Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 51, n. 2, jul./out. 2020
DOI: 10.36517/rcs.2020.2.r02

RESENHA

 

 

Um artesão da crítica e da utopia:
uma análise de ‘Boaventura de Sousa Santos: Construindo as epistemologias do Sul’

 

Santos, Boaventura de Sousa. Construindo as epistemologias do Sul: para um pensamento alternativo de alternativas. Meneses, M. P. et. al. (Orgs.). Buenos Aires: CLACSO/Fundação Rosa Luxemburgo, 2018. Disponível em: www.clacso.org.ar

 

 

Marcos Antônio Silva OrcID
Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil
marcossilva@ufgd.edu.br

 

Boaventura de Sousa Santos é um dos maiores intelectuais do mundo atual e sua vasta obra, resultado de mais de quatro décadas de trabalho, tem se constituído numa referência fundamental para o pensamento social contemporâneo, analisando inúmeras temáticas que, partindo da sociologia política, transitam da sociologia ao direito, da filosofia à ciência política, da antropologia à educação, da história à economia e da epistemologia à cultura, dentre outras.

Desta forma, a partir de sua atuação à frente do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Boaventura produziu uma vasta e influente obra, em contínua recriação, que discute a sociedade atual com profundidade e em perspectiva global, desenvolvendo análises e conceitos já incorporados às ciências sociais, como fascismo social, demodiversidade, pensamento abissal, sociologia das ausências e das emergências, ecologia de saberes, alternativas plurais, cosmopolitismo multicultural, direito pré-configurativo, razão cosmopolita, globalização contra-hegemônica e sul global, dentre outros.

Assumindo sua condição de “intelectual da retaguarda”, que analisa e contribui para a construção de alternativas sem vanguardismo, sua obra parte da constatação de que “vivemos em sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas” e se insere na tradição do pensamento crítico, procurando compreender a realidade atual e, ao mesmo tempo, contribuir com alternativas plurais para a construção de uma sociedade emancipada.

Além disso, Boaventura Santos possui uma profunda relação com os movimentos sociais e o pensamento social brasileiro, inclusive com participação destacada no Fórum Social Mundial (FSM), e laços que remontam a Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, desenvolvendo atividades de pesquisa e produção do conhecimento com inúmeros outros pesquisadores de importantes centros de pesquisa do país e participando de inúmeros eventos na academia e com movimentos sociais.

Dessa forma, pode-se afirmar que Boaventura de Sousa Santos tornou-se uma das principais referências do pensamento crítico e emancipador da atualidade. Além disso, sua instigante obra, compilada neste trabalho, foi produzida a partir de experiências, vivências e diálogos com o (s) pensamento (s) e as práticas desenvolvidos no Sul global, reelaboradas a partir de uma ecologia de saberes, superando o eurocentrismo e o formalismo das ciências sociais, procurando conciliar a ciência com a experiência humana, as ciências da vida com as ciências sociais.

A coletânea é parte da Série Trajetórias, da coleção Antologias do Pensamento Social Latino-Americano e Caribenho, que tem sido publicado pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO), procurando construir e difundir o pensamento social latino-americano, clássico e contemporâneo1 e demonstra a condição de intelectual crítico que, ao se referenciar no Sul Global, também se constitui numa referência fundamental para a emergência de um pensamento decolonial e alternativo, que encontra na América Latina uma fonte de construção, diálogo e divulgação.

Assim, os textos compilados demonstram a convergência com a perspectiva e a atuação de CLACSO, pois, como destaca Pablo Gentili:

Os trabalhos de Boaventura enlaçam um conjunto de temas e preocupações que se inscrevem na melhor das tradições do pensamento social e crítico: a emergência e as lutas dos movimentos sociais; os olhares alternativos que produzem os processos de globalização contra-hegemônica; a construção de um novo tipo de pluralismo jurídico que contribua com a democratização de nossas sociedades; a reforma criativa, democrática e emancipadora do Estado e a defesa irredutível dos direitos humanos; a criação de universidades populares que promovam diálogos interculturais, entendidos como uma forma de combate contra a uniformidade e a favor de uma ecologia de saberes emancipatórios e libertários. (p. 13).

Esse trabalho é resultado de um esforço coletivo e contou com a contribuição dos seguintes compiladores, que realizaram a seleção e organização dos textos de Boaventura Santos e uma introdução geral em cada seção da obra.

