Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 51, n. 3, nov. 2020/fev. 2021
DOI: 10.36517/rcs.2020.3.a01
Uma dialética sem síntese:
a contribuição de Georg Simmel à Sociologia Histórica
A Sociologia Histórica se constitui como um exercício radical de reconstrução e aperfeiçoamento contínuo das teorias e dos conceitos sociológicos. Apesar de ser comumente considerada subdisciplina da Sociologia e, em última instância, das Ciências Sociais, atualmente enfatiza-se o eminente avanço da Sociologia Histórica na reflexão contínua sobre a historicidade inerente à abordagem teórica e ao aparato conceitual da teoria social. Tal caracterização da Sociologia Histórica é nociva a esse saber, uma vez que acaba por neutralizar seu papel radical de problematização de conceitos sociológicos (ADAMS; CLEMENS; ORLOFF, 2005).
Vale ressaltar que a própria Sociologia, de maneira geral, também compartilha dessa mesma característica. Tendo sua origem nas Ciências Sociais, a Sociologia por vezes confunde sua gênese a seu esforço próprio de formular conceitos capazes de analisar a multiplicidade de fenômenos sociais novos que surgiam com a emergência da modernidade. Assim, a Sociologia Histórica não deve ser definida como uma simples análise da realidade histórica por meio de conceitos sociológicos, mas sim como um esforço da própria Sociologia de reformular e aperfeiçoar seus conceitos a partir de seu uso (ADAMS; CLEMENS; ORLOFF, 2005).
Não por acaso, as duas tradições teóricas reconhecidas pela Sociologia Histórica, a tradição marxista e a tradição weberiana, surgiram de análises históricas de fenômenos problemáticos da modernidade, o que fomentou a construção de conceitos a serem mobilizados analiticamente em função da variedade, complexidade e mutabilidade da realidade analisada. O mérito de Marx e Weber consiste, portanto, no fato de terem explicitado a relação entre a teoria social e a mudança histórica. Por um lado, porque reconheceram que a emergência da modernidade motivou o surgimento das Ciências Sociais. Por outro, porque também destacaram a importância da teoria social como um meio de indicar soluções para os problemas que surgiram com a emergência da modernidade (DUNCAN, 2003).
Embora tenha sido negligenciada pela Sociologia Histórica, a teoria social de Georg Simmel também apresenta importantes contribuições para o exercício de aperfeiçoamento contínuo dos conceitos sociológicos. Aliás, sua formulação é ainda mais radical do que os argumentos levantados pelas tradições marxista e weberiana, uma vez que os conceitos centrais de sua teoria social possuem uma estrutura eminentemente histórica e dinâmica.
Posto isso, o objetivo deste ensaio foi apresentar a contribuição de Georg Simmel à Sociologia Histórica. Sendo assim, não buscaremos questionar ou problematizar a importância de Marx e Weber como fundadores da Sociologia Histórica, mas sim, posicionar a contribuição de Simmel como mais uma das tradições a serem consideradas nesses debate. Além disso, também buscaremos explorar o paralelo que existe entre os argumentos de Simmel e de dois autores contemporâneos da Sociologia Histórica: Abbott (2001) e Sewell (2005).
Para tanto, o artigo foi dividido em três seções, além desta Introdução e de uma conclusão, a saber: 1) Apresentação breve das contribuições de Marx e de Weber para a Sociologia Histórica. A respeito da contribuição de Marx, será fundamental analisar a construção do método do materialismo histórico e a ideia de uma estrutura subjacente à realidade histórica. Em relação à contribuição de Weber, por sua vez, será determinante esclarecer a natureza do método dos tipos-ideais e a ideia de multicausalidade; 2) Apresentação das contribuições de Simmel, com destaque para seus argumentos sobre o desenvolvimento histórico e sobre a construção da análise histórica. A ideia de que o processo histórico se desenvolve por meio da formação e transformação de coagulações temporais que instituem períodos históricos com amplitudes variadas e a associação entre o processo interativo [Wechselwirkung] e as formações sociais [Vergesellschaftungen] constituem os pontos nevrálgicos da formulação simmeliana; 3) Analisar, à luz da teoria simmeliana, algumas contribuições contemporâneas da Sociologia Histórica, com destaque para o conceito de ponto de inflexão [turning point] proposto por Abbott (2001), e a articulação conceitual de estrutura e evento sugerida por Sewell (2005).
A primeira tradição da Sociologia Histórica está associada ao esforço teórico de Karl Marx, o que significa que a formulação do materialismo histórico pode ser considerada o primeiro esforço sistemático de teorização do desenvolvimento histórico e de sua relação com a teoria social (DUNCAN, 2003). Seu modo de análise caracteriza-se pela tentativa de articular uma espécie de análise estrutural, baseada na relação dialética entre as forças produtivas e as relações sociais de produção, com uma análise conjuntural de trajetórias históricas que se formam a partir dessa relação dialética. De acordo com essa perspectiva, a análise da ação social, que é conjuntural, deve ser realizada em função de sua inserção nessa estrutura social subjacente.
Duncan (2003) acentua, contudo, que isso não significa que a análise marxista seja determinista, já que Marx sempre admitiu a complexidade irredutível da realidade social. Na verdade, isso significa que a compreensão da realidade conjuntural supõe a referência a estruturas subjacentes que podem ser desveladas por meio do método apropriado: o materialismo histórico. Para essa teoria, primeiramente, a característica central da emergência da modernidade é seu fundamento em um modo de produção revolucionário, o capitalismo, já que, na verdade, todo fenômeno histórico tem sua base estrutural em um modo de produção específico. Todo modo de produção, por sua vez, tem como base um nível específico de desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção correlatas.
Todo modo de produção é constituído, portanto, por uma síntese específica entre as forças produtivas aplicadas na produção das necessidades sociais e as relações sociais de produção. Isso quer dizer que o desenvolvimento histórico de uma sociedade deve ser analisado em função do desenvolvimento correlato de sua divisão do trabalho. Ao longo da história humana, essa divisão social do trabalho assumiu o caráter de uma exploração de grupos dominantes sobre grupos dominados a partir do controle sobre a propriedade dos meios necessários para a reprodução humana. O capitalismo representaria, nesses termos, a forma mais desenvolvida de divisão social do trabalho, ou seja, o tipo mais sofisticado já produzido na história de exploração de uma classe dominada, aquela que precisa vender sua força de trabalho para sobreviver, por uma classe dominante, aquela que detém os meios de produção.
