Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 51, n. 1, mar./jun. 2020
DOI: 10.36517/rcs.2020.1.a03

 

 

O encarceramento feminino recente no Brasil:
uma discussão a partir do Rio de Janeiro, Manaus e Fortaleza

 

Simone Ribeiro Gomes OrcID
Universidade Federal de Pelotas, Brasil
sribeirogomes6@gmail.com

 

Nossa entrada no Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa (IPF), nos arredores de Fortaleza, em maio de 2017, coincide com um dia de indulto.1 Todas as personagens, salvo um membro do Conselho Penitenciário do Ceará (COPEN), eram mulheres, tanto a juíza, quanto a diretora do presídio e agentes prisionais. Contudo, frente à expectativa das presas de liberdade, veio a frustração de saberem que seriam ínfimas as liberadas nesse dia, dado que o crime de tráfico impedia a concessão do indulto, excluindo a maioria das mulheres encarceradas nessa instituição, naquele momento.

Essa – recorrente – cena, ilustra o presente trabalho, que versa sobre o aumento da presença de facções no sistema prisional brasileiro, sobretudo a partir de 2006, com o envio de grandes chefes do tráfico para os presídios federais2 e sua subsequente separação de seus sistemas de origem. A radicalização do crime sob a tutela estatal, de dentro das prisões, é abordada a partir da atual política de encarceramento em massa no Brasil, com um recorte de gênero, feminino, intensificado com a aprovação da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06), que criminaliza por tráfico, com pena de reclusão de 5 a 15 anos.

A hipótese principal desse trabalho é que a expansão significativa do encarceramento feminino deve ser entendida a partir das mudanças introduzidas com a legislação antidrogas de 2006, que aumentou significativamente o número de mulheres presas. Ao encarcerar mulheres, entrando nos presídios com quantidades irrisórias de entorpecentes para pagamento de dívidas de seus companheiros e filhos presos, o Estado contribui com o poder de organização e recrutamento das facções criminosas. Ademais, a expansão da população carcerária feminina se deu de forma mais acelerada que a masculina (INFOPEN, 2018), e seu crescimento não é acompanhado de uma estruturação compatível com as peculiaridades do encarceramento feminino, levando a diversas violações dos direitos humanos das mulheres encarceradas.

A metodologia utilizada foi qualitativa, com uma pesquisa de campo em três cidades brasileiras, Rio de Janeiro, Manaus e Fortaleza, com visitas etnográficas e entrevistas em profundidade com diferentes atores do sistema prisional,3 para abordar o recente encarceramento em massa feminino no Brasil.4 Tal recorte geográfico tem sua justificativa na importância desses contextos na rota do narcotráfico nacional e internacional, tal qual na proeminência das facções prisionais5 abordadas nesse texto. Os dez homens e mulheres entrevistados faziam parte do circuito ampliado de atores do sistema prisional dessas cidades, que incluía diretores de presídio, agentes penitenciários, membros de autarquias relativas ao aprisionamento, entre outros. Ademais, com base em uma observação etnográfica, a experiência das mulheres cumprindo pena foi analisada com a escolha de sujeitos considerados chave para o trabalho.

As experiências das mulheres cumprindo pena torna possível observar como a expansão das facções criminosas vem impactando o sistema prisional. Ademais, há um aumento sensível na vulnerabilização da vida das detentas, pois essas têm muito menos recursos econômicos, laborais e são as que se responsabilizam majoritariamente pelos encargos familiares. O texto divide-se em três partes, iniciando com uma discussão sobre as principais facções criminosas nos presídios brasileiros, sua expansão e impacto na demografia penitenciária, passando pelo aumento significativo do número de mulheres encarceradas a partir do faccionalismo masculino, e, finalmente, abordando o papel desempenhado pela Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06) nesse panorama.

Considerações sobre as facções criminosas nos presídios brasileiros

Graças a Deus o sistema tá na paz, guerra tá lá fora.

Luis,6 detento no CPPL 2, Fortaleza, maio de 2017

O Brasil possuía, em dezembro de 2014, uma população carcerária de 622.202 pessoas, correspondendo à taxa de 306,22 presos para cada 100.000 habitantes (BOITEAUX, 2017). Entre os anos de 1990 e 2014, a população carcerária aumentou 575% (CROZERA, 2017). Dessa forma, o aumento do encarceramento feminino e a intensificação da discussão sobre as desigualdades de gênero, tem lançado luz à discussão sobre a prisão nos últimos anos, trazendo maior visibilidade para a população prisional feminina (SERRA, 2013).

Os dados indicam que são 42.355 mulheres encarceradas e, segundo o INFOPEN (2018), cerca de 62% dessas cumpririam penas por tráfico de entorpecentes. Outro dado importante, presente nesse relatório, é de que apenas 6% dos crimes cometidos por mulheres tem como resultado a morte (homicídio e latrocínio), configurando delitos de menor gravidade e baixa violência. Esta situação torna-se mais agravante pelo aumento da população feminina ser proporcionalmente maior do que o da masculina. Entre 2000 a 2014, a porcentagem de mulheres em custódia subiu 567,4%, enquanto a média de crescimento masculino, no mesmo período, foi de 220,20%.

Para compreender esse aumento proporcional das mulheres em relação aos homens é preciso entender a dinâmica faccional dentro dos presídios. Essa contaria com a implicação de muitas mulheres de fora (que incluem as mães, companheiras e irmãs dos presos), ainda que entendamos que essa não seria a única razão para o crescimento dessa população presa, e tampouco desconsideremos a agência7 das mulheres em entrar para o crime.

