Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 51, n. 3, nov. 2020/fev. 2021
DOI: 10.36517/rcs.2020.3.r01
RESENHA
O lulismo em crise:
retrato possível de um Brasil convulsionado
SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, 392p. |
Jonatha Vasconcelos Santos
Universidade Federal de Sergipe, Brasil
vasconcelos.jonatha@gmail.com
Antonio Gramsci, em seus escritos registrados nos Cadernos do cárcere, formulou uma célebre reflexão que, adaptada às transformações da política brasileira nos últimos seis anos, consagra a dimensão contingencial das mudanças sociais: “A crise consiste justamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno, verificam-se os fenômenos patológicos mais variados.” (GRAMSCI, 2007, p. 184). Em grande medida, a obra resenhada consiste justamente em propor uma organização das variáveis sociais que compõem o cenário não somente da crise do lulismo, mas também de uma forma de governabilidade vigente no país desde a redemocratização.
André Singer, autor do livro, é Doutor (1998) em Ciência Política e professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), ocupou o cargo de porta-voz e secretário de imprensa da Presidência da República no primeiro Governo Lula (2003-2007). Após a sua experiência junto à inaugural e paradigmática vitória do Partido dos Trabalhadores, o PT, o autor lançou dois livros com o objetivo de interpretar o fenômeno do lulismo. Em 2012, a obra Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador, que analisa a emergência do lulismo. E, em 2018, O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016).
A escrita deste livro possui um aspecto desafiador que é o fato de ter sido produzido e publicado paralelamente aos fenômenos econômicos, políticos e sociais compõem o cenário da argumentação construída pelo autor. Os protestos de junho de 2013 e a sua capacidade de expor um conjunto de “sintomas mórbidos”, para retomar a frase de Gramsci: a crise econômica que atinge o Brasil a partir de 2014; o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (2011-2016) e o início do governo Michel Temer (2016-2018); o fortalecimento da luta contra a corrupção; e a retomada das ruas por grupos e movimentos sociais conservadores. Neste sentido, é necessário salientar que essa obra fala sobre e é escrita sob um Brasil convulsionado, ou seja, em grande transformação do sistema político e da participação política sem qualquer previsão de futuro estável.
O lulismo, definido no livro Os sentidos do lulismo, consiste no encontro de dois fenômenos sociais derivados do realinhamento eleitoral; este último, movimento que altera a base eleitoral dos candidatos do PT à presidência. Primeiro, a figura do Lula apoiada em uma biografia particular e em seu programa de combate à pobreza. E segundo, uma fração de classe, o subproletariado. Entretanto, como o autor destaca, o lulismo, ainda que possa ser representado pelo Partido dos Trabalhadores em 2006, é uma força política que extrapola o partido e a imagem do Lula. Este fenômeno, o lulismo, enfrentaria uma crise entre os anos de 2011 e 2016 nos governos Dilma Rousseff.
Antes de apresentar o processo de emergência da crise do lulismo, o autor expõe a noção de “intermezzo histórico” que consiste em uma dinâmica do sistema partidário e das eleições identificada por Singer (2018) nos períodos de 1945 e 1969, como também 1989 e 2014. Este “jogo partidário-eleitoral”, termo utilizado pelo autor, é caracterizado pela presença de três tipos de partidos: o popular, o de classe média e o de interior. Os dois primeiros disputam projetos políticos reformistas e liberalistas – ou a divisão entre os “pobres” e os “ricos –, enquanto que o partido de interior, a exemplo do PMDB, possui um caráter governista, clientelista e sem grandes propostas políticas. Em parte, como destacaremos ao longo do texto, a crise do lulismo está relacionada ao desequilíbrio de poder provocado pelo fim da aliança entre o governo Dilma Rousseff e o partido de interior. Em outras palavras, Singer (2018) define o partido de interior enquanto”o fiel da balança", um elemento fundamental para o estabelecimento da governabilidade.
Diante disso, o autor parte de três hipóteses para entender a crise do lulismo. Primeira hipótese, a crise derivaria da posição da então presidente Dilma Rousseff em utilizar o capital político acumulado pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva para realizar uma política econômica desenvolvimentista com “reformismo forte"1 e impulsionar a luta contra a corrupção no Estado. Nos termos de Singer (2018), essas posições seriam os ensaios desenvolvimentista e republicano dos governos de Dilma Rousseff. E tais atitudes teriam contribuído para a emergência de um campo antidesenvolvimentista e antirrepublicano, esta é a segunda hipótese. E a terceira hipótese está alicerçada sob a ideia de que, diante do crescimento da oposição e da perda na capacidade de governar o país, a ex-presidente”se tornou errática". Uma expressão deste comportamento errático, ou seja, contraditório, seria a construção de uma campanha eleitoral, no ano de 2014, de caráter desenvolvimentista e a consecutiva mudança no Ministério da Fazenda. Após a vitória das eleições, a ex-presidente substitui o desenvolvimentista Guido Mantega pelo neoliberal Joaquim Levy. E, como consequência, perde o apoio da esquerda e da base lulista.