Para Marx, portanto, a realidade histórica é construída por meio da disputa, latente ou manifesta, entre duas classes que se distinguem em função da propriedade dos meios de produção (DUNCAN, 2003). Esse processo se desdobra e se relaciona com aspectos da realidade que transcendem as relações econômicas, na medida em que a garantia da propriedade por parte de seus detentores depende da construção de um aparato jurídico, político e cultural que sustente e legitime essa posse enquanto um direito (DUNCAN, 2003). Nesses termos, a construção e o funcionamento do Estado burguês (as regulamentações jurídicas, a dinâmica de funcionamento da esfera pública e as disputas políticas estabelecidas no seu interior) constituem a garantia indispensável para a consolidação do regime de propriedade que sustenta o modo de produção capitalista.
Somente assim é possível compreender o modo como Marx constrói suas análises históricas em obras como O 18 Brumário de Luis Bonaparte (MARX, 2011) e As Lutas de Classe na França (MARX, 2012). Essas obras constituem narrativas que buscam estabelecer uma ligação entre os processos políticos conjunturais e a base sócio-histórica estrutural que lhe é subjacente. Nessas análises, a disputa política conjuntural é concebida como uma emulação da oposição de interesses entre a classe detentora dos meios de produção e a classe despossuída. Como também exerce o controle sobre os mecanismos institucionais que compõem a superestrutura, a classe burguesa dispõe de meios que permitem consolidar seu domínio, ao passo que a classe dos despossuídos não só precisa vender sua força de trabalho para sobreviver, como também não dispõe de acesso aos mesmos mecanismos institucionais que são mobilizados pela classe dominante para perpetuar seu poder. De modo geral, portanto, a disputa política constitui um desdobramento conjuntural do antagonismo estrutural entre as classes sociais. Isso significa que a mudança conjuntural participa do funcionamento da estrutura socioeconômica, mas não é capaz de engendrar sua transformação, já que, para tanto, é indispensável que o curso histórico produza uma síntese superior.
Marx e Weber desenvolveram teorias sociais que tinham como objetivo analisar o capitalismo e seus desdobramentos em outras esferas da realidade social. Assim como Marx, Weber também concebe a Sociologia como essencialmente histórica, o que significa que a análise da peculiaridade de um fenômeno social contemporâneo supõe a compreensão de como ele foi historicamente gestado. Muito embora não se possa negar que a teoria sociológica de Weber tenha partido de um esforço de complementar e/ou oferecer outra perspectiva em relação ao materialismo histórico, sua formulação teórica é bem distinta da marxista (HOLTON, 2003).
Segundo Holton (2003), algumas características gerais se revelam no modo como Weber concebe o processo histórico e sua análise. Primeiramente, tendo em vista o caráter histórico da Sociologia, toda análise sociológica deve partir de uma estrutura analítica empiricamente plausível. Weber também se opôs frontalmente ao determinismo histórico, além de ter rechaçado a existência de estruturas subjacentes ao processo histórico, o que o levou a construir análises que destacaram o caráter contingencial e complexo das organizações sociais e dos processos de mudança histórica. De acordo com sua perspectiva teórica, não há qualquer sentido intrínseco ou propósito final para o desenvolvimento histórico. Assim, o curso histórico é composto por uma multiplicidade de pessoas com uma variedade de interesses materiais e simbólicos que são, muitas vezes, conflitantes entre si.
Por conta disso, sua orientação analítica é notadamente multicausal, o que implica na necessidade de considerar, além dos elementos materiais (força produtiva e relações de produção), o significado que as pessoas atribuem às suas ações. Com isso, busca-se evidenciar como as crenças servem de referência para a ação cotidiana, ainda que haja, por um lado, uma insuperável tensão entre crença e ação e, por outro, uma associação complexa e de maneira alguma unívoca entre os fatores materiais e os fatores ideacionais na realidade histórica. A posição multicausal de sua análise fez com que Weber rejeitasse a existência de categorias exclusivas e construísse uma teoria sociológica radicalmente antissistemática, já que, na verdade, uma análise bem construída deve considerar a relação complexa e dinâmica entre diversos elementos da realidade social (HOLTON, 2003).
Nos termos do próprio Weber (2004), a complexidade da realidade social exige a construção de uma análise sociológica que considere a multicausalidade dos fenômenos sociais, ou seja, que dê conta de explicar as múltiplas conexões que dão forma aos fenômenos sociais. É justamente essa ideia que orienta a crítica que o autor dirige ao tipo de análise histórica desenvolvida por Marx, a qual consiste em “uma interpretação causal unilateralmente ‘materialista’” (WEBER, 2004, p. 167). De acordo com Weber, essa crítica não deve levar à substituição da causalidade materialista por uma causalidade que seja igualmente unilateral, mas de caráter espiritualista. Weber não contesta, portanto, os resultados da teoria marxista. Na verdade, sua crítica tem como foco justamente a unilateralidade da concepção de causalidade em Marx, a qual é subjacente ao método do materialismo histórico. Isso significa que tanto a interpretação materialista (fatores materiais) quanto a interpretação espiritualista (fatores ideacionais) da história possuem validade, são irredutíveis entre si e, por isso, devem ser concebidas como causas preliminares e parciais de uma análise multicausal da realidade histórica (WEBER, 2004, p. 167).
Além de enfatizar o aspecto multicausal da realidade social, Weber foi pioneiro no esforço de buscar uma fundamentação epistemológica das Ciências Sociais, o que o levou à formulação de uma rigorosa análise conceitual da história, embora isso não tenha motivado a formulação de uma estrutura teórica geral (HOLTON, 2003). Com base na crítica kantiana ao empirismo, Weber destacou que os fatos só são compreensíveis em função da intermediação de categorias de pensamento, convicção que está na base da formulação de seu método de análise: os tipos-ideais. Os tipos-ideais representam a pura expressão da abstração lógica de categorias causais inerentes às instituições e relações sociais. Derivados da própria realidade, os tipos-ideais são construídos como um padrão conceitual a ser confrontado com a realidade, como uma espécie de hipótese analítica que deve guiar a pesquisa empírica. O princípio básico desse método consiste em analisar a realidade empírica em função de sua proximidade e/ou distância em relação aos tipos-ideais que compõem um padrão conceitual. Apesar de serem abstrações, os tipos-ideais podem guiar a análise empírica porque são, na verdade, modelos conceituais construídos com base na análise e sistematização da realidade empírica. Os tipos-ideais representam, então, uma versão preliminar de primazia causal construída com base em uma coletânea prévia de casos empíricos (HOLTON, 2003).