Dentro do total de mulheres custodiadas, um número pequeno cumpriria um status de comando dentro de alguma organização criminosa, dado que a maioria ocupa posições subalternas como mulas ou meios de transporte de drogas para o interior de presídios, a fim de suprir as necessidades de maridos e companheiros. Isso posto, os doze perfis de mulheres ocupados no tráfico de drogas incluem: bucha (pessoa presa por estar presente na cena em que são efetuadas outras prisões), consumidora, mula-avião (quem transporta a droga), vendedora, vapor (quem negocia pequenas quantidades no varejo), cúmplice, assistente/fogueteira, abastecedora/distribuidora, traficante, gerente, dona de boca e caixa/contadora (RAMOS, 2012).

Ademais, persiste uma deficiência nos dados sobre o perfil de mulheres em privação de liberdade nos bancos de dados oficiais dos governos, contribuindo para a invisibilidade das necessidades dessas pessoas. No entanto, sabemos, segundo o INFOPEN (2014), que atualmente são 238 estabelecimentos mistos (17%) e 103 exclusivamente femininos (7%), o que aponta para uma maioria de mulheres presentes em estruturas mistas.

De maneira a observar esse crescimento significativo, importa afirmamos que, em 2009, o percentual de presas por envolvimento com o tráfico era de 48,31% (CARVALHO, 2013). Contudo, é também preciso considerar sua condição socioeconômica, dado que a criminalização dos delitos de tráfico de drogas parece ser o principal instrumento impulsionador desse processo de hiperencarceramento de mulheres.

O perfil das custodiadas inclui, notadamente, mulheres negras (cerca de 68%), jovens (50% teria entre 18 e 29 anos), com filhos, responsáveis pela provisão do sustento familiar, com baixa escolaridade (sabe-se que 50% delas possuem o ensino fundamental incompleto), e oriundas de extratos sociais desfavorecidos economicamente. Além disso, essas mulheres, no momento de sua prisão, exerciam atividades de trabalho informal (INFOPEN, 2018).

Observamos, em nossa visita etnográfica no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ),8 em Manaus, uma evidente superlotação, ainda que desde a rebelião, em 2017, a situação esteja sensivelmente melhor. No COMPAJ feminino, portanto, em maio de 2017 eram 61 presas em um local com capacidade para 72, que fazem demandas frequentes ao juiz federal, pedindo revisões de suas penas.

Para Crozera (2017), se a violência policial era essencial para entender os massacres de outrora, atualmente as disputas entre facções parecem ser mais importantes para compreender a dinâmica prisional. Assim, as rebeliões parecem ter se tornado parte importante do modus operandi das facções atualmente, no Brasil, quer seja como forma de barganha ou de visibilidade midiática. O número excessivo de presos e as péssimas condições carcerárias implicam no fortalecimento dessas organizações criminosas (BOITEAUX, 2017; PAIVA, 2019), tanto pela ampliação de suas áreas de influência, quanto pela oferta de organização e assistência dos líderes das facções aos demais presos.

Nesse sentido, contribuem para o aumento do faccionalismo os altos índices de encarceramento, que evidenciam uma correlação com a Lei de Drogas, de 2006. As alterações legais realizadas permitiram que usuários sejam enquadrados como traficantes, aumentando significativamente as prisões por conta desse delito, atualmente o maior responsável por prisões no país. Ademais, o Estado perde força dentro das prisões, com um número reduzido de agentes carcerários.

Em uma visita ao COMPAJ feminino, somos informadas que muitas das mulheres no local são faccionárias, pertencendo majoritariamente ao grupo criminoso Fação do Norte (FDN), ainda que não possuam um papel ativo nas rebeliões. No COMPAJ masculino, logo ao lado, a separação entre os membros de distintas facções está institucionalizada, segundo comenta Raul, membro do COPEN, porque teria ficado “impraticável, quatro mortes na UPP, 56 no COMPAJ e 2 na cadeia pública, já desativada. O presídio federal potencializa isso, o know how dos presos, que misturam presos comuns e faccionários”.

As facções prisionais (prison gangs), uma das formas de denominação de tais grupos, são, no presente texto, entendidas a partir da consolidação e controle do controle da vida prisional e da projeção de seu poder coercitivo para além das prisões. Para Paiva (2019), em que pese a frequência de uso desse termo, igualmente são utilizados “crime organizado”, “comando”, “bonde”, “tropa”, “família”, “irmãos”, entre outros termos para designar tais coletivos reconhecidos socialmente.

Esses grupos criminosos atuariam notadamente nas favelas e periferias brasileiras, tal como nas prisões, ganhando um espaço significativo na literatura brasileira a partir dos ataques ocorridos em 2006, em São Paulo, pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). Desde então, possuem um lugar importante na literatura sobre prisões, inscrevendo as dinâmicas entre prisões, facções prisionais e crime e sociedade na agenda de violência (LOURENÇO, ALMEIDA, 2013).

A hipótese mais comum sobre o fortalecimento desses grupos menciona como as elevadas taxas de encarceramento são utilizadas para o gerenciamento dos grupos atrás das grades. Para Salla (2013), as falhas na manutenção da ordem nos presídios seriam as principais responsáveis pelo avanço na concentração de poder na mão dos presos, redefinindo suas relações com os agentes dentro do presídio e entre os próprios, com a constatação frequente de um número grande de presos sendo conduzida por poucos agentes. Para José, agente penitenciário em um presídio no Ceará: “a defasagem de profissionais é muito grande, inversamente no mundo carcerário, temos 1034 presos e poucos agentes carcerários, a gente trabalha sempre na defasagem”. O diretor de um presídio, Altino, complementa “a facção não tá só sistema, tá na sociedade”.

