Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 51, n. 2, jul./out. 2020
DOI: 10.36517/rcs.2020.2.d05

 

 

O povo indígena Anacé e o Complexo Industrial e Portuário do Pecém, no Ceará:
desenvolvimento e resistências no contexto da barbárie por vir

 

Luciana Nogueira Nóbrega OrcID
Universidade Estadual do Ceará, Brasil
lunobrega.adv@gmail.com

 

Introdução1

Nos últimos trinta anos, diversas comunidades que vivem em São Gonçalo do Amarante e Caucaia, municípios da Região Metropolitana de Fortaleza, Ceará, vem sendo impactadas pela construção de uma série de empreendimentos na área de infraestrutura e indústrias de base, como siderúrgicas, termelétricas e refinaria, integrantes do projeto denominado Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP).2

Dentre as comunidades afetadas, um grupo em especial tem resistido ao processo de implantação do CIPP, reivindicando a identidade étnica Anacé e relações diferenciadas com o território, o que pressupõe outros modelos de uso e gestão dos recursos naturais. Ao se contrapor às desapropriações e expulsões de famílias do território, o povo Anacé se vale de estratégias diversas e engloba outros sujeitos na luta pela demarcação do seu território, no resgate e na reelaboração de sua memória, e na proposição de um saber próprio.

A presente pesquisa se insere nesse contexto, visando apresentar as diversas narrativas existentes em torno da construção do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, visibilizando os conflitos entre: a perspectiva indígena acerca do território por eles vivido e reivindicado; e a perspectiva do Estado que, aliada ao capital nacional e internacional, pretende garantir a implantação de inúmeras indústrias de base na região. Objetivamos, assim, dialogar com os múltiplos sentidos de desenvolvimento, utilizados, no caso, como armas discursivas que refletem modelos socioambientalmente distintos.

O presente artigo é resultado de uma pesquisa em andamento que triangula diversos métodos: a) levantamento bibliográfico junto à produção indígena acerca do CIPP e dos impactos perante os Anacé, privilegiando tanto o material produzido pelas lideranças tradicionais3 quanto aquele produzido pelas lideranças políticas4 do movimento indígena Anacé;5 b) documental, a partir de análise da legislação e de processos que tramitaram no Ministério Público Federal e na Justiça Federal no Ceará sobre os Anacé e o CIPP; c) um exercício etnográfico, fundamentado na observação participante junto ao povo Anacé, através do acompanhamento de reuniões, assembleias e mobilizações indígenas, durante os anos de 2015 a 2018.

Interessou-me, particularmente, identificar os conflitos vivenciados por esse povo indígena, ao tempo em que busquei refletir sobre a agência e as mobilizações engendradas pelos Anacé para que suas narrativas, que conflitavam diretamente com as propostas do Estado do Ceará, fossem tornadas públicas, disputando, assim, outros sentidos de desenvolvimento.

Desse modo, o artigo está dividido nas seguintes partes: na primeira, apresentarei uma contextualização histórica dos processos de territorialização Anacé e do conflito entre o Complexo Industrial e Portuário do Pecém e esse povo indígena, com enfoque na agência Anacé para manter-se no território de ocupação tradicional. Na segunda parte, realizarei um cotejamento sobre os discursos de desenvolvimento em conflito no caso Anacé versus CIPP. Na terceira parte, buscarei discorrer sobre o modo como as resistências Anacé se conectam com outros processos de resistência centrados no território, em face a projetos de infraestrutura de grande escala ou projetos de desenvolvimento,6 demonstrando que essas resistências se projetam também para uma perspectiva epistemológica, por problematizarem o que pode ou não ser considerado desenvolvimento.

Uma história a ser contada: os Anacé e o Complexo Industrial e Portuário Do Pecém

A criação do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) remonta ao ano de 1985, quando a Petróleo Brasileiro S/A (Petrobras)7 anunciou o intuito de construir uma nova refinaria no Nordeste brasileiro, região que já contava com um complexo petroquímico em Camaçari, na Bahia, iniciando uma disputa entre os estados nordestino pelo empreendimento. De acordo com Aquino, “em 1987, estudos conduzidos pela Petrobras indicavam o Ceará, seguido pelo Maranhão, como os estados mais adequados para instalação da refinaria” (AQUINO, 2000, p. 102).

No entanto, tendo em vista razões econômico-financeiras, o projeto de construção de outra refinaria no Nordeste foi adiado para a segunda metade da década de 1990. Nesse momento, o Estado do Ceará, visando criar condições para obter vantagens comparativas significativas com relação aos demais estados do Nordeste, investiu pesadamente na construção de um complexo no Pecém. Sobre o tema, Aquino escreve:

Apesar de não ser mais o Estado quem construiria a refinaria, ele ainda tinha um papel a desempenhar no estabelecimento da infraestrutura que torna uma unidade da federação mais atraente do que as demais para o capital privado. A disputa política deixou de ser por uma refinaria e pela infraestrutura necessária à sua implantação e concentrou-se na oferta de incentivos fiscais e na busca de financiamento estatal para a melhoria da infra-estrutura (no caso do Ceará, construção de um complexo industrial e portuário). (AQUINO, 2000, p. 106).

Paralelo à refinaria, o CIPP já ganhava forma com o projeto de construção de um porto e a instalação de uma siderúrgica, atrativos, conforme as expectativas do governo estadual, para acomodar um polo metalmecânico e um petroquímico (AQUINO, 2000). A área destinada à implantação do Porto do Pecém e de outros empreendimentos que compunham o CIPP, no entanto, era ocupada por inúmeras famílias, as quais começaram a ser desapropriadas no final da década de 1990.

A primeira onda das desapropriações, entre os anos de 1995 a 1999, teve como saldo centenas de famílias expulsas da terra, sendo algumas alojadas nos assentamentos de Novo Torém, Forquilha e Monguba, no município de São Gonçalo do Amarante. Nesse período, diversas organizações civis e religiosas de Fortaleza, dentre elas a Pastoral do Migrante, atuavam na região prestando apoio às famílias atingidas.

Nesse contexto, a partir de um trabalho proposto pela Pastoral do Migrante a uma escola da região, as histórias indígenas começaram a sair da invisibilidade. De acordo com Lima,

[...] inicialmente, pelas ações do Serviço Pastoral do Migrante, que, por conta dos processos de desapropriação ocasionados pelo CIPP, desenvolvia ações na região e incentivou a realização de gincana numa escola tradicional da região, que consistiu na busca pela história de nossos antepassados e na constituição/ocupação dos territórios pertencentes às comunidades de Bolso – São Gonçalo do Amarante – e Matões – Caucaia, por meio da consulta aos idosos da comunidade.

[...]

O objetivo inicial desta gincana era provocar um despertamento para a possibilidade de resistência ao processo de desapropriação por meio da valorização da história do lugar. Quando os professores (muitos deles não indígenas) perceberam que o resultado foi além do esperado, muitos passaram a incentivar que os alunos e outras lideranças comunitárias aprofundassem a proposta e pesquisassem sobre as origens destas comunidades. (LIMA, 2017, p. 42).

A gincana possibilitou, portanto, a reconstrução da historiografia dos primeiros habitantes da região; o registro da oralidade dos moradores mais velhos da região; construção de cartilha, panfletos, passeata para chamar a atenção do Governo do Estado do Ceará, na tentativa de abrir um canal de diálogo. Foi nesse período em que os indígenas passaram a se autodenominar pelo etnônimo Anacé (MORAIS DE SOUZA; NOGUEIRA; PAULINO NOGUEIRA, 2016).

O movimento de resistência diante das desapropriações e remoções de famílias possibilitou que, no processo de luta, muitas delas começassem a recontar algumas histórias. Histórias que os pais e avós haviam lhes contado, mas que, pelo medo, foram sendo enterradas na memória. Histórias dos encantados, das danças, dos rituais, das curas, dos massacres, das resistências foram sendo percebidas como comuns ao grupo: o pai de um havia contado a mesma história que a avó de outro.

Assim, o silêncio, outrora estratégia de resistência, passou a ser rompido e memórias que estavam submersas (POLLAK, 1989) precisaram ser trazidas à superfície de modo a fortalecer e a conduzir uma luta coletiva para permanecer no território reivindicado. Morais de Souza, Nogueira e Paulino Nogueira destacam, entretanto, que:

“Reconhecer-se indígena” pode parecer, para quem está fora, como algo simples, mas diante de nossa história de negação e tentativa de anulação de nossos saberes, valores e tradições, torna-se uma posição difícil que muitos dos nossos parentes não conseguiram e ainda não conseguem fazê-lo. Nossa história é uma sequência de fatos que revelam a violência física e simbólica que vivemos ao longo do tempo e aquilo que o medo não abafou, a chibatada o fez com muito sucesso (MORAIS DE SOUZA; NOGUEIRA; PAULINO NOGUEIRA 2016, p. 23).

Resistindo às remoções, os Anacé passaram a se afirmar publicamente enquanto grupo diferenciado ao tempo em que se articulavam com o movimento indígena no Estado do Ceará. A consciência de que constituíam e de que constituem um povo indígena parte das relações peculiares que tecem com o território que habitam; de uma memória coletiva que os interliga a uma população ancestral; das danças, ritos e tradições reconhecidas por eles como indígenas, como o toré e a dança do São Gonçalo;8 e de uma matriz simbólica peculiar: a corrente dos encantados.

