Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 2, 2019.

 

 

Os evangélicos na produção visual brasileira contemporânea:
análise da polêmica em torno do filme Terremoto Santo

 

Diogo Rodrigues de Barros
Universidade de Montreal, Canadá
diogorbarros@gmail.com

 

O jovem pintor Quintanilla, índio do Peru, que retoma em sua obra elementos de um bestiário fantástico, disse-me ter deixado de fazer pintura de contestação, apesar de desejar fazê-lo, após uma desventura de que ele guarda lembrança amarga. Assistindo cotidianamente a cenas de brutalidade e exploração, ele representara em um quadro de grande formato um proprietário de terras, olhos furiosos, fustigando do alto de seu cavalo alguns camponeses em pânico. Em seguida, levara essa obra a uma galeria de Lima. Qual não foi sua surpresa ao vê-la vendida, pouco depois, a um dos mais ricos “exploradores” do país, um bufão desprezível que bradara – sem a menor nuance de humor negro – “Eis aqui um pintor que mostra como se devem tratar os índios!” (GASSIOT-TALABOT, 1968, p. 95).1

Com essa anedota, Gérald Gassiot-Talabot abre seu artigo La contestation est-elle possible? [É possível a contestação?], publicado no emblemático ano de 1968. O movimento estudantil na França e outros grandes conflitos dos anos 60, como as guerras da Argélia (1954-1962) e do Vietnam (1955-1975), mobilizavam então artistas e intelectuais progressistas, que se viam diante do problema da (in)eficácia da arte figurativa como instrumento de denúncia de injustiças ou transformação social. A mesma questão aquecia os debates no meio artístico brasileiro, que, após a I Bienal de arte de São Paulo (1951), dividira-se entre realistas e abstracionistas; de um lado, a defesa de uma arte figurativa de cunho marcadamente social e nacional, do outro, a opção por uma arte abstrata, sobretudo geométrica, e internacionalista. Para os realistas, muitos dos quais sob influência do realismo socialista soviético, o objetivo da arte e do artista passava pela sua função política, com vistas à transformação direta da realidade e à revolução. Artistas de formações e atuações políticas tão distintas como Cândido Portinari, Lasar Segall e integrantes do clube de gravura de Porto Alegre propuseram, em diferentes momentos do século XX, formas de representar o povo e suas mazelas e, tão importante quanto, estratégias de circulação dessas representações (AMARAL, 2003).

O que representar, sobre que suporte e para que público eram as questões primordiais no debate interno dos realistas. A história da desventura de Quintanilla evidencia dificuldades específicas no caminho de uma arte que pretende contestar e transformar o real: as condições de circulação das representações e o papel da recepção na produção de sentido de uma obra visual ou literária. O sentido de uma pintura não se encerra em sua materialidade e muito menos na intenção do artista, mas depende em larga medida de um público, sujeito da interpretação. Ao representar uma cena de violência e injustiça, o pintor peruano buscara denunciar o comportamento dos grandes proprietários e a exploração da mão de obra indígena, mas acabou por, inadvertidamente, reforçar a realidade que quisera transformar. Como evitar a “má” interpretação de uma obra? Em contexto museal, buscou-se limitar as possibilidades de interpretação pelo acréscimo de elementos paratextuais – títulos, folhetos explicativos, textos de catálogo ou de introdução fixados sobre paredes de museus e galerias2. O paratexto diz ao público qual é a interpretação “autorizada”, predefinida pelos artistas e curadores a fim de proteger a obra de derivas interpretativas. Trata-se, no entanto, de mecanismo já muito criticado. O texto explicativo viria em detrimento da linguagem visual, empobrecendo a recepção pela destruição do caráter polissêmico da obra exposta. Ele seria também uma forma de tutela didática do público, visitante passivo da exposição que deve ser educado pela instituição detentora do saber.

Há, no entanto, obras cuja interpretação escapa aos intentos didáticos das instituições artísticas. É o caso de Terremoto Santo (2017), filme curta-metragem de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, exibido tanto em contexto museal, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo e no Rio de Janeiro3, quanto em festivais de cinema, como o X Janela Internacional de cinema do Recife (2018) e a Berlinale (Berlim, 2018). O filme, que coloca em cena um grupo de cantores gospel da Assembleia de Deus da zona da mata sul pernambucana, provocou acesas polêmicas, sobretudo nos festivais por que passou, onde houve tanto quem nele visse uma tentativa de ridicularizar os fiéis que atuam no filme, como quem acusasse os artistas de dar voz a uma agenda reacionária. Sua recepção acidentada evidencia velhos desafios da arte política: os circuitos de exibição, o confronto com o público e as múltiplas possibilidades de interpretação e apropriação.

