Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 2, 2019.
Da filosofia do espírito como filosofia da liberdade enquanto abertura ao debate religioso na América Latina caribenha
Edivaldo José Bortoleto
Universidade Comunitária da Região de Chapecó, Brasil
ejbortol@unochapeco.edu.br
Para Rúbens Muríllio Trevizan, filósofo do espírito e do sentido,
leitor de Bergson e de Farias Brito.
Será a liberdade o “ponto de união”, o “ponto de encontro” para um diálogo entre a filosofia latino-americana e a filosofia brasileira? A cultura brasileira não produziu um pensamento latino-americano com preocupações com o todo do continente latino-americano caribenho. Por sua vez, a cultura hispânica, constitutiva nos e dos diversos países latino-americanos, com exceção do Brasil, também não formulou um pensamento onde a cultura brasileira estivesse implicada. Mas, não se pode esquecer que o continente latino-americano caribenho também é constituído pelas culturas inglesa, francesa, holandesa, além das culturas autóctones e das culturas africanas. Então, este continente é um cadinho onde o “infinito” de outras tantas culturas se faz presente de maneira viva, pulsante, em estado permanente de fusão, profusão e efusão. Portanto, o que se segue é um pequeno aspecto deste quase outro universo que é o mundo latino-americano caribenho.
Assim, uma pergunta se faz necessária: onde buscar o ponto, enquanto via de acesso a uma primeira aproximação dialógica entre estes dois mundos – luso e hispânico dentre outros – constitutivos deste continente, deste outro mundo chamado América Latina Caribenha?
Ora, este mundo chamado América Latina Caribenha respira em dois grandes pulmões: a América Hispânica e a América Lusa. Será a liberdade, portanto, o oxigênio impulsionador deste respiro?
Se se olha, então, para a História, percebe-se a liberdade como o elemento, o leitmotiv da dinâmica histórica, social, política, religiosa deste continente. Assim, como esta questão é abordada no âmbito do pensamento filosófico, portanto? Na literatura, na música, nas artes de maneira geral, bem como na arquitetura, escultura, nos movimentos de independência, de guerra, de guerrilhas, na religião, enfim, tal tema é presente. E na filosofia? E no pensamento filosófico desenvolvido desde a realidade da colônia, passando pelas lutas de independência, portanto, do império e, no contexto da república, como tal questão se apresentou e vem se apresentando? Aqui vale reconhecer que são vinte países que constituem o continente latino-americano, além dos outros tantos que se localizam no Mar do Caribe. Assim, no interior desta enorme região há outras tantas regiões com suas respectivas histórias e processos de libertação no contexto maior da América Latina Caribenha. Portanto, uma obra que abarque todo este universo no sentido de dizer as funções elevadas de cada respectiva cultura em suas múltiplas inter-relações, como a religião, a arte, a filosofia, a ciência, a tecnologia está por ser feita.1
Então, aqui uma primeira suspeita se impõe: talvez, na América Lusa, no Brasil, mais precisamente no pensamento de Raimundo de Farias Brito, o tema se apresente. Já do lado da América Hispânica, com respiro hispânico na Argentina, de maneira especial, no pensamento de Francisco Romero talvez o tema se mostre também. Apesar das diferenças, ambos formulam uma filosofia do espírito enquanto uma filosofia da liberdade.
Ambos têm em comum o chão, a atmosfera do positivismo, bem como a crítica a ele, enquanto movimento filosófico dominante e hegemônico na cultura latino-americana caribenha. Aliás, o positivismo se impõe e se espraia tanto no contexto latino-americano caribenho quanto no contexto da América Anglo-Saxônica. Mas, ambos também têm em comum a influência do pensamento alemão como elemento de contraponto ao positivismo dominante. O pensamento britiano antecipa as teses espiritualistas, fenomenológicas e existencialistas que floresceram e se desenvolveram em solo europeu. Desde Spinosa, Kant, Schopenhauer, Hartmann, Lange, Haeckel, Noiré, Tobias Barreto, Spencer, Farias Brito está chegando às mesmas formulações de Husserl, Heidegger, Scheler, Hartmann. Já o pensamento de Francisco Romero está todo imbuído do movimento fenomenológico, ontológico e existencialista de Husserl, Scheler, Hartmann, Dilthey e de toda a tradição alemã.
Ambos, portanto, Farias Brito (1862 – 1917) um pouco mais aquém e Francisco Romero (1891 – 1962) um pouco mais além, estão na virada do XIX ao XX. A formulação de ambos toca os mesmos temas: o da consciência, o da liberdade, o da existência. Portanto, quais relações podem ser estabelecidas entre estes dois pensadores que não se conheceram, que estão em um mesmo ambiente geográfico, geograficamente falando, sob o domínio hegemônico do positivismo, mas influenciados por uma tradição alemã, entre ambos, a partir da elaboração de uma filosofia do espírito enquanto filosofia da liberdade que ambos formulam? Como ambos recepcionam a tradição européia e traduzem criativamente esta tradição de pensamento? E por outro, quais as implicações da formulação do espírito enquanto filosofia da liberdade ao campo dos estudos religiosos e educacionais – tanto à filosofia da religião quanto à ciência da religião bem como à filosofia da educação e, principalmente, no contexto da América Latina Caribenha?
Por outro lado, continuando com perguntas que se fazem necessárias, pode-se entender esta formulação e elaboração de uma filosofia do espírito enquanto uma filosofia da liberdade como uma preparação para o movimento da filosofia da libertação em sua amplitude (Dussel, Scannone, Roig, Cerutti Guldberg e outros tantos), bem como para o movimento da teologia da libertação (Gutierrez, Assmann, Segundo, Boff, Beto e outros), e para o movimento da pedagogia da libertação (Freire, Fiori, Gadotti, Osório Marques e outros)? Portanto, pode-se reconhecer que na base da filosofia da libertação, da teologia da libertação, da pedagogia da libertação se encontra já uma filosofia da liberdade sistematizada pelos pensamentos de Raimundo de Farias Brito e Francisco Romero, principalmente?
O conjunto destas questões não será respondido nesta reflexão, que quer ser muito mais um ensaio, gênero este constitutivo principalmente da cultura latino-americana e caribenha, mas quer tocar minimamente neste conjunto de questões. Isto por quê? Justamente porque são muitos os elementos que estão proporcionando na América Latina Caribenha o nascimento dos movimentos libertários, principalmente a partir da década de sessenta do século passado. Entre outros, pode-se citar o movimento de dimensão da história do pensamento tanto filosófico quanto teológico que vem desde o pensamento de Frei Bartolomé de Las Casas (1474 – 1566), o de dimensão da história eclesiástica, quando da realização do Concílio Vaticano II e sua incidência no episcopado, sacerdotes, religiosos e leigos no continente e, principalmente, o movimento do quadro da realidade de pobreza e de miserabilidade das gentes. Este é o mais fundamental, porque como Yahweh disse a Caim: “Que fizeste! Ouço o sangue de teu irmão, do solo, clamar para mim!”2 – que será lido na perspectiva da teoria da dependência, portanto, das ciências sociais latino-americanas, num tempo e num espaço onde mais que países emergentes, falou-se em países dependentes do terceiro mundo, além do continente asiático e do africano.
Ora, no contexto brasileiro, no âmbito da historiografia filosófica e da filosofia brasileira, o pensamento de Raimundo de Farias Brito fez-se sentir na renovação e no desenvolvimento daquilo que se poderia chamar de neo-escolástica em nossa cultura, principalmente nas figuras de Jackson de Figueiredo (1891 – 1928), de Alceu Amoroso Lima (1893 – 1983) e do Pe. Leonel Franca, S.J. O Centro Dom Vital, a Revista A Ordem e a Fundação da Pontifícia Católica do Rio de Janeiro são as expressões do desenvolvimento desta neo-escolástica enquanto presença significativa da filosofia Católica que terá expressão em outros Estados brasileiros. Isto, no entanto, é muito curioso, pois Farias Brito em seu pensamento vai se distanciando em sua formulação e crítica filosófica da escolástica anterior ao seu tempo a que chamará de “fórmulas ocas da escolástica” e do Catolicismo de seu tempo. Se Jackson de Figueiredo será discípulo e amigo de Farias Brito num primeiro momento, em outro, se distanciará dele.
