Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 51, n. 1, mar./jun. 2020
DOI: 10.36517/rcs.2020.1.d04

 

 

Celso Furtado:
intelectual reformista a serviço da (n)ação

 

Renato Nataniel Wasques OrcID
Universidade Federal do Mato Grosso, Brasil
renatowasques@gmail.com

 

Nós, intelectuais, que lidamos com ideias, não desconhecemos a importância da ação. Não fui outra coisa na vida senão um intelectual, mas sempre consciente de que os problemas maiores da sociedade exigem um compromisso com a ação. [...]. Nós, intelectuais, agimos porque temos um projeto que nos obriga a explicitar nossos propósitos últimos. Fora disso, estaremos cometendo uma traição a nós mesmos, pois teremos negado a função social que nos cabe desempenhar. (Celso Furtado, 1995a, p. 39).

Introdução

Celso Furtado é um dos economistas latino-americanos mais influentes de todo o século XX (BIELSCHOWSKY, 2004; BRESSER-PEREIRA, 2007; OLIVEIRA, 2001; SZMRECSÁNYI, 2001). Já há algum tempo passou à categoria de clássico, sendo considerado um autor indispensável para compreender o Brasil e para pensar o binômio desenvolvimento-subdesenvolvimento (GUIMARÃES, 2000; OLIVEIRA, 1983; TAVARES, 2000). Sua vasta e profícua obra, forjada ao longo de seis décadas, compreende quase quatro dezenas de livros e mais de uma centena de ensaios e artigos acadêmicos. Os seus livros foram traduzidos para onze línguas, o que certamente faz de Celso Furtado o intelectual brasileiro que mais editou livros de não-ficção no exterior na segunda metade do século passado. Formação Econômica do Brasil ilustra bem a influência deste economista político brasileiro. Tendo completado sessenta anos de existência, essa obra-prima do estruturalismo latino-americano1 encontra-se na sua 34ª edição, foi traduzida para nove idiomas e teve no Brasil cerca de 400 mil exemplares vendidos2.

Assim, em face do importante legado de Celso Furtado para o pensamento social brasileiro, e considerando a oportunidade da comemoração do centenário do seu nascimento, este artigo tem como objetivo apresentar sua trajetória intelectual e política, reunindo os elementos que permitem retratá-lo como teórico independente, intelectual reformista e homem público voltado à ação e a serviço da nação. Concomitantemente, busca-se desvelar as principais bases teóricas e as influências intelectuais que moldaram o sistema de pensamento e o projeto desenvolvimentista de Celso Furtado, em especial, aquelas que contribuíram para moldar sua maneira de pensar o desenvolvimento e o subdesenvolvimento.

Para alcançar esse objetivo, o artigo foi organizado em seis seções. A primeira traz uma discussão sobre o papel social do intelectual, tendo como fundamento teórico as ideias furtadianas e a Sociologia do Conhecimento mannheimiana. A segunda apresenta os anos de formação do autor. A terceira, por sua vez, abrange o período dedicado à Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). A quarta sintetiza a atuação de Celso Furtado junto a diferentes governos brasileiros. A quinta aborda os quinze anos que se seguiram ao golpe de Estado de 1964, referentes ao exílio político de Celso Furtado. Por fim, a sexta seção expõe a trajetória do autor entre o início dos anos de 1980, quando regressou efetivamente ao Brasil, e o seu falecimento, ocorrido em 20 de novembro de 2004.

A função social do intelectual

Qual o papel do intelectual na sociedade? No primeiro livro de memórias de Celso Furtado – A fantasia Organizada –, publicado, originalmente, em 1985, há uma passagem que ajuda a clarear essa questão: “estudei economia, sociologia, filosofia na busca de subsídios para entender o mundo, convencido de que também essa é uma maneira de sobre ele agir.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 102, grifos nossos). Esse trecho permite elucidar um determinado papel dos homens de ciência, qual seja o de fornecer elementos à compreensão da realidade, para, em seguida, propor ações voltadas a transformação qualitativa da sociedade.