Neste artigo, trataremos da polêmica envolvendo Terremoto Santo. Inicialmente apresentaremos a obra e as polêmicas por ela geradas. Em seguida, buscaremos localizá-la em um debate mais amplo sobre as “imagens do povo”, com um interesse particular pela imagem de evangélicos na produção visual brasileira. Por fim, trataremos do problema da eficácia da arte, buscando dissociar o efeito político de uma obra da intenção política do artista, elemento central na polêmica gerada pelo filme.

Terremoto Santo e suas polêmicas

Terremoto Santo (2017) é um filme curta-metragem com duração de 19 minutos, resultado de uma parceria da dupla de artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca com artistas da Mata Sul, gravadora de música gospel da cidade de Palmares, em Pernambuco.4 A obra, que poderíamos classificar inicialmente como musical, é composta de uma série de cânticos religiosos inseridos em cenas independentes umas das outras, com cenários variados, tanto internos – um estúdio de rádio, uma igreja durante um culto e outra em construção – como externos – a natureza exuberante da Zona da Mata pernambucana. Além das cenas musicais altamente coreografadas, há alguns trechos de oração, louvor e leitura da bíblia. Não se trata, no entanto, de simples registro das práticas musicais da Assembleia de Deus na região. Todas as cenas são imaginadas, criadas pelos diretores a partir de consulta aos cantores. Coreografias e figurinos e objetos de cena que compõem as práticas locais – roupas sociais, um púlpito, grandes vasos de flores – são inseridos no filme, mas, deslocados de seu contexto habitual para as paisagens da região, gerando novos sentidos. Terremoto Santo não é um filme sobre os cantores da Assembleia de Deus da Zona da Mata pernambucana, mas antes uma produção artística musical que resulta do encontro desses cantores com a dupla Wagner e de Burca, que dirigem e assinam a obra.5

Figura 1: Terremoto Santo, imagem do filme, 2018

Na abertura do filme, tela preta, ouvimos sons de pássaros e de uma corrente de água. A cena se ilumina progressivamente. Estamos na Zona da Mata, junto a um riacho. Vemos um homem de costas, vestindo traje social, que se volta, em seguida, para a câmera, caminha até a beira da água segurando uma flor, senta-se sobre uma pedra. A música começa, uma voz feminina entoa um louvor. O rapaz joga a flor no riacho e a imagem corta para a cantora que começáramos a ouvir. Ela canta de frente para a câmera, gesticulando de acordo com a mensagem presente na letra da canção. Terminada a cena de abertura, vemos o letreiro com o nome do filme, Terremoto Santo. A essa cena inicial, sucedem-se algumas cenas de louvor. Em um programa de rádio, a oração de um homem que parece ser um pastor precede três canções de louvor cantadas à capela nos estúdios. Uma placa em neon anuncia que estamos “no ar”. Logo depois, assistimos a uma sucessão de clipes musicais, muitos dos quais tendo a natureza por cenário. Em nenhum momento, há explicações sobre o que vemos. Trata-se de um documentário? Ficção? As pessoas na tela atuam ou vivem suas próprias vidas diante da câmera? Maiores informações sobre a concepção artística do filme ou seu contexto de produção estão ausentes da obra em si. Não há introdução ou explicação internas ao filme, que não anuncia seu objetivo, não transmite uma mensagem de sentido fechado, não cria discurso inequívoco sobre as práticas religiosas e musicais retratadas. Sem leitura prévia, o espectador não sabe quem são essas pessoas que vê na tela, não sabe que são de Palmares ou que são cantores ligados à Assembleia de Deus. Tampouco sabe qual o papel exercido pelos cantores e pelos diretores na composição das cenas. A obra não nos recebe à porta, não nos leva pela mão em direção a um porto seguro de interpretação e posicionamento político claros. O paratexto é reduzido ao mínimo; apenas o título, Terremoto Santo.