Leonel Franca em sua obra Noções de História da filosofia reconhecerá ser Farias Brito “o mais original dos nossos pensadores”3. Inicialmente nutrido de uma simpatia por Farias Brito, diz: “Não escondemos a simpatia com que iniciamos a análise do pensamento de Farias Brito. É tempo de ver quanto nos permite a razão que lha conservemos”. (1987, p. 322). Ao final, porém, a análise de Franca sobre o pensamento britiano é: “Lamentamos, porém, que não se tenha de todo emancipado da influência de Spinoza, de Schopenhauer e de Buda através de Schopenhauer. A estes pensadores deve Farias Brito o ter-se emaranhado nas contradições do panteísmo e do pessimismo que lhe deslustram o sistema”. (1987, p. 323). Ora, Leonel Franca está desde o movimento da Terceira escolástica estabelecendo, talvez, a primeira crítica mais elaborada, bem como a mais sistematizada do pensamento de Farias Brito.
No entanto, Farias Brito em seu pensamento está distante do pensamento católico, que irá chamar de teologia ortodoxa. Será como atesta em Finalidade do Mundo: Estudos de filosofia e Teleologia Naturalista – 1º. Volume, pela obra do Pe. Graty La Connaissence de Dieu, principalmente, reconhecida por ele como obra preciosa e chamada por Farias Brito “um trabalho de velha teologia, no sentido ortodoxo da Igreja”, que o mesmo terá acesso ao pensamento católico, principalmente ao de Santo Agostinho, Santo Anselmo e Santo Tomás de Aquino. Nesse sentido, vale reconhecer que Farias Brito estava em sintonia com os temas da escolástica de seu tempo, bem como de posse da escolástica vinda da tradição portuguesa, momento luso do pensamento brasileiro. (BRITO, 1957).
Ora, na cultura brasileira, não houve o diálogo, ao que parece pelos estudos feitos até então, da filosofia da libertação, da teologia da libertação e da pedagogia da libertação – e muito menos da filosofia da educação – com esta formulação britiana denominada de filosofia do espírito. O maior reconhecimento e, talvez, o primeiro diálogo estabelecido dar-se-á no campo das Ciências Sociais brasileira, principalmente no pensamento de Gilberto Freyre. Em Ordem e Progresso assim diz a respeito de Farias Brito: “Quanto a filósofo, a época só produziu Farias Brito. Nada, porém, de desprezar-se o que há de pensamento vivo em ensaios como Joaquim Nabuco, Sylvio Romero, Eduardo Prado, José Veríssimo, Euclydes da Cunha, Gilberto Amado”. (2000, p. 79).4
Agora, quanto ao pensamento de Francisco Romero, que também formulará uma filosofia do espírito, o diálogo, principalmente com a geração seguinte de pensadores, que formulará o que se vai chamar de filosofia latino-americana, será decisivo. Romero vem de uma geração de filósofos no contexto argentino, que coloca o problema da liberdade, como Alejandro Korn (1860 – 1936), Alejandro Deustúa (1849 – 1945) e Antonio Caso (1883 – 1946). O filósofo argentino Arturo Andrés Roig, comentado por Horácio Cerutti Guldberg em filosofia de la liberación latino-americana, diz que:
“Todos nuestros ‘fundadores’ hablan de ‘libertad’ y su filosofía es caracaterizada, por Roig, como ‘teoría da libertad’. Korn, Deustúa y Caso hicieron de la libertad la clave de su pensamiento, pero su ‘mensage há resultado ambiguo’. Disolver esta ambigüedad es tarea principal de la filosofia latinoamericana”. (1983, p. 60).5
O tema da filosofia latino-americana é, central e essencialmente, uma questão colocada por Juan Bautista Alberdi (1810 – 1884), filósofo argentino desde o horizonte teórico do positivismo, portanto, é uma questão muito mais da América Hispânica do que da América Lusa. Este tema não foi “planteado” – para usar um signo verbal do mundo hispânico – pela América Lusa. Toda a geração posterior a Alberdi, agora não mais no horizonte do positivismo, mas no horizonte do Kantismo e da Fenomenologia, além de fazer a crítica ao positivismo, rompe com todas as formas de dogmatismos, afirmando uma filosofia da consciência, da liberdade, da pessoa, dos valores.
Francisco Romero, por seu turno, pertenceu ao círculo de Alejandro Korn. “Pertencendo ao círculo de Korn, e interessado pela difusão da filosofia na América Hispânica, formou um grupo de discípulos com o fim de impulsionar a produção filosófica hispano-americana e fazer dela algo ao mesmo tempo original e firmemente vinculado à tradição européia”. (MORA, 2001, p. 2550). Sua proposição fundamental à filosofia é muito mais entendê-la como um problema que um sistema. Assim, o que hacer filosófico para Romero se faz a partir da realidade problemática desde a realidade física, passando pela realidade da pessoa, da cultura, à realidade do espírito.
Outro aspecto que ganhou importância no pensamento de Francisco Romero, bem como críticas, foi o fato de ter reconhecido que na América Hispânica, principalmente na Argentina, a filosofia chegou àquele lugar que será denominado por ele “la normalización de la filosofía” (Dicionário de Filosofía con Autores y temas latinoamericanos. 1986, p. 194). Esta questão é muito importante ao debate da filosofia na América Latina Caribenha, principalmente em se tratando da realidade da América Lusa, pois, aí, a filosofia ficou longe desta condição, ou seja, de sua normalização. Isto porque a situação e o papel da universidade na América Latina Caribenha foi algo decisivo e, portanto, decisivos também foram os caminhos do pensamento em ambas as Américas. Portanto, é aqui que se encontra o ponto de tensão e de inflexão deste ensaio, ao se pretender em forma dialógica e simpática a aproximação de Francisco Romero e de Raimundo de Farias Brito como maneira de superação da cisão entre a América Hispânica e a América Lusa, porque são Américas profundamente distintas. São, portanto, Américas constituídas por rios que são verdadeiras artérias culturais, sendo “rios profundos”, para me servir aqui neste ensaio de uma imagem cara ao romance Os Rios Profundos de José Maria Arguedas.6 Portanto, a perspectiva que vai em direção a um diálogo intercultural no interior deste vastíssimo universo chamado América constitui o transfundo deste ensaio.
Enquanto que na América Hispânica a universidade já existia desde 1538 em São Domingos, na América Lusa, ao contrário, ela iria aparecer tão somente na primeira metade do século XX. Ora, na América Hispânica a universidade e o pensamento escolástico (na Filosofia, na Teologia, no Direito e na Medicina) nascem juntos. Na América Lusa, as inúmeras tentativas, desde a colônia até a república, de se criar a universidade foram fracassadas. No contexto da república, devido ao preconceito positivista – pois a universidade é uma instituição da igreja, pelo menos em sua gênese no horizonte medieval e em seu desenvolvimento até certo ponto da história ocidental – a criação da universidade em terras brasílicas foi inibida. Portanto, enquanto na América Hispânica a universidade tem mais de 450 anos, na América lusa ela ainda não completou um século.7
Pensar a questão da “normalización de la filosofía” supõe entender o processo de “institucionalización de la filosofia” no continente latino-americano caribenho. María Cecilia Sánchez em seu artigo Institucionalización de la Filosofía estabelece uma demarcação histórica deste processo. O que vale reter deste trabalho são os passos para se entender e compreender como a filosofia vai se institucionalizando desde a igreja, desde o estado e desde a universidade e a imprensa. Ao longo do processo histórico da América Latina Caribenha a filosofia vai girando ao redor da igreja (tem-se aí fundamentalmente a filosofia escolástica), isto vem até o século XVIII. Entre os séculos XVIII e XIX, o giro da filosofia dá-se ao redor do Estado com filosofias como o sensualismo, o ecletismo e o positivismo. E, no contexto já do século XX, María Cecilia Sánchez assim prossegue:
Ya entrado el siglo XX, con solo variaciones de años, comienza a diseñarse en latinoamérica una nueva figura institucional de la filosofía, la que se conrresponde con la ganancia de una cierta “autonomia” para la realización del quehacer intelectual. Este fenômeno también ocurre en la esfera de otros saberes y discursos, lo cual indica que dicha transformación no es únicamente privativa de la filosofía. Al ampliarse y diversificar-se socialmente, los sistemas culturales han ido gestando – no sin contradicciones por cierto – una estructura conforme al modelo intelectual moderno. La producción y transmisión de los bienes culturales se especializará según una cresciente y compleja división del trabajo intelectual, debido a lo cual se volverán predominantes los grandes “aparatos hegemônicos”, en especial la universidade y la prensa. (1997-8, p. 37).