Pode-se notar que o exercício da atividade intelectual se ancora em dois planos interdependentes: o do pensamento e o da ação. Assim, “é indispensável não esquecer que uma teoria só se justifica quando nos arma para conhecer a realidade e atuar sobre ela.” (FURTADO, 1961, p. 108). Esse binômio – ciência e ação –, presente no conjunto da obra de Celso Furtado, relaciona-se estreitamente com o pensamento de Karl Mannheim, segundo o qual “[...] pensar significa cada vez mais a unidade do diagnóstico com a terapia”, levando o intelectual a transformar-se “[...] num estrategista político e social que procura compreender, a fim de que outros sejam capazes de agir.” (BRAMSTEDT; GERTH, 1972, p. 13). Em Mannheim, assim como em Furtado, “[...] ação e conhecimento não são polos antitéticos de um mesmo processo, mas etapas concomitantes e integradas do mesmo [...]” (FORACCHI, 1982, p. 14).

Em A Fantasia Desfeita, publicado, pela primeira vez, em 1989, defende-se que, ao intelectual, cabe “[...] difundir a consciência crítica, precondição para que uma sociedade saia do imobilismo [...]” (FURTADO, 1997, t. II, p. 155). Esse raciocínio leva a conceber o intelectual como um elemento capaz de contribuir efetivamente para a abertura de novos horizontes no desenvolvimento da sociedade. É o que está no texto A responsabilidade dos cientistas, onde se lê que, “cabe a nós, intelectuais e cientistas, balizar os caminhos que percorrerão as gerações futuras.” (FURTADO, 2003, p. 3). Em livro publicado em 2002 – Em Busca de Novo Modelo –, o autor reitera esse papel dos trabalhadores intelectuais, dizendo:

Cabe a estes aprofundar a percepção da realidade social para evitar que se alastrem as manchas de irracionalidade que alimentam o aventureirismo político; cabe-lhes projetar luz sobre os desvãos da história, onde se ocultam os crimes cometidos pelos que abusam do poder; cabe-lhes auscultar e traduzir as ansiedades e aspirações das forças sociais ainda sem meios próprios de expressão. (FURTADO, 2002a, p. 37).

Em resumo, tem-se que conhecimento e ação são elementos indissociáveis, ou seja, “[...] o próprio da ciência é produzir vias para a ação prática.” (FURTADO, 1997, t. II p. 279). Nesse particular, reconhece-se que o intelectual comprometido com a esfera social, além de esforçar-se para captar o sentido do processo social em curso, deve produzir vias para a ação política modificadora. Essa maneira de conceber o papel social do intelectual, como alguém capaz de estabelecer canais de interlocução entre o pensamento e a ação, com o fim de reformar3 as estruturas inibidoras da dinâmica social, reflete as influências recebidas da sociologia do conhecimento de Karl Mannheim4. Para Rezende (2004), Furtado partilha com Mannheim “[...] da convicção de que há uma parte, mesmo que minoritária, de intelectuais, socialmente voltada para os interesses da sociedade como um todo.” (REZENDE, 2004, p. 240). Nesse sentido, o próximo trecho transcrito é bastante revelador:

A responsabilidade dos intelectuais em nenhuma época foi tão grande como no presente. [...] o cientista social [...] é o grande omisso da época presente, por comodismo ou covardia. Não se pretende que exista uma moral dos intelectuais por cima de quaisquer escalas de valores, as quais estão necessariamente inseridas nalgum contexto social. Mas, não se pode desconhecer que o intelectual tem uma responsabilidade social particular, sendo como é o único elemento dentro de uma sociedade que não somente pode, mas deve, sobrepor-se aos condicionantes sociais mais imediatos do comportamento individual. [...]. Porque tem essa responsabilidade, o intelectual não se pode negar a ver mais longe do que lhe facultam as lealdades de grupo e as vinculações de cultura. (FURTADO, 1964, p. 9-10).

Sem dúvida, o que se vislumbra é o recurso à noção de “intelligentzia socialmente desvinculada”, também presente na obra de Karl Mannheim. “Dotados de alta mobilidade mental e social, [...], esses elementos representavam para Mannheim ‘os advogados predestinados dos interesses intelectuais da sociedade em seu todo’.” (BRAMSTEDT, GERTH, 1972, p. 11). Em Os Ares do Mundo, publicado, originalmente, em 1991, Celso Furtado define esses “elementos” como um estrato social diverso “[...] capaz de desempenhar um papel autônomo no processo de tomada de consciência dos problemas mais cruciais que se apresentam a um povo.” (FURTADO, 1997, t. III, p. 295). Essa “tomada de consciência” é entendida pelo autor como pré-requisito à intervenção racional no processo econômico capitalista, cujo objetivo é superar os dilemas e tensões típicos das economias e sociedades de mercado. Ou seja, “ele partia da convicção de que fazia parte de uma elite intelectual, de uma intelligentsia, que seria capaz de reformar o mundo.” (BRESSER-PEREIRA, 2001, p 23). Ademais, a autonomia do intelectual diante das organizações e das associações políticas é, para o economista brasileiro, uma condição fundamental para preservar a liberdade criativa e a independência teórica, atributos indispensáveis à excelência das atividades desempenhadas pelo homem de ciência.