A corrente de índios ou corrente dos encantados é um dos elementos reiteradamente presentes nas narrativas entre os Anacé. Segundo Antonio Freire de Andrade, Anacé de Matões, em entrevista ao jornal Porantim, os índios que morreram na luta se encantaram e assim “surgiu a corrente dos encantados que vai do Gregório ao Morro do Sirica. Passa por cima do Jirau, Baixa das Carnaúbas, Baixa da Almeixa e aí ‘brenha’ na mata. Quem tiver força e poder de receber, é só passar por baixo. Eles dão força, ajuda” (FREIRE DE ANDRADE apud PICANÇO, 2006, p. 6).

O Cacique Antônio Ferreira Anacé, em obra escrita por ele, sem data, intitulada “Resgate Histórico do Povo Anacé”, descreve a corrente dos encantados do seguinte modo:

[...] Temos mais novidades dos nossos antepassados que choram, nossos espíritos sentindo falta das matas que foram desativadas pelos invasores estranhos de sangue diferente que nos contaminaram de doenças malignas e o choro dos nossos espíritos sai do São Carro passando acima da Mangabeira abaixo da Araticuba passando no Pau Branco, sai abaixo do Garrote acima das Pindobas, entrando na Salgada ficando na mata da aldeia até a mata do Tapacaú, a noite sempre ouve o clamor de muitas vozes não podemos entender, mas sabemos que eram nossos antepassados clamando a manifestação dos Anacé que estava próximo o renascer dos Anacé. Toda essa história vinha sendo contada pelo Manuel Inácio da Silva pai de João Batista da Silva que seu avô dizia para seu filho João Batista e ele contava para o seu neto Antônio Ferreira da Silva que ele toda noite tinha que contar esta história, enquanto fumava seu cachimbo, ele dizia, eu não alcanço mais talvez você e seus filhos e talvez até seus netos alcance que os índios ainda vão voltar novamente a receber suas terras tradicionais, mas os Anacé ainda vão lutar para ganhar porque no pacto que fizeram com o pai Tupã os Anacé renasceram. Foi como um estrondo no mar (FERREIRA, s/d).

O clamor das muitas vozes ouvidas pelos Anacé lembra-os do pacto que fizeram com o pai Tupã (figura demiúrgica principal) de que os indígenas renasceriam na luta. É a corrente dos encantados que representa os antepassados dos atuais Anacé que, ao morrer, se encantaram, passando a povoar as matas de seu território tradicional (BRISSAC; NÓBREGA, 2010).

Souza descreve a relação da corrente dos encantados com a área de Matões, uma das aldeias que integram o território Anacé, do seguinte modo:

Para nós Anacé de Matões todos os lugares do território são sagrados, porém a mata do Cai a Canga se sobressai por seus encantos e espiritualidade, uma área muito importante para nossos antepassados e para todos da aldeia Matões. Nossos antepassados se faziam presentes em rituais e em oferendas aos nossos encantos. O morro ou mata dos encantados, como é chamado por nós Anacé, é um lugar de renovação espiritual, um lugar de encantos e muita força ancestral. Contam os mais idosos que em cima do morro existe um grupo de encantados, que ao entrarem no mar, em noites escuras sem lua, esses encantos norteiam os pescadores na volta à terra firme. Esse é um dos encantos de nossa Aldeia, que remete a nossa espiritualidade e nossas práticas de sobrevivência (SOUZA, 2019, p. 33)

Como se constata, a relação dos Anacé com os seus ancestrais é entretecida com a relação que mantêm com o território que ocupam: embora os encantados também circulem, estão fisicamente identificados nos locais reivindicados pelos Anacé como indígenas. Portanto, mais do que mera representação ou simbolismo, a corrente dos encantados constrói os mundos Anacé e lhes atribui práticas de sentido (GOMES DE LIMA, 2018).

Para esse povo indígena, há um complexo emaranhado que articula os corpos dos Anacé atuais e dos seus antepassados com o território por eles reivindicado e um universo de choro e lamento. A corrente dos encantados é a chave epistêmica para compreender a relação simbiótica entre corpos-território-emoções que relembra e ativa os processos de luta, ou o “renascer dos Anacé”. Afirmar-se Anacé só faria sentido dentro dessa relação simbiótica entre corpos-território-emoções, uma vez que a corrente dos encantados gera um fluxo incessante: os atuais Anacé também comporão, quando falecerem na luta ou se encantarem, essa mesma corrente, ampliando suas vozes e seu clamor. Destaco, ainda, que na dimensão da encantaria Anacé outras formas de vida não humanas (GOMES DE LIMA, 2018) também se encontram na simbiose corpos-territórios-emoções.

Durante o período de articulação e mobilização dos moradores de São Gonçalo do Amarante e Caucaia que passaram a se reconhecer como povo indígena Anacé, houve uma suspensão na onda de desapropriações nessa região. Logo após a instalação dos primeiros empreendimentos, impasses políticos e pressões de outros estados para receber as indústrias acabaram “atrasando” a conclusão do CIPP (AQUINO, 2000).

Em janeiro de 2007, entretanto, o Governo Federal instituiu, por meio do Decreto nº 6.025, de 22 de janeiro de 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), possibilitando a retomada do projeto do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, em razão dos amplos incentivos federais. Em 19 de setembro de 2007, o governador do Estado do Ceará publicou, no Diário Oficial, o Decreto n° 28.883/2007, declarando de utilidade pública para fins de desapropriação e implantação das obras e serviços do Parque Industrial do Pecém uma poligonal equivalente a 335 km2, entre os municípios de São Gonçalo do Amarante e Caucaia, área superior ao projeto inicial do CIPP.

O Programa de Aceleração do Crescimento retomou a proposta de instalação de uma refinaria de petróleo na região do Pecém. Aliado à refinaria, outros empreendimentos vieram a se somar no contexto do CIPP, tais como: retroporto (edificações situadas em terra firme), ferrovia Transnordestina, gasoduto, ampliação de vias rodoviárias, em especial BRs, termelétricas a carvão mineral e transposição do rio São Francisco (eixo norte).

Diante disso, iniciou-se uma nova fase de desapropriações na região de São Gonçalo do Amarante e Caucaia. Embora essa fase tenha sido realizada pelos órgãos estaduais de forma semelhante à ocorrida nos anos de 1996 a 1999, ou seja, sem garantir o direito à informação às populações impactadas (ARAÚJO, 2008), diferenciou-se pela resistência dos moradores, principalmente daqueles que já se identificavam como povo indígena Anacé.

A ação coletiva dos Anacé orbitou em torno de estratégias que disputaram, com o Estado, narrativas e posições, especialmente no que se refere aos sentidos de desenvolvimento. Assim, os indígenas precisaram aprender a traduzir suas experiências (ALEXANDER, 1998) do particular para o geral, do pessoal para o institucional, mobilizando atores e instituições, o que os possibilitou entrar, de vez, na cena pública. Dentre essas estratégias, citamos:

  1. articulação com o movimento indígena estadual e nacional. Em 22 de setembro de 2007 ocorreu a I Assembleia do Povo Indígena Anacé, a qual reuniu os povos Tapeba, Pitaguary, Potiguara, Tabajara, Tremembé, Xucuru Kariri e Anacé para discutir o tema “Terra e impacto ambiental”, resultando em um fortalecimento das alianças entre diferentes povos indígenas;

  2. pedidos de realização de audiência pública perante a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. Cita-se, nesse sentido, a audiência pública realizada, por solicitação dos Anacé à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, em 9 de março de 2009, que contou com a presença dos índios Anacé, do chefe do Núcleo de Apoio Local da FUNAI, do Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e de Procuradores da República no Ceará;

  3. articulações com grupos de pesquisa e extensão das Universidades Estadual e Federal do Ceará (Grupo Grãos – UECE; Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde para a Sustentabilidade – TRAMAS e o Projeto de Extensão Centro de Assessoria Jurídica Universitária – CAJU – ambos da UFC);

  4. formulação de denúncias, requerimentos e representações junto ao Ministério Público Federal (MPF) no Ceará, que passou a acompanhar, por meio do analista pericial em Antropologia, os conflitos e as demandas do povo Anacé, com mais proximidade. Ilustrando a afirmação, em pesquisa realizada no sítio eletrônico do Ministério Público Federal no Ceará, a partir do termo “Anacé” e considerando o período de 2003-2009, listamos 13 representações, denúncias e solicitações apresentadas pelos indígenas perante o Ministério Público Federal no Ceará, as quais deram origem a 13 processos administrativos que tramitaram perante o MPF no período.

  5. formalização, em 2009, do Conselho Indígena do Povo Anacé de São Gonçalo do Amarante e Caucaia (CIPASAC), com respectivo registro em cartório, inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas, e eleição da diretoria, que passou a centralizar o diálogo entre os indígenas e o Estado.9 Destacamos que o CIPASAC e os demais espaços políticos institucionais Anacé são constituídos majoritariamente por mulheres{ (SOUZA, 2019).