Dessa maneira, é importante para o trabalho abordar as duas facções – e, logo, facções prisionais – de maior proeminência no debate público, o Comando Vermelho (CV) e o Partido Capital (PCC), respectivamente oriundas do Rio de Janeiro e São Paulo, que vem (re)organizando os grupos criminosos em outros estados, a partir de distintos fenômenos. Foge à intenção desse texto descrever como se dá a implantação desses grupos criminosos em outros locais, assim como sua coligação com facções e criminosos nesses espaços, ainda que seja importante reconhecer como a expansão se dá diferencialmente nos demais estados do Brasil.

Para tanto, apresentaremos algumas facções criminosas que possuem centralidade no debate acadêmico, e no sistema prisional, atualmente. O anteriormente nomeado Falange Vermelha, atual Comando Vermelho Rogério Lemgruber (CVRL) ou apenas Comando Vermelho (CV), ganhou notoriedade na década de 1980, a partir da ocorrência de grandes assaltos, atribuídos aos seus integrantes, mas estabeleceu seu controle sobre as redes de drogas à varejo no Rio de Janeiro, notadamente em suas favelas e periferias, no final desta década (MISSE, 2003). Constituído nos presídios, buscou constantemente criar acordos entre “donos” de bocas de fumo em áreas de varejo do mercado ilegal de drogas, o sistema prisional e as comunidades. Sua estrutura de funcionamento é horizontalizada, sem chefes, mas funcionando com decisões tomadas por um colegiado.

No Rio, outras grandes facções disputam a regulação dos espaços prisionais e do tráfico nas favelas, sendo elas, atualmente, o Terceiro Comando Puro (TCP) e a Amigos dos Amigos (ADA), que se aproximam, em sua vinculação com o tráfico de drogas enquanto fonte de recursos econômicos para a reprodução de suas estruturas organizacionais (HIRATA, GRILLO, 2017). Essa constitui, para os autores, uma diferença fundamental em relação à situação em São Paulo, dado que o CV enfrentaria, desde sua constituição, um conflito com outras facções, que fez com que esse defendesse com armamento pesado seus territórios, aprimorando das dinâmicas internas de vigilância e punição. Além disso, a instalação das Unidades de Polícias Pacificadoras (UPPs), desde 2008, teria sido um revés para o CV, que teve seus líderes9 isolados em presídios federais, dando lugar para criminosos antes inexpressivos.

Já o PCC, criado em 1993, ganhou a cena pública em 2001, a partir de rebeliões simultâneas em 29 estabelecimentos prisionais, no estado de São Paulo, para, em 2006, ficar conhecido pelos ataques em toda a cidade (HIRATA, GRILLO, 2017). Seu estatuto é rigoroso, com 18 artigos que regem a conduta de seus membros, com itens que incluem a luta contra a opressão do sistema prisional e valores relacionados à lealdade. Seu surgimento, em Taubaté, São Paulo, diria respeito à organização da massa carcerária contra as péssimas condições de encarceramento, que produziam ambientes de desconfiança, contra a violência estatal, mas também da ação das quadrilhas formadas por presos para roubar, estuprar e matar seus companheiros.

A respeito de sua atuação no sistema carcerário, Varella (2017) afirma que as penitenciárias paulistas, sob a hegemonia dessa facção, vivem períodos de paz prolongados, com uma sensível diminuição da violência. O autor também afirma que sua implantação num presídio, favela ou bairro periférico, necessitaria de poucos irmãos e a estratégia de transferência de seus líderes para penitenciárias do interior e de outros estados teria sido decisiva para disseminar suas ideias e assegurar seu poder.

Dessa maneira, além dos irmãos, membros afiliados à facção, constariam também os patrões das biqueiras, que apesar de não serem necessariamente afiliados, possuem parte de suas alianças visando à prática de roubos, diferentemente do CV, no Rio de Janeiro. Em relação às semelhanças e diferenças, os autores, primeiramente, utilizam a categoria de redes horizontais de proteção mútua (MISSE, 2003), para classificá-los. A adesão a esses coletivos, e os laços que os constituem, favorecem os seus integrantes em demandas contra as condições de encarceramento, confrontos com policiais ou disputas com comandos rivais. Ademais, as cada vez mais frequentes rebeliões no país começaram a acontecer, principalmente, após o assassinato de membros do PCC e da trégua entre PCC e CV, que durou mais de vinte anos.

Tendo em vista que nosso objetivo não é esmiuçar o funcionamento dessas duas grandes facções, mas considerá-las a partir, principalmente, do que Fernando10 chama de “imperialismo sudestino do crime”, é importante considerar o espraiamento dessas facções para outros estados da federação, que incluem o Amazonas e o Ceará. No ulterior, os governo do estado só reconheceu publicamente a existência desses grupos em seu território em 2016, após uma rebelião, apesar do que Julia, defensora pública, afirma: “o falatório das facções já existe desde 2014”. Ainda assim, são documentadas a existência de ao menos quatro facções no Ceará, Guardiões do Crime (GDE), Família do Norte (FDN), além do PCC e CV.