Mas como atuar racionalmente sobre as esferas da vida social? Não há dúvida, segundo pensam Celso Furtado e Karl Mannheim, que essa intervenção no processo social terá no planejamento a sua melhor solução. E quando Mannheim argumenta que “nossa tarefa consiste em construir um sistema social mediante o planejamento, mas planejamento de tipo especial: [...] planejamento para a liberdade, sujeito ao controle democrático” (MANNHEIM, 1972, p. 49), pode-se sentir a importância que essas formulações tiveram na construção das ideias furtadianas.

Delineia-se, pois, certa concepção de intelectual, referindo-se ao “[...] intelectual reformador, dotado de razão e ciência, em condições de intervir na história através do planejamento [...]” (VIEIRA, 2001, p. 158). Em outras palavras, vislumbra-se um tipo especial de intelectual, cujo pensamento visa não apenas descortinar as múltiplas dimensões da realidade, mas, principalmente, transformá-la, através de intervenções mediante o planejamento; elemento que, conforme a ideia de intelligentzia socialmente desligada, se encontra acima dos particularismos das classes e das associações e partidos políticos. Em suma, o que se observa é o perfil de homem de ciência voltado para os interesses da sociedade em seu todo, com a função de preparar a ação consistente no plano político, cimentado no compromisso ético-moral com valores universais.

A produção intelectual furtadiana encaixa-se nesse perfil, uma vez que, além de disseminar a consciência crítica, contribuindo para deslindar as razões do atraso econômico brasileiro e latino-americano, produziu meios para a ação política transformadora. Para ele, como já se mencionou, “[...] agir sobre a realidade [é], [...], a razão de ser do conhecimento.” (FREIRE d’AGUIAR, 2013, p. 14). Os seus escritos trazem, implícita ou explicitamente, um forte viés político-reformador, no sentido de que visa preparar a ação transformadora, dele ou de outros. Nessa perspectiva, sua obra deve ser concebida não como um fim em si mesma, mas como um meio para se alcançar um objetivo maior, qual seja a ação política reformadora das estruturas anacrônicas, responsáveis pela reprodução da situação de subdesenvolvimento.

A infância, a formação e o serviço público

Celso Furtado nasceu em Pombal, estado da Paraíba, em 26 de julho de 1920. Sua primeira infância, vivida no sertão paraibano, foi povoada de histórias envolvendo cangaceiros e milagreiros, além do icônico Padre Cícero. Um ambiente marcado pela violência, por rivalidades, conflitos, incertezas, além da arbitrariedade dos homens. No texto intitulado Aventuras de um Economista Brasileiro, o autor rememora esses seus primeiros anos de vida, narrando que “as histórias de violências, relacionadas a pessoas conhecidas e não simples mitologia, povoaram a [sua] infância. Essas violências referiam-se mais a atos de arbitrariedade, prepotência e crueldade que a gestos de heroísmo à western.” (FURTADO, 2013a, p. 36).

A vivência sertaneja deixou marcas profundas no autor, condicionando a formação de sua personalidade pública. Essa vivência, como reconhece Celso Furtado, foi responsável pela “[...] formação em [seu] espírito de certos elementos que consider[a] como invariantes [...]. [...], que enquadram o [seu] comportamento na ação e também [sua] atividade intelectual criadora.” (FURTADO, 2013a, p. 37-38). Esses elementos invariantes, responsáveis por emoldurar seu comportamento na ação, manifestaram-se sob a forma de três ideias-força, a saber: i) poder, arbitrariedade e violência tendem a dominar no mundo dos homens; ii) a luta pela transformação desse “estado de coisas” requer algo mais que simples esquemas racionais; e iii) “[...] essa luta é como um rio que passa: traz sempre águas novas, ninguém a ganha propriamente e nenhuma derrota é definitiva.” (FURTADO, 2013a, p. 38). Essas ideias-força trazem em gestação o perfil de intelectual comprometido com a transformação social, que singularizará a trajetória acadêmica e política de Celso Furtado.