Não é possível exaurir a importância da formulação teórica de Weber em poucos parágrafos, mas é importante frisar duas de suas principais contribuições: (1) o reconhecimento da multicausalidade da realidade social, o que permitiu destacar a importância de elementos materiais e espirituais na análise histórica; (2) o método dos tipos-ideais, que foi responsável por recolocar o papel das abstrações na análise de realidades empíricas. A formulação de Weber representa um avanço em relação ao materialismo histórico, seja por conta da negação de uma estrutura subjacente à realidade histórica, seja pela reconsideração da importância de elementos ideacionais na compreensão de fenômenos sociais, seja, enfim, pela orientação multicausal de sua análise. Na próxima seção, buscaremos demonstrar como Simmel apresenta novas contribuições a esse debate.
As contribuições de Marx e Weber são basilares para a Sociologia Histórica. Este ensaio não busca contestar sua importância, mas apenas destacar que outra tradição tem sido negligenciada nesse debate: a contribuição de Georg Simmel. Esse destaque é importante não só porque sua obra é original frente às demais, mas também porque sua formulação apresenta ainda mais radicalidade, já que os principais conceitos de sua teoria social têm raiz histórica. A seguir, buscaremos explorar os principais elementos da contribuição de Simmel à Sociologia Histórica.
O princípio norteador da teoria histórica de Simmel pode ser expresso por uma pequena alteração da clássica definição hegeliana de história, fato indicado pelo próprio autor: “A definição de Hegel segundo a qual só o espírito tem história deve ser completada: só o espírito vivo tem história.” (SIMMEL, 2011, p. 59). Esse curto comentário expressa a ideia central de sua teoria da história, que está baseada na concepção de uma dialética sem síntese. Isso se dá em virtude do fato de que, ao contrário de Hegel, para Simmel não há um télos de realização plena do espírito na história, sendo justamente essa incompletude insuperável que se pretende acentuar ao se referir à falta de síntese de sua dialética: o espírito vivo da história. O espírito histórico é vivo porque, apesar de se consolidar continuamente em formas bem demarcadas, jamais pode estar completo. Ele tende, é bem verdade, a encontrar pontos de coagulação e a alimentar estados de continuidade, mas a temporalidade da vida continua atravessando essas formas históricas, seja para reforçá-las, seja para transformá-las.
Essa dialética sem síntese pode ser expressa da seguinte maneira. O fluxo vital produz formas históricas específicas que se tornam autônomas ao se objetivarem. Esse mesmo fluxo constitutivo passa então a se orientar por essa objetivação, apesar de não deixar de exceder sua delimitação. Sendo assim, de alguma maneira o tempo permanece atravessando a história, dando-lhe vitalidade e imprimindo-lhe a instabilidade que a caracteriza. Uma vez constituída, a forma histórica passa a dar sentido a esse fluxo vital, na medida em que se torna o centro gravitacional do processo histórico. Não é por acaso que, para Simmel (2011), o problema da história se refere justamente à relação do fluxo temporal com a forma histórica. Posto isto, primeiramente é necessário delimitar o efeito do tempo na história para, em seguida, acentuar o modo como o tempo histórico se distingue do tempo cotidiano.
Deve estar claro, antes de tudo, que “Um conteúdo de realidade é histórico quando sabemos qual lugar ocupa em nosso sistema temporal.” (SIMMEL, 2011, p. 9), o que quer dizer que um evento qualquer, ainda que seja compreensível e coerente, não é ainda histórico se não possui uma posição determinada no tempo. O fato histórico ocupa, então, um ponto no curso da história de onde não pode ser retirado, já que seu sentido lhe é conferido pela relação que mantém com os eventos que o antecedem e o sucedem. Além de formar um conjunto de elementos que possui coerência interna, uma vez que “os fatos conhecidos da história se inscrevem em conexões causais [e] só a totalidade desses fatos constitui o conjunto que permite compreender cada um deles.” (SIMMEL, 2011, p. 12-13), cada evento histórico ocupa um ponto determinado e inalterável no curso temporal. “Nessa série total, cada conteúdo recebe um lugar de maneira infalível e, em princípio, inequívoca.” (SIMMEL, 2011, p. 13).
Não obstante sua relação constitutiva com o tempo, a forma da história está, de alguma forma, fora do tempo. Ocorre que, a despeito de sua origem dinâmica, toda forma histórica alcança um estágio de consolidação enquanto esfera ideal apartada do fluxo temporal cotidiano (SIMMEL, 2011). De acordo com essa perspectiva, são as formas históricas que conferem sentido ao fluxo temporal, apesar de estarem relativamente apartadas dele. Então, se, de um lado, a história é um produto do tempo, por outro, ela o orienta, o que quer dizer que um fato histórico, para se constituir, supõe duas exigências fundamentais. Antes de tudo, ele precisa estar situado no tempo e formar uma unidade coerente com outros fatos históricos. É essa articulação que o torna compreensível. Não obstante, o evento histórico também tem de ocupar uma posição claramente determinada e inequívoca dentro desse conjunto, formando, assim, uma união com os demais eventos, uma série coerente onde cada acontecimento singular ocupa uma posição determinada e é seguido por outros acontecimentos através de uma lógica interna estabelecida.
Com isso, Simmel (2011) pode diferir o tempo histórico do tempo cotidiano. O acontecimento temporal se encerra num ponto onde se pode determinar claramente sua relação com os eventos históricos que o precederam e os eventos que ele provocou, ou seja, “Só o ponto que, no tempo, é fixado entre tudo o que o precede e tudo o que vem depois dele confere a um conteúdo seu caráter histórico.” (SIMMEL, 2011, p. 16). Logo, é o conjunto dos acontecimentos que determina o significado e a posição de cada acontecimento histórico. Já o fluxo temporal cotidiano corre sem interrupções e demarcações fixas. Seu fluxo inexorável não permite que nenhum ponto se fixe a não ser quando assume a forma histórica, já que “os acontecimentos realmente vividos não têm essa forma [da história]: eles se estendem, ininterruptos, numa continuidade que se funde sem ruptura no tempo como tal.” (SIMMEL, 2011, p. 20). A realidade histórica vívida pode ser definida como a interseção produtiva dessas duas esferas. O tempo produz a história continuamente, embora seja a história que oriente o fluxo temporal que a produziu.
Mas como se dá essa objetivação histórica do espírito vivo? Como é possível essa transformação do fluxo vital em forma histórica? Essas questões nos apontam para a tarefa de desvendar o significado dessa transformação da vida em espírito histórico. Segundo Simmel, “Quando se tornam históricos, os conteúdos sofrem transformações que são específicas da forma da história. [...] O caráter vívido dos conteúdos não é eliminado, mas transformado.” (SIMMEL, 2011, p. 60). Logo, o importante agora é determinar em que consiste essa transformação.