A agência promovida pelos Anacé, que pode ser compreendida a partir dos exemplos acima descritos, foi essencial para que o discurso fechado e hermético do Estado e dos agentes econômicos em torno do Complexo Industrial e Portuário do Pecém passasse a ser questionado. O CIPP era resultado de um projeto de desenvolvimento que desconsiderava os impactos sobre os corpos e sobre o território Anacé ou tratava esses impactos como meras externalidades aos empreendimentos.

De oprimidos e estigmatizados, os indígenas se viram, em diversos momentos, sentando-se na mesma mesa que autoridades estatais, incluindo Secretários de Estado e com o próprio Governador (MORAIS DE SOUZA; NOGUEIRA; PAULINO NOGUEIRA, 2016). Embora isso não significasse uma equivalência de poder e da representação política, a igualdade momentânea que simbolicamente representava estar sentado em uma cadeira igual, dividir uma mesma mesa ou ter o mesmo tempo de fala que uma autoridade do Estado desafiava as hierarquias e possibilitava aos indígenas empreender um processo inverso de estigmatização (ALEXANDER, 1998), em que a imagem dos Anacé era exaltada e a dos agentes estatais diminuída.

Ao movimentarem inúmeros atores sociais para além deles mesmos, os Anacé transformaram os seus conflitos em torno do CIPP em um problema público, ou seja, uma situação sensível e perceptível para diferentes setores da sociedade (GUSFIELD, 1981), disputando, assim, representações em torno da categoria desenvolvimento. Os Anacé eram corpos que não deveriam estar ali, no mesmo lugar a ser instalado o principal projeto econômico do Estado do Ceará. No entanto, eles estavam e não poderiam mais ser ignorados.

E o problema se torna público: a disputa de narrativas em torno de projetos de desenvolvimento

Como mencionado acima, uma das estratégias de que se valeram os Anacé para questionar a autoridade do problema (GUSFIELD, 1981) em torno da construção do CIPP, foi a apresentação de requerimentos, denúncias ou representações junto ao Ministério Público Federal no Ceará. Dentre essas, uma merece destaque pelos seus desdobramentos.

Trata-se da denúncia, proposta em julho de 2008, sobre desapropriação das terras da comunidade indígena Anacé de São Gonçalo do Amarante e Caucaia para a ampliação do Complexo Industrial e Portuário, na qual se solicitava a criação de Grupo de Trabalho, pela Fundação Nacional do Índio, para identificação e delimitação da Terra Indígena Anacé.

Essa denúncia teve como consequência a elaboração, em 2009, do Parecer Técnico n° 01/09, assinado pelo Prof. Dr. Jeovah Meireles, da UFC, pelo analista pericial do MPF no Ceará, Sérgio Brissac e pelo analista pericial da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, Marco Paulo Schettino. Esse parecer incorporou a discussão socioambiental, buscando compreender as relações estabelecidas entre o clima, os elementos ambientais disponíveis na área ocupada tradicionalmente pelos Anacé e os modos de ser, fazer e produzir desse povo indígena, em contraponto às ações já realizadas pelo CIPP e aos empreendimentos que pretendiam se instalar no local:

A implantação dos equipamentos relacionados com o CIPP promoveu danos socioambientais ao geossistema ambiental caracterizado pelo Tabuleiro Pré-litorâneo. Estas intervenções foram realizadas na área tradicionalmente ocupada pelos Anacé que, em grande parte, não levaram em conta a permanência da comunidade indígena e a qualidade ambiental dos sistemas de usufruto ancestral. As ações relacionadas com a implantação e operação das indústrias promoveram a degradação da mata de tabuleiro (utilizada para a caça e coleta de sementes) e das lagoas e riachos e de áreas antes utilizadas para atividades de subsistência (vazantes utilizando as “levadas” e as lagoas). Foram implantadas sobre Áreas de Preservação Permanente (APPs). Para a terraplanagem e soterramento das lagoas e riachos, várias famílias foram retiradas e extintos os sistemas ambientais de usufruto indígena.

[...]

Pela complexidade dos ecossistemas ambientais definida no Tabuleiro Pré-litorâneo e a diversidade dos usos tradicionais evidenciada durante as atividades de campo e relatada pelos Anacé, a área destinada ao CIPP não é compatível com a fragilidade e vulnerabilidade dos ecossistemas e com o modo de vida tradicional das populações. [...] Observou-se que, durante a instalação das primeiras indústrias, as comunidades foram tratadas pelos empreendedores como passivo ambiental, evidente pela necessidade de realocação de suas áreas tradicionais, para a continuidade do processo de industrialização (MEIRELES; BRISSAC; SCHETTINO, 2009, p. 51-52, grifos nossos).

Assim, considerando os danos socioambientais de elevada magnitude com a instalação do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, o parecer indicou possibilidades de alternativas locacionais não distantes do Porto do Pecém, mas fora do território de ocupação tradicional dos índios Anacé. Essas alternativas locacionais, entretanto, nunca foram consideradas pelo Estado do Ceará, nem mesmo no contexto do licenciamento ambiental dos empreendimentos do CIPP.

Diante da pressão para a continuidade das obras do complexo e da iminência de novas desapropriações, o Ministério Público Federal no Ceará ajuizou, em dezembro de 2009, a Ação Civil Pública n° 0016918-38.2009.4.05.8100, perante a 10° Vara Federal no Ceará, questionando as irregularidades na implantação do CIPP e requerendo o cancelamento de qualquer ato desapropriatório na área reivindicada pelos Anacé e de remoção de indivíduos, além da imediata continuidade dos trabalhos de identificação, delimitação e demarcação da Terra Indígena Anacé.

Em janeiro de 2010, o Juiz Federal proferiu decisão no sentido de indeferir o pedido liminar formulado pelo Ministério Público Federal, entendendo que, no caso, a paralisação das obras do CIPP é que geraria prejuízos à coletividade:

[...] pois a suspensão da implantação dos empreendimentos já licenciados implicará no retardamento da alavancagem do desenvolvimento do Estado, traduzido no adiamento/impedimento da elevação da produção industrial (6 Mta toneladas/ano de placas de aço semiacabadas, segundo informação de fls. 1368), das receitas públicas e de criação de empregos (6.000, diretos e 15.000, indiretos, segundo informação de fls. 1368), com inegável prejuízo para população do estado. A suspensão de licenças validamente concedidas poderá, ainda, ensejar ações regressivas em face do poder público estadual na ordem dos investimentos previstos, penalizando de forma indireta, mais uma vez, a população cearense (prejuízos estimados por desmobilização e remobilização de obra em 50 milhões de reais; por paralisação de 1 milhão e 100 mil reais diários, segundo informações de fls. 893). (BRASIL, 2010, p. 1036).

A decisão parte de uma operação narrativa que coloca a demanda dos Anacé como uma questão menor diante do volume de recursos envolvidos no CIPP e dos benefícios, advindos da aplicação desses investimentos, que seriam revertidos “para a população do estado”. Na tese sustentada pela decisão, reduz-se a complexidade do caso a meras relações causais: “se CIPP, logo mais empregos”; “se CIPP, logo alavancagem do desenvolvimento do Estado”, sem considerar os impactos disso para as populações que vivem na região do Complexo e sem considerar, ainda, que a maior parte das empresas integrantes do CIPP detinham isenções e incentivos fiscais concedidos pelo próprio Estado, em uma perspectiva de renúncia de receitas.

Recorrendo a números e dados estatísticos, tais como “6 Mta toneladas/ano de placas de aço semiacabadas”, 6.000 empregos diretos e 15.000, indiretos, “prejuízos estimados... em 50 milhões de reais; por paralisação de 1 milhão e 100 mil reais diários”, todos apresentados pelo Estado do Ceará e pelas empresas integrantes do CIPP, o juiz federal toma esses dados como naturais e indiscutíveis, sem questionar de que modo eles foram construídos e sem justificar porque estava priorizando esses dados em detrimento de outras narrativas apresentadas judicialmente, como as produzidas pelo Ministério Público Federal e pelos próprios Anacé.

Ao “resolver o conflito” posto em debate na Ação Judicial, realizou-se uma escolha entre as narrativas em disputa, uma escolha que, entretanto, não foi problematizada nem justificada pelo juiz do caso. A decisão reflete, ainda, uma compreensão de desenvolvimento limitada à geração de empregos e ao crescimento econômico, não fundamentando os motivos dessa escolha em detrimento de múltiplas possibilidades discursivas. Essa construção decorreu de operações linguísticas e performáticas que, embora possam aparentar o status de neutralidade, estão muito longe de serem desprovidas de uma intencionalidade (GUSFIELD, 1981).

O argumento conciliador do Ministério Público Federal, por exemplo, de que haveria alternativas locacionais ao empreendimento, próximas ao Porto, mas fora do polígono indicado como Terra Indígena, foi simplesmente desconsiderado na decisão.