A facção GDE, conhecida pelos números 7.4.5, tem sua gênese, no Ceará, em uma ruptura dentro do PCC, por conta da contestação das taxas mensais e pelo excesso de regras no cotidiano.11 Seus membros, presos e egressos do sistema, estabelecem alianças para lutar pela hegemonia do crime no Ceará., em um conselho central, que integrou grupos locais que faziam o crime em determinados bairros de Fortaleza (PAIVA, 2019). Já a FDN, conforme afirmam Candotti, Cunha e Siqueira (2017), tem sua gênese no Amazonas, em uma contenda de vingança e morte de um detento no começo dos anos 2000, mas que teriam como certeza as lombras,12 rebeliões frequentes dentro do sistema prisional, com reivindicações dos detentos e detentas. Com um aumento de mais de 40% da população carcerária entre 2002 e 2016 no estado, a expansão desse grupo foi notória, chegando às fronteiras nacionais.

O ano de chegada das facções é disputado em cada estado, “há uma queda de forças e nessa o PCC está ganhando, os presos não dizem que são [de facções], talvez por medo”, segundo Julia (defensora pública, Ceará). Ademais, a superlotação dos presídios – provisórios e permanentes -, trabalhando frequentemente com mais de 50 % da lotação lícita, funcionaria como um incentivo para a adesão de novos membros às facções.

Ainda para Julia, “o Estado hoje está meio perdido entre a linha da humanização e da tolerância zero, e é nessa fragilidade que as facções crescem”, comenta, na Casa de Privação Provisória de Liberdade Agente Elias Alves da Silva (CPPL IV), unidade com 1780 presos, quase o dobro de sua lotação. Nessa instituição, os presos se dividiriam majoritariamente entre aqueles da “massa carcerária” e os afiliados ao CV e PCC, esses últimos em processo de transferência para a Casa de Privação Provisória de Liberdade (CPPL III), ao lado, quase exclusivamente de presos faccionários do PCC. Ainda segundo Aline: “há um divórcio das duas facções estaduais com as duas grandes facções, por isso há essa confusão generalizada no Brasil”.

Essa divisão das facções, quebrando a pacificação estabelecida em 2015, teria implicado no aumento da violência no sistema carcerário e fora desse. Barros et alii (2018) traçam o histórico desse evento, iniciado em 2015, com um pacto entre facções rivais ligadas ao tráfico de drogas em Fortaleza, que perdurou até meados de 2016, com mudanças significativas no cotidiano de territórios marcados pelo enfrentamento entre grupos criminosos e destes com a polícia. O que aconteceu foi notadamente uma proibição do ciclo de vinganças e homicídio entre grupos locais. Para Bruno, diretor de um presídio em Fortaleza:

[…] existia uma pacificação entre eles (paz nos bairros e dentro do presídio), agora com a quebra do contrato, tá morrendo muita gente. É a guerra entre eles e todo é comandado por eles. Inclusive se acontece algo lá fora, é comandado de dentro do presídio.

O deputado estadual Fernando,13 em Fortaleza, afirma igualmente que: “a redução dos homicídios estaria ligada à redução pela trégua de 2015-2016”. Além disso, conquanto a separação dos presos por facção represente uma demanda dos presos em todos os territórios investigados no texto – negada por muitos atores estatais em todo o país – essa começa a ser uma realidade no sistema prisional, sobretudo após a ocorrência de rebeliões. Altino, diretor de uma unidade prisional no Ceará, afirma que: “[a separação por facções] fica mais difícil para o Estado, mais fácil pra gente, mas tá deixando o preso fazer o que quer”. O diretor ainda complementa: “o Estado é muito moroso para tomar decisão, o crime não”.

Em Manaus, o panorama de crescente faccionalismo é, igualmente, uma realidade, sobretudo no que tange à facção local, FDN, que possui membros dentro do sistema juvenil. A diretora de uma unidade prisional Marcia, menciona um assassinato, em 2017, de um jovem de 16 anos por outro rapaz, a partir da ordem de matar um mataxana, ou seja, feminicida. Os jovens se dividiriam, majoritariamente, entre a FDN e o PCC, além dos integrantes do CV. Em Fortaleza, Maria,14 diretora do Instituto Penal Feminino (IPF), menciona que: “há presença de facções aqui, mas não sabemos exatamente quais são, aqui a gente teve GDE [Guardiões do Estado], elas ficaram armando e nós colocamos numa ala só”.

Finalmente, são diversas as regras dos faccionários em todo o país, mas essas convergem, geralmente, para o pagamento de taxas em troca de proteção. A “caixinha” é uma delas. Funciona como um imposto do tráfico de cada dono, que vai diretamente para a facção. Os valores arrecadados com as frequentes rifas do PCC, por exemplo, que custam 35 reais, também vão para o registro interno da facção, e como comenta o diretor Roberto,15 da Secretaria de Administração Penitenciária, no Rio de Janeiro, seriam sorteados casas e veículos, sendo a rifa um fonte de renda para facções oferecida entre integrantes, companheiros e familiares e os presos que não contribuem com carrinho (conhecido como a cebola), compram rifa.

Dessa maneira, é importante sublinhar o quanto, nas palavras de Julia, há uma ausência de prioridade do sistema prisional para o Estado, que torna a rebelião um poderoso instrumento de barganha. Para a defensora, em Fortaleza: “O sistema penitenciário não é prioridade de governo nenhum, só quando há motim ou rebelião. Além disso, tem isso que o Estado não cumpre acordos também, diz que vai fazer e não faz”.

A defesa de melhores condições carcerárias é uma bandeira de diversos setores da sociedade, além de ser uma preocupação crescente do próprio Poder Judiciário. As rebeliões acabam ocorrendo em consequência direta da piora das condições de encarceramento no Brasil nos últimos anos. Segundo a presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Carmen Lucia, “não se aboletam nem bichos, do jeito que se tratam os presos no país”. (DURÃO, 2017).