Ora, se no Brasil tínhamos a imprensa, a “Gazeta do Rio de Janeiro” desde 1808, já em relação à universidade não podemos dizer o mesmo. Aqui reside uma diferença fundamental entre as duas Américas, a hispânica e a lusa, e isto condicionará todo o processo de construção do pensamento filosófico, bem como teológico, científico, tecnológico, bem como todo o processo educacional. É bem verdade que no Brasil havia as Faculdades como a de Direito, por exemplo, instituídas em Olinda e em São Paulo respectivamente em 1827, bem como a de Medicina. Desta maneira, é possível compreender para além dos estereótipos que certa leitura da história da educação construiu sobre o papel das ordens religiosas como os franciscanos, os jesuítas, os beneditinos. Portanto, desde os conventos, dos colégios, dos seminários, dos claustros, devido à ausência da universidade, o pensamento brasileiro seguiu um percurso completamente distinto do da América Hispânica. Assim, nossos filósofos foram em sua maioria – exceto os que iam a Portugal ou a França – marcados por um autodidatismo em filosofia. Ora, Raimundo de Farias Brito, homem no dizer de Leonel Franca, que foi marcado “com verdadeiro amor, com incansável perseverança e admirável dedicação, sustentado apenas pelo estímulo de um ideal alevantado, se tenha consagrado, durante quase toda a vida, ao estudo da filosofia e ao desenvolvimento orgânico e sistemático de uma doutrina”, foi um autodidata em Filosofia. Assim, os filósofos da América lusa se não gravitaram em torno da filosofia normalizada na universidade, gravitaram em torno da imprensa, pois foram homens da imprensa, bem como do Direito, da Literatura, da Medicina. Quanto aos autores em questão, pode-se dizer que Francisco Romero vem de uma vivência filosófica normatizada, enquanto Raimundo de Farias Brito, pelo contrário, vem de uma vivência filosófica não normatizada na universidade. Esta diferença marcará também os destinos da educação, de sua história e de sua filosofia na América Latina Caribenha, portanto.
“Si Romero bautizó el arribo de la filosofía acadêmica con el apelativo de ‘normalidad’, Augusto Salazar Bondy, pese a confiar en esos procedimientos y en su búsqueda de rigor, hablará en forma global de ‘inautenticidad’ respecto del trabajo filosófico y cultural realizado en Hispanoamérica desde su fundácion”. (1997-8, p. 40). Na América Lusa, então, não houve, pelo menos até a primeira metade do século XX, a normalização da filosofia e, por outro, faz-se necessário, ainda, continuar olhando e perguntado pela sua autenticidade. Tem sido a filosofia autêntica na América Lusa? A Opera Ominia de Raimundo de Farias Brito lida desde dentro, no sentido de entrar pelo seu interior, no sentido de um détour como nos ensina Paul Ricoeur, irá nos revelando sobre sua obra – bem como a de Francisco Romero – quanto à questão de sua autenticidade ou não. Doravante, faz-se necessário atravessar o interior dos textos de Farias Brito e Romero e buscar ali elementos para ir se respondendo à pergunta com que se iniciou este ensaio: será a liberdade o “ponto de união” o “ponto de encontro” – o point d’union – para um diálogo entre a filosofia latino-americana e a filosofia brasileira? E depois, perguntar sobre quais as implicações da formulação do espírito enquanto filosofia da liberdade ao campo dos estudos religiosos e educacionais – tanto à filosofia da religião quanto à ciência da religião e à filosofia da educação, principalmente no contexto da América Latina Caribenha?
À maneira de Descartes, Farias Brito também tem um sonho que se apresenta no capítulo XIX, último capítulo da obra religião Naturalista, talvez um dos mais importantes e mais bonitos de Finalidade do Mundo – Estudos de filosofia e Teleologia Naturalista – 1º. Volume. Farias Brito assim diz já logo no início: “Eu entro aqui na parte mais grave e mais profunda de meu livro, naquela em que meu pensamento por tal modo está identificado com o que há de mais íntimo em meu ser, que às vezes, chego a pensar que a ideia que defendo é um produto de meu sangue”. (1957, p. 311). Em um contexto de crise nacional e de crise pessoal, conforme narra Farias Brito, ele se vê só na noite e em profundo silêncio; a cidade é calma e o céu, sem nuvens. É tomado de uma profunda intuição: “Brilhavam no céu inúmeras estrelas e eu, olhando em torno de mim e vendo para todos os lados estender-se o espaço infinito, senti-me repentinamente dominado pela ideia de que uma grande verdade enche o mundo”. (1957, p. 314).
No contexto desta sua experiência, na qual é tomado pela “ideia de que uma grande verdade enche o mundo”, Farias Brito tem um sonho que se dá em 1º de janeiro de 1892, em Fortaleza. Neste sonho narrado por ele, o objeto do conteúdo onírico é “a existência de Deus”. E em seu sonho há uma discussão que ele tinha com uma pessoa cuja voz vinha da escuridão e logo após um silêncio, uma música longínqua interrompe o silêncio universal e a voz que partia das trevas repercute em sua consciência dizendo-lhe: Deus é a luz. Um ano depois, ocorre em 16 de abril de 1893, um eclipse total que pôde ser observado do Ceará. Da observação do eclipse quando o disco lunar cobriu todo o sol e depois, quando uma das extremidades do sol, começou a desprender-se da luz, Farias Brito teve experiência análoga ao seu sonho de um ano anterior. Duas experiências com a luz, no sonho e no eclipse. “Foi exatamente assim que me envolveu a luz que vi em meu sonho. Isto levou-me a refletir profundamente, perseverantemente. Aquela luz que partia das trevas e esta que desce dos espaços celestes são uma só e mesma cousa. Como é que um sonho reflete tão fielmente a realidade? Tudo tem a sua razão de ser e a sua explicação natural, mesmo o sonho”. (1957, p. 321).
A narrativa do sonho e a experiência com o eclipse parecem ser de elevada magnitude e importância, por duas razões. A primeira é que sem a compreensão disto que narra Farias Brito, não se pode ter a real compreensão do conjunto de sua obra, pois aí se encontra o fundamento de sua filosofia do espírito. É um fundamento de ordem natural e não sobrenatural, pois, tanto o sonho quanto o eclipse são fatos naturais, mas são fatos naturais extraordinários. Como diz Farias Brito, “por certo não poderá contestar que é um fenômeno da vida e, portanto tão sério quanto é séria a própria vida. Ora, eu sonhei – eis um fato. Neste sonho foi-me com a maior lucidez indicada uma solução para o grande problema da religião e da teologia que foi sempre a preocupação constante de minha vida. É preciso, pois, tomar em consideração este fato. Foi o que eu levei a pensar muitos dias, depois do que tomei a resolução de estudar a fundo a verdadeira significação da luz”. (1957, p. 321-2).
