do Brasil, o sistema educacional é inserido em uma sociedade caracterizada pelo seu alto prestígio à docência, por baixos níveis de desigualdade social, miséria e concentração de renda e em um sistema político democrático e descentralizado. A educação integra-se ao arcabouço de políticas públicas estruturantes existentes naquele Estado.

Na escola Waldorf os(as) professores(as) chamadas(os) “de classe” mantêm uma estreita relação com a família dos seus alunos realizando visitas ao ambiente doméstico e ao sistema familiar das crianças e promovendo reuniões familiares periódicas como parte do processo pedagógico que implica em conhecer profundamente as particularidades de cada aluno, suas mudanças ao longo do processo de maturação e o ambiente no qual a criança vive (LANZ, 1990). Cada turma tem essa figura que segue o grupo escolar em um sistema chamado looping, no qual um mesmo professor de classes fica com a turma por oito anos, do 1o ao 8o ano do ensino fundamental.

Para além dessas características pedagógicas em comum com o sistema educacional finlandês, a Pedagogia Waldorf estimula a participação intensa das famílias nas escolas não só no que diz respeito ao acompanhamento das atividades escolares dos filhos, mas fomenta uma íntima relação entre família e escola. Espera uma coerência e sintonia familiar com as práticas promovidas na escola de proteção à infância; de estímulo à socialização entre as crianças e à comunidade escolar; de valorização do brincar criativo e de atividades manuais, artísticas e musicais; de controle à exposição precoce às tecnologias digitais; de contato e cuidados com a natureza; de manutenção de um ritmo saudável de sono-vigília e de uma alimentação a base de alimentos frescos, integrais e, se possível, orgânicos. Além disso, as escolas Waldorf são majoritariamente associativas; funcionam sob as diretrizes do estatuto de uma associação composta por pais, funcionários e professores que mantêm financeira e administrativamente a escola e todos esses atores são estimulados a participar de comissões deliberativas: financeiras, de manutenção, de obras, de eventos e festas etc.

Mesmo que, entre as diretrizes da Pedagogia Waldorf explicitadas por Lanz (1990), não foi encontrado um objetivo político de formar adultos que questionem o sistema vigente ou que se proponham a diluir diferentes formas de poderes, a ideia embutida na proposta é formar indivíduos mais críticos, além de saudáveis. Para Oppenheimer (1999), o objetivo de educar crianças na Pedagogia Waldorf não é ajustar as crianças a nenhum sistema, mas contribuir para criar um mundo melhor a partir da ação de indivíduos equilibrados e plenos, futuros “monges contemporâneos”.

O historiador Morris Berman (2001) reitera a importância de manter a “imagem dos monges” que, a partir do século IV A.D, assumiram a responsabilidade de preservar a decência e a cultura humana dos bárbaros. “O novo monge é um humanista sagrado / secular, dedicado (...) aos valores do Iluminismo que estão no coração da nossa civilização: a busca desinteressada da verdade, o cultivo da arte, o compromisso de pensamento crítico” (BERMAN, 2001, p. 56). Seja analisando a apatia contemporânea, o aumento das inequidades, a corrupção no coração da política moderna, a “Rambificação” do entretenimento popular, o baixo nível de compreensão crítica e dos debates intelectuais ou o colapso dos nossos sistemas escolares, a análise de Berman deixa claro que há ainda trabalho politicamente relevante disponível para os “monges” de hoje. E eles concentram-se em três áreas: expor o vazio da vida moderna, redesenhar a paisagem visual que todos nós movemos e oferecer uma “educação alternativa”.

Este estudo não pretende explorar em profundidade nem as diferentes propostas pedagógicas hegemônicas ou “alternativas”, nem a Pedagogia Waldorf, mas assume que a mesma não é consoante ao paradigma moderno da educação e tende a atrair famílias que assumem o downshifting e que têm a intenção de romper com o estilo de vida tradicional a partir de seus hábitos de consumo e práticas cotidianas de lazer, de moradia, de comer, de tratamento de saúde, enfim, de viver. É a partir dessa premissa que o estudo optou por tais informantes.

Os desaceleradores Waldorf

A escolha da Escola Waldorf Anabá, situada em Florianópolis, teve por base a busca de uma instituição com mais de vinte anos de atuação. O estudo abordou 1 representante da Comissão Financeira3 e 13 pais ou responsáveis — um de cada turma da escola que tem 1 maternal, 3 jardins de infância e 9 turmas de ensino fundamental — através de entrevistas realizadas por meio de um questionário repassado via e-mail aos responsáveis pelas crianças. A quantidade foi definida para que se pudesse entrevistar uma família de cada turma.