Enquanto demonstra os limites e o alcance explicativo das três hipóteses, o autor termina por nos descrever o processo de criação de um campo de indignação ao lulismo enquanto uma força política e modo de gestão pautado na redução da pobreza. Um campo de indignação antidesenvolvimentista, antirrepublicano e antilulista. Tal processo, que consiste na crise do lulismo, é dividido em duas fases dos governos Dilma Rousseff (2011-2016).
A primeira iniciada em 2011 até meados de 2013 é caracterizada pelos ensaios desenvolvimentistas e republicanos. De um lado, a “nova matriz econômica” estruturada na redução da taxa de juros com o objetivo de impulsionar a produção abala sua relação com o capital financeiro. E, de outro lado, o ensaio republicano com a faxina ética e a demissão de diretores de estatais envolvidos em crimes de corrupção teria afastado o governo do “partido de interior”. Nas palavras de André Singer, essa primeira fase da crise é responsável pelo desequilíbrio de “duas vigas estruturantes do arranjo lulista”: o capital financeiro e o “partido de interior”. O “partido de interior” consiste em um dos elementos daquilo que podemos chamar de um padrão de aliança política presente nas experiências democráticas brasileiras, tanto no período entre 1945 e 1964 quanto no intervalo que vai de 1988 a 2014. Nesse entremeio, a experiência da Ditadura Militar no Brasil e o fim do primeiro mandato de Dilma Rousseff.
A segunda fase tem o seu início com os protestos de 2013. A perda drástica de popularidade da presidente naquele período é uma expressão da intensificação dessa crise. A ausência ou, segundo Singer, o impedimento de um reformismo forte constitui um elemento para o crescimento da insatisfação do subproletariado que acendeu socialmente. Este grupo, tendo saído da extrema pobreza, estava insatisfeito com a estagnação socioeconômica. Neste caso, André Singer destaca os pobres que concluem o ensino superior, mas não possuem empregos que remunerem a conquista deste nível de ensino. Tal revolta atinge outras classes sociais, como a classe média. Entre este grupo, o sentimento de indignação estava articulado à perda de alguns privilégios derivados de sua localização socioeconômica, como também à crítica ao aparelhamento e crescimento do Estado. Para eles, precisávamos de um Estado menor e sem corrupção, além disso o Partido dos Trabalhadores e o modo de se fazer política no Brasil eram responsáveis por isso.
A Operação Lava Jato, conjunto de investigações contra a corrupção iniciadas em 2014 pela Polícia Federal do Brasil, constitui uma peça que será mobilizada por diversos grupos sociais no contexto das duas fases da crise do lulismo destacadas acima. O autor identifica como principais efeitos da Lava Jato, independentemente de suas intenções originais, a criminalização das imagens de Lula e do PT a partir de um ativismo jurídico que Singer nomeia de “vanguarda togada do antilulismo”.2 Entretanto, para além de uma provocação incialmente jurídica e que é difundida por diversos setores sociais como, por exemplo, a mídia, as elites políticas, a classe média e os grupos empresariais, a operação Lava Jato adquire um sentido de deslegitimação dos três partidos que compõem o “intermezzo histórico”. A crítica aos três partidos, que também é o decreto de falibilidade do sistema político brasileiro, será fundamental para as diversas narrativas de renovação do sistema político. A votação que autorizou a instauração do processo de impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados no dia 17 de abril de 2016 é a expressão maior da diversidade de sentidos que a ideia de renovação política adquire.
Para além deste processo de construção de um sentimento de revolta e indignação com o Partido dos Trabalhadores e o lulismo, que intitulei de “campo de indignação”, André Singer também destaca o papel da crise econômica internacional. Se o crescimento econômico que sustentou a redução da pobreza no período lulista foi resultado da alavancada econômica em nível mundial e o aumento do preço das commodities, os governos Dilma Rousseff experimentam os impactos da crise de 2008 e a queda, em 50%, da China. Era o fim de um Brasil oportunizado, ao menos economicamente, pelo crescimento internacional.
Essas duas fases que remontam um conjunto amplo e complexo de acontecimentos econômicos, sociais e políticos, dinâmicas nacionais e internacionais, constituem a interpretação do autor para a crise do lulismo ocorrida nos governos de Dilma Rousseff. Sustentada pela cronologia apresentada, a tese do autor para a crise do lulismo consiste na ideia de que a ruptura com as “vigas estruturantes” do sistema de alianças produzidas nos governos Lula (2003-2010), em consequência dos ensaios desenvolvimentista e republicano, contribuiu para a emergência de um conjunto de vetos. Protagonizados politicamente pelo Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, esses vetos impossibilitaram a manutenção do segundo Governo de Dilma Rousseff, intensificaram a crise do lulismo, e adquirem expressões nas ruas com as grandes manifestações e institucionais com o “acordo nacional”3 no Congresso. Este último, assume a tarefa de aceitar e resguardar o ritual do impeachment.