O faccionalismo masculino como detonador do encarceramento feminino

Nosso objetivo nessa seção é demonstrar como o aumento recente dos índices de encarceramento no Brasil afeta homens e mulheres, diferentemente, a partir da afiliação dos presos às facções criminosas. As prisões exclusivamente femininas, no país, datam do final da década de 1930 e início dos anos 1940. Anteriormente, as mulheres ocupavam celas específicas em estabelecimentos penais masculinos.

Tendo em vista que as facções vêm aumentando significativamente seus poderes e suas ligações com grupos de outros estados, em uma troca de informações, armas e drogas, há impacto direto na violência e vitimização nas cidades. Ademais, a transferência de internos reconhecidos como líderes tanto para a Unidade Especial Disciplinar (UED) e presídios fora do estado, na busca por dissipar o poder das facções (LOURENÇO, ALMEIDA, 2013), acabou por difundir e fortalecer seu comando.

É importante levar em consideração a ideia de que existe uma dominação nos presídios articulada à dominação nas ruas, em territórios como favelas e periferias. O funcionário da administração penitenciária do AM, Junior, afirma que “o Estado acaba consolidando as facções dentro do sistema, mesmo que não reconheça nenhuma liderança lá dentro, para que não ganhem força, principalmente em momentos de crise”.

Dessa forma, a associação não é livre, tampouco unicausal, mas buscaremos demonstrar que uma das possíveis causas para o aumento significativo do número de mulheres presas tem a ver com o aumento do poder de coesão e filiação das facções criminosas dentro do presídio. De acordo com o relato de Maurício,16 preso em Bangu IV, no Rio de Janeiro “com os presídios federais, começa a ter doutrinação, organização dentro dos presídios”. E essa nova ordem dentro do sistema prisional conta com uma estrutura de retroalimentação de drogas e pagamento de dívidas intracarcerárias que, invariavelmente, implica diretamente as companheiras, ex-companheiras e outras mulheres das famílias dos homens dentro do sistema. Ao buscar ajudar seus parentes encarcerados, as mulheres acabam, elas mesmas, também presas.

Faz-se mister, igualmente, considerar os discursos morais produzidos a respeito das mulheres que cometem crimes. Dessa maneira, Maria, diretora de uma casa de custódia em Fortaleza, exemplifica: “no interior do Ceará é frequente que juízes mandem mulheres por penas altas, por porte de pequena quantidade de maconha (20 a 30g), e pior ainda porque são mulheres, ele afirma que não deveriam estar no crime”. Barbosa (2017) aborda essa questão, quando afirma que as mulheres submetidas ao controle penal deparam-se com julgamentos mais severos devido ao desvio de seus papéis de gênero, dado que delas são esperados um papel passivo no sistema criminal.

A informação supracitada nos foi dada em um estabelecimento em que a maioria das 750 internas estaria cumprindo pena por delitos de tráfico. Ademais, segundo Lucia, juíza federal que nos acompanha na casa de custódia:

[...] a situação dos presídios é complicada, porque anteriormente o Estado providenciava algum apoio para o encontro das presas com os presos da penitenciária vizinha, agora já não se pode fazer isso, por conta da situação complicada do Estado, favorecendo o fortalecimento das facções.

Conquanto seja importante explicitar os vínculos que levam ao aumento do encarceramento feminino, é preciso atentar para o fato de que não afirmamos, com isso, que as mulheres estariam desprovidas de agência, vontade própria ou entrariam para o tráfico apenas pela vontade de seus (ex) companheiros. Ainda assim, endossamos as observações de campo de Lourenço e Almeida (2013), na qual as companheiras, mas também os advogados, seriam, muitas vezes, mensageiros para execução de ordens, de todos os tipos, de comandos nos bairros, veiculando proibições e permissões feitas pelas lideranças. Dessa maneira, os homens constariam como os maiores motivadores para a entrada das mulheres na rede do tráfico de drogas, especialmente seus parceiros afetivos, em iniciá-las em atividades criminosas (STEFFENSMEIER, ALLAN, 1996; ZALUAR, 1993).

Se a literatura demonstra que trajetória de muitas mulheres no sistema penitenciário se iniciaria com as visitas aos seus companheiros (VARELLA, 2017, ZALUAR, 1993), é importante prestar atenção às mudanças introduzidas com o endurecimento da lei 11.343/2006.17 Assim, com o crescente faccionalismo masculino, a expectativa é que às mulheres cada vez mais sejam conferidas tarefas como fazer depósitos para quitar dívidas de drogas de seus companheiros, além de levar drogas escondidas.

Dada à limitação estrutural e econômica para o acesso à vida digna pelas mulheres, o tráfico se apresenta como uma opção atrativa, possibilitando o desempenho das tarefas produtivas e reprodutivas. No Rio de Janeiro, por exemplo, segundo as observações de Henriques (2009), o desemprego atrairia muitas mulheres para desempenhar o trabalho de mula, em que muitas das acusadas estudadas prestavam um serviço para pessoas que desconheciam, ignorando a estrutura mais ampla do tráfico de drogas em que inseriam-se.

Ainda assim, é preciso afirmar que o envolvimento das mulheres no tráfico de drogas é invisibilizado, tanto na qualidade da informação produzida, quanto nas teorias sobre a motivação de comportamentos criminosos. Para Barcinski, (2012), dado que o tráfico é reconhecido como uma atividade masculina, participar dele daria às mulheres visibilidade e a possibilidade de se distinguir de outras mulheres. Sá (2011), por sua vez afirma que as identidades estabelecidas nas dinâmicas da violência urbana são fontes de estigmatização para os atores sociais, que as incorporam e a performam como se fosse natural. Contudo, para Zaluar (1993), o tráfico reproduziria a hierarquia de gênero da sociedade mais ampla, muitas vezes por sua invisibilidade social e econômica, de classe e de cor, que faz com que as mulheres construam identidades criminosas como forma resistência a sua posição marginalizada.