A entrevista com as famílias foi respondida indiscriminadamente pela pessoa que se assumiu como responsável pela família. Prevaleceram as mulheres, com vínculo formal familiar, de idade média de 40 anos (variando ente 37 e 45 anos; somente uma mãe tinha 29 anos). A grande maioria das famílias era biparental e tinha entre um a três filhos, em idades variando de 6 meses a 14 anos, em média.

Grande parte dos entrevistados relataram a profissão do cônjuge e a própria como sendo de profissionais liberais com vínculo trabalhista ou autônomo e a renda das famílias entrevistadas variou de acordo com o gráfico abaixo:

Figura 1: Renda Familiar das famílias entrevistadas da Escola Waldorf, Florianópolis (SC), 2017
Fonte: pesquisa própria.

Mesmo que boa parte dos estudantes sejam filhos de famílias de classe média, a escola demonstra preocupação com a inclusão social dos alunos. Um dos membros da Comissão Financeira da escola, entrevistado por e-mail sobre o perfil socioeconômico dos pais, mostra alguns dados:

Atualmente estamos com 346 alunos (...). Como alunos bolsistas temos aproximadamente 70 alunos o que corresponde a aproximadamente 20 % do total da escola e temos ainda 31 alunos que são filhos dos professores. Então um total de 101 alunos, de alguma forma, subsidiados nos custos da escola. Isso corresponde a 28% dos alunos tem algum tipo de apoio subsidiado para estudar. Essa busca de equilíbrio social e financeiro dos alunos e das famílias faz parte da filosofia social da escola (...) são " prática humanas" de desenvolvimento. Posso falar com propriedade com relação a estas famílias que têm algum tipo de bolsa pois estas declaram sua renda; também dá para concluir que aqueles que não solicitam apoio financeiro tem uma receita superior a este grupo. Estas pessoas que solicitam bolsa tem uma renda familiar que varia de R$ 2.500 até R$ 9.000,00; porém depende se a pessoa tem 1, 2 ou 3 filhos, se paga aluguel; enfim uma série de fatores que gera a necessidade de subsídio. O valor da nossa mensalidade é comparada [similar] a de outras escolas particulares de Florianópolis (...). Nossas famílias são, essencialmente, de classe média, com alguns poucos da classe A e alguns poucos com uma condição mais difícil. Porém, de maneira geral, muitos com um elevado nível cultural e social.

As famílias socialmente privilegiadas são as mais propensas a escolherem estabelecimentos de ensino cujas propostas pedagógicas se apresentam como “inovadoras”, “modernas”, “alternativas”, ou sob qualquer outro termo que a identifique como “contraposta às práticas tradicionais”, exatamente por serem aquelas que compartilham valores, comportamentos, gostos e estilos de vida, com o ethos escolar dessas instituições de ensino (PINTO, 2009).

Uma das autoras e pesquisadora desse estudo esteve em Florianópolis em novembro de 2016 e participou de uma reunião semanal na Escola Anabá onde todos os professores e um representante da Comissão Financeira estavam presentes e lá apresentou a proposta da pesquisa. Depois disso, em março de 2017 a indicação e o contato dos informantes foram realizados pelos(as) professores(as) de classe. Uma vez aceita a participação intermediada, os pesquisadores receberam os nomes e e-mails dos informantes e fizeram contato com cada família para verificar possíveis dúvidas, confirmar a disponibilidade em participar da pesquisa e explicitar os procedimentos metodológicos e os objetivos do estudo. Após esse procedimento os informantes receberam o questionário via e-mail e responderam gradualmente entre abril e junho de 2017.

As questões para explorar critérios desaceleradores entre os Waldorfs foi definido com base nas características dos cultural creativers supramencionadas (RAY; ANDERSON, 2000).

A entrevista foi respondida indiscriminadamente pela pessoa que se assumiu como responsável pela família — independente de gênero (mesmo que prevaleceram as mulheres com vínculo formal familiar).

A análise das entrevistas foi feita a partir da leitura das entrevistas recebidas e seu conteúdo foi utilizado integralmente. O material foi explorado na busca de padrões recorrentes e discordantes, temáticas salientes e relevantes para os entrevistados, expressões idiomáticas, metáforas e elementos norteadores. Após a análise, alguns códigos foram elaborados de forma indutiva para identificar temas emergentes.

Como resultado desse processo reflexivo, intercalado a consultas a autores de referência sobre o tema da pesquisa e as respostas obtidas, foi possível construir e definir categorias analíticas para discutir as práticas do cotidiano, os interesses e os hábitos em comum das informantes.

