Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 2, jul./out., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.2.a01
ISSN: 2318-4620
Da dor ao dom:
memória e trajetória do ser transplantado
O encantamento exercido pelas tecnologias biomédicas já há algum tempo tem seduzido a imaginação dos que almejam maior longevidade e alimentado as esperanças daqueles que dela dependem. Contudo, somente em anos recentes esse encantamento alcançou os escritos antropológicos. Parte desse crescente interesse deve-se à ampliação das discussões sobre os efeitos da biotecnologia no ser humano sob o ponto de vista da sociabilidade, visto o seu potencial, real ou imaginário, para afetar não apenas a construção de sujeitos, mas sua própria existência material. Dentro dessa perspectiva, o presente artigo1 debruça-se sobre o tema do transplante de órgãos e, mais especificamente, sobre a vida após o transplante, privilegiando não somente o fato de receber uma doação, mas o de viver com um órgão transplantado2 ao longo do tempo. O objetivo é apresentar e discutir, a partir de dados produzidos através de conversas informais e entrevistas semiestruturadas, como os modos de subjetivação e as relações sociais dos receptores são alterados e (re)constituídos no pós-transplante, considerando que esse procedimento cirúrgico representa, para os pacientes, a culminância de um projeto de cura, por conseguinte, de resgate da normalidade biológica e social.
Para dar conta desse objetivo, a primeira seção será destinada a uma breve descrição do local onde foi realizado a maior parte do trabalho de campo, a Associação dos Pacientes Transplantados da Bahia — ATX-BA. Ao apresentar a história de sua criação, entrelaçada às vicissitudes vivenciadas por Marcela, fundadora e diretora da instituição, será evidenciada a motivação inicial para a criação da Associação, assim como sua principal linha de atuação — qual seja, o acesso aos medicamentos que compõem o regime de imunossupressão. Na seção seguinte, intitulada “Da dor ao dom a partir de duas trajetórias situadas”, serão apresentadas e analisadas, comparativamente, as trajetórias, bem distintas, de dois associados, Antônio e Neusa. Nelas serão delineadas transformações no estilo de vida, visão de mundo e relações sociais associadas, direta e indiretamente, ao transplante de órgãos. A escolha de conduzir a análise alicerçada em “trajetórias situadas”3 justifica-se pelo fato de que as experiências desses indivíduos não são lineares nem homogêneas, mas abertas e processuais, gravitando em torno de esperanças e incertezas, possibilidades e ambiguidades. De forma similar às “doenças compridas” estudadas por Soraya Fleischer e Mônica Franch: “Uma doença é uma transformação na vida, mas também há transformações na doença” (FLEISCHER; FRANCH, 2015, p. 19). Por fim, nas conclusões, além de recapitular e aprofundar alguns argumentos desenvolvidos ao longo do texto, procede-se a uma avaliação crítica do conceito de “biossociabilidade” (RABINOW, 1999).
A escolha por recortar o período do pós-transplante não é fortuita. De um ponto de vista eminentemente biomédico, mas com repercussões para o resto da vida do receptor, o transplante gera a necessidade de administrar a rejeição ao órgão incorporado, processo bioquímico desencadeado pela resposta imune do organismo.4 A partir da realização do procedimento cirúrgico a rejeição torna-se uma condição crônica, cujo controle em níveis toleráveis é realizado através de um regime medicamentoso imunossupressor. Associada aos medicamentos, há uma rotina trimestral de exames e consultas para acompanhar a saúde do receptor e o órgão enxertado na expectativa de maximizar a sobrevida de ambos. Essa rotina, por sua vez, é intensificada em razão das inevitáveis “intercorrências”, expressão médica incorporada pelos receptores para denominar a ocorrência de um “problema de saúde”, que pode ou não ter relação com a condição de transplantado. Por fim, cabe acrescentar os efeitos colaterais cumulativos desencadeados pelo regime imunossupressor.5
A realização do projeto de cura através do transplante é, portanto, acompanhada por modificações na forma como os receptores devem conduzir suas vidas no cotidiano, de modo a assegurar seu bem-estar e qualidade de vida. Em razão da cronicidade provocada pela rejeição — similar às “doenças compridas” ou de “longa duração” (FLEISCHER; FRANCH, 2015) —, a incorporação de modelos cognitivos e de conduta oriundos da biomedicina é um processo fundamental para o sucesso da trajetória pós-transplante. Consultas, exames, dietas, remédios e a interação prolongada com profissionais de saúde contribuem sobremaneira para o aprendizado dessas categorias de entendimento e cursos de ação, constituindo-se, com o passar do tempo, num componente de obrigação normativa subjetivamente justificado. Todavia, essa dimensão prático-normativa da biomedicina não produz uma totalização a priori das experiências dos indivíduos que a ela recorrem (ALVES, 1994). Afetos, dramas morais e vivências, assim como condições de vida, motivações pragmáticas e relações interpessoais alheias à normalização biomédica também contribuem para a formatação dos sentidos e significados das experiências aflitivas e seus respectivos processos terapêuticos.
A relação do receptor com o órgão doado e com o doador (ou sua família) é um exemplo das limitações e, até mesmo, da impossibilidade de tratar o tema a partir de um referencial estritamente biomédico. O órgão doado não é apenas um componente anatômico neutro e destacável destinado a substituir outro que já não funciona adequadamente. Pensado a partir da metáfora do “presente da vida”,6 esse órgão é animado com a essência da vida numa relação metonímica com o doador. A “vida” doada a partir de um gesto altruísta estabelece um quadro de relações sociais dominado pela lógica daquilo que se convencionou denominar “economia do dom” (MAUSS, 2003 [1925]). No caso da doação cadavérica, por exemplo, presume-se que a metáfora do “presente da vida”, ao sublinhar a continuidade da vida do falecido, alivia o sentimento de sofrimento da família, agregando um sentido positivo a uma perda trágica e repentina (SQUE; PAYNE, 1996; SADALA, 2004). Já para os receptores, o dom da vida ajuda na aceitação do órgão e alivia possíveis sentimentos de culpa (SHARP, 1995; 2001). Para ambos, doadores (e seus familiares) e receptores, essa metáfora, além de encobrir a mercantilização de partes do corpo, favorece a acomodação de distintos significados sobre o que é trocado.
A doação assim figurada conecta a circulação de órgãos à negociação de identidades e relações sociais. Para Mauss (2003 [1925]), a dádiva molda relações sociais ao revelar o status do doador, ao mesmo tempo que estabelece para o receptor uma obrigação moral que não pode ser retribuída, exceto através da manutenção de um laço social. Todavia, no campo do transplante de órgãos, qualquer relação entre doador e receptor é deliberadamente evitada quando a doação tem origem na morte. Por isso, a doação cadavérica, em algumas ocasiões, torna as relações entre doadores e receptores mais complexas, com familiares de doadores desejando integrar os receptores no seu mundo social para assegurar a manutenção de laços com a essência do parente falecido; e com receptores perturbados com um desejo, confuso e impossível, de reciprocar (SHARP, 1995; 2001; 2006; FOX; SWAZEY, 1992; SQUE; PAYNE, 1996). Já no caso do transplante intervivos7 (ou de sua não realização) as relações entre doador e receptor têm o potencial de atualizar relações de parentesco e familiares, produzindo rearranjos com efeitos variados, inclusive, quando sua possibilidade não é efetivada em razão de parente algum candidatar-se como doador. Em ambas as situações, o órgão não é uma substância impessoal, identificações e/ou diferenciações estabelecidas entre as duas partes são centrais para as tentativas de lidar com transformações no corpo e na pessoa (SHARP, 1995).
Ainda que de grande relevância para a compreensão da vida pós-transplante, a dimensão prático-normativa da biomedicina deve ser matizada mediante um enquadramento mais amplo do tema, capaz de dar conta do trânsito entre distintas “províncias de significado” (SCHUTZ, 2012 [1970]). Nesse sentido, o presente artigo propõe enquadrar o processo de incorporação de uma ética biomédica a partir da questão moral mais ampla do “como viver?”, isto é, das diferentes maneiras de conduzir a vida, situando, assim, o indivíduo em um campo mais amplo e complexo de relações sociais. Mais precisamente, a proposta aqui é compreender modificações nos modos de subjetivação e na sociabilidade de indivíduos submetidos ao transplante de órgãos, considerando que, embora a incorporação de elementos prático-cognitivos advindos da relação prolongada com profissionais, tecnologias e saberes da biomedicina seja um elemento-chave da análise, sua apreensão deve ser realizada a partir de “situações biograficamente determinadas” 8 (SCHUTZ, 2012 [1970], p. 85).