Aos catorze anos, na capital paraibana, além de perceber “[...] que a vida de cada homem era uma obra a ser realizada em função de um fim.” (FURTADO, 2014, p. 247), o jovem Furtado descobriu, por influência paterna, sua primeira paixão intelectual, que foi a História. A propósito, afirmou: “minha paixão era a História, era entender a vida dos homens, dos homens vivendo, criando, inventando.” (FURTADO, 2004, p. 36). Vê-se, pois, que a História veio antes da Economia, e seu interesse por ela será perene. Aos dezoito anos, Celso Furtado manifestou nas páginas de um diário o desejo de “[...] escrever uma História da Civilização Brasileira.” (FURTADO, 2019, p. 48). Mais tarde, como se verá adiante, sua tese de doutorado, preparada sob a supervisão de Maurice Byé, trará o duplo enfoque da História e da Economia. O interesse do autor pela História culminará na obra intitulada Formação Econômica do Brasil, seu livro mais conhecido, publicado em 1959.

Além de apreciar o estudo da História, o jovem paraibano revelou forte interesse pela literatura. Esse interesse explica a sua dedicação ao estudo do latim durante os anos do curso secundário. A respeito disso, escreveu: “[...] o latim se me afigurava como a chave que me permitiria o acesso a uma cultura superior.” (FURTADO, 2013a, p. 39). O seu interesse pela literatura será duradouro, levando-o a pensar em ser “um novelista”, escritor de obra de ficção, ou seja, romancista. Aos trinta anos, ainda acreditava que sua forma de expressão natural seria a ficção literária.5 É importante registrar que o seu primeiro livro foi uma coleção de contos6, que representa “[...] o deslumbramento de um jovem saído do interior do Nordeste brasileiro face à riqueza de uma velha civilização que parece desmoronar.” (FURTADO, 1997, p. 15).

Nos anos de estudos secundários, no Liceu Paraibano e no Ginásio Pernambucano do Recife, onde cursou o que se chamava de pré-jurídico, Celso Furtado assimilou as primeiras influências intelectuais, classificadas sob três correntes principais. Em primeiro lugar, está a corrente positivista, a qual teve acesso precocemente, desde os quinze anos. Nesse sentido, “a primazia da razão, a ideia de que todo conhecimento em sua forma superior se apresenta como conhecimento científico, a ligação entre conhecimento e progresso, tudo isso se impregnou em mim como evidente.” (FURTADO, 2013a, p. 40, grifo do autor).

Em seguida manifesta-se a influência de Karl Marx, como subproduto do interesse de Furtado pela História, recebida, indiretamente, por meio da leitura de Max Beer, especialmente de seu livro intitulado História do Socialismo e das Lutas Sociais. Nesse particular, afirmou: “Marx não me influenciou como economista. [...]. Tampouco me interessou o debate da lei do valor em Marx. [...]. O que me impressionou foi a dimensão histórica valorizada por Marx.” (FURTADO, 1995a, p. 137). Através do marxismo, Furtado absorveu o princípio segundo o qual “[...] as formas sociais são históricas, portanto, podem ser superadas [...].” (FURTADO, 1997, t. II, p. 15, grifo do autor). A ideia de que era possível superar o fatalismo imobilizador causou profunda impressão sobre ele, haja vista o ambiente sociopolítico em que passou a sua infância, “[...] marcado por extrema rigidez das estruturas sociais, ‘irracionalidade’, mandonismo, obediência ‘irrefletida’, perfilhamento automático, resignação, total arbitrariedade do poder oligárquico [...].” (BRANDÃO, 2008, p. 31).

A terceira corrente de pensamento é a sociologia norte-americana, em específico, a antropologia cultural de Franz Uri Boas, com a qual tomou contato pela primeira vez aos dezessete anos, por intermédio de Gilberto Freyre. Em A Longa Marcha da Utopia, Celso Furtado faz a seguinte declaração: “Casa-grande e senzala revelou-me a dimensão cultural do processo histórico. O contato com a sociologia norte-americana corrigiu os excessos de meu historicismo.” (FURTADO, 1999a, p. 9). Em outra ocasião, afirma que o livro clássico de Freyre o ajudou a pensar a sociedade brasileira, “[...] libertando-nos do enfoque racista que até então dominava o pensamento brasileiro.” (FURTADO, 2004, p. 24).