De forma geral, foi possível perceber duas dimensões de valores: aqueles coletivos relacionados a responsabilidade socioambiental; e valores pessoais que incluem práticas individuais incluindo o cultivo de diferentes formas de espiritualidade.

Consumo consciente

A primeira parte do questionário se debruçou sobre as práticas de compras e consumo desse grupo de informantes uma vez que essa variável é central na prática dos downshifters.

A menção ao consumo/ práticas “conscientes” apareceu inúmeras vezes nas respostas oferecidas pelos informantes. Foi possível perceber que os Waldorfs, de forma geral, assumem preocupações com a origem dos produtos e alimentos consumidos, bem como com as embalagens e a produção industrial e evita o “consumo inconsciente” (Informante, 44 anos grifo dos autores).

Uma diversidade de práticas aliadas à ideia de consumo sustentável foram citadas pelas informantes como a adesão à bioconstrução e à permacultura, a reutilização e reciclagem de objetos (incluindo material de demolições); o consumo consciente de água/ energia (via práticas de reuso de água da lavação de roupas e da chuva, fossas de evapotranspiração, uso de energia solar); o boicote a empresas não idôneas (do ponto de vista social e ambiental); o envolvimento com práticas de composteira e horta caseiras; o apoio a organizações sociais ou ambientais; o uso de sacolas reutilizáveis para compras; o “baixo consumo” em geral, explicitando o pouco/ nenhum consumo de carnes; a “cultura do descarte” mencionada por informante de 39 anos.

A grande maioria das informantes questiona o sistema agroalimentar moderno e faz restrições especialmente ao uso de agrotóxicos, transgênicos, de drogas veterinárias e à monocultura e os sistemas de produção animal confinados.

A restrição à medicina “convencional” e ao consumo de alimentos industrializados, refrigerantes e aditivos sintéticos foi também recorrentemente mencionada e caracterizada aqui como um tipo de ativismo alimentar. O consumo de orgânicos provenientes de associações de agricultores agroecológicos locais foi citado como opção “sempre que possível” (Informante, 45 anos); o custo desses produtos foi percebido como maior empecilho ao seu consumo regular: “sentimos limitações quanto aos custos desses produtos mais saudáveis. Não chegamos ainda a ter uma alimentação totalmente orgânica devido à limitação financeira” (Informante, 41 anos).

A figura abaixo resume as práticas de consumo consciente levantadas nas entrevistas:

Figura 2: Práticas das famílias entrevistadas em relação ao consumo consciente, Florianópolis (SC), 2017
Fonte: pesquisa própria.

Como se pode perceber existe um grau de subjetividade em algumas dessas práticas que endossam a noção da nebulosidade do conceito. Algumas informantes demonstram essa subjetivamente quando respondem que gostam “do trabalho com a terra e de mostrar a sua importância para nossas filhas” (Informante, 40 anos), bem como preferem a “produção de artesãos e serviços locais (...) preferindo fazer, com nossas próprias mãos e com os recursos que temos disponíveis em casa e na natureza” (Informante, 45 anos).

O instituto Akatu4 disponibiliza um teste de consumo consciente e apresenta variadas ações ou práticas para categorizar o “grau de consciência ambiental” do consumidor que podem ajudar a construir essa categoria: práticas de separação de lixo; uso coletivo de veículo; uso de álcool em vez de gasolina; economia de energia no uso de aparelhos eletrodomésticos; preferência a produtos saudáveis e a empresas que praticam ações de sustentabilidade; leitura de rotulagem de produtos e preocupação com sua origem; consumo de alimentos orgânicos, locais e sazonais; práticas de refeições compartilhadas; consumo de produtos feitos com materiais reciclados; compartilhamento de informações sobre práticas e empresas sustentáveis; economia no uso/ consumo de água e energia elétrica no ambiente doméstico; práticas de manter coisas em desuso em casa; cuidado com áreas verdes e/ou coletivas no espaço público urbano; exigência de nota fiscal nas compras em geral; consertos e reparos em vez de descarte; participação em movimentos, campanhas ou redes relacionadas ao controle do consumo ou a proteção do meio ambiente; posicionamento favorável ao controle de propagandas; relação de toda forma de consumo como ação sociopolítica; planejamento na compra de alimentos e preocupação com seu desperdício; economia na impressão de documentos e no uso de papel e plástico em geral; uso de sacolas descartáveis; “conversão” de outros consumidores a práticas de consumo sustentável; preocupação com o destino de brinquedos, objetos e eletrodomésticos inutilizados; práticas de promoção da saúde pessoal; investimentos financeiros em empresas com responsabilidade socioambiental; apoio recorrente de órgãos de defesa do consumidor diante de qualquer lesão nos direitos de consumo; aluguel em vez de aquisição de produtos de uso eventual; anuência com a ideia de corresponsabilização do consumidor na conservação ambiental; preferência por investimento no lazer e bens imateriais ao consumo de bens materiais; consciência sobre reais necessidades de consumo; apoio a práticas de controle ambiental (selos, certificadoras); economia no uso do carro; escolha por serviços localizados a curta distância do local onde vive/ trabalha.