Nesse sentido, Maria Paula Menezes (antropóloga do CES, Universidade de Coimbra) destaca a relação de Boaventura com o Sul Global, João Arriscado Nunes (sociólogo do CES, Universidade de Coimbra) apresenta a construção e o desenvolvimento de sua teoria social, Carlos Lema Añón (professor de Filosofia do Direito da Universidade Carlos III de Madri) destaca os contornos fundamentais de sua sociologia do direito, Antoni Aguilló Bonet (filósofo político do CES, Universidade de Coimbra) apresenta sua filosofia e teoria política enfatizando a centralidade da democracia participativa e, finalmente, Nilma Lino Gomes (pedagoga, ex-reitora da UNILAB e ex-ministra da Igualdade Racial e das Mulheres do governo Dilma) destaca os trabalhos voltados à educação e a construção de uma pedagogia alternativa e emancipadora.

A coletânea, ao fornecer uma visão de seus trabalhos mais relevantes, demonstra que o Sul é a fonte originária e a inspiração para a construção de um projeto epistêmico e societário, constituindo-se no fundamento teórico e prático, analítico e propositivo que perpassa toda sua obra. Neste sentido, demonstra que as principais inquietações e perspectivas conduzem a obra de Boaventura ao encontro do Sul Global e da América Latina, que adquire uma relevância epistêmica fundamental para compreender, criticar e superar a modernidade eurocêntrica em diferentes planos. A obra está organizada em dois volumes.

O primeiro, intitulado “Pensando desde o Sul e com o Sul”, apresenta trabalhos que discutem o amadurecimento teórico e epistemológico, a partir de sua trajetória acadêmica, procurando demonstrar como a imaginação sociológica o conduziu à crítica do paradigma cientifico dominante na modernidade e à construção de uma epistemologia fundamentada na ecologia de saberes, que resgata outras formas de saberes e ressalta o caráter emancipatório do conhecimento. Apesar da relevância de todos os textos, vale destacar, para compreender tal amadurecimento intelectual e político, os seguintes trabalhos: “Um discurso sobre as ciências”, “As ecologias dos saberes” e “Introdução às epistemologias do Sul”.

A segunda seção, denominada de “Teoria Social para outro mundo possível”, apresenta trabalhos de teoria sociológica que analisam a condição pós-moderna e a globalização hegemônica, considerando o fascismo social como marca das sociedades contemporâneas, e, a partir disso, discutem a construção de um pensamento e prática contra-hegemônicos. Nesta, podem ser destacados os seguintes textos: “Os processos da globalização”, “Nuestra América: Reinventar um paradigma subalterno de reconhecimento e redistribuição”, “Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade” e “Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes”.

O segundo volume contém três seções. A primeira, denominada de “Direito para outro mundo possível”, contém textos de sociologia do Direito, uma das áreas mais destacadas de sua produção, que demonstram a crítica do Direito Moderno e Configurativo (já determinado e para manter status quo) para uma reflexão sobre o potencial emancipatório do Direito e a análise do pluralismo jurídico em diferentes experiências ao redor do planeta, principalmente naquelas relacionadas a plurinacionalidade e a interculturalidade. Neste sentido, destacam-se os seguintes trabalhos: “O direito dos oprimidos: A construção e reprodução do direito em Pasárgada”, “Sociologia crítica da justiça”, “O pluralismo jurídico e as escalas do direito: o local, o nacional e o global”, “Para uma concepção intercultural dos direitos humanos” e “Quando os excluídos têm direito: Justiça indígena, plurinacionalidade e interculturalidade”.

A segunda seção, intitulada “Democracia para outro mundo possível”, é constituída de trabalhos de teoria política que, partindo da análise e crítica da globalização neoliberal, discute questões relacionadas a ampliação e aprofundamento da democracia e as diversas experiências de democracia participativa ao redor do planeta, a necessidade de uma reforma democrática, intercultural e plurinacional do Estado e ao diálogo com a prática e as perspectivas de renovação da esquerda e dos movimentos sociais. Nesta é possível destacar os seguintes textos: “A crise do contrato social da modernidade e a emergência do fascismo social”, “Estado e os modos de produção de poder social”, “A refundação do Estado e os falsos positivos” e “As concepções hegemônicas e contra-hegemônicas de democracia”.

A última seção, denominada “Educação para outro mundo possível”, reúne textos voltados ao campo da educação e da prática educativa dos movimentos sociais e das aprendizagens do Fórum Social Mundial que, partindo da análise dos paradigmas científicos da modernidade, discutem o papel da educação e da universidade no mundo contemporâneo, desenvolvendo uma perspectiva emancipatória do conhecimento, através de sua descolonização e de uma nova epistemologia, fundada na ecologia de saberes. Neste sentido, é possível destacar os trabalhos: “Para uma pedagogia do conflito”, “Da ideia de universidade à universidade de ideias”, “A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipadora da universidade”, “Rumo a uma universidade polifônica comprometida: Pluriversidade e subversidade” e “O Fórum Social Mundial como epistemologia do Sul”.