A primeira polêmica envolvendo Terremoto Santo ocorreu durante um festival, a X Janela Internacional de Cinema do Recife. As cenas altamente estetizadas, as cores fortes, a aparente inadequação dos trajes sociais em meio à natureza, os textos das canções de louvor apresentados a um público altamente intelectualizado de um festival de cinema e pouco dado a práticas religiosas produziram um efeito cômico. Os fiéis-cantores na tela pareciam-lhes ridículos. Diante dessa percepção, o público dividiu-se. Parte foi às gargalhadas. Riam do que lhes parecia caricato. Um exagero de cores, estética tida por kitsch ou de mal gosto. Outros, pelo contrário, protestaram contra o que acreditaram ser uma exposição dos atores ao ridículo por parte dos diretores. Os cantores de Palmares teriam sido ludibriados a participar de um filme que os detratava. A segunda polêmica deu-se na Berlinale, o prestigioso festival de cinema de Berlim. Dessa vez, não porque nele se identificasse um tom cômico e pouco empático com os atores. Muito pelo contrário, houve quem acusasse o filme de ser extensão do discurso religioso. Os diretores estariam dando vazão a um discurso extremista religioso, conservador, sem que uma crítica a ele fosse claramente formulada.

Figura 2: Terremoto Santo, imagem do filme, 2018

Artistas e imagens do povo

Terremoto Santo faz parte de um projeto mais amplo Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, que visa registrar a cultura musical popular, sobretudo no Nordeste brasileiro. Filmes anteriores, Faz que vai (2015), sobre o frevo, e Estás vendo coisas (2016), sobre a cultura brega, ajudam-nos a melhor situá-lo. Dentro dessa sequência, o gospel é entendido como produção artística popular. Independentemente de ser prática religiosa, recebe o mesmo tratamento dado ao frevo e ao brega. Se esses filmes apresentam-se inicialmente como (clipes) musicais, os circuitos de exibição em que são inseridos – a distância cultural e geográfica entre os retratados na Zona da Mata pernambucana e o público do Recife, de São Paulo ou Berlim – imprimem sobre as obras um caráter documental – ou mesmo etnográfico –, aspecto esse que se torna particularmente problemático na recepção de Terremoto Santo, como veremos mais à frente. Encontramo-nos diante da imagem do outro. Transformada inadvertidamente (ou não) em documentário, a obra passa a compor uma tradição de filmes brasileiros que buscam mostrar “imagens do povo”, a qual remonta ao menos aos anos 1960 e 70, quando documentaristas paulistas, reunidos em torno do fotógrafo e cineasta Thomaz Farkas, partiram para o Nordeste para registrar o Brasil que o Sul e o Sudeste do país não conheciam. A história da transformação do modelo de representação do povo no documentário brasileiro foi estudada por Jean-Claude Bernardet em seu livro Cineastas e imagens do povo (BERNARDET, 2003), livro de 1985, ampliado e reeditado em 2003. Retomar as categorias estabelecidas pelo livro abre-nos a possibilidade de melhor entender a relação de Terremoto Santo com aqueles que nele são retratados, os fiéis-cantores pentecostais de Palmares.

Cineastas e imagens do povo analisa a dissolução do modelo sociológico no cinema documental brasileiro. Partindo daquele que seria o ápice desse modelo, Viramundo (1965), dirigido por Geraldo Sarno e produzido por Thomaz Farkas, Bernardet apresenta diversos filmes posteriores, que foram progressivamente criando novos modos de relação entre cineasta, o povo e suas imagens. Em Viramundo, contrapõem-se o saber acadêmico, encarnado na voz de autoridade do narrador, que explica ao público a situação social apresentada – a chegada dos migrantes nordestinos a São Paulo –, e a fala dos próprios migrantes entrevistados, cujas trajetórias servem no filme unicamente para ilustrar e confirmar o saber acadêmico (BERNARDET, 2003, p. 15-39). Nesse modelo, crê-se, pela adoção de um modelo sociológico cientificista, na coincidência entre o discurso cinematográfico e o real. O sistema de representação não está absolutamente em questão. No campo das artes, poderíamos associar o modelo sociológico às artes figurativas que representam o povo em seu sofrimento, um povo silencioso, objeto de representação. Não é à toa que Viramundo apresenta a famosa obra Os Retirantes (1944), de Cândido Portinari, em sua abertura. No filme, o quadro funciona como abertura da narrativa. Logo após a imagem da pintura – os nordestinos que fogem da miséria –, deparamo-nos com as primeiras imagens documentais, em que esses mesmos nordestinos desembarcam de um trem, recém-chegados a São Paulo (BERNARDET, 2003). De objeto de representação no quadro de Portinari, passam, então, a objeto do saber acadêmico, que os apresenta na forma de um documentário.