Seguindo premissas dos downshifters já pesquisados, as informantes não renunciam a uma ‘boa vida’ totalmente isenta de progresso tecnológico e bem estar material.

Tempo livre e Espiritualidade

Em muitas entrevistas, foram percebidos como essenciais a necessidade de mais tempo livre, investimento em relacionamentos afetivos e na vida familiar, dedicação ao lazer e proximidade da natureza:

(...) as vezes prefiro deixar a faxina da casa de lado para dar um mergulho no mar com minha filha, a infância passa tão rápido que preciso aproveitar este precioso momento com ela! Tenho amigos (...) que gostam de um estilo de vida mais tranquilo, com os filhos na natureza (Informante, 39 anos, grifo dos autores).

Além do respeito e da essencialidade do contato com a natureza, a ideia de uma “busca espiritual” e a perspectivada de promover valores humanitários aparece em algumas falas. Percebe-se especial importância ao altruísmo, a autorrealização e a espiritualidade como um conjunto de valores.

Os amigos são de várias partes, grupos diferentes, escolas, porém, todos que cultivam o respeito pela natureza, paz e que cultivam uma caminhada espiritual (Informante, 40 anos, grifo dos autores).

As amizades maiores sempre são por afinidades de pensamentos e proposta de vida, a grande maioria Waldorf ou pessoas com alguma busca espiritual (...) (Informante, 40 anos, grifo dos autores).

Os filhos são grande motivação, pois nos levam a fomentar um estilo de vida que seja mais respeitoso com nosso meio ambiente e com as pessoas à nossa volta, principalmente porque queremos perpetuar estes valores de respeito e amor (Informante, 45 anos, grifo dos autores).

A ideia de uma vida “simples”, sem apego material, mas “com o que é essencial para se viver” e “com qualidade e diversidade” (Informantes, 44 e 43 anos) foi também percebida como uma tendência que se repete entre as informantes desse e de outros estudos.

A figura abaixo resume as práticas dessas famílias em relação ao tempo livre e espiritualidade.

Figura 3: Práticas das famílias entrevistadas em relação ao tempo livre, suas relações de pertencimento e espiritualidade, Florianópolis (SC), 2017
Fonte: pesquisa dos autores.

Apesar da subjetividade dessas práticas acima levantadas, foi possível caracterizá-las quantitativamente através de tabelas e gráficos. Entretanto, algumas características recorrentes observadas nas entrevistas com relação à construção de uma identidade Waldorf, ao uso das tecnologias da informação na família e ao posicionamento político dos seus integrantes aparecem sob um grau ainda maior de subjetividade que não permite uma categorização quantitativa e são aqui explicitadas somente como dados qualitativos.

Identidade Waldorf

Outra característica subjetiva que se destacou foi a autopercepção das entrevistadas como “diferentes” da família de origem e das pessoas de fora da comunidade escolar.

(...) acham que somos hippies, alternativos etc., mas só queremos viver mais em harmonia com o meio-ambiente (Informante, 40 anos, grifo dos autores).

A grande maioria (dos amigos) não é Waldorf, poucas compartilham nosso estilo, embora se preocupem e pensem sobre todos os assuntos mencionados acima, mas a diversidade faz parte do nosso mundo e é importante para o crescimento de todos (Informante, 43 anos, grifo dos autores).

De certa maneira, a Pedagogia Waldorf produz uma identidade singular em seus membros. Em relação ao processo construção de identidades, Castells (2008) destaca que elas fazem parte de um amplo quadro de construção de atributos culturais “inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado” (CASTELLS, 2008, p.22). Para esse autor, é possível dizer que a construção social da identidade sempre ocorre em um contexto marcado por relações de poder, por isso, ele propõe a distinção entre três possíveis formas e origens de construção de identidades. São elas: identidade legitimadora, resistência e de projetos. A primeira, construída pelas instituições que dominam a sociedade, seu principal objetivo é de ampliar o poder na sociedade através da expansão do domínio racionalizado em relação aos atores sociais. A segunda, surge com atores que se posicionam em condições desvalorizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, espaço de sobrevivência e resistência. Na terceira forma, busca-se construir uma identidade nova, capaz de reposiciona-se na sociedade, e, ao fazê-lo, de procurar da totalidade da estrutura social.