De acordo com essa perspectiva teórica, essa transformação poderia ser definida como um processo de historização da experiência vivida, o que se refere ao resultado positivo – positivo porque produtivo – da tensão dialética insolúvel entre a vida e a história. Essa tensão é o que está na base do espírito vivo que caracteriza a forma histórica. Trata-se de um ordenamento específico de fatos com peso histórico, de tal maneira que eles, juntos, formem uma imagem coerente que apesar de se manter sujeita ao fluxo temporal, passa a subsidiá-lo. “Trata-se da transformação da sequência absoluta e contínua de eventos, da experiência que transcorre sem congestionamento, em imagem que apresenta, de um lado, um fechamento, uma espécie de moldura, e, de outro, uma justaposição de elementos continuamente sujeitos ao fluxo temporal.” (SIMMEL, 2011, p. 102-103).
De acordo com Simmel (2011), há quatro aspectos fundamentais a se destacar dessa transformação de vida em história. O primeiro deles se refere à organização cronológica dos acontecimentos históricos em séries integradas. Juntos, esses fatos formam unidades bem definidas ao serem divididos e distribuídos em sínteses lineares que possuem uma lógica interna objetiva. Não se trata, portanto, de uma ordenação aleatória, mas sim de uma ordenação baseada em um princípio objetivo que confere unidade a essa justaposição de acontecimentos. Essas séries ordenadas recebem o nome de “períodos”, isto é, correntes temporais que atravessam momentos com peso histórico separados no tempo e os organizam de modo coerente segundo um princípio objetivo qualquer. “A série histórica é construída de modo que cada um de seus pontos seja compreensível por meio dos que o precedem e só ele permita a compreensão dos que o sucedem. Definimos como histórico apenas esse tipo de série.” (SIMMEL, 2011, p. 68).
Outro fator importante na formação dessas séries temporais é que sua constituição supõe a formação de totalidades mais ou menos limitadas. Baseadas na unidade coerente da série temporal, essas totalidades têm como fundamento um conceito geral que ocupa seu centro ordenador. Sua análise exige uma concentração nos aspectos essenciais das séries históricas, ou seja, uma estilização mais ou menos rigorosa dos eventos distintivos que compõem determinada organização formal do tempo. Simmel (2011) se refere, inclusive, à formação de um quadro, de um todo com dimensões determinadas, cuja formação depende da constituição de uma unidade ideal que interliga uma série de acontecimentos históricos. É a ordenação de conjuntos da realidade em torno de ideias unificadoras que possibilita a formação dos arranjos coerentes de fatos que constituem as totalidades de eventos que caracterizam a forma histórica.
Esse procedimento organizador depende de duas operações relacionadas (SIMMEL, 2011). De um lado, é necessário que emerja do fluxo temporal um acontecimento que represente o centro a partir do qual a série é ordenada e a totalidade pode surgir. Como esse centro não é aleatório, já que está baseado em uma unidade real entre acontecimentos específicos, essa transformação supõe uma síntese, sempre relativa, que articule os diversos acontecimentos que compõem uma série temporal. Por outro lado, a formação dessas totalidades depende também da omissão de certos acontecimentos que não se encaixam na unidade dessa série temporal, já que apenas alguns eventos relevantes podem se encaixar coerentemente em períodos históricos determinados. Isso significa que a inclusão de fatos que ocorreram nesse período, mas não apresentam relevância, pode arruinar a coerência interna de uma série temporal. Por isso, um acontecimento “só se torna um elemento histórico por integrar-se numa cadeia complexa, feita de uma multidão de outros elementos, ao mostrar o fluxo vital que atravessa os acontecimentos e liga cada um deles a todos os outros.” (SIMMEL, 2011, p. 83).
A formação de séries ordenadas, por um lado, e a constituição de totalidades baseadas em unidades conceituais, por outro, fundamentam a transformação do acontecimento vivido em fato histórico. No entanto, essas definições são ainda um tanto vagas, pois podem existir períodos históricos significativamente curtos e períodos mais longos. Isso aponta para o fato de que há variados ordenamentos possíveis de períodos históricos, dentre os quais Simmel destaca dois que estão baseados em procedimentos específicos e, por isso, formam totalidades distintas. Como será demonstrado a seguir, um tipo de transformação não elimina ou impugna o outro. Pelo contrário. É comum inclusive que eles estejam associados na constituição – e também na análise – de uma forma histórica.
A primeira dessas transformações ocorre quando as séries históricas estão ordenadas a partir de marcos temporais, ou seja, acontecimentos que são decisivos o suficiente para se tornarem pontos de mudança da história. Segundo Simmel (2011), esse ponto de mudança, ou ponto de coagulação temporal, se forma através de uma imobilização do tempo vivido em pontos fixos cheios de consequências, ou seja, uma espécie de linha artificial que funciona como um divisor de águas: tudo o que ocorreu antes deste fato parece ter sido feito para produzi-lo e tudo o que segue a ele parece ter sido fruto de seu acontecimento. A série histórica – para frente e para trás – forma-se espontaneamente a partir da emergência desses pontos de mudança, os quais poderiam ser definidos como pontos culminantes de séries temporais ou coagulações temporais (SIMMEL, 2011).
Já a segunda forma que o tempo histórico pode assumir não se refere à emergência de um momento decisivo, mas sim ao deslindamento de lapsos de tempo relativamente amplos. O conceito escolhido por Simmel para definir essa formação é o conceito de estado ou fase histórica. Trata-se de uma forma distinta de cristalização histórica que se refere à formação de séries de acontecimentos que, tomados separadamente e considerados em conjunto, formam totalidades com contornos relativamente imprecisos. Esses estados históricos possuem certa coloração típica que vale quase como um símbolo que perdura com certa estabilidade. Trata-se, então, de um meio contínuo que se desenvolve entre acontecimentos descontínuos (SIMMEL, 2011).
Logo, se a coagulação do tempo histórico em acontecimentos marcantes acentua a descontinuidade produzida por sua culminação, a cristalização temporal em estados históricos acentua o inverso, ou seja, longos períodos que perduram e produzem uma espécie de continuidade que atravessa a descontinuidade dos acontecimentos decisivos que o compõem.
Esses estados se referem, então, à determinação relativamente crônica de séries históricas específicas, algo como o tom harmônico de uma música que não para de ressoar a despeito de sua variação melódica: “a vida é olhada ora como uma sucessão variável de acontecimentos singulares, ora, em cada um de seus períodos, como um ‘estado’ relativamente durável” (SIMMEL, 2011, p. 100). Quando a visão é mais ampla, destaca-se o estado histórico, já que “os detalhes adquirem a coerência de um quadro homogêneo, bem como certa estabilidade que o ritmo ansioso de cada um deles, considerado separadamente, não oferece.” (SIMMEL, 2011, p. 101).