Após analisar as características do modelo sociológico de criação de imagens do povo, Bernardet interessa-se pelas diferentes propostas que visam a subvertê-lo. Desses modelos, por sua pertinência para a análise de Terremoto Santo, concentramo-nos aqui sobre dois, que o autor nomeou “A voz do documentarista” e “A voz do outro”. Para chegar às características do modelo da “voz do documentarista”, analisam-se no livro três filmes: Lavrador (1968), Indústria (1968) e Congo (1972). O que diferenciaria essas obras do modelo sociológico seria o fim da coincidência entre real e discurso cinematográfico:

Como o real não é o que o filme pretende apresentar, os elementos que o integram passam então a ser tratados e manipulados como signos. Se o camponês filmado não é um camponês, mas a imagem de um camponês, essa imagem será tratada não como camponês, mas como imagem. (BERNARDET, 2003, p. 90).

A voz do documentarista seria a voz do que Jacques Rancière chama de “regime estético da arte”, em que “a eficácia estética significa propriamente a eficácia da suspensão de toda relação direta entre a produção das formas da arte e a produção de um efeito determinado sobre um público determinado” (RANCIÈRE, 2008, p. 64). Voltaremos mais à frente ao problema da eficácia política desse regime, mas por ora interessa-nos apenas ressaltar que a voz do documentarista na análise de Bernardet descola-se do modelo sociológico ao assumir sua natureza estética, discursiva e, portanto, criadora. O filme cria formas do real, não o reproduz. O desejo do artista seria “que o discurso signifique, não pelo que diz ou mostra, mas pelo modo como compõe” (BERNARDET, 2003, p. 93). Ao assumir-se como discurso, o filme também assume a natureza mediada do contato do cineasta com o “povo”. O cineasta fala a partir de sua experiência, que não é mais tida como voz do saber, mas como voz específica, fruto de um lugar social. Evita-se assim, diz-nos Bernardet, a transformação do outro em objeto, sem, no entanto, que esse outro torne-se sujeito. (BERNARDET 2003, p. 118).

“A voz do outro”, segundo modelo de cinema documental que mencionamos acima, busca instituir o “povo” como sujeito do discurso sobre si mesmo. Os exemplos desse modelo para Bernardet são Tarumã (1975) e Jardim Nova Bahia (1971). No primeiro, interrompe-se o curso previsto inicialmente para o documentário em consequência da irrupção inesperada de uma mulher que se aproxima da equipe de filmagem e espontaneamente fala das suas duras condições de vida. Diferentemente do modelo sociológico, essa mulher é livre em seu discurso. Não responde a perguntas prévias, não tem sua fala editada de acordo com as necessidades de ilustração de um discurso acadêmico predominante. Ela é a autoridade sobre a sua própria experiência do mundo. Em Jardim Nova Bahia, o “povo” é representado por um homem negro pobre que assume a câmera. Um letreiro inserido no filme informa que “as imagens da estação do Brás e de Santos foram filmadas por Deutrudes Carlos da Rocha, sem qualquer interferência do realizador” (apud BERNARDET, 2003, p. 128). Deutrudes, representante direto do povo, produz um discurso cinematográfico próprio, tornando-se, ao menos em teoria, sujeito da produção de imagem. Poderíamos obviamente objetar que ele permanece objeto da nossa apreciação enquanto produtor de imagens, mas há de se reconhecer a mudança clara dessa proposta com relação ao modelo de autoridade do saber imposto por Viramundo.

Como encaixar Terremoto Santo nos modelos de análise de Jean-Claude Bernardet? Estamos aqui muito distantes do modelo sociológico de Viramundo. O aspecto documental de Terremoto Santo não implica uma identificação discursiva com o real. Não há simples intenção de registro das práticas musicais dos artistas-fiéis e o filme assume de modo inequívoco o seu caráter ficcional. Tudo é claramente encenado, montado, ficcionalizado, estetizado. A câmera não é um observador passivo, mas contribui ativamente para a composição da narrativa. É o caso, por exemplo, da cena em que se canta o cântico que dá título ao filme. A câmera treme para representar o “terremoto” santo. Não há efeito especial computadorizado, mas uma câmera que denuncia sua própria participação na composição do objeto representado. A “voz do documentarista” faz-se presente e o discurso cinematográfico assume-se como tal, sem gerar ilusão de coincidência com o real.