Apesar da importância do compartilhamento do mundo com pessoas diferentes que podem abrir a porta para experiências diversas e peculiares que permitem o exercício da tolerância, é possível que esse sentimento de
“pertencimento ao igual” é o motor do formato de solidariedade que se apresenta no grupo. Buscam-se nos parceiros contato social e uma identidade comum, além do endosse e do fortalecimento das escolhas que esse estilo de vida implica:

Socializamos em família e com a comunidade Waldorf. Na primeira (família), nossos estilos de vida são bem diferentes (...) Já em comunidade (Waldorf), parece falarmos a mesma língua e o convívio ser mais fácil e natural (Informante, 44 anos, grifo dos autores).

Cada um fazendo sua parte e dentro dessa família (Waldorf) nos sentimos seguros e felizes. Crianças brincando com crianças. Moramos perto uns dos outros, eventos fim de semana todos juntos (Informante, 39 anos, grifo dos autores).

Restrição ao uso de tecnologias da informação

As tecnologias de informação potencializam articulações sociais de longo alcance, baseadas no imediatismo e na renegociação das noções de espaços públicos e privados, caraterísticas do mundo contemporâneo. Além disso, permitem o entretenimento, a segurança e o controle por parte dos usuários e sua comunidade próxima (RIBEIRO; LEITE; SOUZA, 2009).

Estudos compilados pela Faculdade Europeia de Neuropsicofarmacologia têm se debruçado sobre o impacto negativo sobre a saúde de adultos e crianças decorrentes do uso abusivo das tecnologias de informação, como problemas motores e neurológicos, distúrbios de sono e falta de concentração (ECNP, 2016). Já autores como Le Breton (2017) e Byung-Chul Hay (2015) alertam para outro tipo de dependência implícita ao uso das tecnologias de informação. Para o sociólogo francês, a dependência dessas tecnologias portáteis nos conectam com o mundo exterior e organizam nossos horários com base no ruído. Assim sendo, inviabilizam o silêncio cuja potência permite construir uma consciência interior crítica. Le Breton propõe a restrição do uso dessas formas invasivas como um ato de resistência. Já o filosofo coreano analisa a hiperatividade da sociedade do cansaço baseada na promessa de desempenho máximo que tais tecnologias proporcionam. O filósofo menciona o excesso escravizante de estímulos, informações e impulsos que afeta a concentração e pode levar a infartos psíquicos e a condição de ambígua de explorador e vítima na busca constante de maximização do desempenho.

A maioria das justificativas para a restrição dessas tecnologias entre as informantes tem outra dimensão. A restrição é fundamental para incentivar a socialização e as brincadeiras das crianças e evitar a aceleração da infância. Mais da metade das entrevistadas estabelecem limitações para o uso da televisão na família e controlam o uso da internet e celulares. Entretanto, duas entrevistadas destacaram que as restrições de uso da tecnológica no cotidiano não se estende para o ambiente de trabalho dos adultos.

Posicionamento Político

A ideia de formar indivíduos críticos aparece na preocupação de uma entrevistada, o que pode reverberar positivamente no âmbito da autônima política: “ensinamos nossas filhas a questionar, dialogar e não a receber tudo pronto e aceitar aquilo como verdade absoluta” (Informante, 40 anos). E também há relatos que mostram que alguns informantes não conseguem relacionar suas ações cotidianas como repertórios de ação política, mas mencionam atividades na escola associativa quando questionados sobre a temática.

Nunca fui da política, não sou antenada e tenho cada dia menos me interessado (...) Gostaria de ser mais ativa nesse assunto, mas ainda não me senti chamada pra isso (Informante, 39 anos, grifo dos autores).

Meu marido é politicamente ativo: vai a manifestações, conversa sobre o assunto com todos sempre que tem oportunidade; acompanha os movimentos/notícias diariamente. Eu sou mais passiva (Informante, 40 anos, grifo dos autores).

Não tenho me engajado muito politicamente, prefiro atuar na escola (Informante, 39, anos, grifo dos autores).

Nacionalmente falando, não sou atuante, porém, com convicções mais ponderadas do que radicais, na maioria das vezes. Ter opiniões suficientes para discussões, mas não é o mesmo que empenho para atividade política. Em comunidade escolar, no entanto, minha atividade é grande, atuando em esfera social e administrativa (Informante, 44 anos, grifo dos autores).