Acerca das múltiplas possibilidades argumentativas, lembramos, ainda, que o Decreto n° 28.883/2007, que ampliou a área declarada de utilidade pública para fins de desapropriação e implantação das obras e serviços do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, previa como razões dessa ampliação:

Considerando que a instalação do Complexo Industrial-Portuário do Pecém, em fase de implantação, tem por finalidade criar novas perspectivas de desenvolvimento para o Estado, independentemente das suas condições climáticas; Considerando que a implantação de um parque industrial, baseado em novas e modernas instalações portuárias, dotará o Estado de um importante pólo irradiador de desenvolvimento sustentável; Considerando ainda que o empreendimento gera a necessidade de áreas de terra disponíveis para aquela finalidade, com repercussão significativa no meio sócio-econômico do Estado do Ceará [...] (CEARÁ, 2007, p. 01).

Como se verifica nos “considerandos” do Decreto, a palavra “desenvolvimento” é repetida diversas vezes, tendo sempre uma conotação econômica: desenvolvimento como sinônimo de modernização, de geração de emprego e renda, de superação de condições climáticas adversas, havendo menção expressa ao termo “desenvolvimento sustentável”, sem que haja uma definição do conceito. A associação entre essas palavras não ocorreu de forma neutra, havendo um interesse de construir uma narrativa que tornasse socialmente palatável a eventual retirada de pessoas desse território declarado de utilidade pública, uma vez que o que se estava em jogo era um interesse maior: garantir o desenvolvimento do Estado do Ceará, superando uma imagem de miséria e de escassez.

Essa mesma compreensão de desenvolvimento, limitada ao aspecto econômico, mas contraditória em seus termos por citar a sustentabilidade sem conceituá-la, é partilhada na missão da empresa de economia mista que gere o Complexo Industrial e Portuário do Pecém, criada pela Lei estadual nº 12.536, de 22 de dezembro de 1995. De acordo com o disposto no sítio eletrônico da empresa, sua missão é “administrar e desenvolver o Complexo do Pecém, contribuindo para o desenvolvimento econômico e social sustentável do Estado do Ceará e para a geração de valor aos acionistas”.

Por sua vez, no sítio eletrônico da Associação das Empresas do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (AECIPP), criada em 2015 e que reúne as principais indústrias instaladas no CIPP, o histórico do Complexo é narrado sem mencionar os conflitos com os Anacé, revelando, ainda, uma compreensão de desenvolvimento limitada à noção de crescimento econômico e de geração de renda:

Inserir o Ceará na rota internacional do comércio, tendo destaque para atividades industriais, numa área que agregue desenvolvimento, sustentabilidade e logística aprimorada. Assim nasceu o Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP). [...] O CIPP cresce com o intuito de desenvolver a economia local, regional e nacional movimentando materiais siderúrgicos, fertilizantes, granel e contêineres. O plano diretor divide a região em quatro setores. O primeiro é destinado às termelétricas e à Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP); o segundo, à refinaria e pólo petroquímico; o terceiro, à área industrial e o quarto, é da área institucional, serviços e ZPE. Grandes e estratégicos empreendimentos para o Ceará estão instalados na região. Atualmente, o Complexo congrega 30 empresas. Em operação já são 22 e as demais em fase de implantação. Juntas totalizam investimentos na ordem de R$ 28,5 bilhões, gerando 50,8 mil empregos diretos e indiretos.10 

Em contraponto a essas compreensões, os Anacé vêm questionado qual o sentido de desenvolvimento que o CIPP traz. Na Carta-Histórico do Povo Anacé, escrita em outubro de 1999, por Júnior Anacé em conjunto com outras lideranças e professoras indígenas, há referências temporais a diversos massacres pelos quais os indígenas teriam passado, identificando a chegada do CIPP e as primeiras desapropriações como o “massacre dos três noves”:

O povo Anacé sofre vários massacres em seu território a exemplo o de 1777 (era dos três setes) onde muitos passaram fome tendo que comer carne de cavalo e outros não resistiram e chegaram a morrer. Em 1888 (era dos três oitos) aldeamentos próximo a Lagoa do Banana e a Lagoa do Tapuio foram bombardeados e tanto na era dos três setes como na era dos três oitos, lagoas próximos aos aldeamentos viraram mar de sangue por que nossos ancestrais eram mortos e jogados dentro das lagoas. (HISTÓRICO DO POVO ANACÉ, 1999).

Na análise de Morais de Souza, Nogueira e Paulino Nogueira:

as empresas continuam a se instalar nos entornos [do nosso território] trazendo consigo o tão sonhado “PROGRESSO”. Este que é considerado “desenvolvimento” significa para as populações tradicionais, não só as Comunidades Indígenas Anacé, o grande vilão. Mais uma vez “somos invadidos” (MORAIS DE SOUZA; NOGUEIRA; PAULINO NOGUEIRA 2016, p. 22).

Após os primeiros levantamentos realizados pelo Grupo de Trabalho instituído pela Portaria nº 1.566/2010 da Fundação Nacional do Índio para identificação e delimitação da Terra Indígena Anacé, o órgão indigenista oficial concluiu pela não existência da tradicionalidade na ocupação indígena nas áreas de Matões e Bolso, justamente as mais impactadas pelo Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Embora tenha reconhecido a existência de comunidades indígenas Anacé nessas localidades, entendeu a Funai que, diante do conjunto de indústrias instaladas na área do CIPP e da presença considerável de não índios, não se poderia mais caracterizar o território como indígena, já que os Anacé haviam perdido a hegemonia no controle do seu espaço de vivência. Interessante ressaltar que as áreas em que não se reconheceu a tradicionalidade na ocupação indígena eram justamente os locais de maior interesse político-econômico, inclusive, onde se pretendia instalar a Refinaria da Petrobras.

O fundamento para essa manifestação da Funai é analisado por Tófoli, que ressalta o contexto político-eleitoral, com eleições presidenciais e estaduais agendadas. Tanto a candidatura de Cid Gomes para Governo do Estado quanto a de Dilma Rousseff para Presidência evidenciavam a promessa de construção da refinaria do Pécem, obras essas articuladas ao PAC (TÓFOLI, 2012).

Para os indígenas, a manifestação da Funai foi um golpe, abrindo espaço para novas remoções:

[...] desta vez a aldeia Matões seria impactada e removida por completo. Diante de todo esse cenário, começamos a travar uma batalha contra o governo do Estado do Ceará, entendendo que nossos direitos estavam sendo violados mais uma vez. [...] quando criança acompanhei algumas visitas do GT às famílias na Aldeia, não negamos todo o sofrimento e modificações sofridas por conta do CIPP, levando isso a esse não “reconhecimento” da terra tradicional, que nos negou a demarcação de terra. Lembro-me que a aldeia ficou em uma tristeza com a conclusão do laudo produzido, não nos dando a autorização do acesso do trabalho completo. Foi anulado o pedido de demarcação da TI Anacé de Matões, “uma batalha foi vencida, mas não a guerra toda”. Assim as possibilidades para a ampliação do complexo aumentaram, já que estava “livre” do processo de demarcação da área indígena (SOUZA, 2019, p. 47).

Em razão desse entendimento da Funai, foi proposto um Programa Emergencial de realocação de 163 famílias Anacé das aldeias de Matões e Bolso impactadas pelo CIPP, para uma área a ser adquirida pelo Estado do Ceará e pela Petrobras. Após inúmeras reuniões, em 22 de novembro de 2013, foi assinado o Termo de Compromisso celebrado entre o Estado do Ceará, a Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobras, a Fundação Nacional do Índio – Funai, as comunidades indígenas Anacé de Matões e Bolso, o Ministério Público Federal e a União, com o objetivo de, de um lado, assegurar a liberação do terreno onde seria implantada a Refinaria Premium II e os demais empreendimentos que compunham o Complexo Industrial e Portuário do Pecém e, de outro, a constituição da Reserva Indígena Taba dos Anacé, local onde seriam realocadas as famílias indígenas. Souza destaca que:

Em 2014 tem início a concretização da construção da Reserva Indígena Taba dos Anacé. Todo o processo de desterritorialização, tristeza, e angústia se inicia novamente. Até então, a expectativa girava em torno das condições de vida e adaptação à nova vida na reserva, sem se saber se a nova terra seria boa para plantação de árvores que dão frutos como na antiga morada. Afinal, como saber se não se tem vivencia com o novo ambiente de morada? A terra tradicional continua sendo, pelo menos por agora, aquela que vivemos a vida toda, pois para se adaptar ao novo lugar levará tempo até que se possa “replantar” e “refazer” as referências que acionam costumes e tradições (SOUZA, 2019, p. 48).

Nesse interregno, o aumento do nível de poluição do ar, com consequente aumento de doenças respiratórias, conforme denunciado pelos Anacé; as alterações sociais trazidas pela dinâmica dos trabalhadores contratados para as obras e que agora não estão mais empregados em nenhuma empresa do CIPP; o aumento da violência e do tráfico de drogas na região; a poluição de mananciais e o secamento de lagoas e riachos que abasteciam as comunidades indígenas; a pressão trazida pela especulação imobiliária e a situação de confinamento sentida pelos indígenas ilhados no seu próprio território, são exemplos dos impactos socioambientais narrados por eles e também identificados em estudos de Bezerra (2010) e Gomes (2014).

O CIPP trouxe, portanto, um tipo de desenvolvimento que os Anacé não conheciam, um desenvolvimento que empobrece e que desterritorializa: “Por isso para nós o termo desterritorializar, define melhor a ação do Governo sobre a População Indígena Anacé de Matões. [...] ao nos referirmos ao termo”desterritorializar“, queremos dizer,”descaracterizar" a Nação Indígena Anacé" (MORAIS DE SOUZA; NOGUEIRA; PAULINO NOGUEIRA, 2016, p. 43).