Disto resulta uma coletânea que oferece uma visão abrangente e multidisciplinar da obra de Boaventura Santos, apresentando boa parte de seus textos mais significativos, contribuindo para a compreensão de sua trajetória intelectual e dos principais conceitos e análises que este desenvolve. Por isto, apesar de não esgotar a diversidade de temas e a profundidade de seu pensamento, se constitui num trabalho essencial para a compreensão de sua obra.

Da obra emerge a constatação de que vivemos em uma época singular, marcada pela crise do paradigma da modernidade e por uma transição indefinida (a condição pós-moderna) que afeta a realidade contemporânea devido, entre outros aspectos, ao desequilíbrio e a afirmação da regulação (científica, política e societal) sobre a emancipação. Nesse sentido, pode-se observar que, nos diversos contornos destacados na obra (ciência e modernidade, pensamento sociológico e organização social, direito e Estado, teoria política e democracia, pedagogia e epistemologia), emerge uma análise refinada e crítica da forma como as sociedades atuais estão reorganizando os valores e as relações sociais, em detrimento da solidariedade e da justiça social.

De modo que, além de servir como uma fonte introdutória à vasta obra já mencionada, revela um intelectual maduro e refinado, comprometido com as causas de sua época e a reconstrução da esperança e da utopia. Demonstra também a capacidade analítica e inspiradora desta, constituindo-se, sem dúvida, numa das análises mais instigantes da realidade contemporânea e uma das principais referências do pensamento social e do pensamento crítico e emancipador da atualidade.

Em suma, trata-se de uma obra fundamental – e instigante – para compreendermos a sociedade contemporânea, principalmente as sociedades periféricas, e a necessidade de renovação e atualização do ideal e práticas emancipatórias. Em tempos de desigualdades, incertezas e restauração conservadora, sua obra é um convite à construção de uma nova epistemologia, a partir do Sul Global, que contribua para o desenvolvimento de saberes e alternativas plurais e um alerta à visão tradicional de ciência e universidade, pois, segundo Boaventura de Sousa Santos: “há mais de 40 anos que ensino nas universidades onde muitas vezes passamos muito tempo treinando incompetentes conformistas. Agora precisamos treinar os rebeldes competentes” (p. 30).


  1. A coleção Antologias do Pensamento Social Latino-Americano e Caribenho é formada pelas seguintes séries: Trajectórias, que disponibiliza a obra de grandes nomes do pensamento latino-americano como Anibal Quijano, Gerardo Caetano, Gino Germani, Roberto Fernández Retamar e José Aricó, dentre outros; Países, que apresenta o pensamento crítico contemporâneo de inúmeros países da região como Brasil, Cuba, Bolívia, Equador, Peru, Paraguai e México, dentre outros; Pensamientos Silenciados, que apresenta o pensamento afrodescendente, decolonial e feminista latino-americanos; Miradas Lejanas, que apresenta o pensamento sobre a América Latina produzida em outras regiões do planeta como China, Rússia e Europa; e, finalmente, a série CLACSO/SIGLO XXI, que apresenta clássicos do pensamento social latino-americano, como Ruy Mauro Marini, René Zavaleta, Enzo Falleto, Edelberto Torres-Rivas e Orlando Fals Borda, dentre outros. Todas essas séries estão em constante atualização e os trabalhos podem ser acessados em: www.clacso.org.ar.

Resumo:
Trata-se de resenha da obra “Construindo as epistemologias do Sul: para um pensamento alternativo de alternativas (Boaventura de Sousa Santos)” (2 volumes), foi organizada por Maria Paula Meneses, João Arriscado Nunes, Carlos Lema Añón, Antoni Aguiló Bonet e Nilma Lino Gomes; Buenos Aires: CLACSO/Fundação Rosa Luxemburgo, 2018.

Palavras-chave:
Saberes; sul global; utopia.

 

Abstract:
Book review from SANTOS, Boaventura de Sousa. Construindo as epistemologias do Sul: para um pensamento alternativo de alternativas. Meneses, M. P. et. al. (Orgs.). Buenos Aires: CLACSO/Fundação Rosa Luxemburgo, 2018.

Keywords:
Knowledge; Global South; utopia.

 

Recebido para publicação em 12/04/2019
Aceito em 07/08/2019