A dimensão de consciência social e demanda por autenticidade e otimismo na vida em sociedade aparece entre os Waldorfs. No debate sobre o posicionamento político dos entrevistados, fica evidente certo afastamento do cenário formal baseado na estrutura político partidária na qual o voto é a ferramenta central de ação política e estratégia para promover direitos sociais e políticas públicas. Alguns relatam que no passado já foram atuantes nessa arena, mas hoje parece que a atuação política das informantes se dá a partir do engajamento na escola e em outros espaços do dia a dia:

Somos de esquerda definitivamente. Entendemos também que política é praticada no dia a dia, por exemplo, em tomadas de decisões no condomínio, na escolha dos alimentos e produtos que consumimos (Informante, 41 anos, grifo dos autores).

Não cultivamos pensamentos extremistas, sendo assim não compactuamos com movimentos exclusivamente de esquerda ou direita. Os ideais só podem ser validados no concreto, nas ações do dia a dia (...). Fazemos nossa parte, na tentativa de transformar paradigmas, através da vivência em Ecovila (Informante, 40 anos, grifo dos autores).

Como diz Paulo Freire... nossa ideologia é inclusiva e não excludente. Entendemos que as riquezas, sempre provém da exploração de recursos naturais/humanos e que o capitalismo em sua manifestação atual é sempre excludente. Não funciona, por promover uma desigualdade muito grande, privando muitos, dos recursos básicos para a sobrevivência. Com certeza, não é este o modelo de gestão de sociedade que gostaríamos para nossas vidas e para a vida da comunidade em geral, por não o vermos como benéfico (Informante, 45 anos, grifo dos autores).

Nós chegamos à conclusão que nós devemos fazer a nossa parte dentro daquilo que acreditamos construir um mundo melhor, educando bem nossos filhos com respeito e amor ao próximo, cuidando da terra e construindo ações junto com pessoas próximas que incentivam a vida tranquila em sociedade. Já foi o tempo em que acreditávamos que através da política mudaríamos algo, eu acredito que o nosso modelo político está falido. (Informante, 37 anos, grifo dos autores).

(...) independente do nome da sigla, essa divisão que está ocorrendo no mundo vai na contramão do caminho evolutivo do ser humano. Sempre haverá partidos, sempre teremos um lado subjugando o outro enquanto o capitalismo estiver em prática. Acreditamos que o futuro são outras formas de gestão, que olhem para o ser humano como parceiro, como parte de uma grande engrenagem, assim como a natureza. Temos estudado a comunicação não-violenta e achamos que esse é o melhor partido no momento. Como entender o outro e, a partir de um interesse real, iniciar um diálogo. Rótulos e lados só desgastam e geram crises. Muitas iniciativas estão ocorrendo e temos que acreditar que a humanidade dará esse passo, mesmo que a muito longo prazo (...). (Informante, 40 anos, grifo dos autores).

Atuo politicamente através das minhas ações, nos diferentes papeis que desempenho como mulher, mãe, esposa, professora, moradora de um bairro, de uma cidade, de uma pais, cidadã deste planeta (Informante, 43 anos, grifo dos autores).

Já fui esquerda, meio anarquista. A questão é que não acredito nessa estrutura política partidária, temos muita gente boa e capaz de tocar projetos de sucesso para atender as bases, mas infelizmente a estrutura partidária corrompe as ideias. Estou num caminho de desconstrução de conceitos e definições, se tiver que me definir a palavra que mais cabe é não sou nada. Sou eu, sou você, somos nós (Informante, 39 anos, grifo dos autores).

Acreditamos na necessidade de justiça social. Somos alinhados às causas da esquerda e críticos do neoliberalismo. Não atuamos ativamente em partidos ou em movimentos sociais, mas dedico muitas horas semanais a trabalhos voluntários na escola (...). É preciso dizer que a escolha da escola e da educação de nossos filhos faz parte de uma opção política. Acreditamos no potencial subversivo da pedagogia Waldorf. Sem doutrinação, a escola forma jovens que saem “para o mercado” e para suas vidas adultas com fortes noções de humanidade, respeito, solidariedade e vontade para buscar transformações sociais (Informante, 45 anos, grifo dos autores).

Acredito que não possamos mudar as coisas sozinhos. Precisamos uns dos outros. E nosso ponto de partida tem que estar voltado para a busca e reconhecimento do seu “eu” no mundo. A partir dessa premissa, poderemos enxergar o outro em nós mesmos, tomando consciência das fragilidades, limitações, medos e ignorâncias que o cercam. Dessa forma, acredito, ampliamos nossas habilidades em “lidar” com o outro e assim, aproximamo-nos de uma forma de caminharmos juntos, lado a lado, em busca das mudanças que queremos sejam efetivadas em nossas vidas. A ética nasceria de um “parto normal”, dentro desse contexto, e estaria permeada naturalmente em nossas atitudes e ações. Defino-me, politicamente falando, uma pessoa que acredita na liberdade de atuação do ser e na potencialidade de atributos que cada um traz dentro de si, lembrando que responsabilidade e ética caminham juntos com essa liberdade. Não sou de direita, nem de esquerda, identifico-me com aqueles que buscam as mudanças significativas e eficazes para o bem-estar da população em geral, e que respeitem e lutem pelas necessidades primordiais na vida de qualquer ser humano e do meio ambiente (Informante, 44 anos, grifo dos autores).