Em uma passagem de Souza:

As famílias indígenas a qual entrevistei/conversei relataram de forma expressivamente negativa, as modificações ocasionadas na comunidade com a chegada das indústrias no território. Um dos principais cenários apresentados posteriormente ao “desenvolvimento” foi um aumento significativo da violência e a destruição ambiental na comunidade de Matões. Antes se vivia de forma tranquila, a sobrevivência se dava a partir do caçar, plantar e pescar. Quando a excussão do CIPP iniciou-se acabou toda riqueza do povo, e isso foi bastante evidente durante as entrevistas, assim também como foi destacada a saudade de como se vivia antes da chegada das indústrias, como diz seu Antônio Adelino: “Foi aparecendo essas indústrias os ricos entrando invadindo, sabido dos outros estados entrando no lugar e foi acabando com aquela riqueza que nós tinha, aquele lugar rico foram tomando e até como hoje em dia ainda tão tomando” (Adelino, 74 anos.). (SOUZA, 2019, p. 52).

O empobrecimento trazido pelo CIPP é contraposto à ideia de riqueza presente nos Anacé. Longe do conceito de acumulação, ser rico para eles é experimentar o sentimento de “satisfação de vida”, ou seja, é ter suas necessidades fundamentais, não apenas materiais, satisfeitas a partir de uma fartura relacionada umbilicalmente com a terra. Nesse sentido, Morais de Souza, Nogueira e Nogueira Paulino escrevem, mencionando entrevistas realizadas com os troncos-velhos do povo Anacé, em um contexto ainda anterior à remoção para a Reserva:

É notório o sentimento de perda e medo para adaptar-se a uma nova área, já que sabem onde encontrar erva dentro do território, sabem onde então enraizados. É nos idosos que encontramos a força da tradição e cultura, são nossas raízes. Neste caso específico, o sentimento de perda é maior ainda, pois não representa somente o sentimento de prejuízo material, envolve também a perda ancestral (2016, p. 44).

Quando, em seus discursos, fazem referência ao passado, sempre demostram o sentimento de gratidão com a terra, relatando referência de muita fartura:

[...] aqui eu olho quando é safra das manga eu tenho, se for na safra de coqueiro, tenho coco pra valer, se eu olho pro outro lada eu tenho a onde plantar, eu no inverno eu planto, eu tenho, de tudo eu tenho, só aqui dentro desse cercado são cinco pé de mangueira diferente uma da outra, e tudo na safra dar com abundância, [...] (MANJIRIOBA, 61 anos).

A satisfação com a vida associada às boas condições de sobrevivência que a terra sempre proporcionou reflete nas referências que as pessoas trazem ao abordar a questão da saída de suas terras. As tradições também são muito relevantes para estas pessoas, o que mais uma vez pode estar relacionado com sentimento de satisfação de vida (MORAIS DE SOUZA; NOGUEIRA; PAULINO NOGUEIRA 2016, p. 45).

O empobrecimento e a desterritorialização sentida pelos Anacé não foram os únicos efeitos da chegada do CIPP. Souza destaca que “para além de todas as mazelas causadas, sucedeu-se também as manifestações espirituais, causada por toda destruição nas matas” (2019, p. 52), a indicar uma quebra na corrente dos encantados e na dimensão da encantaria Anacé.

Em fevereiro de 2018, foi inaugurada a Reserva Indígena Taba dos Anacé, iniciando-se um novo ciclo no processo de territorialização desse povo indígena, em especial, no que se refere às 163 famílias que foram realocadas.

É inegável que os Anacé foram profundamente afetados nesse processo de desterritorialização e recomeço em um novo território antes desconhecido por eles. Nesse contexto, Souza destaca como os Anacé que foram removidos para a Reserva referem-se a eles mesmos como mudas; “e toda muda murcha”:

Tínhamos nossos costumes, práticas culturais produzidas pelas comunidades que, em nossa nova moradia ainda estamos nos familiarizando com ambiente. Os rituais ainda não acontecem com a mesma intensidade que tínhamos, mas se entende que estamos inseridos em uma nova realidade. A socialização entre as famílias contribui para o desempenho conjunto de todos, a desterritorialização é vista entendendo que a mudança possibilitou permanecermos juntos em um ambiente a qual ganharemos vínculos conjuntamente.

[...]

Nos depoimentos, a expressão de sermos mudas murchas remete a mudança de Matões para a Reserva, estando relacionado a difícil situação que nos encontramos, mas que vai passar rápido, pois estamos plantados na nova terra, e iremos alcançar novamente nossos laços simbólicos. Todos os participantes evidenciaram que todas as reestruturações só estão sendo possíveis com a união dos moradores, sendo essa a sustentação da resistência para reconstruirmos. (SOUZA, 2019, p. 55).

Longe de significar uma sentença de morte, a remoção para a Reserva Indígena tem levado os Anacé a reconstruir suas relações consigo mesmos, com as matas e com os encantados. Não obstante a Reserva seja vista como terra desconhecida, os indígenas reafirmam a sua “capacidade de transformar a Reserva em território tradicional tendo como base a união” (SOUZA, 2019, p. 58), porque tradicional para os Anacé é onde se tem história e essa história ainda não encerrou.

Pensando resistência e desenvolvimento a partir dos territórios

A exemplo de outros povos e grupos afetados por projetos de grande escala ou projetos de desenvolvimento (RIBEIRO, 2012), os Anacé promoveram um tipo de ação coletiva conectando e construindo redes de ativismo a partir da mobilização de inúmeros atores, incluindo os estatais. A combinação de sujeitos, organizações, campanhas, observatórios, coletivos, movimentos sociais, entre outros, que conecta os afetados em si nos territórios com outros atores, é um dos elementos inovadores da política dos afetados por empreendimentos, conforme enunciado por Losekann (2016).

Ao mobilizarem o Ministério Público Federal, a Funai e as Universidades, os indígenas foram estabelecendo fissuras dentro da lógica estatal, permitindo que houvesse uma disputa no conceito, até então unívoco, de desenvolvimento, orientado por perspectivas estritamente econômicas. Desse modo, promoveram o que Losekann (2016) nomina de processo de mobilização do direito ou mobilização legal, em que, muito além do uso de instrumentos legais, os indígenas acionam, por meio de performances variadas, a lei e o campo do direito.

No entanto, além do repertório identificado por Losekann de ações que caracterizam o que a autora nomina de política dos afetados,11 os Anacé, ao afirmarem suas existências no mesmo espaço pretendido pelo Estado e por diferentes grupos empresariais nacionais e internacionais para a construção de um Complexo Industrial e Portuário, fazem-nos refletir sobre o centro simbólico da sociedade moderna capitalista: o debate em torno do desenvolvimento (CASTORIADIS, 1976; RIST, 1997; RIGOTTO, 2004).

As acepções de desenvolvimento são múltiplas (AMARO, 2003; RIBEIRO, 2012), e, conforme defendem Ferreira e Raposo, essa “polissemia radica na variedade de perspectivas e ideologias que lhe subjazem, o que, por um lado, demonstra a sua capacidade mobilizadora e, por outro, a sua flexibilidade ontológica e ideológica” (2017, p. 115).

Assim, enquanto um discurso/ideologia, percebemos que as expressões desenvolvimento e desenvolvimento sustentável foram utilizadas em diversos momentos pelos agentes empresariais e do Estado para destacar o aspecto positivo de suas ações, caracterizando-o a partir do incremento na geração de emprego e renda, do aumento do PIB estadual, da diversificação do parque industrial, etc.

Tal discurso não está descolado da concepção de desenvolvimento que dominou o cenário mundial nos primeiros 30 anos após a Segunda Guerra, que, de acordo com Amaro (2003), assentou em diversos mitos, dentre eles: a) o economicismo, considerando o crescimento econômico como condição necessária e suficiente para o desenvolvimento, sendo com ele confundido; b) o antropocentrismo, colocando o ser humano como centro do processo de bem-estar, ainda que de forma parcial, mas esquecendo-se da natureza; c) o etnocentrismo que assume uma perspectiva eurocêntrica globalizante, ao estabelecer o modelo europeu e norte-americano como medida para se avaliar o grau de desenvolvimento dos demais países; d) o uniformismo, porque, em nome da eficiência, se definiram modelos únicos de produção e de consumo, os modos de vida, os modelos culturais, etc., reduzindo a diversidade existente no mundo.

Essa compreensão dominante de desenvolvimento foi alvo de inúmeras críticas. Dentre essas, destacamos o pensamento de Celso Furtado, um dos principais expoentes brasileiros da teoria da dependência, para quem compreender desenvolvimento apenas como desenvolvimento econômico, à luz de economias como a norte-americana e as europeias, permitiu “desviar as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletividade e das possibilidades que abrem ao homem o avanço da ciência, para concentrá-las em objetivos abstratos, como são os investimentos, as exportações e o crescimento” (FURTADO, 1996, p. 89).