A realização da pesquisa9 foi viabilizada através da Associação de Pacientes Transplantados da Bahia — ATX-BA,10 uma entidade sem fins lucrativos, fundada em 1999, por Marcela11 — atual e até hoje única diretora —, com a finalidade de proporcionar melhor qualidade de vida para os receptores e desenvolver atividades de assistência socioeconômica. A concepção da entidade resultou da experiência vivenciada por ela quando necessitou recorrer ao transplante após ser diagnosticada com insuficiência renal crônica resultante de nefrite (inflamação dos rins). A cirurgia foi realizada em São Paulo com o rim doado por seu pai. A permanência no hospital durou vários meses, período durante o qual observou a presença recorrente de outros conterrâneos transplantados. Estes, segundo ela, não só se dirigiam ao hospital para realizar procedimentos hospitalares diversos, mas também procuravam medicamentos imunossupressores em falta na Bahia. Acompanhar de perto as dificuldades enfrentadas por esses pacientes para obter o medicamento, sem o qual não sobreviveriam, foi uma experiência marcante e, assim como o próprio transplante, transformativa. De volta a Salvador, ainda marcada pelos acontecimentos vivenciados no hospital e sem mais poder exercer sua profissão, Marcela, apoiada por amigos e familiares, fundou a ATX-BA.
Eu vi muitos pacientes transplantados da Bahia chegarem lá e pedirem medicamentos que estavam faltando aqui. Isso me constrangeu muito, [...] gerou em mim uma vontade muito grande... porque já não poderia exercer mais minha profissão [...] Eu era farmacêutica bioquímica e trabalhava na área de microbiologia, e era uma área que eu fui afastada por causa da contaminação [...] Então, eu já não podia atuar como farmacêutica bioquímica e aí eu vim formar a Associação.
O acesso aos medicamentos imunossupressores é uma das principais linhas de atuação da instituição.12 Já na primeira visita à Associação, enquanto aguardava na recepção, notei certa agitação, principalmente por parte da própria Marcela, que entrava e saía de sua sala freneticamente, conversando ao telefone. Aos poucos, ouvindo as conversas, entendi o motivo da agitação, havia a possibilidade de faltar medicamentos imunossupressores no estado da Bahia; fato que, pouco tempo depois, efetivamente aconteceu.13 Além de monitorar os estoques públicos, a ATX-BA distribui gratuitamente para seus associados um importante medicamento que faz parte do regime imunossupressor, a predisona, um corticosteroide, fornecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde — SUS, mas recorrentemente indisponível nos postos de saúde. A distribuição desse medicamento é, inclusive, o principal motivo para a presença dos associados na instituição, de resto exígua em qualquer dia da semana. As únicas pessoas encontradas constantemente são a secretária, a própria Marcela e Ari, considerado seu “braço direito”.
Quando a pesquisa foi realizada, havia 485 associados cadastrados na Associação, 303 homens e 182 mulheres. Desse total, no que se refere aos transplantes de órgãos sólidos, havia 175 de rim (36,08%), 47 de fígado (9,6%) e 3 de coração (0,61%). Sobre a residência, a maioria, 328 (67,62%), morava em Salvador e 157 (32,38%) no interior. Já com relação ao perfil dos associados, Marcela informou que “a grande maioria é de pessoas carentes, extremamente carentes, com baixo grau de escolaridade”. Devido a essa preponderância, afirmava repetidas vezes que o trabalho realizado pela associação é, fundamentalmente, “social”, com o objetivo de amenizar o impacto das desigualdades socioeconômicas na vida das pessoas transplantadas, tanto do ponto de vista da subsistência, quanto da sobrevida do órgão enxertado. Para tanto, a Associação realizava distribuição de alimentos e capacitações profissionais, mas de forma intermitente e com abrangência variada, posto que ambas dependiam de doações e parcerias com instituições públicas e privadas.
No que diz respeito ao trabalho de campo na sede da associação, além de pesquisar sobre seu histórico e funcionamento, contei com a ajuda da Marcela para ser apresentado a alguns associados. Essa fase inicial teve por objetivo conhecê-los e estabelecer relações de confiança, período no qual priorizei conversas informais e entrevistas não estruturadas com o intuito de obter informações preliminares sobre suas trajetórias de vida. Apesar de abrangente, essa etapa foi de grande valia, pois possibilitou a delimitação de temas relevantes previamente não identificados, posteriormente, aprofundados mediante entrevistas semiestruturadas. Esta última etapa, direcionada para os informantes-chave, propiciou aprofundar a compreensão sobre determinados tópicos organizados em torno de dois eixos. O primeiro centrado nos eventos do diagnóstico da doença, a opção pelo transplante, o evento crítico da doação, a realização da cirurgia e, o segundo, na vida após o transplante. Inicialmente, os encontros ocorreram na própria Associação e, posteriormente, conforme estabelecia maior confiança e intimidade com os interlocutores, o espaço da associação foi relegado em favor de outros lugares por eles escolhidos, inclusive, suas casas. Devo ressaltar que todos os participantes foram devidamente informados sobre objetivos da pesquisa, confidencialidade e anonimato no uso dos dados produzidos, assim como procedimentos adotados para preservar suas identidades.
Na sede da ATX-BA, logo nos momentos iniciais da pesquisa de campo, uma das primeiras pessoas que conheci foi Antônio, técnico eletricista aposentado, que recebeu um rim de sua “irmã parcial”, após ser diagnosticado com insuficiência renal bilateral. Dentre as diversas conversas que tivemos, uma das mais marcantes foi quando narrou o dia de sua cirurgia, compartilhando uma reflexão realizada momentos antes de perder a consciência por conta do efeito da anestesia.
Fui levado para o centro cirúrgico logo cedo, assim como minha irmã, a doadora, que ficou numa sala ao lado, sendo operado por um competente cirurgião e urologista; e eu seria operado pelo Dr. Cabral, um experiente cirurgião, chefe da equipe. Após a anestesia só me lembro da intensa movimentação e do barulho das conversas, depois uma profunda sonolência. Aproveitando que estava quase “dormindo” fiz uma incursão para o futuro. Me perguntei: como será a minha vida daqui por diante? Já sei que será bem diferente no sentido de que me recuperarei logo do transplante. Embora saiba, também, que existe sempre, por melhor que seja o doador, a compatibilidade dele, e, por mais avançada que a medicina seja, com drogas antirrejeição e acompanhamento constante, existe, sim, a possibilidade do meu organismo rejeitar o novo órgão. Aliás, isso é natural, pois o Criador nos fez de tal modo que nosso corpo é resistente aos agentes externos que o invadem, como vírus e bactérias, e nos prejudicam provocando doenças e infecções. Quando isso acontece o nosso sangue produz anticorpos para combater os invasores indesejáveis. No caso do transplante, a medicina está lutando contra a lei natural do universo, para evitar que o organismo do transplantado rejeite o novo órgão. E eu, naturalmente, tinha, por instinto, por desejo e por convicção, que lutar com todas as forças para que o meu organismo aceite docilmente o rim doado por minha irmã. E, pensei comigo mesmo, farei isso com muita garra, paciência e perseverança que no fim vai dar tudo certo. Enquanto não der certo é porque ainda não chegou no fim.
A incerteza vivenciada no pré-operatório por Antônio, comum a muitos transplantados, se estenderá por toda a vida. A reposta à questão sobre quanto tempo o órgão implantado funcionará adequadamente permanecerá uma incógnita.
Nascido em Salvador (Bahia), foi criado no Rio de Janeiro, onde se formou em técnico de eletricidade. Lá, Antônio viveu até os 25 anos, quando se casou e voltou para sua cidade natal. Por conta do curso técnico conseguiu emprego na empresa responsável pela distribuição de eletricidade no estado da Bahia até o ano de 1999, quando se aposentou. Além do merecido descanso, esse ano ficou marcado por outro acontecimento. Ao realizar exames médicos para dar início ao processo de aposentadoria, foi diagnosticado com insuficiência renal crônica bilateral causada por fatores hereditários. Inclusive, dois irmãos por parte de pai tiveram o mesmo infortúnio, um fez transplante e o outro faleceu.
Inicialmente, ficou reticente quanto ao resultado do exame. Procurou outro médico e fez novos exames. Para sua infelicidade, o segundo médico endossou o diagnóstico anterior. Com a confirmação, adveio a necessidade das exaustivas e nauseantes sessões semanais de hemodiálise, realizadas durante longos quatro anos. Esse período foi marcado pelo sofrimento, falta de “liberdade”, mal-estar constante e a debilidade física ocasionada pelo tratamento: “é desgastante você ficar ali quatro horas, você às vezes tem hipotensão ou hipertensão”. Após as sessões, ao voltar para casa sua única vontade era a de dormir: “você muda totalmente sua condição de vida, sua convivência com os familiares”. Além disso, ao longo do tratamento paliativo presenciou mais de uma vez a morte de pacientes.