A segunda razão é que sem a compreensão disto não se poderá também ter a compreensão do problema religioso e também teológico que está colocado em questão desde a formulação da filosofia do espírito de Farias Brito neste ensaio. Ora, toda a obra de Farias Brito, no que é possível compreender, é lida desde uma perspectiva estritamente filosófica e, como o próprio Farias Brito está a dizer, é que “o grande problema da religião e da teologia que foi sempre a preocupação constante de minha vida”, não vem sendo considerado desde uma perspectiva religiosa e nem teológica. Isto parece ser fundamental e decisivo no pensamento britiano, pois, desde aí, pode-se compreender que em Farias Brito está a primeira sistematização no horizonte da filosofia Brasileira de uma filosofia da religião por um lado e, por outro, ao deslocar-se em seu pensamento da tradição teológica que põe o primado do sobrenatural, portanto, do saber revelado ao pensamento natural – daí o tema da obra Finalidade do Mundo ser um estudo de filosofia e teleologia naturalista – Farias Brito está operando uma Religious Turn no contexto do pensamento filosófico brasileiro. Este Giro Religioso ou esta Reviravolta Religiosa no pensamento britiano no contexto maior do pensamento filosófico brasileiro é decisivo ao que parece, pois aí reside a possibilidade de uma leitura de seu pensamento desde uma perspectiva da filosofia da religião e desde a perspectiva da ciência da religião. Assim, a hipótese central desta reflexão, é que Farias Brito teria sido – sem ter tido esta intenção – o fundador da primeira filosofia da religião e da primeira ciência da religião no contexto do pensamento filosófico e no contexto da cultura brasileira da América lusa na virada do século XIX ao século XX, quando da saída do Brasil da Monarquia à república.8
Para Farias Brito o fim da filosofia é a moral e, por sua vez, não há moral sem religião. Aqui, então, faz-se necessário adentrar na concepção que Farias Brito tem da filosofia e de suas relações com a moral, com a religião, com a poesia, com a ciência. O que se segue é central para se ter uma compreensão justa da concepção de filosofia. Diz o filósofo cearense:
No processo da mentalidade vem em primeiro lugar a filosofia, que é a operação fundamental do pensamento ou, em outros termos e conforme ficou já demonstrado, o próprio espírito humano em sua atividade permanente. A filosofia exerce sua ação de dois modos: teórica e praticamente. Assim, produz duas cousas: teoricamente, a ciência; praticamente, a moral. Mas a filosofia nasce do pasmo produzido pelo espetáculo grandioso da natureza. Ora, é também da mesma fonte que nascem a poesia e a religião porquanto, admirando o mundo, o homem emociona-se e daí a poesia; e esta emoção crescendo transforma-se em culto, daí a religião. Disto resulta que a filosofia, para ser verdadeiramente eficaz, precisa de ser ao mesmo tempo extremamente poética e profundamente religiosa". (1957, p. 146-7).
Ora, se a filosofia exerce sua ação de dois modos, qual seja, de forma teórica e de forma prática, então, a ciência está para a forma teórica enquanto a moral está para a forma prática. Ao que tange à ciência, reconhece que ela tem a ver com a verdade e, frente à crise atual tanto do seu tempo – o século XIX – e do cristianismo, principalmente em sua forma católica, a única forma de se olhar para tal problema, ou seja, para o problema da religião e da teologia é o de seguir o conselho de Lange ao ir-se em direção à ciência. Assim, pode-se se ler:
[...] Para isto só podemos ter e só devemos ter um ideal – ainda a verdade. De modo que no estado atual das idéias o verdadeiro ponto de vista a adotar-se quanto ao problema da religião e da teologia, é exatamente o que é aconselhado por Lange: Espalhe-se a ciência, proclame-se a verdade em todas as ruas e em todas as línguas, depois venha quem puder. (1957, p. 180).
À crise do tempo, principalmente da religião e, do Cristianismo em sua forma Católica, Farias Brito reconhecerá a causa em dois momentos: o movimento Enciclopedista e a Revolução Francesa, pois aquele desembocou nesta e, para Farias Brito, “Paris constituíra-se o centro do mundo. Todas as aspirações de ordem moral e política se concentraram ali pelo desenvolvimento excepcional do pensamento francês”. (1957, p. 137). Uma outra causa da crise, também vinda da tradição francesa, encontra-se no contexto do ambiente positivista – e de outras formas de materialismos – tanto na Europa quanto no Brasil que aponta a solução da eliminação total de todas as religiões, principalmente pela eliminação exclusiva das religiões pela ciência. Referente a isto, Farias Brito, agora, no lado da forma prática onde está a religião e a moral, dirá que “as religiões, como já disse, passam; as religiões se transformam e morrem; mas a religião é em si mesma imortal”. (1957, p. 143). Para ele a religião é tão eterna quanto a filosofia e quanto a poesia, pois, são pasmadas em uma mesma fonte. Assim,
[...] Pode-se, pois, dizer que a religião é eterna, como é eterna a filosofia. Ou por outra e mais precisamente, a religião é a própria filosofia, porquanto a religião não é senão o reconhecimento da necessidade que tem o homem de elevar-se a uma concepção do universo, de saber o que é, de onde vem e para onde vai; de formular uma explicação da finalidade das coisas. Ora, todos estes problemas só podem ser agitados na filosofia, não na ciência; e é exatamente quando os agita e agitando-os acredita poder resolvê-los e resolvendo-os deduz as leis da conduta, que a filosofia se transforma em religião, razão pela qual afirmo que a religião é a própria filosofia e em verdade a religião não é senão a filosofia realizando a moral. [...]". (1957, p. 143).
Do lado da forma teórica para onde está a ciência e do lado da forma prática para onde estão a religião e a moral, pode-se, então, visualizar o que está para a ciência da religião e o que está para a filosofia da religião respectivamente, enquanto dois momentos que se apresentam indissolúveis no pensamento britiano, qual seja, o momento onde a ciência deve olhar para os problemas da religião e da teologia e, o momento onde, a filosofia deve olhar para os problemas da religião e da teologia também. Ou, dizendo, com Farias Brito: “Em uma palavra: o fim da ciência é a verdade, o fim da poesia é o belo, o fim da filosofia é o bem. E é de uma fusão completa destas três grandes manifestações do espírito, ou melhor, destes três aspectos distintos, mas inseparáveis de uma só e mesma atividade, que há de nascer o princípio da regeneração do futuro”. (1957, p. 128). E a regeneração do futuro está na criação de uma nova religião: “há de ser criada uma religião nova, sem o que não poderá ser mantida a civilização contemporânea, que terá fatalmente de se dissolver e morrer”. (1957, p. 133). Esta nova religião ele a chamará de religião naturalista, onde o “culto do verdadeiro Deus que é, na natureza, a luz, na consciência, a verdade”. (1957, p. 346).
A filosofia de Raimundo de Farias Brito – sua filosofia do espírito – é fundamentalmente uma filosofia da religião e, nela, a abertura ao campo da ciência da religião já se apresenta e, corrobora a hipótese já sinalizada de que, em Farias Brito, está a primeira ciência da religião, ou sua proto história.9 Em sua filosofia, que é já uma filosofia da religião encontra-se, então, uma lógica, uma jurídica, uma ética, uma estética, uma teológica enquanto uma teodiceia, uma psicológica, uma pedagógica, uma história da filosofia, uma filosofia da história.10 No século XIX, no coração da crise religiosa tanto européia quanto brasileira, principalmente no contexto da morte do cristianismo, Farias Brito está em sintonia com a História da filosofia Moderna e, principalmente, com o debate de seu tempo que se encontra no Experimentalismo na Inglaterra, o Monismo na Alemanha e o positivismo na França. Toda sua obra filosófica emerge, por outro, de um contexto brasileiro na América Lusa onde não há a normalização da filosofia porque a universidade faz-se ausente ainda em sua história no Brasil. À maneira de Kant, no fim de sua Crítica da Razão Prática, Farias Brito contempla o céu estrelado e se reconhece “dominado pela ideia de que uma grande verdade enche o mundo”.
“La normalidad señala un nuevo momento, la hora propícia para la expresión de nuestras virtualidades intelectuales, que no son pocas incluso en el campo especial de la filosofía. Francisco Romero es un optimista de nuestra inclinación a la filosofía. Para el ‘la vocación filosófica de Iberoamérica es notoria, aunque solo ahora empieza a tomar conciencia de sí’.” (SALAZAR BONDY, 1988, p. 43). Augusto Salazar Bondy (1925 – 1974) reconhece a dimensão fundamental daquilo que foi formulado por Francisco Romero quanto à questão da normalização da filosofia e, desde o ponto de partida da Iberoamérica, na América Hispânica, a filosofia começa a tomar consciência de si enquanto filosofia latino-americana. Então, desde Alberdi, Korn, Romero e tantos outros, a filosofia latino-americana com os pensadores desta primeira geração, começa a ser formulada e construída e, Francisco Romero será, ao lado de Alejandro Korn, um grande impulsionador da produção filosófica hispano-americana, no sentido, de como afirmou o filósofo peruano Salazar Bondy, levar a filosofia latino-americana a tomar consciência de si.
Para este ensaio, no que tange ao pensamento romeriano, três pontos devem ser enfrentados que se desbordam do conjunto de seu pensamento: a questão da filosofia como problema e como uma longa tarefa, a questão do espírito e a questão da religião, pois assim, o quadro teórico e reflexivo deste ensaio vai se completando quanto à compreensão da filosofia do espírito enquanto filosofia da liberdade tanto em Raimundo de Farias Brito quanto em Francisco Romero.