Furtado pensava no subdesenvolvimento, o oposto do desenvolvimento evolucionista apregoado pelas teorias norte-americanas e europeias, como uma forma de capitalismo perpetuadora da extrema pobreza e exclusão de direitos básicos como à terra e à moradia, sendo uma forma de organização social e política (FURTADO, 1996; SHISHITO; REZENDE, 2020). Subdesenvolvimento não seria uma etapa ou fase, mas uma forma de capitalismo e “por essa razão, a luta deveria ser no sentido de reorientar, por meio de planejamentos e técnicas sociais, as ações e os procedimentos do Estado em favor de um projeto coletivo e democrático de nação” (SHISHITO; REZENDE, 2020, p. 36).

Não estava, entretanto, no horizonte das preocupações de Furtado o lugar dos povos indígenas nesse processo. Como pensar em “necessidades fundamentais da coletividade” (FURTADO, 1996) quando, só no Brasil, há quase 300 povos diferentes, falantes de mais de 180 línguas diferentes (IBGE, 2010)?

A compreensão de que programas e projetos de desenvolvimento tinham como pressupostos as preocupações e direcionamentos políticos, econômicos e culturais dos países ocidentais, sendo uma forma de neocolonização dos povos, integrantes de países ditos subdesenvolvidos (FERREIRA; RAPOSO, 2017) fez surgir novas críticas ao conceito dominante de desenvolvimento por negar a diversidade cultural existente, estabelecendo o modelo moderno-ocidental como o destino final que deveria guiar o caminho dos diferentes países.

No contexto dessas críticas, foram surgindo novos conceitos de desenvolvimento, acoplando-se ao termo principal, um adjetivo que determinaria a vertente do desenvolvimento destacada. Dentre esses conceitos novos, podemos citar o desenvolvimento comunitário e local, desenvolvimento participativo, desenvolvimento humano, desenvolvimento social,12 sendo a plasticidade do discurso sobre desenvolvimento central para assegurar sua viabilidade continuada (RIBEIRO, 2012, p. 213).

O que há de comum em todas essas críticas é a compreensão redutora do desenvolvimento como um processo primordialmente econômico, sem que fosse algo orientado pelas e para as pessoas, pensando-se nas atuais e nas futuras gerações. No processo apenas unidimensional, é o crescimento econômico o principal elemento de mensuração do desenvolvimento de um país, o que levou a certa confusão, não apenas terminológica, de desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico.

Embora sejam múltiplos os conceitos e vasta as teorias econômicas e sociológicas sobre o tema, para fins do presente artigo, interessa-nos particularmente focar no conceito de desenvolvimento sustentável, uma vez que ele foi usado literalmente e repetidas vezes seja no Decreto que designou a área de utilidade pública para fins de desapropriação para instalação do CIPP, seja na missão da empresa de economia mista criada em 1995 por lei estadual e denominada Complexo Industrial e Portuário do Pecém, seja no histórico apresentado pela Associação de Empresas do Complexo Industrial e Portuário (AECIPP).13

Acerca do desenvolvimento sustentável, há certo consenso que vem sendo sedimentado internacionalmente desde a década de 1980, de que desenvolvimento sustentável pode ser compreendido como aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades. Nessa linha, tanto na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Eco 92), na Conferência de Joanesburgo (Rio+10), como em outras Conferências que deram origem a tratados, convenções e instrumentos diversos de direitos humanos,14 observa-se uma adoção generalizada de um conceito resultante do compromisso internacional histórico entre grupos interessados em proteção ambiental e grupos preocupados em promover uma agenda de desenvolvimento social. Isso, por outro lado, não implicou em nenhum grande abalo à ideia central do desenvolvimento lido a partir do campo restrito da economia (HERCULANO, 1992).

Nesse sentido, não é temerário afirmar que a lógica do desenvolvimento sustentável foi apropriada pelo mercado, muito mais para criar novos campos para o comércio e consumo do que para induzir mudanças de comportamento, inclusive empresariais, e nas políticas econômicas. Sobre isso, Zhouri e Laschefski (2010) denunciam que o discurso do desenvolvimento sustentável foi apropriado em um sentido diferente daquele pretendido pela luta dos “povos da floresta” e de seus apoiadores:

[...] os modos de vida dos grupos locais – incluindo apropriação material e simbólica da natureza – representavam um contraponto ao modo de vida da sociedade urbano-industrial que, a partir desse ponto de vista, não poderia ter continuidade na trilha do desenvolvimento, tendo em vista a sua insustentabilidade. Ao contrário dessa visão no entanto, a perspectiva política que se consolidou fez emergir o paradigma da participação na gestão ambiental e social com o objetivo de conciliar os interesses econômicos, ambientais e sociais e, assim, “moldar” o modelo clássico de desenvolvimento. [...] na esteira desse esquema conciliador, menos crítico, de “adequação ambiental e social” foram perdendo terreno as concepções que preconizavam uma reestruturação profunda da sociedade urbano-industrial-capitalista, assim como as reivindicações societárias que resistiam (e ainda resistem) a esse modelo de desenvolvimento e clamavam (e ainda clamam) o direito de autonomia para decisão sobre o seu próprio destino, configurando propostas de modernidades alternativas. (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010, p. 13).

Subjacente à tese conciliadora de um desenvolvimento que é sustentável, está a compreensão de uma escala única de desenvolvimento, uma história político-econômica que coloca a Europa e os Estados Unidos como medida do desenvolvimento para os demais países no mundo. Eles são o futuro, o norte, o sentido e a direção para onde todos devem trabalhar para chegar. Pasteurizam-se as diferentes formas de vida no mundo para que todos caminhem numa mesma direção. Discorrendo sobre essa forma única de desenvolvimento para qual nos empurram, Ailton Krenak aponta que:

[...] [os donos da grana do planeta] Espalham quase que o mesmo modelo de progresso que somos incentivados a entender como bem-estar no mundo todo. [...] Enquanto isso, a humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dois rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes – a sub-humanidade. Porque tem uma humanidade, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais bruta, rústica, orgânica, uma sub-humanidade, uma gente que fica agarrada na terra. Parece que eles querem comer terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra. A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda, tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe. “Vamos separar esse negócio aí, gente e terra, essa bagunça. É melhor colocar um trator, um extrator na terra. Gente não, gente é uma confusão. E, principalmente, gente que não está treinada para dominar esse recurso natural que é a terra”. Recurso natural para quem? Desenvolvimento sustentável para quê? O que é preciso sustentar? A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo (KRENAK, 2019, p. 21-23).

Na esteira do pensamento de Krenak, uma importante voz indígena crítica desse modelo, percebemos o quanto os conceitos de desenvolvimento, mesmo o de desenvolvimento sustentável, são construídos e implementados a partir de uma abstração de vida e de humanidade, sendo mais um exemplo de um discurso globalizante (RIBEIRO, 2012, p. 217). Em contraponto, no conflito entre os Anacé e o CIPP, os indígenas estão a todo momento reivindicando o seu direito de nominar seus próprios processos de desenvolvimento e de orientar, assim, a direção e o rumo de suas mudanças. Não pensam, portanto, desenvolvimento de forma descolada da experiência vivida no território, o que reflete, assim como ocorre com outros grupos impactados por projetos de desenvolvimento ou projetos de grande escala (RIBEIRO, 2012), “não apenas as desigualdades sociais, mas também as diferenças entre as percepções e as concepções de mundo dos sujeitos envolvidos” (ZHOURI; OLIVEIRA; LASCHEFSKI, 2012, p. 157).

Assim, sob o argumento da geração de emprego e renda, busca-se implementar um projeto pautado na construção de indústrias de grande impacto socioambiental, como siderúrgicas, refinarias e termelétricas a carvão mineral, viabilizadas pela construção de uma infraestrutura que inclui porto, rodovias e água em abundância para matar a sede das indústrias, vinda da transposição do Rio São Francisco. As escolhas governamentais, portanto, parecem continuar se pautando em um reducionismo que entende desenvolvimento apenas na lógica do crescimento econômico a qualquer custo e sem considerar as perspectivas de vida das coletividades e povos afetados. Mesmo a defesa do desenvolvimento sustentável, conforme apregoado pelas indústrias que compõem o CIPP e pelo Estado, sequer tangencia as lógicas indígenas de desenvolvimento como “satisfação de vida” ou como realização da corrente dos encantados. Refletindo sobre o conflito entre lógicas distintas de desenvolvimento, Ribeiro apresenta que

Desenvolvimento depende de uma concepção que concebe tempo como uma sequência linear de estágios avançando interminavelmente para momentos melhores. Uma implicação deste construto ocidental é que crescimento, transformação e acumulação se tornam princípios guias de políticas. Mas, em muitas sociedades não ocidentais, o tempo é entendido como ciclos de eternos recomeços, o que favorece o florescimento e a consolidação da contemplação, adaptação e da homeostase como pilares de suas cosmologias (RIBEIRO, 2012, p. 218).