Tais posições reverberam no âmbito que Deleuze e Guatarri (1996) chamam de micropolítica ou políticas do cotidiano que deslocam o poder para as mãos dos indivíduos, grupos e organizações. Termos como micro revoluções são também utilizados para falar de ações e mudanças moleculares e cotidianas.

Também é possível pensar os conceitos de subpolítica, em Ulrich Beck (1997), ou política vida, em Giddens (2002). A partir dessas ideias, buscar alimentos de origem familiar orgânicos e utilizar outras formas de medicina e medicamentos “naturais”, por exemplo, tornam-se estratégia diferenciadas de ação política e resistência aos sistemas agroalimentares e médico-farmacêuticos hegemônicos, afinados com a política neoliberal vigente no capitalismo. Entretanto, essa afirmação não é consensual.

Na mesma direção, David Harvey,5 autor da ideia de humanismo revolucionário, menciona diferentes ações de movimentos sociais urbanos e endossa que é preciso pensar nisso como “um solo fértil para ação política” (s/p).

Muitas análises de movimentos de contracultura ou “alternativos” — o downshifting, o movimento hippie, a tribo dos “orgânicos”, entre outros — inserem seus adeptos em um tipo de alienação e elitismo de parte da sociedade que, tendo capital cultural e possibilidade socioeconômicas de fazer essas opções, não aceita o modelo hegemônico e busca a ruptura. São tratados como despolitizados, hedonistas e ingênuos, como mostra Adelman (2001) em sua análise da contracultura. A outra forma de análise percebe esses indivíduos como conscientes, que agem politicamente em espaços não formais e promovem rupturas com o sistema dominante. Julie Stephens (1998) analisa essas formas de ação como políticas contestatórias anticapitalistas criativas, antiburocráticas, antidisciplinares e subversivas frente a política formal dos partidos e sindicatos. Esse estudo, porem , não tem a pretensão de diluir tais controvérsias.

É importante ressaltar também que Arce Cortes (2008), a partir de diversos autores como Clark (1976) e Hall (2005), debruça-se sobre dois conceitos que criam outra divisão conceitual dicotômica a partir da categoria de classe: a contracultura e a subcultura. Ambos conceitos implicam em coletivos de indivíduos jovens principalmente que assumem uma série de movimentos e expressões culturais em desacordo com as ideias hegemônicas e que buscam diferenciar-se, rejeitar, marginalizar, confrontar ou transcender a cultura institucional dominante e parental. A contracultura não só se opôs a cultura dos países, tanto ideológica como culturalmente, mas também atacou as instituições que representam o sistema dominante e reprodutivo como a família, escola, mídia e casamento e criam um estilo de vida. Porém, a subcultura é datada na sociedade inglesa do pós-guerra envolvendo centralmente a classe trabalhadora. Já a contracultura surge na década de 1960, como um legado do movimento hippie pertencente a classe média.

Considerações Finais

Apesar do trabalho não objetivar entender as razões pelas quais as famílias optaram pela Pedagogia Waldorf, seria interessante compreender em que medida o fenômeno do downshifting influencia na opção pela pedagogia da mesma maneira, como a escolha de uma escola pode influenciar em outras esferas que vão além do espaço educacional. Bourdieu já afirmava a importância da proximidade entre o habitus familiar e o ethos escolar claramente esse fato tem relevância entre os informantes.

O referencial teórico de Castells (2008) não foi utilizado para categorizar os adeptos da Pedagogia Waldorf. Mas mencioná-los pode ajudar a pensar como tais conceitos podem auxiliar no entendimento da perspectiva identitária deste grupo. Assim, os Waldorfs estariam bem próximos da formação de uma “identidade de projeto” no qual todos os aspectos formadores de movimento altera, de alguma maneira, não só indivíduos mas também as famílias inseridas no espaço educacional. A pesquisa demostra que existe fortes indícios de formação de uma “identidade de resistência” diante de um sistema educacional tradicional. Como destaca esse mesmo autor, a identidade que começa com resistência pode acabar transformando-se em projetos, ou mesmo tornando-se predominante nas instituições da sociedade, transformando-se em algum momento em “identidades legitimadoras”. Seguindo a lógica de Castells (2008), é possível pensar uma situação inversa; os Waldorfs fazendo parte da criação da “identidade de projetos”, para em um momento posterior se formar uma “identidade de resistência”, principalmente diante dos sistemas educacionais convencionais.