Como eu mesmo vi, muitas pessoas que já tinham uma vida debilitada, pessoas fracas economicamente, que não têm uma condição de alimentação, passavam por situações realmente muito apavorantes. Vi algumas morrerem durante a hemodiálise [...] O dia que eu vinha, às vezes saía com cefaleia, aí tinha que tomar medicação devido à questão da variação [de pressão arterial]. Chegava em casa era só questão de querer dormir, deitado, não tinha vontade pra nada [...]. De uma forma ou de outra, por mais sutil que você queira ser, você sempre deixa transparecer algo para os familiares [...], isso desencadeia uma série de problemas que não é somente com o paciente. É muito importante o apoio da família, principalmente porque é uma das coisas essenciais. Porque se a pessoa não tiver, acima de tudo, uma mente legal, um bom raciocínio, se não for uma pessoa plantada emocionalmente, às vezes, a pessoa pode até pensar em fazer besteira. Eu não pensei, mas tem gente que chega até o ponto de se entregar mesmo, até suicídio.
Antônio reconhece a importância do apoio da família durante esse momento difícil, principalmente, da esposa e da filha. Todos os dias quando chegava da hemodiálise, a filha perguntava: “Papai, como você está? Não fique assim, não”. Sua esposa sempre o acompanhava durante as sessões e era responsável por sua dieta, tanto por cozinhar receitas adequadas para o marido, quanto por coibi-lo de burlar as orientações da nutricionista. Além disso, devido à debilidade física, o cuidado com a filha e a realização das tarefas domésticas, anteriormente realizadas por ele, passaram a ser da desempenhadas pela esposa. Por tudo isso, Antônio se sentia inútil, incapaz até mesmo de cuidar da filha, contribuindo para o sentimento de impotência diante da doença. A única alternativa era realizar um transplante renal, o que colocava uma questão incontornável, o doador.
Sua esposa foi a primeira a se candidatar. Todavia, a realização de exames preliminares identificou incompatibilidade sanguínea entre eles, descartando-a como doadora. A impossibilidade do gesto altruísta frustrou emocionalmente a esposa, segundo Antônio: “ela, mais do que ninguém, por acompanhar meu sofrimento, queria muito fazer esse ato de amor. Ela achava que era uma forma de dividir comigo aquele sofrimento todo”. Pouco tempo depois, quando a mãe de Antônio, residente na cidade do Rio de Janeiro, soube das dificuldades enfrentadas pelo filho, contatou o resto da família para tentar sensibilizá-la na expectativa de encontrar um doador. A iniciativa, felizmente, teve resultados positivos. Certo dia, Antônio recebeu um telefonema da irmã, que também morava no Rio de Janeiro, afirmando estar disposta a realizar a doação, caso fosse compatível. A felicidade, contudo, durou muito pouco, na mesma semana, “o marido dela disse que mulher dele não vinha para Salvador, para doar rim para irmão, questões de família e tal”. Mas, como o próprio Antônio disse, “há males que vêm para o bem”.
Quando era adolescente, seus pais se separaram, segundo ele, amigavelmente. Sobre a separação, afirmou que o assunto dizia respeito exclusivamente aos seus pais, e, se eles concordavam não ser mais viável manter o relacionamento, tinham o direito de terminar. Contudo, algum tempo depois, a mãe iniciou outro relacionamento com um homem mais novo, fato que o desagradou profundamente, pois, na sua opinião, era uma aventura amorosa sem futuro. Inclusive, expressou sua discordância de forma assertiva, dando início a uma série de discussões com a mãe, até ambos romperem relações. Da “aventura amorosa” nasceu uma filha. Contrariado, Antônio não quis proximidade com a “irmã parcial”, como ele mesmo a denominou. Esse afastamento foi reforçado pela distância geográfica quando ele se mudou para Salvador. Muitos anos depois, refletiu e considerou a reação exagerada, atribuindo sua atitude à imaturidade. Desculpou-se e iniciou um processo de reaproximação da sua mãe. Já com relação à sua “irmã parcial”, manteve-se afastado.
Enfim, Antônio precisava realizar um transplante renal para não mais depender da hemodiálise. Sua esposa, a primeira a se candidatar, foi descartada devido à incompatibilidade sanguínea. Em seguida, foi a vez de sua irmã, que nem chegou a realizar os exames, pois o marido proibiu. Quando as chances de receber uma doação familiar iam diminuindo e a necessidade de entrar na vagarosa lista de espera para doação cadavérica tornava-se imperativa, sua “irmã parcial”, relegada desde o nascimento, ofertou seu órgão espontaneamente.
E a irmã parcial foi a que disse: “Meu irmão está precisando, eu vou [doar] de livre e espontânea vontade”. Minha família ofereceu e eu acatei porque acho que é uma questão que tem que existir a livre e espontânea vontade [...]. Inicialmente, eu disse que ela primeiro analisasse, pensasse, porque ela podia estar sendo movida por impulso emocional, que era uma coisa séria e, futuramente, caso viesse a acontecer algum problema, ela também ia passar a necessitar de um rim. Tudo isso nós conversamos. Aí, ela disse que não tinha problema nenhum e que “o futuro só Deus nos dará, eu quero saber agora do presente, e a minha decisão é essa”.
Os exames necessários foram realizados e confirmaram a viabilidade da doação do órgão. No dia 18 de janeiro de 1999, Antônio realizou o transplante, que representou não apenas o fim da hemodiálise, mas também um rearranjo de suas relações familiares, particularmente no que se refere à sua “irmã parcial”. Após a cirurgia, realizada no Rio de Janeiro, Antônio ficou hospedado na casa dela, juntamente com sua esposa, responsável por assistir ambos enquanto se recuperavam do pós-operatório. Além de superarem as desavenças passadas, começaram a construir uma relação mais próxima. Como veremos adiante, Antônio teve outra filha pouco depois do transplante e convidou a irmã, agora efetivamente reconhecida como tal, para ser madrinha. Atualmente, sempre que possível, eles se encontram nos feriados prolongados ou nas férias escolares, seja no Rio ou em Salvador.
Eu prejulguei ela, fui precipitado, mas me desculpei no que foi possível. Conversei com ela, esclareci tudo. Ficou tudo esclarecido e por questões de destino veio a acontecer isso aí, para você ver como funcionam as coisas [...]. Foi ela que me deu uma nova vida, para mim e para minha esposa e filhas. Na vida, a gente sempre aprende a recomeçar, essa foi uma das coisas que aprendi.
Não foram apenas as relações familiares que mudaram após o transplante, Antônio teve também que modificar seu estilo de vida, adotando comportamentos necessários para controlar a rejeição do órgão transplantado e, dessa forma, assegurar uma maior sobrevida do enxerto. Segundo ele, a vida de uma pessoa transplantada é quase igual à de uma pessoa normal, desde que se siga três recomendações: controlar a alimentação com uma dieta específica, não deixar de usar os medicamentos imunossupressores e realizar periodicamente exames médicos. Ele não tem dificuldades em seguir essas recomendações. Sua aposentadoria por tempo de serviço, juntamente com os rendimentos de sua esposa, são suficientes para manter um padrão de vida adequado às suas necessidades. Outro ponto importante, ele possui um plano de saúde privado que o torna independente das vicissitudes do sistema público de saúde.
Em contraste com o período em que realizava hemodiálise, hoje, Antônio tem uma alimentação “praticamente normal”, a dieta severa de alimentos e de ingestão de líquidos deu lugar a uma dieta mais branda. O consumo de carne vermelha é restrito, a preferência é dada para as carnes brancas. A “cervejinha” terminantemente proibida no tempo da hemodiálise, agora pode ser desfrutada, com muita moderação, mas pode. A alimentação adequada é necessária também para minimizar os efeitos colaterais das medicações necessárias à imunossupressão. Outro ponto importante é a atividade física, que, embora limitada, deve ser realizada. Antônio gosta de caminhar, hábito cultivado apenas após o transplante, antes, admitiu, era preguiçoso.
Eu passei a ter uma alimentação praticamente normal, com algumas ressalvas, com relação ao sal, proteínas. Você tem que fazer maior ingestão de carne branca. Eu, por exemplo, não como frango, então, tenho que fazer mais uso do peixe. Mas eu uso também outras carnes, só que você não pode usar muita carne, porque com a proteína que tem nela corre o risco de elevar a hemoglobina, você fica com o sangue muito alto [...]. Também é importante comer as verduras e legumes. Você tem que preparar seu organismo para ele não ficar debilitado com os remédios, porque eles exigem muito do corpo da pessoa. Eu digo que nunca fui muito chegado em comer folha, essas coisas, mas você tem que pensar no que faz bem para você. Tem que estar consciente da sua situação e da sua postura. Ninguém pode fazer isso por você. É tudo com você mesmo. Agora você tem que fazer alguma atividade física que é para evitar aquela questão de você ter, às vezes, a taxa de colesterol que se eleva um pouquinho e tal.