A área da construção do CIPP representa a mesma área em que vive um grupo que se auto-identifica como Anacé, que tem relações diferenciadas com esse território. Essas relações são pautadas no manejo sustentável dos recursos, no conhecimento profundo dos ciclos naturais, na compreensão do lugar como morada dos antepassados, na produção de hortaliças, nas farinhadas, nas danças e outras atividades. Isso que os Anacé fazem de seu cotidiano, ressignificando suas tradições, criando e recriando projetos coletivos de futuro, sem perder a referência do/no território, é o que eles chamam de desenvolvimento. Para esse povo indígena, a comunidade e o território, com suas características físicas, representam uma unidade que garante a produção, a reprodução e a ressignificação do seu modo de vida, algo que resulta numa forte identidade com o espaço onde se vive. O território por eles habitado não é uma abstração fora da experiência vivida, mas é o lugar da casa, é a fonte de sustento, é a morada dos encantados, é o lugar onde eles/elas (re)produzem sua existência diferenciada.

Esses distintos modos de perceber o território implicam em uma incompatibilidade em se sobrepor, sobre o mesmo lugar, o projeto do CIPP e a área reivindicada pelos Anacé. E nessa disputa por quem, onde e como fica, os Anacé vêm travando um duro embate. O deslocamento ou a remoção do grupo, como pretendido para a implantação do CIPP, não implicaria em uma simples troca de terra por terra, mas em uma perda da base material e simbólica sobre a qual se erigem os modos de socialização do povo Anacé, ou como eles mesmos afirmam, uma “perca ancestral” (MORAIS DE SOUZA; NOGUEIRA; PAULINO NOGUEIRA, 2016).

À semelhança do que tem ocorrido com os Anacé, Andréa Zhouri e Raquel Oliveira mencionam que:

Muitos processos de territorialização hoje em curso são processo de luta pelo significado e pela apropriação do meio ambiente (quilombolas, indígenas, vazanteiros, geraizeiros etc.) contra a apropriação global pelo capital, que transforma territórios sociais em espaços abstratos, ou seja, lugares em espaços que contém recursos naturais para a exploração capitalista. Entretanto, os grupos sociais sujeitados à desterritorialização não são vítimas passivas e expressam outras formas de existência nos lugares. Reivindicam direito à memória e a sua reprodução social. E são eles que dizem que nem tudo é fadado a virar espaço de apropriação abstrata pelo capital [...].

A defesa do lugar, do enraizamento e da memória destaca a procura por auto-determinação, a fuga da sujeição dos movimentos hegemônicos do capital e a reapropriação da capacidade de definir seu próprio destino. A direção desses movimentos [...] insiste em nomear os lugares, em definir-lhes seus usos legítimos, vinculando a sua existência à trajetória desses grupos. Não é uma luta pela fixidez dos lugares, mas sim pelo poder de definir a direção da sua mudança. (ZHOURI; OLIVEIRA 2010, p. 445).

As diferentes compreensões sobre o território e o modo como os custos da implantação de um projeto econômico de larga escala estão recaindo de forma desigual e desproporcional sobre uma população já discriminada pela sociedade por sua origem étnica é o que nos faz crer que o caso Anacé se trata de um exemplo de um conflito socioambiental, que, além da disputa sobre o uso dos recursos existentes em um determinado ambiente, se caracteriza também por uma disputa no campo epistemológico, do que pode ou não ser considerado desenvolvimento.

De acordo com Losekann, o estudo sobre as experiências de mobilização e resistência dos afetados pelo extrativismo na América Latina conclui que

[...] o que está em jogo nas demandas dos afetados [por empreendimentos] extrapola conflitos territoriais físicos, e implica uma reelaboração da territorialidade. [...] Isso permite o surgimento de uma visão da contestação enquanto algo maior do que o conflito específico entre uma comunidade e uma empresa. Trata-se de um mundo inteiro (um modo de viver) que está ameaçado (LOSEKANN, 2014, p. 135-136).

O povo Anacé tem reiterado sua compreensão de que não é desenvolvimento a destruição de biomas, a poluição de mananciais e do ar, nem o território por eles reivindicado é uma “zona de sacrifício” (ACSERALD, 2010). Hoje, os Anacé precisam comprar água para beber e cozinhar porque a água de suas cacimbas tem um gosto metálico e uma cor amarelada. Isso tem trazido impactos no corpo, na saúde e na alegria dos Anacé. “Vida boa era o que a gente tinha antes”, dizia-me Dona Valdelice Anacé.15 Mas isso, infelizmente, não ocorre especificamente com os Anacé nem está deslocado das práticas rotineiras do capital.16

O conflito tem ocorrido também pelo fato de os indígenas demonstrarem outras formas de se relacionar com o território, pautadas em diferentes modos de viver, de organizar e de produzir. Esses diferentes olhares e compreensões dos territórios são desconsiderados nos projetos de grande escala ou projetos de desenvolvimento que, a pretexto de gerar emprego e renda, são acompanhados por alterações na forma de ocupação e uso do território, desestruturando atividades tradicionais, promovendo a expulsão de agricultores familiares, desmatamento e exploração da mão de obra. Diante disso, afirma Juliana Malerba (2010, p. 16): “são ignoradas e invisibilizadas as alternativas sustentáveis de gestão dos recursos que são feitas por esses grupos e que poderiam representar, inclusive, respostas reais à crise ambiental constantemente expressa pela mídia e tão presente no discurso hegemônico”.

Assim, ao reafirmarem o seu modelo de desenvolvimento e questionarem o desenvolvimento trazido pelo CIPP, os Anacé propõem que seus projetos de futuro sejam considerados e que os indígenas, de objetos ou passivos socioambientais, sejam tratados como sujeitos de seu próprio desenvolvimento, nos termos, inclusive, do que dispõe a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, incorporada à legislação brasileira por meio do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004.

Superando o discurso hegemônico de desenvolvimento que subjaz a implantação de projetos como CIPP, os Anacé trazem a compreensão de que eles já tinham desenvolvimento, já tinham vida boa: “tudo o que a gente precisa estava aqui”, diz Dona Valdelice Anacé.

Considerações Finais

A realidade apontada no presente artigo e vivenciada pelo povo Anacé, em São Gonçalo do Amarante e Caucaia, impactado pela instalação do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, faz-nos refletir sobre o modo como os chamados projetos de grande escala ou projetos de desenvolvimento tem sido implementados no Brasil. O caso Anacé não é o único exemplo nesse sentido, mas ele é emblemático para demonstrar que esses projetos chegam de maneira estranha à dinâmica que orienta os desejos, as expectativas e os interesses dos grupos locais, desconsideram outras formas de desenvolvimento e de alternativas gestadas nos territórios, negligenciam impactos e transformam as comunidades apenas em receptáculos dos passivos ambientais, assim como ocorreu com grupos estudados por Rigotto (2004), Zhouri e Oliveira (2010), dentre tantos.

Nesse sentido, a grande contribuição que os Anacé podem nos dar é fazer-nos refletir sobre a diversidade de modos de pensar o mundo e nele projetar o futuro. A discussão que se apresenta está no campo da própria definição do que seja direito ao desenvolvimento. É preciso pensá-lo não tomando como base reflexões coloniais de um só desenvolvimento possível (ESCOBAR, 1998), o ocidental capitalista, acumulador de lucros e fazedor de desertos. É preciso pensar desenvolvimento, pensar meio ambiente, pensar propriedade e territorialidades a partir do local, e, nesse contexto, considerá-lo como uma expressão da auto-determinação. Para os Anacé, é essa vida, recheada de sentidos e preenchida de histórias, o que eles denominam de desenvolvimento, um desenvolvimento centrado no fluxo contínuo e incessante do devir Anacé (nascer, morrer, encantar-se, ressurgir): a realização da corrente dos encantados.

Compreender o conflito que envolve os Anacé exige-nos, portanto, um esforço no sentido de descolonizar os conceitos hegemônicos de meio ambiente como recurso natural a ser explorado, de território como cenário da intervenção a ser promovida pelos projetos econômicos e de um desenvolvimento como caminho único na direção capitalista de acumulação e pilhagem de recursos. A resistência Anacé, centrada no território, é também uma proposição por novas epistemes. Para Ailton Krenak:

Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim do mundo. (KRENAK, 2019, p. 26-27).

Quando defendo a necessidade de aprender com os Anacé e suas resistências a uma ordem de desenvolvimento que pretende destituir-lhes do território em que repousam seus encantados, suas águas e a força vital que respiram, penso que esse povo, assim como outros povos indígenas no Brasil, são especialistas sobre o momento histórico em que vivemos, no qual a Terra cobra a conta do modelo econômico que nos trouxe até a beira da barbárie.

Os Anacé estão lidando com acontecimentos fractais há, pelo menos, três séculos, resistindo aos massacres a partir de suas re-existências, podendo, desse modo, nos dar pistas para ultrapassarmos nossos próprios acontecimentos fractais, desde que tenhamos raízes e disposição para reconstruir nossas relações com os territórios, com o planeta e com os outros, incluindo não humanos, redefinindo nossos projetos de futuro. Ao pensar desenvolvimento como auto-determinação, os Anacé não estão nos oferecendo uma receita única, como a sociedade ocidental o fez, mas propondo que tomemos as rédeas das nossas próprias vidas para, assim, podermos contar mais uma história, adiando o fim do nosso mundo.

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  1. “Barbárie por vir” faz referência à obra “No tempo das catástrofes – resistir à barbárie que se aproxima”, de Isabelle Stengers (2015).