A “voz do outro” em Terremoto Santo, à diferença dos exemplos de Bernardet, não se dá nem por um discurso analítico do outro a respeito do próprio lugar social, como a mulher que fala em Tarumã, nem é fruto de atuação direta dos atores na geração de imagens, como em Jardim Nova Bahia. Essa voz encontra-se presente no processo de produção, na escolha do repertório musical, nos figurinos utilizados, no uso de coreografias e práticas da região na composição do filme, as quais foram, em parte, escolhas dos retratados. Nesse sentido, há espaço, na composição do filme, para que o outro escolha como quer ser representado e produza um discurso visual sobre si. Esses elementos são, no entanto, transformados pela voz do documentarista, que permanece dominante. Não se adota em Terremoto Santo a proposta de Jardim Nova Bahia: “as imagens da estação do Brás e de Santos foram filmadas por Deutrudes Carlos da Rocha, sem qualquer interferência do realizador” (apud BERNARDET, 2003, p. 128). Há escuta da voz dos retratados, mas a autoria do discurso visual é claramente dos diretores, que assinam o filme. Poderíamos, então, sugerir a presença de uma mistura dos modelos da “voz do documentarista” e da “voz do outro”. A imagem dos fiéis pentecostais é tratada como imagem, para “que o discurso signifique, não pelo que diz ou mostra, mas pelo modo como compõe” (BERNARDET, 2003, p. 93). Há, no entanto, a tentativa de inserir no discurso visual – cinematográfico e não verbal-sociológico – a voz do outro por meio de uma escuta que precede o discurso do filme.

Há que se ressaltar, no entanto, que essa presença da voz do outro depreende-se de informações externas ao filme. Tais elementos não são jamais levados em consideração na análise de Bernardet, que se limita, por escolha metodológica, à análise de elementos internos à obra. Neste artigo, optamos por considerar as informações de produção por interessarmo-nos pela influência de discursos paralelos e complementares – o que Genette chama de elementos paratextuais – sobre as condições de interpretação da obra por parte do público. Essa questão está no centro da seção seguinte do nosso texto, em que nos concentramos sobre os problemas de recepção de Terremoto Santo.

Artistas e imagens dos evangélicos

Há um elemento que produz um curto-circuito na recepção de Terremoto Santo quando o comparamos aos filmes anteriores realizados pela dupla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, sobre o frevo e o brega, dentro do mesmo regime de parceria entre diretores e artistas populares. Trata-se da clara antipatia do público por quem aparece na tela. Em entrevista ao jornal O Globo, Bárbara Wagner observa:

Foi o brega que me levou ao gospel, ainda que para a maioria das pessoas os dois não tenham nenhuma relação. São dois gêneros independentes, que cresceram à margem do mercado, e mobilizam um número enorme de jovens por todo o país — compara Bárbara. — Ainda que sejam produções culturais igualmente periféricas, sinto que há um incômodo maior do público em relação ao universo evangélico. A ascensão social do gospel é muito parecida com a do funk ostentação, outro gênero com que trabalhei. (apud GOBBI, 2018).

Diante da imagem do “outro”, o público ri, acusando o ridículo daqueles por quem tem antipatia. Há que se discutir a relação do contexto de exibição com percepções tão agudamente diferentes do “propósito” do filme. Comecemos pela exposição Corpo a Corpo, exibida no Instituto Moreira Salles de São Paulo e, posteriormente, do Rio de Janeiro. Dentro da exposição, o filme ganha um enquadramento forte. Ela reunia obras de diversos artistas contemporâneos brasileiros, além de imagens produzidas pela Mídia Ninja. O enquadramento diz logo de início ao público que as obras são progressistas. Há um posicionamento político-ideológico do conjunto que limita as possibilidades de interpretação de obras isoladas. Nesse sentido, por mais que alguns visitantes possam ter sentido incômodo diante da obra, ela recebera a chancela institucional que a protegia de derivas interpretativas. É, no entanto, difícil avaliar a recepção da obra no contexto da exposição. A visitação, de caráter individual, gera menos retorno imediato que uma exibição coletiva em uma sala de cinema.