O transplante trouxe uma série de mudanças na vida de Antônio. Dentre elas, conheceu uma associação, passou a frequentá-la e, em pouco tempo, começou a assumir uma série de tarefas. Antônio é considerado por Marcela o seu “braço direito” no que se refere aos assuntos da ATX-BA. Ele conheceu a associação após a operação, através de um encontro fortuito com outra pessoa transplantada quando buscava exames médicos num laboratório. Nos termos da diretora, ele “é pau para toda obra”. Realmente, Antônio faz de tudo um pouco: organiza as notas fiscais, ajuda na preparação das cestas básicas, representa a associação em eventos, faz pequenos reparos na sede, dentre outras atividades.
Aí foi que eu passei a fazer um trabalho com a coordenação, junto com a Marcela, auxiliando no que for possível, mediante a supervisão dela, porque ela é a diretora da entidade. Eu me interessei porque é um trabalho que eu vi que, mesmo sendo um trabalho sem fins lucrativos, é uma questão de trabalho social e humanitário acima de tudo. E aí os ideais iam ao encontro do meu raciocínio, porque ajudar é sempre bom. A gente ajuda não na esperança de ter um retorno, principalmente retorno financeiro, que não é o caso. A minha metodologia é assim: se tem um incêndio e você joga uma gota de água, você não precisa levar um caminhão pipa. Você joga uma gota, se tem um milhão de pessoas e cada uma joga uma gota, vai apagar o incêndio.
Foram muitas as mudanças na vida de Antônio desde o diagnóstico da doença até o transplante e posteriormente. O processo de doação, por exemplo, produziu um rearranjo nas suas relações familiares, fazendo com que se aproximasse da “irmã parcial”, reconhecendo-a como parte da família após muitos anos. Nesse processo, sua visão de mundo mudou: “início de grandes mudanças na minha vida, de reafirmar outros valores escondidos na minha personalidade”. Seu estilo de vida também foi modificado: alimentação, atividade física, exames, remédios. Mas, nada disso é comparável ao nascimento de sua segunda filha. Pouco antes da aposentadoria, Antônio e sua esposa começaram a planejar um segundo filho. A primeira e, até aquele momento, única filha já havia crescido, casado e estava seguindo sua própria vida. Com isso, a vontade de ter outro filho aumentava cada vez mais, além de ser um desejo antigo de sua esposa. Em comum acordo, decidiram iniciar as tentativas de engravidar após a aposentadoria. Entretanto, o diagnóstico da doença adiou indefinidamente os planos e chegaram até a cogitar que jamais conseguiriam ter outro filho. Inesperadamente, um ano após o transplante eles foram surpreendidos com a notícia da gravidez. Para Antônio, essa foi a maior mudança que o transplante trouxe para sua vida, a possibilidade de ser pai novamente.
Antes mesmo de conhecer Neusa pessoalmente, já tinha ouvido falar dela mais de uma vez. Certamente, dos associados da ATX-BA, era uma das mais conhecidas. Não apenas por conta de sua simpatia e perfil extrovertido, sempre cumprimentando os presentes e disposta a conversar, mas também pela relação que estabeleceu com o órgão doado e os familiares do doador, motivo de censura e controvérsia, como veremos adiante.
Natural de Irecê, município do interior da Bahia, Neusa mora em Salvador desde o início dos anos 1990. Antes da mudança morava com os pais e trabalhava com eles no cultivo de mamona para comercialização, além de outros gêneros alimentícios para subsistência. Diferente dos irmãos e irmãs, não se casou. Aliás, nunca teve vontade de casar-se. Talvez, essa opção seja decorrência da frustração vivenciada na sua primeira e única relação amorosa. Aos 25 anos, iniciou um namoro com seu vizinho, que há muito tempo a cortejava. O relacionamento começou por insistência dos pais, receosos sobre o futuro da filha, pois achavam que ela já havia passado da idade de se casar. Embora atribua o início do namoro aos pais, confessou que, tempos depois, começou a “gostar de verdade” do rapaz, pelo seu jeito “simpático e carinhoso”.
Esse encanto, entretanto, não durou muito. Seu namorado gostava de beber cachaça com os amigos e o hábito, com o passar do tempo, se transformou em vício. A simpatia e o carinho deram lugar a sucessivas brigas e discussões. Justamente nesse momento conturbado, Neusa engravidou. A descoberta da gravidez foi determinante para o término do seu relacionamento, já estremecido pela constante embriaguez do seu par.
Quando não enchia o juízo de pinga, ele era um bom homem. Mas quando começou a beber todo dia, não tinha quem aguentasse. Ficava todo “bocó”, se metia em briga, ficava caído pelo chão. Ninguém merece [...]! Aí, quando eu descobri que estava esperando um filho, botei um fim. Já não estava dando certo mesmo.
Além de pôr fim ao namoro, decidiu não comunicar ao rapaz sobre a novidade, que, segundo ela, não sabe até hoje ser pai de uma menina. O início emocionalmente conturbado da gravidez, contrastou com os meses seguintes, quando Neusa, já de volta à casa dos pais, se preparava para a chegada da filha. Ao falar sobre esse período, ressalta a felicidade e plenitude que sentia com a proximidade do parto, enfatizando nunca ter imaginado que a gravidez pudesse proporcionar tamanha alegria. Esse estado de espírito durou até o mês anterior ao parto. Um exame de urina realizado como parte do pré-natal indicou uma debilidade no funcionamento dos seus rins. Exames subsequentes confirmaram tratar-se de insuficiência renal crônica.
Incialmente, não teve dimensão das consequências que o diagnóstico traria para sua vida, acreditando que medicamentos bastariam para curá-la. Ainda sob as expectativas entusiasmadas da maternidade, nasce na semana do Natal, Natália, uma homenagem, segundo Neusa, ao nascimento de Jesus. Pouco tempo após o parto, os sintomas da doença recém diagnosticada agravaram-se progressivamente. A debilidade física levou a novos exames e em uma das consultas foi informada pelo médico sobre o estado avançado de sua insuficiência renal. Não havia escolha, de acordo com o médico. Era necessário iniciar, imediatamente, o tratamento, ou seja, a hemodiálise. A questão que se colocou para Neusa era a de que não havia em sua cidade clínica ou hospital habilitado para realizar o procedimento. Suas opções eram ir para Salvador três vezes por semana no ônibus disponibilizado pela prefeitura ou mudar-se para a capital. Optou pela segunda alternativa, valendo-se de uma pequena ajuda financeira fornecida arduamente pelos pais e do apoio de um primo que emprestou sua casa na periferia da Região Metropolitana de Salvador, vazia desde que retornou para o interior. Já sua filha recém-nascida, com poucos meses de vida, ficou sob os cuidados dos avós maternos. Desde a mudança, teve poucas oportunidades para visitar a filha e seus pais, sobretudo em virtude de limitações financeiras. Quando a conheci, já morava em Salvador há dezoito anos. Pelo tempo e distância, reafirmava constantemente, em tom de remorso, que a filha já não era mais sua, mas dos seus pais que a criaram. Afirmação cuja constante repetição nas conversas apontava para uma cicatriz tão marcante quanto as fístulas ainda hoje visíveis em seus braços.
Assim como a maioria dos pacientes em hemodiálise, enfrentou muitas dificuldades para se acostumar ao tratamento e minimizar os episódios de mal-estar. O fato de não ter alguém para acompanhá-la tornava o trajeto de volta para casa, realizado de ônibus, um momento crítico, não raro necessitando do auxílio e amparo de transeuntes. Após os primeiros meses de tratamento, o transplante renal tornou-se seu maior sonho, tanto para não mais depender da hemodiálise e sofrer seus efeitos colaterais, quanto para possibilitar a volta à cidade natal e, consequentemente, para seu papel de mãe junto à filha. Pensava que, por estar morando em Salvador, seria mais fácil, um grande engano. Confessou que sua grande esperança foi, durante muito tempo, algum irmão ou irmã se prontificar a doar um rim. Isso, todavia, nunca aconteceu. Até hoje esse fato causa desconforto ou, em suas palavras, “um grande desgosto”.
Se algum parente meu precisasse [de um rim para transplante], eu dava. Nem pensava duas vezes. Me diz, se você não pode contar com a sua família, você vai contar com quem? Me diga! Comi o pão que o diabo amassou. Foram quinze anos, quinze anos que fiquei presa naquela máquina, passando mal [...]. Mas me orgulho de nunca ter pedido para parente meu doar. Fui forte, não é qualquer um que aguenta quinze anos. Eu vi mais de dez morrerem na hemodiálise, ali do meu lado. E sei que podia ser eu. Sempre achei que meu fim ia ser esse, ali na maca [...]. Aí, eu disse para os meus parentes que, quando eu recebesse um rim que, se fosse de cadáver, ia ser minha família, disse mesmo.