Em sua obra Filosofía Contemporánea: Estúdios y Notas (1953), Francisco Romero ao tratar no capítulo Un Filósofo de la Problematicidad, se acerca da importância do pensamento de Hartmann. Romero diz que “la mayor virtud de Hartmann es para mi una espécie de buen sentido de alto vuelo, un tino admirable para hallar la orientación justa y manternerse en ella. No es un descubridor de rumbos nuevos. [...]”. (1953, p. 10). A grande contribuição de Hartmann é, portanto, reconhecer que a época dos sistemas em filosofia passou: “La época de los sistemas filosóficos proclama resueltamente, ha pasado ya”. (1953, p. 12). Assim, em Hartmann encontra-se uma fecunda distinção entre a filosofia que está a exigir sistematicidade e a filosofia enquanto um sistema: “Hartmann – prossegue Romero – distingue cuidadosamente entre pensamiento sistemático y sistema. El pensamiento filosófico ha de ser siempre sistemático, pero ello no supone la exigencia de construir grandes sistemas”. (1953, p. 13). Isto posto, não significa, como já dito, que a filosofia está a abandonar qualquer tentativa de sistematicidade bem como a abandonar qualquer tentativa de construir uma visão de conjunto da realidade. Não. O que está em questão é uma exigência à sistematicidade da filosofia – isto se apresenta também para outros saberes tanto da ciência, como a teologia, quanto da religião – como é uma exigência para a filosofia a construção de uma visão de conjunto das coisas. Assim, diz Romero sobre Hartmann:
El pensamiento sistemático sigue en la actualidad outro camino. No se preocupa ante el todo del sistema, sino de los problemas. Sin embargo, aspira también a elevarse a visiones de conjunto; pero no acepta desde luego un plano sistemático como guía y orientación del trabajo hacia esa concepción. Sabe que es posible llegar a una concepción sistemática y totalizadora, pero que no se llega a ella sin más ni más; que el examen inmediato de las cuestiones no basta para desde ellas remontarse a concepciones de conjunto por el mero juego de la actividad creadora del espíritu; que únicamente nos podrá aproximar a este fin un esfuerzo largo e trabajoso de investigación, de profundización desconfiada, de tanteos, de rectificaciones [...]". (1953, p. 13).
Francisco Romero reconhece no pensamento hartmanniano duas fontes fundamentais, quais sejam, Hegel e Dilthey. Reconhece também que não é possível filosofar sobre o espírito sem as fortes presenças de Hegel e Dilthey. “[...] No es posible filosofar hoy sobre el espíritu sin ponerse bajo la advocación de Hegel y de Dilthey, y el autor, en efecto, estampa los dos nombres en el frontis de su obra [...]”. (1953, p. 12). Assim, no capítulo Ideas sobre el espíritu de Filosofía Contemporánea: Estudios y Notas, Romero traça um percurso do desenvolvimento da filosofia do espírito desde Sócrates, passando por Kant, Schopenhauer, Hegel, Bergson, Dilthey até Hartmann e Scheler no sentido de retirar e recolher a compreensão dos vários sentidos do espírito, pois, como afirma Romero, “es difícil definir el espíritu. Ante todo porque los conceptos supremos, como los de ser, espíritu o naturaleza, nunca están forjados del todo, sino que su contenido constituye tema de permanente, inacabable indagación [...]”. (1953, p. 141).
Mas, em que pese ser difícil definir o espírito, como diz Francisco Romero, é possível levantar, à luz do percurso histórico feito desde Sócrates até Max Scheler, traços essenciais que podem dar uma ideia mais justa do que o espírito é. Assim, diz Romero: “Max Scheler nos há ofrecido una interpretación del espíritu personal que puede servir de modelo porque recoge los resultados más considerables de la investigación reciente”. (1953, p. 145). Desta maneira, considerando os dados das investigações schelerianas, Francisco Romero dirá que:
El espíritu procura aprehender esencias, más allá de la diversidad empírica; afirma valores, más allá de las tendências naturales, de los impulsos egoístas. Su función específica consiste en sobreponerse u oponerse a la empriria, a lo fenoménico, a la espontaneidad animal. Como pura atualidad que es, como acto y nada más, existe solo en cuanto golpea contra él algo a lo que se opone, en cuanto vence una resistência. Si la resistencia desaparece, él mismo se anula con ella. Es únicamente actividad, proyecto, intención. Es una tensión, no un logro; una aspiración, no un fin. De aquí que se proponga siempre tareas infinitas. Cuando se caracteriza el espíritu, se atiende de ordinário a la objetividad, pero se descuida outra esencial nota suya: la exigencia de infinitud. (1953, p. 147).
A compreensão da filosofia romeriana com suas características e notas constituídas muito mais pela sistematicidade que pelo sistema, pela problematicidade e pelo alçar a uma visão de totalidade das coisas constitutivas da realidade, bem como, sua visão do espírito como algo que é “unicamente atividade, projeto, intencionalidade” e que comporta o traço essencial da exigência do infinito, é de fundamental importância para se alçar agora, à compreensão que Romero tem da religião.
A religião para Francisco Romero só pode ser compreendida no mundo da cultura. Assim, o mundo da cultura, além da religião, também é constituído por outras tantas manifestações, como o saber, a linguagem, o costume, o mito, o direito, as instituições, as técnicas, as artes e, o homem aí, diferentemente do animal que vive submisso ao seu meio, é um centro autônomo, diferente do animal que tem um mundo só, o homem tem dois mundos: o do que é e o do que deve ser. Se o animal vive ingenuamente na natureza, o homem, na cultura, transcende-se. No mundo que é e no mundo que dever ser o homem produz o mundo da cultura, sem o qual nem a humanidade nem a vida humana são concebíveis. A filosofia, então, para Romero, “é a cultura enquanto ideia ou problema; o espírito humano, que em grande parte criou a cultura espontânea e até inconscientemente, voltando-se sobre ela para compreendê-la e julgá-la, para descobrir suas fontes, esclarecer seus fins e apreciar seu sentido”. (1964, p. 511-2).
Luís Washington Vita (1921 – 1968) – filósofo brasileiro, em sua obra Momentos Decisivos do Pensamento Filosófico (1964) contempla um capítulo sobre Francisco Romero com traduções de excertos da obra romeriana. Assim, no excerto traduzido ao português da obra de Francisco Romero Relaciones de la Filosofía, Luís Washington Vita apresenta como Romero estabelece a relação entre experiência filosófica e experiência religiosa.11
O pensamento romeriano estabelece entre as experiências filosóficas e as experiências religiosas, semelhanças, diversidades e oposições, que se refletem também entre filosofia e religião. Quanto às semelhanças pode-se dizer que ambas visam à totalidade do real, ambas tentam alçar uma visão de conjunto da realidade das coisas, pois na totalidade do real, há uma ideia de homem, de seu lugar no mundo e de sua relação com as coisas, como do sentido de vida, enfim, há uma ética. Também, entre filosofia e religião, há um paralelismo ao que tange à aspiração de um caminho de salvação, ou seja, “uma recondução do homem a certo estado ou situação em que se cumpram e satisfaçam as demandas supremas do espírito”. (1964, p. 515). Romero ilustra e recorda sobre esta dimensão comum de caminho de salvação presente, por exemplo, no platonismo, no estoicismo, no epicurismo, na filosofia neo-platôncia, no sistema de Espinosa, bem como nas filosofias com acentuado papel social do contemporâneo que, negando ou afirmando o divino, não deixam de apontar sobre os fins e destinos últimos como o positivismo, e por que não dizer, o marxismo.
Quanto à diversidade entre filosofia e religião, o pensamento romeriano também precisa elementos fundamentais. Assim, o “traço fundamental na atitude religiosa é a reverência e na filosofia, o conhecimento”. (1964, p. 515). Outro traço fundamental está na atitude de obediência fundamental do crente, que se dá na experiência religiosa. Já na experiência filosófica a atitude é de cognoscência. Romero, sobre tais diferenças, diz que
A experiência religiosa do santo, do divino, leva consigo o sentimento de dependência em relação a uma instância à qual se lhe reconhece incomparável dignidade, dependência que se traduz em voluntário acatamento, em total submissão. Daqui os comportamentos próprios do crente, a adoração, a prece, o sentimento de culpa, etc. O filósofo experimenta também, muitas vezes, a presunção ou a certeza do divino, mas se comporta como cognoscente e não como crente [...]. (1964, p. 515).