No festival do Recife, o filme foi exibido de modo independente. O público teve certamente acesso a uma curta sinopse antes da exibição, mas não há inserção da obra em um discurso curatorial mais amplo. Na ausência desse discurso restritivo, as condições de interpretação da obra passam a ser mais diretamente dependentes da opinião que as classes médias mais escolarizadas têm das igrejas evangélicas em geral ou das representações que deles circulam na cultura visual contemporânea. Poderíamos, por exemplo, mencionar os polêmicos vídeos do grupo Porta dos Fundos, que já produziu para o YouTube inúmeros esquetes que colocam em cena pastores que pedem dinheiro de modo inescrupuloso ou que expulsam demônios de pessoas que fingem estar possuídas.6 Os esquetes são cômicos, o tom é exagerado. Os pastores são inescrupulosos, os fiéis, manipulados. Todos são alvo do riso. O fenômeno não é novo. A historiografia do cinema já discutiu anteriormente representação igualmente negativa de fiéis pentecostais no famoso documentário Viramundo (1965), em que um culto com pastores manipuladores é mostrado como símbolo da alienação do povo. No contexto imediatamente posterior ao golpe militar, a alienação pela religião justifica dentro do filme a inação do povo e a frustração dos projetos progressistas e revolucionários (BERNARDET, 2003, p. 33-7). Em Terremoto Santo, ausente maior enquadramento das possibilidades de interpretação, o público intelectualizado do festival vê o que já conhece, a representação do ridículo e da alienação que caracterizam, dentro dessa tradição visual, os cultos e louvores pentecostais.

Essa tradição está, no entanto, ausente quando o filme é exibido ao público europeu. Provavelmente, por esse motivo, a curadora da Berlinale decidiu em sua apresentação do filme fornecer, junto ao texto da sinopse, alguma referência cultural mais ampla que permitisse ao público aproximar-se melhor da obra. Há, evidentemente, da parte do festival, a opção por um didatismo que está ausente em um filme que se constrói unicamente por imagens. Eis aqui trecho dessa introdução:

O mantra dos evangélicos, que ganharam uma crescente influência sobre a sociedade brasileira nos últimos anos, é a obtenção de melhoras na vida pessoal e econômica dos fiéis por meio da adesão a uma prática religiosa extrema. No Brasil, os evangélicos estabeleceram-se como uma força política em crescimento nos últimos anos. Eles controlam segmentos da mídia e pregam ódio e intolerância contra a homossexualidade e contra outras crenças.

Esse texto extremamente negativo está ausente do material de divulgação do filme e parece, portanto, razoável assumir que foi produzido para o festival de Berlim com o objetivo de informar sobre o contexto cultural de produção do filme. O vocabulário utilizado é forte: mantra, prática religiosa extrema, ódio, intolerância. Ademais, de modo estilisticamente deselegante, o texto apresenta uma repetição significativa ao utilizar duas vezes a expressão “over the past years” [nos últimos anos]. Insiste-se sobre a atualidade do tema tratado no filme. O perigo representado pelos cantores gospel na tela é tão importante quanto atual. A crítica de que Terremoto Santo promoveria a prática religiosa “extrema” dos pentecostais deve-se, portanto, em larga medida, à introdução infeliz feita pelo festival na tentativa de criar pontes entre as realidades europeia e brasileira. Poderíamos assim dizer que a polêmica de Berlim é fruto de uma tentativa desastrada de introduzir na apreciação do filme elementos do velho modelo sociológico. A voz do narrador, encarnada pelo festival no texto de apresentação, vem explicar o lugar do povo, cuja imagem é captada pelo filme, vem dar um sentido sociológico bem definido à representação na tela. Informado pela voz da autoridade do caráter quase maléfico desses “extremistas” religiosos, parte do público cobra a presença de uma crítica que não encontra no discurso interno ao próprio filme.

As polêmicas geradas pela obra parecem corresponder ao que poderíamos chamar “o dilema de Quintanilla”, isto é, a diferença entre a intenção dos artistas – uma obra visual criada a partir de um diálogo que se quer respeitoso com artistas populares – e a interpretação por parte do público. Procura-se identificar na obra seja uma falta de ética ou empatia – os artistas teriam ludibriado os fiéis a participar de um filme que os retrata negativamente – ou, ao contrário, denuncia-se a adesão dos diretores à voz dos retratados, tidos por reacionários. Se Terremoto Santo procura, como dissemos, criar um discurso cinematográfico que não se confunde com o real, essas críticas procuram colá-lo ao real, estabelecendo um discurso verbal que viria fixar os sentidos possíveis da obra. O público recusa assim a própria participação na construção do sentido do filme. Se vejo ridículo e cômico nas práticas musicais dos cantores gospel de Palmares é porque elas assim foram fixadas na obra, na qual o sentido encontra-se encerrado. Trata-se de uma recusa de algo que H. R. Jauss chamou de “horizonte de expectativas”, isto é,

O sistema de referências objetivamente formuláveis que, para cada obra no momento da história em que ela aparece, resulta de três fatores principais : a experiência prévia que o público tem do gênero de que a obra é um exemplo, a forma e a temática de obras anteriores de que ela supõe conhecimento, e a oposição entre linguagem poética e linguagem prática, mundo imaginário e realidade cotidiana (JAUSS 1994, p. 54).