A centralidade da Lei de Drogas para o encarceramento feminino

Nosso objetivo nessas seção será discutir como o advento da Lei 11.343, de 2006, a Lei de Drogas, impactou significativamente o panorama do encarceramento feminino no Brasil. Os efeitos dessa lei devem ser lidos levando em consideração o endurecimento das penas, em seu artigo 33, de três a cinco anos para traficantes. Dessa forma, é importante afirmar que a legislação vem funcionando igualmente para o super-encarceramento de homens e mulheres, mas que dadas às relações estabelecidas frequentemente entre os faccionários, suas companheiras e ex-companheiras, além de demais parentes, vem sendo crescentemente envolvidas no crime de tráfico.

De acordo com a perspectiva de Barbosa (2017), há um notório avanço nessa legislação, dado que as antigas leis tratavam o combate às drogas majoritariamente como um assunto penal, e não uma temática situada com suas devidas matizes sociológicas. A distinção entre traficante e usuário de drogas, nessa legislação, se dava a partir da criminalização por meio dos artigos 16 (usuário) e 12 (traficante de drogas), além do modo como a polícia poderia ou não incriminar alguém relativo à infração com o comércio e uso de substâncias consideradas ilícitas.

Se outrora a atenção era exclusiva aos traficantes, agora ela é dividida com os usuários. Dessa maneira, em seu primeiro artigo, a Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas), “institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes”, representando um avanço no tratamento da temática.

A legislação anterior datava de 1976, e a atual lei acolheu todos os crimes relativos aos entorpecentes dispostos na antiga Lei nº 6.368/76. Contudo, houve um aumento considerável da pena privativa de liberdade prevista na nova legislação, que passou de 03 (três) a 15 (quinze) anos para 05 (cinco) a 15 (quinze) anos de reclusão, inviabilizando a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, dado que esta não se enquadraria nos critérios necessários do art. 44 do Código Penal para a substituição, que a prevê para os crimes os quais a pena não for superior a quatro anos. Igualmente, os limites da pena de multa passaram de 50 (cinquenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa e de 500 (quinhentos) a 1500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Conquanto a aprovação dessa nova legislação tenha representado um progresso, as mudanças trazidas na concepção da política de drogas na sociedade em geral mantiveram a diferenciação entre usuários e traficantes, um dos grandes entraves subjetivos nessa temática. Dado que influem tanto a arbitrariedade policial quanto o poder judiciário, na prática a proposta de criminalização do tráfico, aumentou as penas para tráfico de drogas e associação ao crime organizado, criando obstáculos para o acesso aos benefícios na execução penal, como, por exemplo, a progressão de regime. Dessa maneira, intensificada a repressão policial, o aumento da pena para o tráfico e o endurecimento do regime de cumprimento da pena, tem funcionado de forma a aumentar significativamente o número de mulheres nas prisões.

Ainda assim, a legislação foi apresentada como um avanço no bojo da discussão sobre a descriminalização paulatina de substâncias ilícitas, por conta da melhoria relativa da discussão sobre o porte de drogas, mas também endureceu as penas para pessoas de estratos mais desfavorecidos na sociedade. O objetivo inicial da nova lei era o de excluir a pena de prisão para o usuário de entorpecente. No entanto, o resultado obtido parece ter tido um efeito contrário. Assim, as mulheres entraram nas fileiras do tráfico comum, sendo crescentemente encarceradas por portarem substâncias em quantidades pequenas.

Essa nova legislação foi inserida em um sistema judiciário que pouco inovou na área penal e na redução da violência, insistindo em soluções clássicas, como o encarceramento massivo, que se provou ineficiente para redução da violência privada, e que convive com problemas como a tortura e uma alta taxa de letalidade policial, no Brasil (SINHORETTO, 2014).

E por essas razões é que Boiteaux (2017) afirma que, apesar dos benefícios recentes com a discussão pública sobre a Lei de Drogas, tanto a superpopulação carcerária, quanto as condições penitenciárias teriam piorado como consequência dessa política repressiva. Afinal, o aumento das prisões preventivas e a não priorização das penas alternativas seriam efeitos dessa nova legislação, com consequências diretas dentro das prisões.

Como exemplo do agravamento sensível das condições e número de prisões das mulheres após a legislação de 2016, há uma maioria de detentas que passaram a sofrer a acusação e serem sentenciadas quando flagradas, ao tentar entrar nas penitenciárias, para levar drogas para os companheiros, ex-companheiros e maridos presos (MENDES, SILVA; COSTA E SILVA, 2014).

Ainda assim, é importante reconhecer a legislação existente no Brasil para as mulheres no cárcere, partindo dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal (CF). Nesse percurso, desde 1988, segundo Boiteaux (2017), o tráfico de drogas foi convertido em crime hediondo, reduzindo sensivelmente os benefícios para os penitenciários. Contudo, a Lei de Execução Penal (LEP), de julho de 1984, garantiria o direito de amamentação para a mulher presa e seu filho (Lei 11.942/2009) e há uma resolução do CNPCP sobre amamentação (Resolução CNPCP 3, de 15.07.2009) com orientações específicas sobre as necessidades das mulheres encarceradas. Uma dessas diretrizes da LEP diz respeito à separação de estabelecimentos prisionais em masculinos e femininos, que representa um aspecto fundamental para a implementação de políticas públicas específicas, voltadas às mulheres.