Após quinze longos anos de espera na fila de transplantes, Neusa implantou um novo rim em 2005 a partir de uma doação cadavérica. A cirurgia foi bem-sucedida e Neusa não mais dependia das três sessões semanais de hemodiálise. Todavia, seu sonho foi apenas parcialmente realizado. A volta para a cidade natal e a aproximação da filha não foram concretizadas. Embora não dependesse mais da “máquina”, o acompanhamento médico a cada três meses, os exames, a distribuição do imunossupressor restrita a dois hospitais localizados em Salvador e a inexistência de serviços de saúde especializados em Irecê para lidar com as “intercorrências” tão comuns aos transplantados, inviabilizavam sua volta. Ainda assim, nos seus relatos, não demonstra arrependimento sobre a decisão de transplantar, pelo contrário.
Quando eu consegui o rim e fui transplantada, eu voltei para a vida. Aquilo que eu vivia antes, aquilo não era vida. Ninguém merece ficar preso naquela máquina quase todo dia, que faz a gente se sentir mal [...]. Pra mim, o transplante foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, mudou tudo pra mim. A família que doou me fez viver de novo, me deu minha vida de volta. Era tudo o que eu queria, você não imagina.
Assim como outros interlocutores ao longo do trabalho de campo, conheci Neusa na sede da associação, quando ela foi buscar o medicamento que é distribuído gratuitamente, a predisona. Sentada numa cadeira, aguardava sua vez para ser atendida pela secretária, nesse ínterim fui apresentado a ela por Marcela, diretora da Associação. Na breve conversa travada nesse dia, inesperadamente, Neusa levantou a parte de sua blusa para mostrar o local onde o rim foi implantado, o qual apresenta uma pequena saliência em relação ao resto do corpo. Ao percorrer carinhosamente a região com a mão afirmou: “Esse aqui é meu bebê”. Assim como todo “bebê”, o rim doado demanda constantes cuidados:
Para a falar a verdade, na época da hemodiálise, eu não era muito certa (risos). Comia o que não devia e sempre bebia mais água do que o médico falava. Me diga, quem consegue ficar chupando gelo nesse calor, eu nem queria saber, enchia o copo mesmo e dava um golão [...]. A nutricionista ficava falando “não pode comer isso, não pode aquilo”. Era uma provação [...]. Agora melhorou, eu não preciso mais ir para aquela clínica. Não tem mais o mal-estar da hemodiálise. É um alívio, nossa! [...] Quando transplantei disse que ia mudar e fazer tudo ali na risca. Comprei até um relógio de braço para ficar olhando as horas e não atrasar os remédios [...]. Melhorei até as coisas que como, a gente transplanta, mas não pode fazer tudo, né?
Na prática, entretanto, admite ter algumas dificuldades para manter o cuidado necessário com sua tênue saúde. Isso envolve tanto dificuldades em adquirir medicamentos para tratar de suas “intercorrências”, que nos últimos dois anos têm se tornado mais frequentes. Segundo ela, isso se deve ao fato de estar “fraca”, isto é, com anemia. Seu médico receitou uma dieta específica e alguns suplementos alimentares. Entretanto, com o valor do benefício que recebe (Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social — BPC-LOAS) é muito difícil seguir totalmente a recomendação médica. Dos suplementos, ela desistiu; já a dieta, “quando sobra um dinheirinho” compra os alimentos recomendados. Para que esse “dinheirinho” sobre no final do mês, Neusa faz alguns serviços de costura, normalmente para vizinhos. Mas, além de irregular, essa fonte extra de rendimentos não é suficiente para atender suas necessidades plenamente. Isso fica ainda mais evidente no que se refere à aquisição de medicamentos. Recentemente, recebeu o diagnóstico de osteoporose, possivelmente causada ou agravada pelo uso dos medicamentos imunossupressores. Para o tratamento dessa doença foram receitados mais medicamentos, que deveriam, segundo ela, ser distribuídos gratuitamente nos postos de saúde, mas os quais dificilmente estão disponíveis. Como não tem recursos financeiros nem plano de saúde para arcar com os custos, a única solução é interromper o tratamento: “[...] quando tem a gente toma, né? Agora, quando falta, eu não tenho o que fazer, e não é por safadeza minha, é que não dá para comprar mesmo”.
Um dos aspectos mais interessantes dos relatos de Neusa é a surpreendente relação estabelecida com a família do doador. Fato não apenas controverso, mas, via de regra, um interdito no contexto brasileiro de transplante de órgãos. Na legislação não há nenhum dispositivo que proíba o relacionamento do receptor com parentes do doador falecido, apenas o anonimato da doação é assegurado. De qualquer forma, a maioria das pessoas com quem conversei ao longo da pesquisa, profissionais de saúde e transplantados, são reticentes, quando não abertamente contrários ao contato entre familiares de doadores e receptores. É um tabu, no sentido estrito do termo. Embora as opiniões possam variar, o anonimato é a regra, sob os argumentos de que o encontro pode ocasionar sofrimento e traumas emocionais, tanto para o receptor quanto para os familiares, além da possibilidade de os últimos requisitarem compensações, inclusive financeiras.
Apesar disso, alguns receptores demonstram curiosidade sobre o doador, embora nem todos desejem conhecer os familiares ou mesmo obter detalhes sobre a pessoa cujos órgãos foram captados. Neusa, por sua vez, confessou que antes mesmo de realizar a cirurgia de transplante já “morria” de curiosidade para saber quem era o doador. Coincidentemente e para seu deleite, poucas semanas após ter alta da internação, ao buscar os documentos e exames no hospital, encontrou dentro do envelope que lhe foi entregue um documento, encaminhado para ela por engano, no qual constavam informações sobre o irmão do doador, quem havia autorizado a captação dos órgãos, incluindo seu endereço de residência.
Quando cheguei em casa, abri o envelope e tirei toda aquela papelada. Aí eu vi um papel do hospital que tinha escrito o nome do irmão dele [do doador] e o endereço. Eu não leio muito bem, sou analfabeta, mas na hora consegui entender que era do irmão do doador. Aí pedi para uma amiga ler direito para mim, para saber se eu tinha visto certo. Quando ela disse que era o que eu estava pensando, fiquei louca de felicidade. Estava ali, na minha mão, tudo o que eu precisava [...]. Queria muito ir até a casa dele, mas não tinha coragem para ir sozinha lá. Aí eu pedi para uma amiga minha me acompanhar e ela aceitou.
No dia combinado, Neusa e a amiga foram até o endereço informado no documento, no município de Camaçari, Região Metropolitana de Salvador, onde esperavam encontrar o irmão do seu doador, Gustavo. Ao chegar na porta da casa, Neusa não teve coragem de tocar a campainha. Então, pediu à amiga que a tocasse e explicasse a situação para quem abrisse a porta. A esposa de Gustavo foi quem atendeu. Ao ouvir o motivo da visita e o pedido de Neusa para conhecer a família, ela ficou em choque, sem saber o que exatamente dizer. Recuperada da surpresa, concordou em conversar com o seu marido quando chegasse do trabalho e solicitou as duas visitas que retornassem no final da tarde. Quando retornaram, Neusa recebeu a notícia tão esperada, Gustavo havia concordado em conhecê-la, embora, estivesse abalado emocionalmente com a eminência do encontro.
Quando eu vi ele [o irmão do doador, Gustavo], eu comecei a chorar sem parar, fiquei soluçando... Aí, eu fui na direção dele e a gente se abraçou forte. Ficou ali se abraçando um tempão, e ele chorando também [...]. Quando a gente se acalmou a esposa dele trouxe um copo de água e a gente sentou no sofá para conversar um pouco. Ele me contou que ele [o doador] trabalhava num posto [de combustível] ali perto e que ele era uma pessoa muito boa, alegre, todos gostavam dele. Era um amor de pessoa mesmo. Ele tinha só 25 anos quando morreu. Foi num acidente de moto. A moto bateu num carro e ele caiu sem capacete, bateu a cabeça e morreu [...] Nossa, e nesse momento de tristeza da família dele, eles tiveram a força para pensar em doar os órgãos dele. E meus irmãos, sangue do meu sangue, nem se ofereceram quando eu precisei. Aí que eu digo que a família dele agora é minha família.
Em seguida, Neusa aproveitou a oportunidade para conhecer o local onde o seu doador trabalhava. No posto de combustível, conheceu alguns colegas, que ficaram contentes ao saberem que ela recebera um dos rins doados. Esfuziante com o momento, Neusa colocou a mão de cada um deles sobre o rim e “eles ficaram com a mão ali, sentindo o amigo deles ali dentro de mim”. Após essa primeira aproximação, Neusa ficou muito empolgada, disse que não conseguia parar de pensar no doador e sua família. Nesse mesmo dia, quando, enfim, conseguiu dormir, teve um sonho. Nele, ela estava deitada numa cama com os braços cruzados sobre o peito e um menino, que, de acordo com ela, era o seu doador quando criança, se aproximava com um terço entre as mãos e pedia a ela que segurasse sua mão. Quando os dois deram as mãos, começaram a rezar o terço. Apesar de contente com o encontro, Neusa ainda desejava conhecer a mãe do doador, o que não foi possível na sua primeira visita, pois Gustavo considerou que seria uma emoção muito forte, afinal, a morte do filho caçula ainda era recente. Então, propôs esperar algum tempo para conversar com a mãe sobre a possibilidade de conhecer Neusa. Até a última vez que a encontrei, ainda não tinha recebido o tão esperado convite, mas, ao menos conversava por telefone com Gustavo.