O público do festival de cinema do Recife vê Terremoto Santo a partir do repertório de que dispõe, o que inclui uma série de representações negativas – cômicas ou documentais – de grupos evangélicos. Em Berlim, ausente o conhecimento de obras anteriores, recebe uma referência externa, um elemento paratextual que medeia seu acesso ao filme e molda o horizonte de expectativas.

A eficácia política da arte

Dada a polêmica, é preciso perguntar-se de que modo a obra de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca age politicamente. Terremoto Santo enquadra-se em uma concepção do político na arte que surge já na fase final da Guerra Fria após a crítica, dentro do meio artístico, dos conceitos marxistas de classe e de meios de produção. Fazer arte política não poderia limitar-se a uma representação da classe social revolucionária nos moldes do que se fizera no muralismo mexicano, por exemplo. Passa-se, então, prioritariamente a uma arte política que faz a crítica do sistema de representação, abandonando-se toda ilusão de transparência da obra de arte – centralidade da mensagem transmitida sem consideração do suporte – sem problematização do sistema de representação (FOSTER 1985, p. 139-56). Nesse sentido, Terremoto Santo não é um filme que representa os cantores pentecostais de Palmares. Antes de ser um filme sobre as possibilidades de representação do outro, ele é uma reflexão crítica sobre o sistema de representação e as relações de poder que ele cria ou reforça.

Ao refletir sobre a ação política da obra, o onde e o como exerce-se o opressivo, torna-se imperativo considerar a circulação das representações, quem tem acesso à obra e sob que condições. Teríamos, inicialmente, a impressão de que Terremoto Santo esbarra justamente nos limites desse sistema de representação que põe em questão. Estaríamos assim novamente diante do dilema do pintor peruano Quintanilla, que tendo representado a opressão, inadvertidamente reforça a realidade que buscava subverter. Em sua crítica do sistema de representação, Terremoto Santo, ao provocar o riso no festival de cinema do Recife, reforçaria a subalternidade dos sujeitos representados.

Há, no entanto, que se questionar se a eficácia política de uma obra depende, de fato, da transmissão da mensagem “correta”, chancelada pelo artista a fim de transformar eticamente a realidade do mundo. Jacques Rancière, em seu artigo “Os paradoxos da arte política”, publicado em O espectador emancipado, procura repensar o princípio da eficácia da arte, deslocando-a de uma prática de transmissão didática de princípios éticos para um campo que seria próprio às possibilidades do regime estético: a reconfiguração da experiência comum do sensível (RANCIÈRE, 2008, p. 56-92). Ele analisa a história de um operário, publicada durante a revolução francesa de 1848, que, contratado para refazer o piso de uma casa de luxo, interrompe o trabalho por um instante para, como se fosse o dono do imóvel, aproveitando uma janela aberta, deitar seu olhar sobre belos jardins. Segundo Rancière, essa apropriação estética por parte do operário “define a constituição de um outro corpo que não é mais adaptado à divisão policial dos lugares, das funções e das competências sociais” (RANCIÈRE, 2008, p. 68), sendo que “a possibilidade de uma voz coletiva dos operários passa, então, por essa ruptura estética, pela dissociação das maneiras de ser operárias” (RANCIÈRE, 2008, p. 69). Há ruptura estética, porque a narrativa inaugura novas possibilidades de experiência do mundo para esses sujeitos pela subversão do lugar que lhes era até então socialmente atribuído. A arte não opera aqui pela produção de um discurso político, mas opera politicamente pelo efeito que produz sobre formas de subjetivação e possibilidades de experiência do mundo.

Seguindo a reflexão de Rancière, deveríamos preocupar-nos não com a suposta mensagem política de Terremoto Santo, tal como elaborada externamente ao filme. Muito menos, deveríamos ater-nos à intenção dos diretores ao produzir a obra, já que “há uma política da arte que precede as políticas dos artistas, uma política da arte como retirada singular dos objetos da experiência comum, que opera por ela mesma, independentemente dos desejos que possam ter os artistas de servir esta ou aquela causa” (RANCIÈRE, 2008, p. 71). Essa obra, dentro dos espaços de exposição, nos festivais de cinema, constrói outro corpo para os fiéis-cantores representados? Há ruptura estética? Que os evangélicos produzam arte e que essa arte seja legitimada em espaços de arte contemporânea e em grandes festivais de cinema produz reconfiguração da experiência comum do sensível?