Ainda assim, segundo Salla (2013), a LEP é frequentemente desrespeitada, com o recorrente uso de forças policiais para a condução do cotidiano nas prisões, por exemplo, algo que desconsidera a lei supracitada. Nesse aspecto, o maior problema não seria a ausência de leis, mas um sistema de justiça penal que cumpra as mesmas e que considere as condições especiais das mulheres nos diferentes momentos em que é ré e condenada. Araujo (2017), igualmente menciona uma violação da LEP importante para as mulheres, a saber, a construção de presídios em cidades do interior, que viola o direito dos presos de cumprir pena próximos de seus familiares, dificultando as visitas e quebrando importantes vínculos familiares.

Além disso, em 2014 foi instituída pelo Ministério da Justiça, uma portaria interministerial, a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional (PNAMPE).18 Por sua vez, no âmbito internacional, os direitos das mulheres no cárcere são protegidos pela Convenção de Belém do Pará e igualmente as Regras de Bangkok, aprovadas pelas Nações Unidas em 2010, com o objetivo de garantir que as mulheres presas e seus filhos possam preservar seus direitos enquanto elas cumprem suas penas.

Ademais, para Angarita (2007), há uma especificidade latino-americana no panorama do encarceramento feminino, que é relativa à predominância dos delitos relacionados as drogas, substituindo os crimes considerados como tradicionalmente femininos, como o infanticídio e aborto. Dessa maneira, a população carcerária feminina cresceu sensivelmente após a nova legislação, que endureceu as pena para os pequenos traficantes, alegando distinguir entre usuários e traficantes, mas que implica, na prática, que o local de residência da pessoa detida pela polícia siga sendo o parâmetro usado pela polícia e pelo Judiciário para distinguir o primeiro do segundo.19

Finalmente, segundo o INFOPEN (2014), há um número expressivo de mulheres condenadas (63%) com penas de prisão de até oito anos, revelador da persistência dessa pena como medida sancionatória, inclusive para os casos de crimes menos graves, impactando o total da população de mulheres encarceradas no Brasil. Ademais, o tráfico de drogas seria, por sua vez, o crime de maior incidência, respondendo por 27% do total de crimes cometidos pelas mulheres.

Considerações finais

Atualmente, o Brasil não possui somente a quarta maior população carcerária do mundo, mas também a terceira maior taxa de encarceramento em relação à população total, atrás apenas dos EUA e da China. Dessa forma, é importante discutir a extensão das consequências de políticas estatais que falham em assegurar as condições mínimas para o encarceramento – assistência social, médica, jurídica e de higiene. No que tange ao encarceramento em massa de mulheres, há também um número expressivo de presas provisórias, contabilizando cerca de 30% do total (ANGOTTI, 2017).

Em alguma medida, as ausências de condições mínimas estimulariam uma rede de solidariedade – e dependência – entre os presos, que procuram as facções criminosas, mobilizando recursos para o atendimento das famílias dos integrantes, como apoio à família e advogados, por exemplo. O sistema penal inflado retroalimentaria as facções criminosas, portanto, dado, notadamente às benesses oferecidas pelos grupos criminosos, que incluem o pagamento de advogados, viagens para as famílias e doação de cestas básicas, entre outras.

Assim, para Salla (2006) os grupos criminosos vem sido crescentemente tidos como responsáveis pelas rebeliões, ao passo que a morte de uma maioria dos presos não é de responsabilidade da intervenção das forças policiais, mas desses conflitos. Dentre as disputas presentes no ambiente prisional constam o controle sobre a massa carcerária e atividades ilegais dentro das prisões, além de reivindicações destinadas a proteger os membros, em estabelecimentos controlados cada vez mais pelos presos.

Não se pode esquecer, afinal, quais corpos passaram a ser crescentemente encarcerados com o endurecimento da Lei de Drogas, o de mulheres negras, que estiveram sob jugo de um sistema pena de estrutura profundamente discriminatória. Esse, mesmo antes da legislação de 2006, já influenciava a vida de homens negros, e a ameaça – racista e permanente – de apresentarem-se como o estereótipo de sujeito criminoso, e indiretamente na vida das mulheres negras, que eram separadas dos seus (ex) companheiros por causa da prisão. Contudo, o momento atual parece contar com um controle agravado na vida dessas mulheres, que é a de serem cada vez mais colocadas nos presídios do país (DAVIS, 2016).

Conquanto a discussão proposta afirme uma relação causal entre o aumento do faccionalismo masculino e o encarceramento massivo feminino, na última década, é preciso fazer uma ressalva. Assim, se uma concepção criminológica prévia creditava às mulheres o papel de vítimas passivas, que teriam sofrido com o ato ilícito ou que, em razão de seus estados especiais (puerperal, menstrual, hormonal, emocional etc.), fugiram do papel a elas imposto, e não um sujeito criminoso ativo, foge ao nosso intuito retirar de tal maneira a sua agência, quando envolvidas em atos criminosos. O objetivo nesse texto, portanto, foi justamente sublinhar como o aumento significativo da população carcerária impacta na vida das mulheres, faccionárias ou não.

Para finalizar, segundo Barbosa (2017), o aumento do encarceramento feminino tem relação direta com o tráfico ilícito de drogas, visto que este é o delito que mais condena mulheres no Brasil. A Lei nº 11.343/2006 representou um endurecimento da legislação de entorpecentes, seja pela ampliação dos seus tipos penais ou pela maior discricionariedade dada às agências policiais e juízes.