A escolha de apresentar as trajetórias de Antônio e Neusa, dentre outras possíveis, reside nas inúmeras convergências e divergências, continuidades e descontinuidades passíveis de emergirem a partir da comparação e que, dessa forma, ilustram a diversidade de arranjos e processos mediante os quais pessoas transplantadas reconstituem suas subjetividades e reorganizam suas relações sociais. Ainda que, por exemplo, para ambos a incorporação de parâmetros biomédicos de conduta seja um traço comum, suas trajetórias imediatamente revelam o quanto condições socioeconômicas interferem no acesso a serviços de saúde (Antônio possui plano de saúde particular, Neusa depende do SUS) e no grau de adesão às prescrições comportamentais, seja no que diz respeito a alimentação, seja na administração de remédios para lidar com a rejeição (a predisona) e intercorrências. Não obstante essa clivagem, tanto Antônio quanto Neusa dependem do poder público estadual, em particular da Secretaria de Saúde, para obter os imunossupressores, cuja falta, ainda que por um curto período, pode acarretar danos irreversíveis à sobrevida dos enxertos e, no limite, provocar a morte.
Outro ponto de convergência, de grande relevância, é o rearranjo das relações familiares a partir do evento da doação, não obstante os efeitos daí decorrentes sejam bem distintos. No caso de Antônio, a doação da “irmã-parcial”, até então rejeitada, propiciou a atualização dos laços de parentesco, reconhecendo-a como efetivamente parte de sua família, fato consagrado com o convite para ser madrinha do seu filho e, assim, participar do seu principal projeto de vida pós-transplante. Já no caso de Neusa, a não realização da doação intervivos em razão de nenhum dos seus irmãos ter se prontificado como possível doador associada à distância, geográfica e afetiva, ocasionada pela mudança para Salvador, inicialmente para tratamento dialítico, em seguida pelas limitações impostas por sua condição de transplantada, também ocasionaram uma atualização das suas relações de parentesco: “Me diz, se você não pode contar com a sua família, você vai contar com quem? [...] Aí eu disse para os meus parentes que quando eu recebesse um rim que se fosse de cadáver ia ser minha família, disse mesmo”. Dito e feito. O suplício de Neusa, ao longo de 15 anos de hemodiálise, teve fim com o gesto altruísta de outra família em um momento trágico. Agora, segunda ela, sua família é outra: “E meus irmãos, sangue do meu sangue, nem se ofereceram quando eu precisei. Aí que eu digo que a família dele [do doador] agora é minha família”. Assim como Antônio incorporou sua “meia-irmã” no seu projeto pós-transplante, Neusa incorporou os familiares do seu doador no seu mais recente projeto de vida, uma nova família, endossado pelo recente contato com Gustavo, irmão do doador, responsável pela autorização da captação dos órgãos.
Nessa breve comparação, ainda cabe sublinhar a divergência relativa à participação na ATX-BA. A presença de Neusa nesse espaço ainda que marcante, está associada às práticas assistencialistas, em particular a distribuição gratuita da predisona e, quando disponível, das cestas básicas, reforçando, assim, a importância das diferenças socioeconômicas. Já a participação de Antônio na Associação aproxima-se das motivações de Marcela para a fundação da mesma, não é à toa que ele é seu “braço direito”. Após a aposentadoria, o trabalho na instituição faz parte de um processo mais amplo de reorganização do seu projeto de vida em torno da sua nova condição de transplantado e o reconhecimento de outros que compartilham da mesma condição, aproximando-o de um “ativismo médico” (ROSE, 2007) similar ao de Marcela: “Eu me interessei porque é um trabalho que eu vi que, mesmo sendo um trabalho sem fins lucrativos, é uma questão de trabalho social e humanitário acima de tudo”.
Destaca-se, ademais, nos relatos de Antônio e Neusa, a organização temporal da experiência, na qual suas trajetórias são pensadas a partir de referências a vivências passadas, ao presente e a um futuro imediato. Essa organização apresenta-se sob a forma de uma transição entre momentos distintos de suas vidas. O “antes”, quando a experiência da doença é vivida e significada tanto como uma debilidade física, desordem orgânica, quanto como um desarranjo das relações sociais devido às dificuldades para desempenhar adequadamente papéis da vida cotidiana. E o “hoje”, que representa, em contraste, a superação da doença, a cura e o reestabelecimento das relações interpessoais, apontando para um futuro próximo, momento próprio para formular e conduzir projetos. O evento do transplante figura nos relatos acima como a concretização de um projeto de cura, no qual as dimensões biológica e social se fundem em proveito de uma concepção de corpo como espaço de sedimentação da memória e de elaboração de projetos de vida.
Este artigo propôs compreender as modificações nos modos de subjetivação e nas relações sociais ensejadas pelo transplante de órgãos, privilegiando não somente o fato de receber uma doação, mas o de viver com um órgão transplantado ao longo do tempo. Ainda na Introdução, foi pontuado que, embora a incorporação de elementos prático-cognitivos oriundos biomedicina fosse um elemento-chave da análise — sobretudo por conta da necessidade vital de administrar a resposta imune do organismo ao órgão implantado, cuja expressão mais visível é a rejeição —, sua apreensão deveria ser realizada a partir de “situações biograficamente determinadas”. Em consonância com essa orientação analítica foram apresentadas as “trajetórias situadas” de dois associados da ATX-BA, elaboradas a partir de um conjunto de dados produzidos ao longo do trabalho de campo mediante conversas informais e entrevistas semiestruturadas.
Antônio foi salvo pela “meia-irmã” antes renegada, reconheceu-a como parte da família e “ganhou uma nova vida”, incluindo a possibilidade de ser pai novamente. Neusa, afastada da filha e em “desgosto” com os irmãos, foi salva por um desconhecido e, aos seus olhos, “ganhou” uma nova família (a do doador) e um “bebê” (o rim doado). Em ambas as trajetórias, as relações com o doador (ou sua família) e com o órgão doado desempenham papel relevante nas formas emergentes de subjetivação no pós-transplante, com especial destaque para o domínio do parentesco, algo até certo ponto previsível na doação intervivos, mas inusitado na modalidade cadavérica. Como dito anteriormente, o ato de doação, figurado metaforicamente enquanto “presente da vida”, constitui uma das principais premissas morais sobre a qual se assentam as compreensões profissionais e leigas acerca da morte e do corpo no âmbito do transplante de órgãos (SHARP, 2006, p. 12-15). Apesar de ser um enredo narrativo altamente persuasivo, sobretudo no que diz respeito ao incentivo à doação, o “dom da vida” não elide por completo os dramas e sofrimentos presentes na captação do órgão transplantado. Tanto a preocupação demonstrada por Antônio ao esclarecer a irmã sobre a possibilidade dela própria vir a, eventualmente, necessitar de um transplante quanto a vontade manifesta por Neusa de conhecer e confortar os familiares do falecido doador revelam a dimensão sacrificial do dom recebido.
Antes ameaçados pela morte ou atormentados pelo sofrimento prolongado, os receptores frequentemente interpretam o transplante como o início de uma nova vida, um renascimento. De forma análoga aos ritos de passagem (GENNEP, 2011 [1909]), o evento da cirurgia simbolizaria o início do processo de agregação, de reintegração do indivíduo às rotinas da vida social após a ruptura desencadeada pela doença. Antônio e Neusa, pacientes renais, vivenciaram por anos as debilidades físicas, emocionais e sociais decorrentes das sessões semanais de hemodiálise. Hipertensão, hipotensão, cefaleia e náuseas constantes associadas à sensação de perda da liberdade, “presos” aos equipamentos de diálise por várias horas e dias, a angústia diante da morte, a própria e a de outros, o sentimento de inutilidade por não serem mais capazes de desempenhar adequadamente as atividades da vida cotidiana e as transformações nas relações familiares compõem o cenário do processo de deterioração não só da saúde física e mental, como também da própria identidade. “Aquilo não era vida”, resumiu Neusa. A realização do transplante renal foi o ponto de partida para reverter esse processo e, assim, viver uma “nova vida”, oportunidade para levar a cabo a (re)construção de um projeto “eu” saudável e normal. Ainda que esse resgate da normalidade biológica e social seja vivenciado dentro das limitações e restrições decorrentes do estado de cronicidade provocado pela rejeição, mantendo ambos dependentes das tecnologias, técnicas e insumos médicos.