Esses são os principais resultados da reflexão simmeliana acerca da forma histórica. Sinteticamente, pode-se dizer que a história é uma forma produzida pelo fluxo vital, mas que, uma vez constituída, alcança certa autonomia. Assim ocorre a historização da experiência vivida, que se processa através da formação de séries ordenadas de acontecimentos que formam totalidades coerentes de diversas espécies. Essas séries podem ser ordenadas a partir de pontos culminantes de coagulação temporal ou assumir a característica de estados relativamente duradouros.
Contudo, para se compreender de forma completa o modo como Simmel concebe o processo histórico, é necessário recorrer à sua teoria social, já que as coagulações temporais que marcam o tempo histórico revelam o processo de autonomização das formas sociais (as sociações) pela perspectiva temporal. Isso significa, de um lado, que as formas sociais constituem espécies de coagulações temporais, já que representam o resultado de uma trajetória histórica composta por uma série de acontecimentos interligados. De outro lado, essas formas sociais instituem o crivo regulatório que orienta o curso temporal, uma vez que, após se consolidarem, elas passam a subsidiar o curso histórico, mantendo o curso da trajetória histórica que as engendrou.
A articulação entre a teoria da história de Simmel e sua teoria social se baseia no princípio da unidade [Einheit], cuja origem arqueológica é o pensamento de Goethe. Em oposição a esse princípio, Simmel posiciona o princípio da demarcação [Grenzsetzung], cuja origem remonta à filosofia kantiana (SIMMEL, 1906). Segundo Simmel (1906), essas duas perspectivas de mundo [Weltanschauungen] não só são antagônicas, como também irredutíveis entre si e, por isso, oferecem formas divergentes de análise da realidade humana. É com base no princípio da unidade que Simmel (1890, 1906, 1908, 1922) articula sua teoria da história a sua teoria social, o que está na base da formulação de dois conceitos centrais de sua teoria sociológica: Wechselwirkung1 e Vergesellschaftung.2
Segundo Pyyhtinen (2010), esses dois conceitos representam as duas noções de social com as quais Simmel constrói suas análises. O conceito mais reduzido pode ser considerado um princípio de associação, o qual forma a base do pensamento simmeliano. Trata-se, afirma Pyyhtinen (2010), do conceito Wechselwirkung que está muito próximo das ideias de associação, relação, conexão ou vinculação. Esse conceito se refere à reciprocidade primordial da vida humana. Já o segundo conceito é derivado daquele primeiro e se refere a uma ordem sócio-histórica específica que se cristalizou como entidade relativamente autônoma a partir da contínua reciprocidade que caracteriza a vida humana. Essas formas sociais, chamadas por Simmel de Vergesellschaftungen, constituem unidades que se objetivaram e se tornaram autônomas a partir da continuidade do processo interativo.
Nota-se, portanto, que há uma ligação constitutiva entre esses dois conceitos. A dinâmica da Wechselwirkung resulta na formação da Vergesellschaftung. Quando se forma, a Vergesellschaftung passa a orientar a dinâmica da Wechselwirkung, ainda que, não obstante, a dinâmica da Wechselwirkung represente a possibilidade sempre iminente de transformação da Vergesellschaftung. Por isso, mesmo após estar consolidada, a Vergesellschaftung permanece sujeita ao processamento sempre instável das forças enlaçadas nos diversos nexos estabelecidos na realidade social, o que quer dizer que o fenômeno basilar da experiência humana é a Wechselwirkung, o nexo entre variados esforços de realização. Isso também indica que o conceito de sociedade deve ser volatilizado e perder sua substancialidade, tornando-se um conceito fluido e aberto à mudança, já que constitui uma unidade aberta e composta por uma pluralidade incontável e crescente de forças mutáveis.
Isso significa, de maneira geral, que a definição de sociedade proposta por Simmel a partir da articulação desses dois conceitos dinâmicos, Vergesellschaftung e Wechselwirkung, tem como fundamento o processo histórico que é caracterizado pela ideia de uma dialética com sínteses parciais, instáveis e transitórias. Sendo assim, a contribuição de Simmel não só apresenta méritos para se posicionar ao lado das tradições de Marx e Weber, como, na verdade, de algum modo apresenta a articulação entre história e sociologia de maneira radical, tendo antecipado, inclusive, formulações contemporâneas amplamente reconhecidas na tradição da Sociologia Histórica. Na seção seguinte, esse tema será explorado de forma mais detida.
Ao articular o curso histórico, de forma tão intrínseca, à formação e transformação das sociações (Vergesellschaftungen), Simmel (1890, 1906, 1908, 1922) buscou destacar a transitoriedade como o fundamento da realidade social. Tal decisão tem como implicação basilar a definição da vida social como um jogo em que as próprias regras que conferem significado a esse jogo também estão em disputa e podem ser alteradas de tal maneira que provoquem um movimento inexorável de transformação. Isso significa, grosso modo, que a estabilidade dos arranjos sociais depende da contínua reprodução de seus mecanismos de sustentação, o que supõe uma negociação complexa entre múltiplos agentes que podem agir segundo uma orientação estratégica, com base em padrões comportamentais ou em função de redes de relações interpessoais.
Contudo, as consequências dessa alteração de perspectiva devem ser ponderadas, pois substituir a estabilidade pela transitoriedade não implica necessariamente negar o caráter estruturante que é característico da realidade social. Isso quer dizer que os arranjos institucionais e as estruturas sociais são capazes de estabilizar o jogo social, embora não possam eliminar a tendência sempre latente da mudança. Apesar de suficientemente estáveis para se reproduzirem, os arranjos sociais trazem em seu bojo a possibilidade sempre iminente do desarranjo e do rearranjo.
Abbott (2001) e Sewell (2005), dois sociólogos contemporâneos que contribuíram decisivamente para o desenvolvimento da Sociologia Histórica, produziram reflexões que se aproximam dos resultados legados por Simmel. Embora não se possa garantir que tenham tido conhecimento da formulação simmeliana do tempo histórico, já que, inclusive, não há qualquer referência à teorização de Simmel em suas publicações, é possível afirmar que há uma importante aproximação entre os argumentos de Abbott e de Sewell e os argumentos de Simmel, com destaque para a articulação entre formação e transformação das unidades sociais, de um lado, e a transitoriedade histórico-temporal, de outro. Não obstante, além dessa afinidade geral, buscaremos demonstrar o paralelo que existe entre, de um lado, a ideia de coagulação temporal em Simmel e o conceito de ponto de inflexão de Abbott e, de outro, a concepção de estrutura de Sewell e o conceito de sociedade de Simmel.