O Lulismo em Crise de André Singer é um retrato possível de um Brasil convulsionado. Além deste, outros retratos das mudanças recentes do sistema político e seu impasse para a democracia brasileira têm sido desenhados. Outras obras como O imobilismo em movimento, de Marcos Nobre (2013), Impasses da democracia no Brasil e O pêndulo da democracia, de Leonardo Avritzer (2016, 2019), constituem alguns dos livros que, em diálogo direto com a obra em questão, analisam o impacto daquilo que Singer (2012, 2018) tem intitulado de lulismo.
Ademais, O lulismo em crise também suscitou críticas bastante pertinentes. Entre elas, podemos destacar o diálogo entre Nobre (2013)4 e o modelo analítico mobilizado por Singer (2012, 2018) para explicar a ascensão e o declínio do lulismo. As críticas são diversas e fecundas, entretanto evidenciarei três que dialogam mais intensamente com a última obra de Singer (2018) aqui resenhada. Primeiro, a “infecunda” articulação entre o conceito de classe, fração de classe e subproletariado. Segundo a intensa tendência ao personalismo contido em sua inspiração bonapartista para a compreensão do lulismo. E segundo, as escassas ferramentas teóricas para a análise do conservadorismo, inclusive percebido pelo Singer (2012, 2018), do lulismo. Em parte, Singer (2018) responde a segunda crítica com a noção de “partido de interior” que se aproxima do conceito de “pemedebismo” de Nobre (2013).
De toda a forma, a obra de Singer (2018) nos coloca diante do “chão” de onde surgem possibilidades de arranjos políticos e modelos de participação. As críticas dos movimentos sociais mais à esquerda do espectro político e a busca pela reinvenção de novas formas de organização e ação política, os sentimentos de indignação que mobilizaram diversos setores sociais às ruas entre 2013 e 2016, como também o alcance e a multiplicidade de sentidos que a luta contra a corrupção adquire em classes e grupos socais distintos são alguns dos fenômenos sociais que, de modo previsível ou contingencial, para utilizar a expressão do autor, atravessam o quebra-cabeça montado por André Singer (2018) para entender as formas de agenciamento emergentes durante a crise do lulismo.5
AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2016.
AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. São Paulo: Editora 34, 2019.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere (vol. 3). 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
_____. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Objeto de uma reflexão mais detalhada no livro Os sentidos do lulismo (2012), a história do Partido dos Trabalhadores também é resultado da capacidade de conciliar duas tendências reformistas: o reformismo forte e o fraco. Para esta ambivalência e paradoxo petista, Singer também nomeia enquanto as “duas almas do PT”: a de Sion e a do Anhembi. O reformismo forte é caracterizado pelo projeto político de romper com as estruturas políticas e econômicas do establishment. E o reformismo fraco resulta das articulações do PT da “alma do Anhembi” e da “carta aos brasileiros” pela necessidade de conciliação com as estruturas políticas e econômicas do establishment.↩
Ver a expressão na página 250.↩
Termo utilizado pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR).↩
Cito este autor pela intensa dedicação do mesmo para debater a obra de Singer (2012). No Imobilismo em movimento (NOBRE, 2013), o autor dedica um anexo para expor as diferenças e os desafios lançados pelas noções de “pemedebismo” e “lulismo”.↩
Jonatha Vasconcelos Santos é doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe, bolsista CAPES e integrante do Laboratório de Estudos do Poder e da Política (LEPP).↩
Resumo:
O lulismo em crise de André Singer (2018) constitui mais um modelo de interpretação da crise do sistema de alianças e governança produzido nos dois primeiros governos federais do Partido dos Trabalhadores (2003-2011) com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais. Neste sentido, a obra deste autor pode ser definida enquanto um retrato possível de um Brasil convulsionado, tendo em vista que outras análises foram construídas nos últimos dez anos. A partir da tese do autor de que os ensaios desenvolvimentista e republicano realizado nos governos Dilma Rousseff (2011-2016) possibilitou a emergência de um conjunto de forças sociais que sustentavam o padrão de alianças políticas e econômicas do lulismo, destacamos os principais elementos disto que André Singer (2018) intitula de quebra-cabeça da crise do lulismo.
Palavras-chave:
Lulismo; presidencialismo; política; poder.
Abstract:
André Singer’s Lulism in Crisis (2018) is yet another model of interpretation of the crisis of the alliance and governance system produced in the first two federal governments of the Workers Party (2003-2011) with the victory of Luiz Inácio Lula da Silva in the presidential elections. In this sense, this author’s work can be defined as a possible portrait of a convulsed Brazil, considering that other analyzes have been constructed in the last ten years. From the author’s thesis that the developmental and republican essays performed by the Dilma Rousseff governments (2011-2016) enabled the emergence of a set of social forces that supported the pattern of political and economic alliances of Lulism, we highlight the main elements of this that André Singer (2018) calls the puzzle of the crisis of Lulism.
Keywords:
Lulism; presidentialism; politics; political power.
Recebido para publicação em 04/12/2019
Aceito em 27/02/2020