Ao superar o sofrimento e a angústia vivenciadas desde o diagnóstico até o pós-operatório, período no qual as fronteiras entre vida e morte permanecem borradas e incertas, Antônio e Neusa interpretam a experiência do transplante como passagem para uma “nova vida”, na qual eles próprios são transformados, já não se veem mais como eram antes. A vida continua, mas não se vive da mesma forma. A partir de então, o órgão implantado no corpo torna-se elemento fundamental desse novo modo de ser, integrando aquilo que Foucault denominou a “determinação da substância ética”, compreendida como “a maneira pela qual o indivíduo deve constituir tal parte dele mesmo como matéria principal de sua conduta” (FOUCAULT, 1984, p. 27). A reconfiguração da “imagem corporal” e, por conseguinte, do próprio ser-no-mundo dos receptores passa a destacar o órgão doado enquanto foco privilegiado de atenção das rotinas cotidianas. Nas palavras de Antônio, é imprescindível “lutar com todas as forças para que o [...] organismo aceite docilmente o rim doado”. Tomar remédios prescritos, em especial os que compõe o regime imunossupressor, realizar exames periodicamente, adequar a dieta de acordo com as orientações do nutricionista e realizar exercícios físicos regularmente. Não são apenas reorientações e adequações comportamentais em prol da administração da rejeição e da sobrevida do enxerto, mas modificações na visão de mundo, nas relações sociais e na subjetividade, reforçadas pela acentuação da dimensão intercorporal da imagem do corpo constituído por um fragmento de outrem (WEISS, 1998, p. 1-6).
A adesão às prescrições médicas e a modificação de comportamentos, tão importantes à vida pós-transplante e ao sucesso terapêutico da cirurgia, são reforçadas pela metáfora do “dom da vida”. Afinal, o cuidado de si mediante a adoção de parâmetros de conduta biomédicos é entrelaçado a uma responsabilização moral perante o outro, o doador. Ainda que, eventualmente, dê lugar à “tirania do dom”,14 o compartilhamento de uma substância ética tão preciosa, equacionada à própria vida, reconfigura profundamente o complexo jogo entre identidade e alteridade. O gesto de “dar(-se) a morte”, nos termos de Derrida (2008), inscreve o processo de constituição do sujeito que diz “eu” em uma economia do sacrifício, na qual a morte para o Outro impõe a exigência ética do segredo e da responsabilização.15 Contemporaneamente, de acordo com Nikolas Rose, a constituição do sujeito responsável assume a forma de uma “ética somática”, isto é, uma ética articulada em torno da existência corporal, da promoção da saúde e do prolongamento da vida enquanto responsabilidades individuais (ROSE, 2007, p. 254-258), afinal, como disse Antônio, “ninguém pode fazer isso por você, é tudo como você mesmo”. Esse novo solo de problematizações, por seu turno, encontra na biomedicina um vasto repertório de valores e orientações prático-normativas a partir do qual os indivíduos formulam e respondem a questão do “como viver?”. Daí a proposição do conceito de “biossociabilidade” para caracterizar a constituição de identidades e práticas, coletivas e individuais, organizadas em torno do compartilhamento de características somáticas ou genéticas (RABINOW, 1999).
No âmbito do transplante de órgãos, o cuidado da saúde mediante a gestão de si inclui, prioritariamente, administrar a rejeição e minimizar intercorrências através de modificações no comportamento e no estilo de vida. Ora, se recapitularmos as histórias de Antônio e Neusa, essa intensificação do cuidado de si não é apenas um fim em si mesmo, pois passa a constituir a condição de possibilidade para a formulação de projetos,16 ser pai novamente e fazer parte de uma família, respectivamente. Aliás, a própria constituição da subjetividade, do “eu”, pode ser compreendida enquanto um projeto situado, permanentemente negociado em contextos de interação com outros significativos. Por isso, ao invés de compreender a constituição da subjetividade das pessoas transplantadas de forma isolada, a análise aqui desenvolvida sugere ser mais proveitoso apreendê-la a partir de situações biograficamente determinadas, nas quais distintos modos de subjetivação interagem, se combinam ou entram em conflito. Ao acompanhar as “carreiras” de Antônio e Neusa, ou seja, ao focalizar as interações “entre o eu e sua sociedade significativa” (GOFFMAN, 1974, p. 112), fica evidente que as relações familiares e de parentesco são tão centrais quanto os elementos prático-cognitivos oriundos do campo biomédico.
O transplante de órgãos tem o potencial de chacoalhar concepções profundamente arraigadas concernentes ao “modelo padrão ocidental” de parentesco (VIVEIROS DE CASTRO, 2009, p. 254-256) e, consequentemente, de alterar uma dimensão fundamental da constituição da identidade pessoal. Já no final da década de 1960, David Schneider (1980 [1968], p. 23), ao caracterizar esse modelo de parentesco como biogenético, ponderou que se a ciência descobrir e, eu acrescento, criar novos fatos sobre o relacionamento biogenético, então o parentesco será redefinido. Sendo o parentesco um domínio privilegiado de constituição de identidades substancializadas, mormente através do sangue, deve-se inquirir sobre quais possíveis redefinições podem ser induzidas pelo compartilhamento de órgãos. Nesse particular, as trajetórias de Antônio e Neusa são exemplares. No caso da doação intervivos entre Antônio e a irmã, as relações de parentesco já estavam pressupostas. Todavia, é importante recordar que ele não a reconhecia enquanto tal, daí o uso da expressão “irmã parcial”, além de ter recusado estabelecer qualquer tipo de relação entre eles. Antônio a reconheceu como “irmã” somente após a decisão dela de doar o rim e com a realização do transplante. “Foi ela que me deu uma nova vida [..] Na vida a gente sempre aprende a recomeçar, essa foi uma das coisas que aprendi”, resumiu. Pode-se dizer que, nesse caso, o rim doado forjou a bilateralidade da relação consanguínea entre eles. Se, pelo “modelo padrão ocidental” de parentesco, o substrato biológico (sangue) compartilhado pelos irmãos era “parcial”, pois limitava-se à descendência materna, o transplante do órgão redefiniu esse relacionamento biogenético, instaurando uma forma surpreendente de bilateralidade, composta pelo compartilhamento do sangue materno e do rim doado. Uma mistura de descendência e colateralidade com amplas repercussões para o relacionamento deles, incluindo o núcleo familiar de Antônio, que designou a, agora, irmã para ser madrinha do novo rebento.
Já no caso de Neusa, a doação cadavérica do rim recebido era completamente alheia à sua rede de parentesco. O que não significa, todavia, que esse domínio fosse completamente irrelevante para a trajetória dela enquanto receptora, pelo contrário. Inicialmente, após o diagnóstico da doença, foi obrigada a deixar a cidade natal e a se afastar da filha recém-nascida e dos pais para realizar o tratamento de hemodiálise na capital. Depois, se decepcionou com os irmãos, pois nenhum deles se prontificou para ser um doador, o que estendeu a espera pelo transplante por longos quinze anos. Quando enfim foi selecionada para receber a doação anônima de uma pessoa falecida e realizar o tão aguardado transplante, não pôde retornar para a cidade natal pois a distribuição do medicamento imunossupressor e os serviços de saúde especializados só estavam disponíveis em Salvador. Nesse ínterim, vaticinou “quando eu recebesse um rim, que, se fosse de cadáver, ia ser minha família” e, graças a um acontecimento fortuito, transpôs o anonimato do doador e da família dele, possibilitando um primeiro encontro com o responsável por autorizar a captação dos órgãos, o irmão do falecido. Para Neusa, o transplante não apenas substituiu um órgão adoecido por outro saudável, tal qual as peças de um carro, possibilitando a ela “viver de novo”, mas também permitiu que parte do doador permanecesse vivo nela, “eles ficaram com a mão ali, sentindo o amigo deles ali dentro de mim”. Para incorporar o doador ao corpo e ao “eu” e, assim, compor uma nova imagem intercorporal, nada mais eficaz do que transformar um estranho em parente.
Ademais, ao burlar o anonimato, Neusa rompeu com a ética do segredo, referida anteriormente, segunda a qual, o nome daquele que “dá(-se) a morte” deve permanecer inacessível, em segredo, sob o risco da dádiva, do ato livre, generoso e incondicional, sem exigências de compensação, perverter-se em “tirania do dom”, em dívida impagável. Entretanto, não obstante a transgressão do segredo, ao reinscrever a economia do dom no domínio das relações de parentesco, Neusa preservou o comprometimento ético de responsabilidade perante a morte do Outro. Essa espécie de tradução foi o que possibilitou equacionar o cuidado com o órgão doado com o cuidado gestacional, “esse aqui é meu bebê”, afirmação que cristaliza, do ponto de vista dela, a relação de consanguinidade (no sentido de compartilhamento de um elemento biogenético) com a família do doador engendrada pelo transplante. Tanto na trajetória de Antônio quanto na de Neusa, o parentesco propicia uma linguagem apropriada para expressar transformações corporais, emocionais e sociais vivenciadas após a realização da cirurgia de transplante, logo, pelo compartilhamento de uma parte do corpo de outrem. Nesse contexto, as relações biogenéticas do “modelo padrão ocidental” de parentesco fornecem uma gramática e sintaxe, prenhe de signos ao mesmo tempo flexíveis e padronizados, que permitem estabelecer “continuidades indicativas”17 entre diferentes províncias de significados (SCHNEIDER, 1998, p. 60). A bem da verdade, esses distintos domínios encontram-se intimamente entrelaçados, possibilitando, dessa forma, compreender a constituição do “eu responsável” dos receptores a partir de um campo mais amplo de problematizações morais.