De acordo com a formulação de Abbott (2001), o conceito de ponto de inflexão [turning point] tem natureza narrativa, uma vez que faz referência a dois pontos no tempo e não apenas a um. Sua principal característica é, portanto, sua extemporaneidade, ou seja, o fato de não ocorrer cotidianamente. Para compreender a natureza desse fenômeno, é necessário lançar mão de dois conceitos correlatos: trajetórias e transições (ABBOTT, 2001). Trajetórias são sequências de eventos interligados e interdependentes entre si, ao passo que transições são estágios que ocorrem no interior de trajetórias que são responsáveis por provocar mudanças radicais e redirecionamentos das trajetórias. Isso significa que a trajetória pode ser definida como uma sequência de eventos interligados por pontos de inflexão abruptos ou regimes históricos estáveis separados por transições não usuais.
As trajetórias possuem, assim, caráter inercial, na medida em que apresentam a tendência de se autoperpetuar e de se autorregenerar. Elas constituem processos sociais abrangentes que possuem caráter coercitivo e tendem a estimular a resiliência das estruturas sociais frente à possibilidade de emergência de combinações que possam ameaçar sua continuidade. Os pontos de inflexão, por outro lado, estimulam justamente as mudanças profundas de direção e de regime que são determinantes na formatação da estrutura e na definição das características centrais das próprias trajetórias (ABBOTT, 2001).
Como é possível notar, a proposta de articulação entre as ideias de trajetória e de transição através do conceito de ponto de inflexão (ABBOTT, 2001) apresenta um evidente paralelo com a definição simmeliana da forma histórica como uma série ordenada de eventos mais ou menos discretos que, por estar fundamentada em uma unidade conceitual, constitui uma totalidade. Assim como Simmel (2011), Abbott (2001) também concebe a possibilidade de múltiplos arranjos históricos para além do ponto de inflexão, os quais tendem a apresentar o caráter de estados históricos mais estáveis e duradouros. O que diferencia o argumento de Abbott (2001) frente à proposta simmeliana diz respeito ao modo como esse autor concebe a relação entre os pontos de inflexão históricos e as estruturas sociais subjacentes. É justamente esse elemento que buscaremos explorar a seguir.
Os pontos de inflexão são processos ou eventos narrativos que possuem, por um lado, duração temporal e, por outro, estruturação social (ABBOTT, 2001). Por isso, a trajetória pode ser definida como uma rede temporal vinculada a pontos de inflexão. Além disso, também é fundamental destacar que a mudança constitui o estado normal da realidade, o que significa que o mundo social estabelecido, para garantir sua continuidade, precisa dispor de mecanismos que permitam sua reprodução contínua (ABBOTT, 2001). Nesses termos, a estabilidade social pode ser definida como uma série de mudanças que visam reproduzir a estrutura social. Para que haja uma alteração dessa estabilidade, a rede de relações que mantém a estrutura precisa ser afetada, o que não depende apenas de determinadas ações dentro dessa rede, mas também da natureza dessa estrutura, ou seja, do modo como todas essas relações compõem um arranjo específico de relações, inclusive com estruturas correlatas.
Para entender como essa articulação proposta por Abbott (2001) entre a formação de pontos de inflexão temporal, de um lado, e a formação e transformação das estruturas sociais, de outro, representa um avanço em relação à formulação de Simmel (2011), será fundamental apresentar a apropriação criativa e refinada de Elias do conceito simmeliano de sociedade. Segundo Elias (1994), a sociedade ou a organização social deve ser concebida como uma totalidade mais ou menos incompleta que permanece aberta à esfera temporal e, portanto, referida tanto ao passado (à tradição) quanto às possibilidades abertas no futuro. Toda sociedade possui, então, uma forma mais ou menos discernível, mas que se mantém em fluxo contínuo e que, por isso, é mais bem definida como uma contínua mudança de formas vivas.
Esse todo estrutural e móvel que é a sociedade, por seu lado, reserva um lugar específico para cada indivíduo que comunga dessa forma de vida. Cada qual assume uma função restrita e tem de se adequar aos comportamentos apropriados a essa estrutura móvel e à sua função na estrutura (ELIAS, 1994). Na medida em que todo indivíduo está inserido no complexo de interdependência que constitui a organização social, é indispensável sua conformação ao arranjo que a constitui, o que exige que o indivíduo se molde às regras que mantém essa organização social e, consequentemente, desenvolva as potencialidades que sua posição nessa estrutura específica lhe concede como possibilidade e lhe exige. Toda organização social é formada, então, por uma vinculação interpessoal preexistente que constitui sua configuração própria específica e que pode ser definida como uma rede de funções interdependentes (ELIAS, 1994). Todas as pessoas estão ligadas entre si de maneira decisiva nas diversas redes de funções interdependentes que participam.
Por isso, para Elias (1994), o conceito de sociedade estaria mais afinado ao conceito de rede de tecido, uma rede onde múltiplos fios isolados estão vinculados uns aos outros em uma dinâmica de contínua reprodução e transformação. Esses fios recebem sua configuração própria em função da maneira como estão ligados uns aos outros e de sua relação recíproca. Dessa ligação entre os múltiplos fios que compõem uma rede surge um sistema ordenado de tensões onde cada um dos fios componentes concorre, cada qual de maneira específica, para a constituição dessa totalidade social, já que todos eles possuem uma função e uma posição dentro desse sistema. Segundo Elias, essa imagem é muito esclarecedora, mas pode incorrer num falseamento daquilo que vem a ser uma rede social, caso se desconsidere que essa rede não é estática e espacial, mas sim uma rede em movimento:
Isso é apenas uma imagem, rígida e inadequada como todas as imagens desse tipo. Mas, como modelo de reflexão sobre as redes humanas, é suficiente para dar uma ideia um pouco mais clara da maneira como uma rede de muitas unidades origina uma ordem que não pode ser estudada nas unidades individuais. Entretanto, as relações interpessoais nunca podem ser expressas em simples formas espaciais. E esse é um modelo estático. Talvez ele atenda um pouco melhor a seu objetivo se imaginarmos a rede em constante movimento, como um tecer e destecer ininterrupto de ligações. É assim que efetivamente cresce o indivíduo, partindo de uma rede de pessoas que existiam antes dele para uma rede que ele ajuda a formar. (ELIAS, 1994, p. 35).
Posto isso, pode-se dizer que o que Abbott (2001) pretende acentuar é que a estrutura social pode ser concebida como uma memória dos processos sociais. Com base nessa memória coletiva, os indivíduos podem definir as possibilidades abertas à ação humana e, por consequência, o modo como a estrutura se reproduz e pode ser alterada em função de pontos de inflexão. Logo, enquanto as trajetórias podem ser concebidas como processos que direcionam a mudança para a reprodução estrutural, os pontos de inflexão representam eventos inscritos nessas trajetórias que, além de possuírem extensão temporal, apresentam a potencialidade de alterar o direcionamento das trajetórias históricas. Essa alteração será possível se for capaz de provocar mudanças profundas no arranjo de relações sociais que estruturam as organizações sociais que subjazem às trajetórias históricas.