Referências

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  1. Indulto, a ser decretado pelo Presidente da República, com base no artigo 84, XII da Constituição Federal, significa o perdão individual ou coletivo da pena para determinados crimes, e sua consequente extinção, tendo em vista o cumprimento de alguns requisitos, como ter bom comportamento, estar preso há um determinado tempo, ser paraplégico, tetraplégico, portador de cegueira completa, ser mãe de filhos menores de 14 anos e ter cumprido pelo menos dois quintos da pena em regime fechado ou semi-aberto. No entanto, não podem ser beneficiados, os condenados que cumprem pena pelos crimes de tortura, terrorismo, tráfico de entorpecentes e drogas afins, e os condenados por crime hediondo (Lei Nº 8.072/90).

  2. BRASIL. Lei n. 11.343, de 23 de ago de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências, Brasília, DF, ago 2006

  3. Os atores entrevistados eram, em sua maioria funcionários do sistema penitenciário, nas três cidades. Dessa maneira, agentes penitenciários, diretores de presídio e presos foram ouvidos. Além disso, entrevistamos professores universitários.

  4. Apesar de não ser o objetivo do presente texto, é importante sublinhar a insuficiência de políticas públicas prisionais, na atualidade, para atender às demandas específicas dos direitos fundamentais das mulheres, sobretudo no que diz respeito às dinâmicas do aprisionamento em si e às práticas do cotidiano disciplinar da prisão.

  5. As cidades foram escolhidas a partir da representatividade e projeção nacional das suas facções prisionais, como o Comando Vermelho (CV) no Rio de Janeiro, a Facção do Norte (FDN) em Manaus e Fortaleza, por último, o Primeiro Comando da Capital (PCC), em São Paulo, por conta do volume de literatura produzido a seu respeito.

  6. Todos os nomes dos entrevistados e observados no decorrer do presente texto foram modificados, de forma a manter sua privacidade.

  7. A entrada de mulheres nas facções criminosas não é o objeto principal de análise do artigo. Para mais informações, ver: Barcinski (2009) e Spindola (2016).

  8. Para maiores informações, ver: g1.globo.com. Acesso em 2 de junho de 2019.

  9. Dentre eles, destacam-se os narcotraficantes de maior proeminência, conhecidos como Marcinho VP, Fernandinho BM e Elias Maluco.

  10. Ativista do hip hop, em entrevista realizada na cidade de Fortaleza – Ceará, em maio de 2017.

  11. Para Jania Aquino, em entrevista no site Unisinos. Fonte: www.ihu.unisinos.br. Acesso em: 31 de agosto de 2019.

  12. Para Siqueira (2016), as lombras, gírias do sistema penitenciário, seriam equivalentes às rebeliões ou motins em Manaus. É uma palavra de ordem que é anunciada pelos gritos de “A CADEIA LOMBROU!”, e que anunciam perigo eminente e a necessidade de mobilização e proteção. É o momento em que diversas “broncas” podem ser resolvidas.

  13. Em entrevista realizada na cidade de Fortaleza – Ceará, em maio de 2017.

  14. Em entrevista realizada na cidade de Fortaleza – Ceará, em maio de 2017.

  15. Em entrevista realizada na cidade de Fortaleza – Ceará, em maio de 2017.

  16. Em entrevista realizada na cidade do Rio de Janeiro, em setembro de 2017.

  17. Apesar disso, existem inovações jurídicas recentes, que possivelmente terão algum impacto sobre o fenômeno prisional feminino, como o Habeas Corpus HC 143641 do STF, que garantiu o benefício da prisão domiciliar para reeducandas gestantes, e o HC 118533 do STF, que retirou o caráter de hediondez dos casos de tráfico privilegiado, possibilitando uma série de benefícios na execução de pena de parcela significativa das mulheres detentas.

  18. Portaria interministerial 210-2014 – Ministério da Justiça.

  19. Fonte brasil.elpais.com.

Resumo:
O trabalho visa contribuir para o entendimento do aumento dos índices de encarceramento feminino a partir de uma reflexão sobre o envolvimento das mulheres julgadas com base na Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006). A partir de um trabalho de campo em presídios femininos e masculinos, em três cidades: Rio de Janeiro, Manaus e Fortaleza, além de entrevistas semiestruturadas com atores do sistema penitenciário, o texto aborda o papel das mulheres apenadas, na reconfiguração, que deriva em uma manutenção e reorganização das facções criminosas, dentro e fora dos presídios. Realiza-se uma revisão de literatura na qual constam estudos de gênero articulados à discussão prisional, além de textos clássicos da sociologia da violência.

Palavras-chave:
gênero; prisão; Lei de Drogas; facções prisionais.

 

Abstract:
This work aims to contribute to the understanding on the increase of the incarceration of women through reflecting on their involvement based on the Drug Law´s (Lei nº 11.343/2006). Starting on a fieldwork in feminine and masculine prisons, in three cities: Rio de Janeiro, Manaus and Fortaleza, as well as semistructered interviews with actors from the penitentiary system, the text revolves around the role of women doing sentence, on the reconfiguration, drifting in the maintenance and reorganization of prison gangs, inside and outside prisons. A literature review was done, in which studies of gender, articulated to the prison literature were listed, as well as classical texts from the sociology of violence.

Keywords:
gender; prison; Drug Law; prison gangs.

 

Recebido para publicação em 02/06/2019
Aceito em 02/09/2019