Por fim, o pensamento romeriano estabelece também certa oposição entre a experiência religiosa e a experiência filosófica. Desta maneira, na postura religiosa há reverência diante da totalidade do real que é o mistério, enquanto que, na postura filosófica se mantém em pé diante da totalidade do real que é o ser. "Poder-se-ia dizer, portanto – segue Francisco Romero –
que há até certa oposição entre a postura religiosa, que é de reverência e entrega, de submissão, de acatamento do mistério, e a filosófica, que é de reconhecimento crítico de toda a realidade, de esclarecimento denodado de todo mistério. O crente, enquanto tal, atira-se nos braços da divindade, o filósofo se mantém erguido diante de seu objeto, se planta diante da realidade – mesmo nos casos em que admita sua potência divina – com certa estranheza metódica, num arisco frente a frente que é para ele um indispensável recurso profissional. A diversidade entre uma e outra experiência não se anula, ainda que se dêem ambas numa mesma pessoa; são duas posições distintas, dois focos ou projeções do ânimo, cada uma se sustentando em seus próprios fundamentos espirituais." (1964, p. 516).
Com a exposição feita de Raimundo de Farias Brito e de Francisco Romero buscou-se a partir da filosofia do espírito enquanto filosofia da liberdade estabelecer uma primeira aproximação de duas formulações nos respectivos contextos da América Lusa e da América Hispânica. Num primeiro momento se aproximou em perspectiva histórica as possíveis relações entre os campos da filosofia da liberdade e da filosofia da libertação e manifestações na teologia da libertação e na pedagogia da libertação. E, em outro momento, em uma abordagem mais teorética, um atravessar, em forma de um détour, o pensamento britiano e o pensamento romeriano desde suas interioridades.
No que tange ao pensamento britiano, pode-se dizer que ele se encontra na América Lusa no contexto do movimento neokantiano, onde a palavra de ordem é: voltar a Kant. Farias Brito tem esta consciência em seu tempo e sua obra traduz o movimento neokantiano no Brasil, bem com toda a Escola do Recife, com Tobias Barreto, Sílvio Romero, Clóvis Bevilaqua, Graça Aranha. Sobre isto, Farias Brito diz que, “hoje, a Enciclopédia está quase de todo esquecida, enquanto Kant renasce, servindo de ponto de partida para todas as direções do pensamento moderno. Foi pelo grito ‘voltar para Kant é progredir’ que começou a nova filosofia alemã; e tal é o interesse com que chegou a ser estudado o kantismo que mesmo quem tem em vista tomar uma direção divergente, é forçado de alguma sorte, no dizer de Lange, a justar suas contas com Kant, motivando seriamente a divergência [...]”. (1957, p. 160).
Immanuel Kant (1724-1804) é um filósofo do século XVIII. Se Hegel (1770-1831) é o último filósofo moderno, pois nele a modernidade ocidental encontra todo o seu acabamento do ponto de vista do pensamento filosófico, Kant é o filósofo que por seu turno, irá fazer a “reviravolta crítica” no campo da filosofia que incidirá praticamente em todos os campos de saberes. Na segunda metade do século XIX com Hermann Von Helmholtz (1821-1894) no campo das ciências biológicas, Friedrich Albert Lange (1828-1875) no campo do materialismo e da história e, Otto Liebmann (1840-1912) desde o campo da filosofia, na Alemanha e, Raimundo de Farias Brito (1862-1917) desde o campo da filosofia no Brasil e, Charles Sanders Peirce (1839-1914) desde o campo da ciência e da filosofia – todos em contexto neokantiano – estão em uníssono proclamando a necessidade da “volta a Kant”.
Já, Francisco Romero, na América hispânica, no contexto da primeira geração que veio formulando e construindo o pensamento latino-americano enquanto filosofia do espírito, move-se no horizonte da Fenomenologia. No dizer de Alain Guy, “la fenomenologia penetró desde 1930 en América Ibérica, a través de la lectura de sus promotores alemanes, cuyo principal introductor en Argentina fue Romero [...]”. (2002, p. 163).
Assim, Raimundo de Farias Brito no horizonte teórico do Neokantismo e em um contexto de não normalização da Filosofia, realiza uma Religious Turn em sua filosofia do espírito. Francisco Romero, por sua vez, no horizonte teórico da Fenomenologia e em um contexto de normalização da Filosofia, realiza toda uma sistematização da filosofia enquanto um voltar-se aos problemas como via de acesso à reflexão filosófica. Ambos acolhem e recolhem a religião com simpatia em seus respectivos pensamentos, ambos, apontam fundamentos aos estudos da religião no contexto da América Latina Caribenha, ambos, revelam possibilidades de diálogos com a filosofia da libertação e, por conseqüência, com a teologia da libertação e a pedagogia da libertação, porque a filosofia da práxis, que está na base ontológica, epistemológica e ética das teorias libertadoras na América Latina, tem seu húmus na Aufklaerungsphilosophie, ou seja, na tradição do pensamento alemão que vem desde Kant que, como reconheceu Farias Brito, “começou a nova filosofia alemã”.
Assim, tanto no âmbito da filosofia do espírito enquanto filosofia da liberdade, quanto no âmbito da filosofia da Práxis enquanto filosofia da libertação, teologia da libertação e pedagogia da libertação, o húmus da Aufklaerungsphilosophie é constitutivo e fundamental daquelas expressões de pensamento. Se por um lado, encontramo-nos com Kant e Hegel (filosofia do espírito) por outro, encontramo-nos com Marx (filosofia da práxis). Tanto em um âmbito quanto em outro, o problema religioso aparece enquanto um problema fundamental da cultura. Não se pode esquecer que, para Marx, toda crítica à Economia passa fundamentalmente pela crítica à religião. Assim é para Comte, para Proudhon, para Darwin, para Nietzsche, para Freud. O tema da religião é tema sempre presente, portanto. Ora, no contexto da América Latina Caribenha tal questão não pode estar dissociada da filosofia e, portanto, muito menos da educação, ou seja, da filosofia da educação. A subsunção de tal questão, ou seja, da religião é fundamental ao alargamento da própria tarefa e natureza da filosofia da educação, isto porque, tanto a religião quanto a educação são duas realidades constitutivas do mundo da cultura.
Farias Brito reconhece então, em seu pensamento, “que voltar para Kant é progredir”, pois para ele, foi com Immanuel Kant que começou a nova filosofia alemã. No Brasil, grosso modo, desde a formação interior de sua história e da história do seu pensamento, encontrar-se-á três grandes tradições constitutivas que irão desenhar os destinos da brasilidade em sua formação cultural e – de certa maneira também nos e dos demais países da América Latina Caribenha – podem ser reconhecidas estas tradições na presença lusa e hispânica, a escolástica, na presença francesa, o positivismo e, na presença germânica, o Kantismo. Portanto, três grandes momentos da Filosofia, o da escolástica, o do positivismo e o da Ilustração Alemã. Tanto Farias Brito quanto Francisco Romero se moverão no momento da Ilustração Alemã, como forma de crítica ao momento da escolástica e ao momento do positivismo. Sob certo aspecto, há uma homologia ao tocante à presença da filosofia (das filosofias) nos vários países da América Latina Caribenha. Assim, com um estudo comparativo – à maneira do que este ensaio se propõe – é possível instaurar uma fotografia e uma radiografia dos momentos decisivos do pensamento na e da América Latina Caribenha.
Então parece que um “retorno a Kant” ainda é de extrema necessidade, pois em Kant o campo da filosofia envolve as questões que aqui neste ensaio estão sendo aproximadas: questões filosóficas, questões religiosas, questões educacionais. Kant em sua Logik fala já do campo da Filosofia: “Das Feld der Philosophie in dieser weltbürgerlichen Bedeutung lässt sich auf folgende Fragen bringen: 1) Was kann ich wissen? 2) Was soll ich tun? 3) Was darf ich hoffen? 4) Was ist der Mensch?”. (2011, p. 447-8). E na sequência, Kant diz sobre qual campo de saber está feita cada pergunta: “Die erste Frage beantwortet die Metaphysik, die zweite die Moral, die dritte die Religion, und die vierte die Anthropologie. Im Grunde könnte man aber alles dieses zur Anthropologie rechnen, weil sie die drei ersten Fragen auf die letzte beziehen”. (2011, p. 448). Na mesma obra, Kant diz em seguida que o filósofo deve saber sobre a fonte, o manancial do saber (die Quellen des menschlichen Wissens), da circunferência, ou seja, do perímetro que pode ser abraçado pelo conhecimento (den Umfang des möglichen und nützlichen Gebrauchs alles Wissens) e, por fim (und endlich), o limite e a fronteira da razão (Die Grenzen der Vernunft). (2011, p. 448).