Se o conceito de ponto de inflexão de Abbott (2001), articulado à sua ideia de trajetória histórica, nos oferece a perspectiva temporal da relação entre a estrutura social e o processo histórico, o conceito de estrutura social de Sewell (2005) destaca a perspectiva estrutural dessa relação. Por isso, a apresentação da contribuição de Sewell (2005) tem como objetivo demonstrar como sua articulação conceitual estrutura-evento se aproxima e complementa o modo como Simmel concebe a sociedade por meio da articulação dos conceitos Vergesellschaftung e Wechselwirkung. Esse é o tema da próxima seção. Essa contribuição também permitirá uma compreensão mais pormenorizada da contribuição de Abbott (2001) já exposta nesta seção.
Para Sewell (2005), os principais problemas da aplicação do conceito de estrutura se referem a supostas implicações de seu uso: (1) a perda da eficácia da ação nas relações sociais, em função de um determinismo estrutural sobre a agência humana; (2) uma ênfase exagerada na estabilidade da vida social e a consequente miopia frente aos variados processos de mudança que compõem a estrutura social; e, por fim, (3) as aplicações contraditórias de seu emprego, ora assumindo características mais organizacionais e objetivas, ora aspectos mais culturais e ideacionais. Posto isso, segundo Sewell (2005), o uso do conceito de estrutura exige uma revisão que permita superar esses três problemas, o que supõe: o reconhecimento do papel da ação social, tanto na reprodução como na transformação da estrutura social; a definição do modo como é possível a mudança estrutural, a despeito da tendência de reprodução que caracteriza as estruturas sociais; e, enfim, a superação da divisão artificial entre os aspectos simbólicos e materiais da estrutura social.
Sewell (2005) destaca, primeiramente, a mútua determinação dos aspectos simbólicos e materiais que compõem as estruturas sociais, o que é realizado por meio de uma apropriação crítica do conceito de estruturação formulado por Giddens. Para Sewell (2005), na formulação de Giddens, as estruturas sociais são princípios que padronizam as práticas sociais por meio de regras, o que é possível em função do poder que as regras têm de reproduzir a vida social através da determinação de procedimentos generalizáveis a serem empregados na prática social. De acordo com essa perspectiva, as estruturas são esquemas virtuais cujos efeitos reais são as regras que, nesses termos, nada mais são do que recursos estruturais dispostos a reproduzir os esquemas virtuais na prática social. Logo, de alguma forma, para Giddens há uma determinação unívoca dos esquemas em relação aos seus recursos estruturais, o que Sewell (2005) rejeita ao sustentar que, na verdade, o que ocorre é um processo de mútua determinação entre os esquemas virtuais e os recursos reais. Isso porque a aplicação dos recursos reais por si só já pode provocar mudanças nos próprios esquemas virtuais. “Esquemas não delegados ou regenerados por recursos serão, eventualmente, abandonados e esquecidos, enquanto que os recursos que não estão referidos a esquemas culturais que direcionam seu uso podem se dissipar ou decair” (SEWELL, 2005, p. 137).
Já por meio do diálogo com Bourdieu, Sewell (2005) avançará em outros meandros da relação entre os esquemas virtuais (estruturas mentais) e os recursos reais (mundo dos objetos). O que Sewell (2005) destaca é o conceito de habitus de Bourdieu que, apesar de ter tido o mérito de articular reprodução e mudança social, foi incapaz de conceber a possibilidade de mudança endógena. Por isso, para Sewell (2005), o que deve ser feito é averiguar como as operações ordinárias das estruturas sociais podem gerar transformações estruturais, ou seja, definir de que forma é possível uma transformação estrutural endógena.
Tais mudanças estruturais endógenas ocorrem, primeiramente, em função da existência de uma multiplicidade de estruturas não homólogas cujo cruzamento tende a afetar a configuração dessas próprias estruturas (SEWELL, 2005). Isso ocorre em função da multiplicidade de relações possíveis entre os esquemas culturais e os recursos reais igualmente articulados entre si. Além disso, os esquemas virtuais dessas estruturas podem ser transpostos para outras estruturas e aplicados em casos não familiares, o que também tende a gerar mutações estruturais. Por outro lado, os recursos reais possuem uma polissemia característica, o que permite a incorporação de múltiplos esquemas culturais nas mesmas situações reais, bem como interpretações as mais variadas da aplicação desses esquemas culturais às situações, o que também tende a engendrar transformações estruturais.
Sendo assim, as estruturas podem ser definidas como séries de esquemas e recursos mutuamente condicionantes que orientam e constrangem a ação social e tendem a se reproduzir por meio da própria ação social. Mas essa reprodução não ocorre de forma automática, já que, sempre que constrange o enquadramento de uma relação social, a estrutura também se coloca à prova, seja porque as estruturas são múltiplas e estão entrelaçadas entre si, seja porque os esquemas culturais são transponíveis a diversos contextos de aplicação, seja porque os recursos são polissêmicos e não são predicáveis (SEWELL, 2005).
Embora seja válido sustentar que Simmel (1890, 1906, 1908, 1922) tenha antecipado a formulação de Sewell (2005) através do conceito Vergesellschaftung, por outro lado, não se pode negligenciar o fato de que a formulação de Sewell (2005) apresenta uma sofisticação muito maior que a de Simmel (1890, 1906, 1908, 1922). Isso ocorre porque elabora de forma mais esquemática a relação entre os aspectos simbólicos e materiais que compõem a estrutura social e porque define de forma sistemática como a ação social é capaz de reproduzir e transformar as estruturas sociais. Mas Sewell (2005) não para por aqui, já que, para complementar seu conceito de estrutura, recorre à teorização do evento histórico de Sahlins, conceito que, de certa forma, apresenta em outros termos a articulação conceitual entre Wechselwirkung e Vergesellschaftung proposta por Simmel.
O mérito da formulação de Sahlins foi ter apostado em uma relação mais balanceada, ao invés de unidimensional, entre estrutura e evento, o que implica na concepção de estrutura como o resultado acumulado de eventos pretéritos, ao passo que os eventos representam fenômenos que só podem ter significado por estarem imersos em uma determinada estrutura cultural (SEWELL, 2005). Por outro lado, os eventos também têm como marca a implicação de transformações estruturais, já que sempre podem violar as expectativas da estrutura que conformam sua emergência.