A propósito de Tarumã, em que uma mulher interrompe as filmagens para falar de sua experiência, Jean-Claude Bernardet observa: “O que espanta na fala da mulher? Espanta que ela fale”. O que espanta em Terremoto Santo? Espanta que os fiéis pentecostais da Zona da Mata pernambucana produzam arte, que sejam vistos, que circulem além do espaço dos templos em que os imaginamos. Esse espanto não implica nem um controle das possibilidades de interpretação do filme, nem uma avaliação ética das intenções dos diretores na produção da obra. O filme age politicamente enquanto imagem, sem que um discurso verbal deva, didaticamente, educar o público sobre o povo e seu lugar social. A ação política de Terremoto Santo é o espanto.

Referências

AMARAL, Aracy A. Arte pra quê? A preocupação social na arte brasileira 1930-1970. São Paulo: Studio Nobel, 2003.

BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

FOSTER, Hal. For a concept of the political in Contemporary Art. In: FOSTER, Hal. Recodings. Art, spectacle, cultural politics. New York: The New Press, 1985. p. 139-56.

GASSIOT-TALABOT, Gérald. La contestation est-elle possible? In: CASSOU, Jean et al. Art et contestation. Bruxelas: La Connaissance, 1968. p. 95-120.

GENETTE, Gérard. Seuils. Paris: Le Seuil, 1987.

GOBBI, Nelson. Do brega ao gospel, Bárbara Wagner investiga as relações entre cultura popular e os corpos, O Globo, 7 maio 2018. Disponível em: oglobo.globo.com.

JAUSS, H. R. Pour une esthétique de la réception. Paris: Gallimard, 1994.

RANCIÈRE, Jacques. Le spectateur émancipé. Paris: La Fabrique, 2008.


  1. Somos nós que traduzimos todas as citações em língua estrangeira ao longo do texto.

  2. O paratexto é o conjunto de elementos que acompanham, circundam ou prolongam um texto para apresentá-lo ao público leitor. (GENETTE, 1987).

  3. Exposição Corpo a corpo. A disputa das imagens, da fotografia à transmissão ao vivo, Instituto Moreira Salles, São Paulo, 20 de setembro a 30 de dezembro de 2017, curadoria de Thyago Nogueira.

  4. Nascida em Brasília, Bárbara Wagner estabeleceu-se muito cedo em Pernambuco, estado que concentra boa parte de sua produção fotográfica e cinematográfica. Jornalista de formação, Wagner migrou progressivamente para o meio artístico. Benjamin de Burca, artista alemão, trabalha há alguns anos no Brasil, sempre em colaboração com Bárbara Wagner.

  5. O autor agradece a Bárbara Wagner por entrevista concedida em 19 de janeiro de 2019, durante a qual a artista deu detalhes sobre o processo de produção de Terremoto Santo, além de situá-lo no conjunto de sua produção visual.

  6. Por exemplo, os esquetes Pastor Ezequiel (2018), disponível em: youtu.be, e Demônio (2013), disponível em: youtu.be.

Resumo:
Nosso artigo propõe uma análise da polêmica em torno de Terremoto Santo (2017), de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, buscando localizá-la, em um primeiro momento, na tradição de representação de pobres e periféricos na arte brasileira; e, em seguida, em uma série mais ampla de polêmicas geradas pela representação de grupos evangélicos na produção visual brasileira contemporânea. Interessamo-nos pelo problema da recepção como elemento chave da produção de sentido e, consequentemente, da controvérsia gerada pelo filme.

Palavras-chave:
Documentário; Imagem do Povo; Representação; Subalternidade.

 

Abstract:
This article proposes an analysis of the polemics around Holy Tremor (2017), film by Bárbara Wagner and Benjamin de Burca, aiming at locating it, at first, in the tradition of representation of poor and peripheric communities in Brazilian art. In a second moment, it will also relate the work to a larger series of polemics generated by the representation of evangelical groups in the Brazilian contemporary visual production. It suggests that reception is a key element in the production of meaning and consequently, in the controversy generated by the film.

Keywords:
Documentary; Image of the People; Representation; Subalternity.

 

Recebido para publicação em 24/02/2019
Aceito em 02/04/2019.