Nas perguntas que Kant faz, perguntas onde se encerram o campo da filosofia (Das Feld der Philosophie): 1) Que posso conhecer? 2) Que devo fazer? 3) Que devo esperar? 4) Que é o homem? Ainda se tem o frescor da atitude filosófica necessária a ser feita hoje. Então, aproximar filosofia, religião e educação no contexto latino-americano caribenho a partir do diálogo entre a filosofia do espírito enquanto filosofia da liberdade e a filosofia da práxis enquanto filosofia da libertação (e, entenda-se também a teologia da libertação e a pedagogia da libertação) neste momento da tradição filosófica dada pelo húmus da Aufklärungsphilosophie, faz-se necessário e fundamental. Pois, ainda a pergunta Que é o homem? necessita ser traduzida na complexa cultura latina americana caribenha. A educação e a religião, se por um lado respondem questões de ordem moral (Que devo fazer?), também respondem questões relativas à esperança (Que devo esperar?). No conjunto das Werke de Kant, principalmente a partir dos textos da fase crítica, todas estas questões – a filosófica, a religiosa e educacional – bem como as de ordem política, histórica, lógica, gnoseológica e outras, não se apresentam de formas separadas. Ao se aproximar estas questões, então, a partir destas duas expressões advindas da Aufklärungsphilosophie – a filosofia do espírito e a filosofia da práxis – se está colocando a questão central e decisiva que é questão do homem para a liberdade e para a libertação. A religião e a educação têm algo a dizer sobre isto, portanto. Daí, a necessidade da filosofia da educação acolher e recolher na simpatia todas estas questões, pois decisivas à complexa cultura latino-americana caribenha. Raimundo de Farias Brito e Sílvio Romero em suas formulações são ainda atuais, neste sentido, pois, apontam, na função topológica que tem a filosofia, o lugar do homem: a liberdade.
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Vale, pelo menos, sinalizar sobre projetos abarcantes que têm por objetivos mirar para a América Latina Caribenha de maneira mais universal, sem deixar a particularidade e a singularidade de cada região. A UNESCO tem contribuído com processos de estudos da cultura latino-americana em seu Projeto América Latina em sua Cultura. Tem acrescentado à América Latina em sua literatura, em sua arquitetura, em suas ideias, etc. Nesta direção, pode-se conferir, por exemplo: UNESCO (Leopoldo Zea, Coordinación e introducción). América Latina en sus Ideas. México-DF: Siglo Veintiuno Editores, 1986. UNESCO (César Fernández Moreno, Coordenação e Introdução). América Latina em sua Literatura. São Paulo-Brasil: Editora Perspectiva, 1979. Do ponto de vista da História da Igreja vale conferir o que a Comisión de Estudios de Historia de la Iglesia en America Latina – CEHILA -, cujo coordenador geral do Projeto é Enrique Dussel tem produzido e formulado. Nesta direção, pode-se conferir a obra Historia General de la Iglesia en America Latina – Tomo I/1 – Introducción General a la Historia de la Iglesia en America Latina. Salamanca-Espanha: CEHILA-Ediciones Sigueme, 1983. Do ponto de vista do pensamento filosófico, vale conferir a obra coletiva, cujos editores são: DUSSEL, Enrique/MENDIETA, Eduardo/BOHÓRQUEZ, Carmen. El Pensamiento Filosófico latinoamericano, del Caribe y “latino” – (1300-2000) – Historia/Corrientes/Temas/Filósofos. México-DF: Siglo XXI, 2011.↩
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Gênesis. 4, 10.↩
Assim diz Leonel Franca de Farias Brito: "É com verdadeiro prazer que iniciamos esse breve estudo sobre o mais original dos nossos pensadores. Pela primeira vez, nesse resumo histórico que vimos fazendo da evolução filosófica no Brasil encontramos um homem que, com verdadeiro amor, com incansável perseverança e admirável dedicação, sustentado apenas pelo estímulo de um ideal elevado se tenha consagrado, durante quase toda a vida, ao estudo da filosofia e ao desenvolvimento orgânico e sistemático de uma doutrina. Oxalá lhe possamos até ao fim conservar sem reservas esse sentimento de simpatia com que empreendemos a exposição e análise de suas idéias. (1987, p. 313).↩
De Gilberto Freyre, em sua obra Perfil de Euclides e outros perfis vale conferir o perfil de Raimundo de Farias Brito, cujo título é: Um mestre sem discípulos. Aí, Gilberto Freyre analisa a obra de Sílvio Rabelo Farias Brito ou Uma Aventura do espírito (1967). Assim, inicia Freyre o perfil: “Farias Brito acaba de ter o estudo merecido: o ensaio de interpretação psicológica em que o professor Sílvio Rabelo analisa e reconstitui aquela curiosa figura de cearense e de bacharel do 1900 brasileiro”. (1987, p. 141). Gilberto Freyre, ao mesmo tempo em que acolhe a crítica de Rabelo, é também crítico e muitas vezes, em seu humor, irônico com a obra de Sílvio Rabelo.↩
A esta altura da reflexão faz-se necessário o estabelecimento de algumas diferenças, principalmente diferenças ontológicas, epistemológicas e éticas entre a filosofia da liberdade e a filosofia da libertação que serão homólogas tanto na teologia da libertação, quanto na pedagogia da libertação. O campo da filosofia da liberdade tem por base Kant, Hegel e Husserl. O campo da filosofia da libertação, por sua vez, está muito mais próximo de Marx e de Freud. Portanto, o primeiro campo é mais ontológico e o segundo campo se afirma como saber para a práxis. Neste sentido, vale conferir a obra de Horácio Cerutti Guldberg, filosofia de la liberación latinoamericana (1983). Nesta obra, o campo da filosofia da libertação se configura de maneira ampla em suas múltiplas formulações. Exemplos: Roig, Scanonne, Guldberg, Dussel. Já, em sua filosofia da libertação na América Latina, Enrique Dussel diz o seguinte de Francisco Romero ao refletir sobre a irrupção de uma nova geração filosófica na Argentina: “[...] O caso mais interessante é o de Francisco Romero, militar de profissão, que ingressa na universidade de Buenos Aires em 1930 (ano do começo da chamada ‘década infame’ sob o primeiro governo militar na Argentina) e que a deixa no advento do peronismo (1945), para regressar com os grupos militares que governam de uma ou outra forma desde 1955. Romero é, com toda evidência, o apoio filosófico da posição antipositivista partindo de uma teoria dos objetos de inspiração kantiana e scheleriana, mas que não consegue superar o nível ôntico moderno da subjetividade européia. Por isso responde, sem dar-se conta, aos interesses que a força militar defende com suas armas: a chamada oligarquia pecuarista do Prata”. (DUSSEL, S/d, p. 197). O Apêndice – de onde foi recolhida a citação – da edição portuguesa de filosofia da libertação na América Latina de Enrique Dussel não se encontra na edição de Filosofía de la Liberación. Buenos Aires: Asociación Ediciones La Aurora: 1985. Então, a partir da citação de Enrique Dussel, talvez fique mais clara a ambigüidade da geração dos filósofos que formularam a teoria da liberdade no dizer de Arturo Andrés Roig (1922 – 2012), filósofo Argentino da universidade de Cuyo e professor de Enrique Dussel nesta mesma Instituição Universitária em Mendonça.↩
Conferir o romance do peruano José Maria Arguedas Os Rios Profundos. São Paulo: Companhia da Letras, 2005.↩
Sobre esta questão, no âmbito do debate da universidade e da filosofia brasileira, vale conferir: ACERBONI, Lidia. A filosofia Contemporânea no Brasil. São Paulo: Editorial Grijalbo Ltda., 1969. Também, BARROS, Roque Spencer Maciel de. A Ilustração Brasileira e a Ideia de universidade. São Paulo: Convívio: Editora da Universidade de São Paulo, 1986.↩