  2. Atualmente, o Complexo Industrial e Portuário do Pecém, que antes se denominava Companhia de Integração Portuária do Ceará — Cearáportos, é uma empresa de economia mista criada pela Lei estadual nº 12.536, de 22 de dezembro de 1995. O CIPP é composto por um porto, uma zona de processamento de exportação (ZPE) e por uma área industrial. Dentre as principais indústrias que integram o Complexo, citamos Companhia Siderúrgica do Pecém, Vale, ENEL, Votorantim, Cimento Apodi, White Martins, Companhia Sulamericana de Cerâmica, TermoCeará, Siderúrgica Latino Americana, dentre outras. Sobre o CIPP, ver: www.complexodopecem.com.br. Em 30 de setembro de 2015, foi fundada a Associação das Empresas do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (AECIPP), uma entidade empresarial, sem fins lucrativos, com atuação específica no Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP). A AECIPP define como seu principal objetivo “fortalecer e desenvolver a atividade empresarial nessa região, por meio do atendimento permanente dos legítimos interesses das suas empresas associadas”. Disponível em www.aecipp.com.br. Acesso em 24 de abr. 2020.

  3. Cito aqui a Carta Histórica do Povo Anacé, escrita em 1999 pelas lideranças indígenas e utilizada até os dias atuais como material didático na Escola Indígena Direito de Aprender do Povo Anacé, além da obra “Resgate Histórico do Povo Anacé”, sem data, escrita por um dos caciques do povo Anacé, Seu Antônio Ferreira Anacé.

  4. O termo “intelectuais indígenas”, que costuma designar o conjunto de indígenas que ingressaram no ensino superior (BERGAMASCHI, 2014; LUCIANO, 2013), é um termo exógeno aos Anacé, sendo utilizada, para tanto, a designação lideranças políticas, para se contrapor ao conceito de lideranças tradicionais (LIMA, 2017).

  5. Utilizei três trabalhos acadêmicos produzidos por indígenas Anacé, sendo dois de conclusão de curso e uma dissertação de mestrado. São eles: “A desterritorialização da nação Anacé de Matões sob o olhar dos mais velhos”, de Ângela Maria Morais de Souza, José Cleber da Silva Nogueira e Lucilane Paulino Nogueira, trabalho de conclusão de curso apresentado, em 2016, ao Programa de Apoio à Formação Superior de professores indígenas – PROLIND, da Universidade Federal do Ceará (UFC); “O conhecimento na escola indígena no Ceará: práticas de ensino diferenciado na escola indígena Direito de Aprender do Povo Anacé”, dissertação defendida em 2017 por Thiago Halley Santos de Lima (2017), no contexto do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará; e “Tabas, roças e lugares de encanto: construção e reconstrução Anacé em Matões, Caucaia, Ceará”, de Rute Morais Souza (2019), trabalho de conclusão de curso de bacharelado em Ciências Sociais, defendido em 2019, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

  6. De acordo com Gustavo Lins Ribeiro, projetos de infraestrutura de grande escala (PGEs), como canais, ferrovias, represas e outras grandes obras que formam a quintessência dos projetos de desenvolvimento. “Os PGEs têm características estruturais que lhes permitem ser tratados como”expressões extremas" do campo do desenvolvimento: o tamanho do capital, dos territórios e a quantidade de pessoas que eles controlam; seu grande poder político; a magnitude de seus impactos ambientais e sociais; as inovações tecnológicas que frequentemente causam; e a complexidade das redes que eles engendram" (RIBEIRO, 2012, p. 200-201). No caso do CIPP, interligam-se tanto os projetos de infraestrutura de grande escala com as inúmeras indústrias de base, incluindo siderúrgicas e termelétricas a carvão mineral.

  7. No site oficial da Petrobras, a empresa apresenta, no contexto do seu plano estratégico, a visão de ser “a melhor empresa de energia na geração de valor para o acionista, com foco em óleo e gás e com segurança, respeito às pessoas e ao meio ambiente”. (Disponível em www.petrobras.com.br. Acesso em 25 de out. 2019).

  8. A dança do São Gonçalo performatizada pelos Anacé atravessa a ação política, aglutinando pessoas, narrativas e memórias, dando sentido simbólico, emocional e ritualístico aos argumentos que publicamente – para os não índios – justificam a luta em torno da terra. A importância ritualística e performática da retomada da dança do São Gonçalo para a luta dos Anacé está sendo objeto de reflexão nossa junto aos indígenas, sendo parte de um estudo em curso. De acordo com Souza, “a dança teve um forte papel na afirmação étnica, pois é constituída pela espiritualidade e a ligação territorial, envolvendo a força ancestral, fé e proteção. Para nós é uma herança passada de geração a geração” (2019, p. 42). Em 09 de novembro de 2019, os Anacé realizaram a festa comemorativa dos 14 anos de retomada da dança do São Gonçalo.

  9. De acordo com Lima, “embora tenhamos a Comissão de Lideranças Anacé, o Conselho Indígena do Povo Anacé de São Gonçalo do Amarante e Caucaia (CIPASAC) e o Conselho Local de Saúde Indígena (CONLOSI), como”entidades formais indígenas“, propositivas, consultivas e deliberativas, que atuam na organização e mobilização social da comunidade, as decisões são previamente discutidas em momentos informais de encontro dos agrupamentos familiares. São pequenas reuniões familiares, geralmente nos momentos de conversas onde os parentes se encontram, nas quais, entre outros assuntos, debatem sobre as questões e problemas da comunidade. Assim, dificilmente uma situação é levada para a discussão nas”entidades formais indígenas“, sem antes ter sido discutida nos grupos familiares” (LIMA, 2017, p. 38 e 39).

  10. Disponível em www.aecipp.com.br. Acesso em 24 de ab. 2020.

  11. Losekann (2016) identifica esses repertórios a partir de cinco grandes eixos nos quais relaciona performances específicas. São eles os repertórios de visibilização, de produção de conhecimento e informação, de mobilização, as intervenções institucionais e os repertórios de resistência extrema de sobrevivência, caracterizando, aqui, as perfornances de ação direta e ocupações.

  12. Sobre um detalhamento desses conceitos, ver Amaro (2003) e Ferreira e Raposo (2017).

  13. Sem desconsiderar a vastíssima literatura em diferentes campos acadêmicos sobre desenvolvimento, em especial nas Ciências Sociais e na Economia, ressalto não ter nenhuma pretensão de esgotar essa discussão, razão pela qual focarei no conceito de “desenvolvimento sustentável” que aparece tanto nos documentos quanto nas práticas discursivas de representantes do Governo do Estado e das empresas integrantes do Complexo Industrial e Portuário do Pecém para a defesa do projeto de desenvolvimento implementado.

  14. Citamos, exemplificativamente, a Agenda 21, a Convenção sobre Clima e a Convenção sobre Biodiversidade.

  15. Valdelice Anacé é uma liderança indígena de Matões, tronco-velho do povo indígena e profunda conhecedora dos rituais de cura indígenas, a mezinha Anacé. Sobre a mezinha Anacé ver Brissac e Nóbrega (2010).

  16. Sobre a disputa entre diferentes compreensões em torno da água como recurso hídrico e uma espécie de dádiva, pertencente à esfera do divino e, portanto, impossível de ser negada ou privatizada, ver Galizoni e Ribeiro (2003).

Resumo:
O artigo pretende explorar as narrativas em torno da construção do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, no Ceará, em contraponto às demandas dos indígenas Anacé pela demarcação do seu território, descrevendo os múltiplos sentidos de desenvolvimento, utilizados, no caso, como armas discursivas que refletem modelos socioambientalmente distintos. Resultado de um estudo qualitativo que triangula diversos métodos – levantamento bibliográfico que privilegiou a produção Anacé sobre o tema, levantamento documental acerca dos processos que tramitaram no Ministério Público Federal e na Justiça Federal do Ceará e observação participante -, busquei refletir sobre a agência e as mobilizações engendradas pelos Anacé. Com um saber próprio, os Anacé tem re-existido à barbárie por vir, dando-nos pistas importantes para compreender, refletir e agir no contexto da crise socioambiental na qual todos estamos inseridos.

Palavras-chave:
Conflito socioambiental; desenvolvimento; resistências; povo indígena Anacé.

 

Abstract:
This article explores the narratives on the construction of the Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Pecem Industrial and Port Complex), in the Brazilian state of Ceará, in counterpoint to the demands of the Anacé indigenous people, regarding the process for official acknowledgment of their land rights, highlighting the multiples meanings of development, that, in this case, were used as discursive weapons reflecting different socio-environmental models. Resulting from a qualitative study triangulating several methods — bibliographic research focusing on the Anacé views on the subject; review of the official proceedings held before both the Brazilian Federal Prosecutor’s Office and the Brazilian Federal Justice in the state of Ceará; and participant observation -, it is presented a reflection on the agency and the mobilizations carried out by the Anacé. The Anacé, with their own and local knowledge, have re-existed the barbarism to come, providing important indications on how to understand, reflect and act in the context of the socio-environmental crisis in which we all are involved.

Keywords:
Socioenvironmental conflict; development; resistances; indigenous people Anacé.

 

Recebido para publicação em 07/12/2019
Aceito em 01/06/2020