Nesses termos, mesmo quando uma estrutura se reproduz na prática social, ela está fomentando suas próprias transformações, o que ocorrerá sempre que essa reprodução afetar de alguma forma as categorias culturais que compõem seu esquema virtual. Logo, por mais que as estruturas possam de fato delimitar o curso da ação, toda aplicação de suas categorias na ação representa um risco para a estrutura, uma vez que todo evento tem o poder de alterar as relações entre as categorias culturais e, por consequência, a própria estrutura que é composta por essa rede de categorias culturais. Essa transformação pode ter caráter objetivo, o que decorre de uma inadequação da estrutura a um contexto específico de aplicação, ou caráter subjetivo, em função de sua aplicação segundo os interesses múltiplos e conflitantes dos agentes.
Apesar da pertinência da formulação de Sahlins, para Sewell (2005), é fundamental aprimorar seus principais resultados, sobretudo no que diz respeito ao seu conceito simplificado de estrutura. De acordo com Sewell, um conceito plural de sociedade, que tenha o mérito de admitir a possibilidade de múltiplas estruturas em intersecção, torna a teoria dos eventos históricos de Sahlins mais plausível e profícua. Segundo seus termos, as sociedades devem ser concebidas como uma série de estruturas culturais sobrepostas e intercaladas que possuem autonomia apenas relativa, já que sofrem influência dos símbolos e significados presentes nas outras estruturas com as quais estão relacionadas nessa complexa articulação estrutural que é a sociedade. Além desse caráter geral, o conceito múltiplo de estrutura também permite a consideração dos múltiplos interesses, capacidades, inclinações e conhecimentos que podem interferir na reprodução estrutural.
O objetivo da análise desenvolvida no presente artigo foi apresentar a contribuição de Simmel para a Sociologia Histórica através de três esforços articulados. Primeiramente, buscou-se distinguir sua formulação teórica das duas tradições dominantes na Sociologia Histórica: a tradição marxista e a tradição weberiana. Por isso, a primeira seção foi dedicada a uma apresentação rápida, e por isso mesmo incompleta, do modo como Marx e Weber conceberam o curso histórico e sua relação com as estruturas sociais. Da formulação de Marx, mereceram atenção especial os princípios básicos do materialismo histórico e a ideia de que haveria uma estrutura econômica subjacente às disputas políticas entre os agentes que efetivamente produzem a história. Da formulação de Weber, se destacou a ideia de que o curso histórico não está baseado em uma estrutura subjacente e que sua determinação decorre da influência de múltiplas causas articuladas entre si.
Na segunda seção foi apresentada, enfim, a formulação de Simmel, com destaque para a relação da forma histórica com o fluxo temporal, concebida sob a forma de uma dialética sem síntese, e para a fundamentação tempo-histórica das unidades sociais. Na seção posterior, o objetivo foi apresentar como a formulação de Simmel encontra paralelo na contribuição de dois sociólogos contemporâneos: Abbott e Sewell. Ocorre que, embora não haja qualquer referência explícita a Simmel nas publicações analisadas neste artigo, suas formulações se afinam de forma notória às propostas de Simmel, além de representarem formas mais refinadas de conceituações sobre a história, com destaque para o conceito de ponto de inflexão, de Abbott, e para a ideia de articulação complexa entre múltiplas estruturas abertas e mutáveis que é proposta por Sewell.
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Apesar das inúmeras tentativas de tradução desse termo, nenhuma das alternativas disponíveis se mostra suficientemente apropriada. Primeiramente, esse conceito é construído por meio de uma verbalização, função desempenhada pelo sufixo “-ung”. A palavra que é verbalizada é o étimo wirken que significa “real” e compõe palavras como Wirklichkeit (realidade). Logo, o étimo Wirkung se refere a um processo que expressa um esforço de realização, de fazer com que algo venha à existência. Já o outro étimo que compõe o conceito Wechselwirkung, a saber, o étimo Wechsel-, denota reciprocidade, nexo, unidade, relação. Por isso, uma tradução livre do conceito Wechselwirkung poderia ser: “nexo entre esforços processuais de realização”.↩
Embora seja continuamente traduzido por “sociação”, o conceito Vergesellschaftung também é intraduzível, o que nos exige uma explanação acerca de seu significado. Assim como no conceito anterior, Simmel se vale da verbalização para indicar dinamicidade. Nesse caso, a base de sua construção conceitual é o étimo alemão sociedade [Gesellschaft]. Logo, Vergesellschaftung pretende apontar para o fato de que a sociedade é uma forma processual e que, portanto, não pode ser tratada como algo fixo e imutável, mas sim como algo em constante constituição/transformação.↩
Resumo:
O objetivo da análise desenvolvida nesse artigo é apresentar a contribuição de Simmel para a Sociologia Histórica através de três esforços articulados. Primeiramente, busca-se distinguir sua formulação teórica das duas tradições dominantes na Sociologia Histórica: a tradição marxista e a tradição weberiana. Por isso, a primeira sessão é dedicada a uma apresentação rápida do modo como Marx e Weber concebem o curso histórico e sua relação com as estruturas sociais. Posteriormente, é apresentada a formulação de Simmel, com destaque para a relação da forma histórica com o fluxo temporal, concebida sob a forma de uma dialética sem síntese, e para a fundamentação histórica das unidades sociais. Para finalizar, é indicado como a formulação de Simmel encontra paralelo na contribuição de dois sociólogos contemporâneos: Abbott e Sewell. Nesse ponto, destacam-se o conceito de ponto de inflexão de Abbott e a articulação complexa de uma multiplicidade de estruturas abertas e mutáveis que é proposta por Sewell.
Palavras-chave:
Sociologia histórica; Georg Simmel; multiplicidades de estruturas; fluxo histórico.
Abstract:
The objective of the analysis developed in this paper is to presente Simmel’s contribution to Historical Sociology throuhg three articulated efforts. Firstly, it is intended to distinguish its theoretical formulation from the two dominant traditions in Historical Sociology: the marxist tradition and the weberian tradition. Therefore, the first section is dedicated to a rapid presentation of how Marx and Weber conceive the historical course and its relation to social structures. Afterwards, Simmel’s formulation is presented, highlighting the relation of the historical form with the temporal flow, conceived in the form of a dialectic without synthesis, and the historical foundation of the social units. Finally, it is indicated how the formulation of Simmel finds parallel in the contribution of two contemporary sociologists: Abbott and Sewell. At this point, highlighting the concept of turning point, formulated by Abbott and the complex articulation of a multiplicity of open and mutable structures, proposed by Sewell.
Keywords:
Historical sociology; Georg Simmel; Multiplicity of structures; Historical flow.
Recebido para publicação em 12/04/2019
Aceito em 01/04/2020