Antonio Paim em O Estudo do Pensamento Filosófico Brasileiro (1986) desenvolve as disciplinas especiais que foram sendo formuladas e desenvolvidas ao longo do desenvolvimento e amadurecimento do pensamento filosófico brasileiro como: Pensamento Político, Filosofia do Direito e Filosofia da Educação. No entanto, não há em nenhum momento, o aceno à questão da filosofia da religião e da ciência da religião. Assim, vale reconhecer que tanto a filosofia da religião quanto a ciência da religião, são áreas de saberes que vão se constituindo desde o século XIX fundamentalmente no horizonte do pensamento e da tradição alemã. Aqui se tem que reconhecer na expressão maior da modernidade que foi Hegel, que na forma filosófica do pensamento o conteúdo é eminentemente religioso. O Hegel juvenil far-se-á no Hegel maduro que além de filosofia, política, história, estética, lógica, filosofia da história enfrentou a teologia e a filosofia da religião. Sua filosofia é filosofia da religião, portanto. Conferir sobre, a obra de Raymond Plant. Hegel. (2000). Pode-se dizer, então, que a filosofia de Farias Brito é filosofia da religião e está em consonância com o debate do pensamento europeu, principalmente sobre a crise do cristianismo e do catolicismo de maneira especial. Sob este aspecto, Farias Brito está também em sintonia e em consonância com a crise no Cristianismo Católico que está a acontecer no contexto da mudança do Brasil monárquico ao Brasil republicano. Ler e tomar a obra de Farias Brito nesta direção e neste sentido parece ser algo inédito e de fundamental importância, principalmente aos estudos de filosofia brasileira, bem como aos estudos da filosofia da religião, da ciência da religião e da teologia em contexto nacional.↩
A abertura às outras tradições religiosas em Farias Brito é algo de extrema grandeza em um ambiente onde se advoga ou pelo fim da religiões, a partir de uma visão científica vinda do positivismo ou onde uma certa matriz religiosa, de tradição cristã enquanto verdade revelada, é ainda afirmada pela tradição da escolástica portuguesa. Entre o positivismo e a escolástica do XIX, Farias Brito, como já dito, instaura a Religious Turn desde uma tradição germânica, vinda da filosofia Alemã. Vale, então, no contexto deste ambiente, ler o que diz Farias Brito das diferentes tradições religiosas: “Mas o profetismo é poesia, demonstra-o a crítica religiosa pelo órgão dos mais nobres pensadores do século. Além disto, se os livros sagrados dos hebreus são a expressão das verdades eternas, a revelação de um poder superior às forças da natureza, por que razão não se deve admitir a mesma cousa quanto aos livros sagrados das outras civilizações primitivas? Qual o critério para decidir entre Zoroastro e Moisés, entre Sakia-Muni e Jesus? E se alguma comparação pode estabelecer-se, o que há de mais elevado, segundo o testemunho de todos os sábios, que a religião primitiva dos árias na Índia?”. (1957, p. 152-3).↩
Vale, para isto, conferir: Alcântara Nogueira. Farias Brito e a filosofia do espírito (1962); Aquiles Côrtes Guimarães. O Tema da Consciência na filosofia Brasileira (1982); e Miguel Reale. Estudos de filosofia Brasileira (1994).↩
Luís Washington Vita, dentre as suas inúmera obras, desenvolverá em Compêndio de filosofia (1955), uma abertura aos estudos da religião – Noções de religião. O ponto de vista desta obra, como diz Washington Vita é fenomenológico. Assim, ele diz: O ponto de vista do presente compêndio é fenomenológico. Daí, haver em cada capítulo um autor ou livro basilar: na lógica, Pfänder; na epistemologia, Szilasi; na psicologia, Brentano; na estética, Geiger; na cosmologia, Müller; na moral, Scheler; na sociologia; Vierkandt; na religião Gründler. Naturalmente, o autor que está sempre presente em todos os capítulos é Husserl [...]“. (1955, p. 11). Luís Washington é herdeiro no Brasil tanto do pensamento de Raimundo de Farias Brito quanto de Francisco Romero. Desta maneira, no eixo do desenvolvimento das ideias que neste ensaio estão sendo apresentadas, seja possível de ser encontrada uma certa síntese da filosofia do espírito em Washington Vita e, ao mesmo tempo, a abertura aos estudos dos problemas religiosos no desenvolvimento do pensamento filosófico brasileiro, bem como uma abertura em seu pensamento, ao diálogo da filosofia brasileira com a filosofia latino-americana. Talvez, as primeiras tentativas de diálogo entre as duas Américas, a Lusa e a Hispânica! Sobre Francisco Romero, Washington Vita dirá que,”sob certo aspecto, o papel desempenhado por Francisco Romero na America Latina é idêntico ao de Ortega y Gasset na Espanha". (1964, p. 508).↩
Resumo:
A formulação filosófica de Farias Brito no Brasil e Francisco Romero na Argentina, entre os séculos XIX e XX toca os mesmos temas: consciência, liberdade e existência. Ambos estão na América Latina Caribenha onde a atmosfera do pensamento hegemônico do positivismo se impõe em oposição a uma tradição vinda da segunda escolástica ibérica, da monarquia e da religião instituída. Também, ambos, influenciados por uma tradição alemã – Brito por Kant e Schopenhauer e Romero por Husserl, Scheler e Hartmann – formulam o que pode ser chamado de filosofia do espírito enquanto filosofia da liberdade. Se até o século XIX, o tema da religião foi elaborado pela escolástica tanto hispânica quanto lusa, com o advento do positivismo, a religião estabelecida entra em seu processo de problematização, juntamente com o regime político. No entanto, será com a presença do pensamento germânico na cultura latino-americana que o tema será recolocado, só que agora em um ambiente laico, marcado pelos valores do positivismo e da república. A hipótese deste trabalho é que a formulação da filosofia do espírito enquanto filosofia da liberdade, formulada por Farias Brito e Francisco Romero, constituem-se as bases no continente latino-americano caribenho para a formulação de uma filosofia da religião em perspectiva, agora, não mais escolástica, mas germânica. O trabalho se move no âmbito da pesquisa teórica e em diálogo com as questões étnicas e históricas constitutivas do continente latino-americano caribenho e, ao mesmo tempo, procura nexos com a filosofia da libertação, com a teologia da libertação e com a pedagogia da libertação.
Palavras-chave:
Filosofia da Liberdade; Filosofia do Espírito; Filosofia da Educação; Filosofia da Religião; Filosofia da Libertação; Teologia da Libertação.
Abstract:
The philosophical formulation of Farias Brito in Brazil and Francisco Romero in Argentina, between the nineteenth and twentieth centuries touches the same themes: consciousness, freedom and existence. Both are in Latin American Caribbean where the atmosphere of the hegemonic thinking of Positivism imposes itself in opposition to a tradition coming from the Second Iberian Scholasticism, the Monarchy and the instituted Religion. Also, both influenced by a German tradition – Brito by Kant and Schopenhauer and Romero by Husserl, Scheler and Hartmann – formulate what can be called Philosophy of the Spirit as Philosophy of Freedom. If until the nineteenth century, the theme of religion was elaborated by both Hispanic and Portuguese Scholastics, with the advent of Positivism, established religion enters into its process of problematization along with the political regime. However, it will be with the presence of Germanic thought in Latin American culture that the theme will be replaced, only now in a secular environment, marked by the values of Positivism and the Republic. The hypothesis of this work is that the formulation of the Philosophy of Spirit as a Philosophy of Freedom, formulated by Farias Brito and Francisco Romero, are the bases in the Latin American Caribbean Continent for the formulation of a Philosophy of Religion in perspective, now no longer scholastic, but Germanic. The work moves within the scope of theoretical research and in dialogue with the ethnic and historical issues of the Latin American Caribbean Continent, and at the same time seeks links with the Philosophy of Liberation, Theology of Liberation and the Pedagogy of Liberation.
Keywords:
Philosophy of Freedom; Philosophy of the Spirit; Philosophy of Education; Philosophy of Religion; Philosophy of Liberation; Theology of Liberation
Recebido para publicação em 21/11/2018
Aceito em 07/04/2019.