Como já mencionado, esse estudo não se propõe a analisar em profundidade as dicotomias contracultura/subcultura ou ainda contracultura politicamente consciente ou alienada. Mas claramente as posições binárias não conseguem revelar a complexidade que implica as escolhas realizadas pelos indivíduos que passam por diversos níveis de análise sociológica nos campos do poder e do consumo, da formação de identidade, da diferenciação social, da busca por pertencimento ou afetividade. Além disso, defende-se a ideia de que as múltiplas visões de mundo, de política, de saúde, de educação, de consumo devem coexistir em uma sociedade realmente democrática. Assume-se aqui a perspectiva de democracia da filósofa política Chantal Mouffe (2003) que defende que uma sociedade com uma esfera pública vibrante é aquela na qual coexistem múltiplas visões conflitantes e legítimos projetos alternativos, sob a prevalência dos antagonismos.

Os Waldorf assumem premissas do downshifting sob a ótica da contracultura. Formam um grupo coeso de famílias e professores de classe média privilegiada que tendem a restringir sua rede social àqueles que compartilham o mesmo estilo de vida — pelo menos durante o período escolar de seus filhos. Pode-se afirmar que o espaço cooperativo da Pedagogia Waldorf fomenta sentimentos de pertencimento e solidariedade e pode ajudar a legitimar estilos de vida alternativos em uma sociedade consumista.

Referências

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  1. Mais informação em: www.simplicidadevoluntaria.com Acesso em: 13 Mar 2016 e www.newdream.org Acesso em: 29 Mar 2016.↩︎

  2. Reforma embasada na Medida Provisória (MP) nº 746/2016, aprovada e transformada na Lei nº 13.415, em fevereiro de 2017.↩︎

  3. As escolas Waldorf são associativas; funcionam sob as diretrizes estatuto de uma associação composta por pais, funcionários e professores, que mantém financeira e administrativamente a escola.↩︎

  4. Mais informações no site: www.akatu.org.br Acesso em: 25 Out. 2017.↩︎

  5. Palestra de David Harvey (2015), The Revolutionary Class Today, ministrada no I Seminário Cidades Rebeldes, realizado em parceria com a Editora Boitempo e Sesc/SP, disponível em: www.youtube.com Consultada em 23/03/2016.↩︎

Resumo:
Este estudo se debruça sobre os downshifters — indivíduos que fazem a opção por desacelerar seus ritmos de vida, buscando equilíbrio entre trabalho e lazer e estilos de vida mais frugais de forma a minimizar os efeitos das sociedades industriais capitalistas urbanas. Explora um tipo particular de comportamento em um estrato social específico — um grupo social formado por famílias que têm filhos em uma escola Waldorf, em Florianópolis, Brasil. Foi possível perceber que os aspectos formadores de movimento altera não só indivíduos, mas também as famílias inseridas no espaço educacional que se apresenta como resistência ao sistema educacional tradicional. Os Waldorf assumem premissas do downshifting. Sob a ótica da contracultura, formam um grupo coeso de classe média que tende a restringir sua rede social àqueles que compartilham o mesmo estilo de vida; suas ações cooperativas fomentam sentimentos de pertencimento e solidariedade que ajudam a legitimar estilos de vida alternativos em uma sociedade consumista.

Palavras-chave:
Downshifting; Pedagogia Waldorf; contracultura.

 

Abstract:
This study focuses on downshifters — individuals who make the choice to slow down their rhythms of life, strive to balance work and leisure, and look after frugal lifestyles in order to minimize the effects of urban capitalist industrial societies. The goal is to explore a particular type of behavior in a specific social stratum — a social group formed by families that have children in a Waldorf school in Florianopolis, Brazil. One could notice that the aspects that form the movement alter in some way not only individuals but also the families inserted in the educational space that presents itself as resistance to the traditional educational system. The Waldorf assume downshifting premises and can be perceived as decelerators, from the perspective of the counterculture. They form a cohesive group that tend to restrict their social network to those who share the same lifestyle; their cooperative actions foster feelings of belonging and solidarity that help legitimizing alternative lifestyles in a consumer society.

Keywords:
Downshifting; Waldorf pedagogy; counterculture.

 

Recebido para publicação em 12/06/2018
Aceito em 09/07/2020