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Este artigo é uma síntese do Capítulo 5 da minha dissertação de mestrado (AARTINS, 2009) defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia. A pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia — FAPESB.↩︎
O escopo da pesquisa foi restrito ao transplante de órgãos sólidos (fígado, rim, pulmão, coração e pâncreas). Transplantes de tecidos, córnea e medula óssea, por exemplo, não foram contemplados pela pesquisa.↩︎
A expressão “trajetória situada” é derivada da ideia de “situação biograficamente determinada” elaborada por Alfred Schutz e referida no final do parágrafo anterior.↩︎
A rejeição é classificada em quatro tipos: 1) a rejeição hiperaguda, caracterizada por ser uma reação mediada por anticorpos, comum nas primeiras horas após o transplante, sobretudo, em indivíduos previamente sensibilizados por transfusões sanguíneas, gravidez múltipla ou transplantes anteriores; 2) a rejeição aguda celular é o tipo mais recorrente, responsável pela maior taxa de óbito pós-operatório, ocorrendo nos primeiros dias ou semanas, porém, pode surgir em períodos tardios, em particular, quando ocorre interrupção do tratamento imunossupressor; 3) a rejeição aguda vascular ocorre, geralmente, após a segunda semana do transplante, causando danos na microcirculação dos tecidos afetados; 4) a rejeição crônica, atualmente o principal fator limitante da sobrevida do receptor a longo prazo, desenvolvendo-se em enxertos que sofrem danos intermitentes ou persistentes em virtude da ação do sistema imunológico. Aproximadamente 50% dos receptores apresentarão rejeição crônica decorridos sete anos do transplante. (PEREIRA, 2004, p. 79-84).↩︎
O regime imunossupressor é, normalmente, constituído por dois tipos de medicamentos: um imunossupressor e um corticosteroide. Os efeitos colaterais cumulativos do regime imunossupressor incluem: doenças ósseas, como a osteoporose; desordens linfoproliferativas; nefrotoxidade; perda progressiva da visão; diferentes tipos de neoplasias; complicações neurológicas; hipertensão arterial; hiperglicemia; e hepatotoxidade (PEREIRA, 2004, p. 98-99).↩︎
Muitas campanhas de incentivo à doação de órgãos, por exemplo, são centradas na “vida”. Nelas o ato da doação é um gesto que possibilita a continuidade da vida: “Doe órgãos. Decida-se pela vida”; “Vida é para doar e para receber”; “Preserve a vida. Seja um doador de órgãos”. Destaca-se nesses slogans a personificação dos órgãos com a essência da vida, em contraste, com a percepção biomédica dos órgãos enquanto partes mecânicas substituíveis. Importante observar que a personificação ocorre através da doação. É este ato que “dá” vida ao órgão. O que essas campanhas suprimem é o próprio evento da morte, no caso dos transplantes, quase sempre trágica. Por isso, Joralemon (1995) afirma que essas construções simbólicas são os “equivalentes ideológicos” dos imunossupressores.↩︎
De acordo com o artigo 9° da lei nº 10.211 de 23 de março de 2001, que dispõe sobre a doação intervivos: “É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4º deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea”.↩︎
De acordo com Alfred Schutz, afirmar que uma situação é biograficamente determinada significa que “[...] ela possui uma história; ela é a sedimentação de todas as experiências prévias do indivíduo, organizadas como uma posse que está facilmente disponível em seu estoque de conhecimento [...] inclui certas possibilidades de futuras atividades práticas ou teóricas que podem ser chamadas de ‘objetivo à disposição’. É esse objetivo à disposição que define quais dentre os vários elementos contidos em uma situação serão relevantes” (SCHUTZ, 2012 [1970], p. 85).↩︎
Os dados apresentados neste artigo foram produzidos entre os anos de 2008 e 2009, ao longo de seis meses de trabalho de campo (AARTINS, 2009).↩︎
De forma similar a outras entidades que atuam nessa área, a ATX-BA tem dentre suas principais atividades a realização de campanhas publicitárias, geralmente veiculadas em outdoors e jornais, e eventos de mobilização que visam informar e incentivar a população sobre a importância da doação de órgãos e tecidos.↩︎
Os nomes próprios dos interlocutores citados ao longo do artigo são fictícios, em razão do acordo inicial para a pesquisa e tendo em vista que a identificação não interfere na argumentação apresentada.↩︎
Os medicamentos imunossupressores estão incluídos na lista do Programa de Medicamentos Excepcionais, gerenciado pela Secretaria de Assistência à Saúde/Ministério da Saúde, que financia 80% do valor do remédio (o restante é pago pelo governo estadual). Já a aquisição e distribuição são responsabilidades das secretarias de saúde estaduais, não sendo possível obtê-los em farmácias.↩︎
O medicamento em questão era o imunossupressor micofenolato de mofetil de 500mg, distribuído aos pacientes pelas farmácias dos hospitais Ana Nery e Manoel Vitorino.↩︎
Para Renée Fox e Judith Swazey, a “tirania do dom” decorre da percepção de que a doação de algo tão precioso nunca poderá ser plenamente reciprocado, logo, fonte de grande ansiedade para os receptores incapazes de retribuir o “dom da vida” (FOX; SWAZEY, 1992, p. 39-42).↩︎
De acordo com Jacques Derrida, a gênese da responsabilidade “confunde-se com uma genealogia do sujeito que diz ‘eu’, a relação do sujeito consigo mesmo como instância de liberdade, singularidade e responsabilidade, a relação do eu como ser diante do outro: o outro em sua infinita alteridade, aquele que olha sem ser visto, mas também aquele cuja infinita bondade entrega-se a uma experiência que equivale a um dom de morte” (DERRIDA, 2008, p. 5, tradução nossa) (“It will overlap with a genealogy of the subject who says "myself", the subject´s relation to itself as an instance of liberty, singularity, and responsability, the relation to the self as being before the other: the other in its infinite alterity, one who regards without being seen but also whose infinite goodness gives in an experience that amounts to a gift of death”).↩︎
Projeto no sentido conferido por Alfred Schutz: “Toda projeção consiste na antecipação de uma conduta futura por meio de fantasia, porém não é o processo contínuo de ação, mas o ato fantasiado como tendo sido realizado, que é o ponto de partida de toda a projeção. Eu tenho que visualizar o estado de coisas a ser trazido pela minha ação futura antes que eu possa esboçar as etapas únicas de tal atuação futura, das quais resultará esse estado de coisas” (SCHUTZ, 1962, p. 20, tradução nossa) (“All projecting consists in anticipation of future conduct by way of phantasying, yet it is not the ongoing process of action but the phantasied act as having been accomplished which is the starting point of all projecting. I have to visualize the state of affairs to be brought about by my future action before I can draft the single steps of such future acting from which this state of affairs will result”).↩︎
A expressão, utilizada por Marilyn Strathern, se refere à produção de similaridades entre diferentes domínios através do recurso à analogia, com o objetivo de estabelecer uma compreensão (STRATHERN, 2005, p. 67).↩︎
Resumo:
O presente artigo debruça-se sobre o tema do transplante de órgãos e, mais especificamente, sobre a vida de receptores após o transplante. O objetivo é compreender modificações nos modos de subjetivação e na sociabilidade, considerando que, embora a incorporação de elementos prático-cognitivos advindos da biomedicina seja um elemento-chave da análise, sua apreensão deve ser realizada a partir de situações biograficamente determinadas. Para tanto, a partir de dados etnográficos produzidos em pesquisa de campo, o artigo apresenta e analisa as trajetórias de dois transplantados, destacando transformações no estilo de vida, visão de mundo e relações sociais associadas ao transplante de órgãos. Ao final, o artigo propõe uma avaliação crítica do conceito de biossociabilidade.
Palavras-chave:
Transplante de órgãos; sociabilidade; subjetividade.
Abstract:
This article focuses on the topic of organ transplantation and, more specifically, on the life of recipients after transplantation. The objective is to understand changes in the modes of subjectivity and sociability, considering that, although the incorporation of practical-cognitive elements arising from biomedicine is a key element of the analysis, its apprehension must be carried out from biographically determined situations. Therefore, based on ethnographic data produced in field research, the article presents and analyzes the trajectories of two transplant recipients, highlighting changes in lifestyle, worldview and social relations associated with organ transplantation. At the end, the article proposes a critical evaluation of the concept of biossociability.
Keywords:
Organ transplant; sociability, subjectivity.
Recebido para publicação em 11/02/2020
Aceito em 19/09/2020