Após concluir os estudos secundários, o jovem Furtado seguiu para a então capital nacional, Rio de Janeiro. Em março de 1940, depois de quinze dias de provas escritas e orais, foi classificado para a Faculdade Nacional de Direito, da Universidade do Brasil (atual UFRJ), numa época em que o ensino de Ciências Sociais dava os primeiros passos no país. Ainda não havia no Brasil um curso superior de Economia. “As grandes obras de Economia começavam a ser publicadas em espanhol pelo Fondo de Cultura Económica, do México.” (FURTADO, 1996, p. 63). Neste período de formação universitária, as três linhas de influência (positivismo, marxismo e Sociologia norte-americana) permaneceram e se entrecruzaram. A influência de Marx ampliou-se, através da leitura dos livros de Karl Mannheim, cuja Sociologia do Conhecimento permitiu a Furtado ligar a atividade intelectual à ação transformadora da realidade social. “Já não se tratava de ler livros de ciências sociais, e sim de buscar neles meios para atuar.” (FURTADO, 2013a, p. 41, grifo do autor).

Nessa época, o jovem universitário ampliou suas leituras nos campos da Sociologia, História Econômica e Economia. No campo da Sociologia, dedicou-se aos autores alemães: Ferdinand Tönnies, Georg Simmel, Hans Freyer e Max Weber. No plano da História Econômica, foi influenciado pelas obras de Antônio Sérgio, Camille Sée, Henri Pirenne e Werner Sombart. Também leu Max Scheler e Alfred Weber, especialmente, seu História da Cultura, além de obras específicas de Economia, de autores de língua inglesa. Isso leva a sugerir que o enfoque pluridisciplinar que atravessará a ampla e profícua obra de Celso Furtado tem nesse período suas raízes fundadoras.

No terceiro ano do curso universitário, “delineia-se o perfil do técnico de administração, que se desdobrará mais tarde no teórico do planejamento, e no primeiro ministro de Planejamento do país.” (FREIRE d’AGUIAR, 2014, p. 15). Foi por essa época que os estudos de Celso Furtado se afastaram do Direito para a Administração. Os problemas de administração e de organização despertaram grande interesse no jovem estudante de Direito, conduzindo-o à “[...] literatura americana sobre organização, tanto no que respeita a atividades estatais como empresariais.” (FURTADO, 2013a, p. 42).

O interesse por administração, organização, finanças públicas e planejamento foi decisivo para convencê-lo a prestar o concurso do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), para o cargo de assistente de organização, e para técnico de administração do Departamento do Serviço Público (DSP). Após ser aprovado em primeiro lugar em ambos os processos seletivos, foi trabalhar em Niterói, na Divisão de Organização e Orçamento do DSP. Iniciava-se sua carreira política de administrador público. A res publica revelará para Furtado “[...] uma problemática nova” e o encaminhará “para o estudo dos problemas sociais.” (FURTADO, 2013a, p. 39). Os seus primeiros textos acadêmicos, publicados nos anos 1940, relacionar-se-ão à área de atuação do autor no serviço público, isto é, aos campos da administração, organização, planejamento e orçamento.

Os estudos de organização levaram-no a pensar em planejamento, visto, primeiramente, num plano estritamente operacional, ou seja, no de estudar as técnicas de planejamento com vistas à elaboração do orçamento. Como ele mesmo diz: “nessa época, comecei a estudar os problemas do planejamento, por influência de autores norte-americanos. Fordismo, taylorismo, organização racional do trabalho: tudo ia me levando ao planejamento.” (FURTADO, 2004, p. 27). Sua visão de planejamento, originalmente vinculada ao âmbito tecnicista, ampliar-se-ia por meio da leitura dos livros de Mannheim. Através das ideias de Mannheim, Furtado pôde aproximar-se da cultura humanística, percebendo “[...] que há valores, que o planejamento não decorre apenas de uma boa estratégia. Há que estar iluminado por valores, para ser democrático. Mannheim me ensinou a ver a sociedade como um sistema de valores, antes de tudo.” (FURTADO, 2004, p. 33).

O planejamento emerge, então, como instrumento de ação reformadora, orientado para a reconstrução estrutural, que, no pensamento de Furtado, significará condição básica para a edificação de uma nova sociedade, democrática em sua totalidade, além de novas instituições, homens novos, valores novos. A Economia complementará essa visão de mundo. O autor chegou a ela “[...] por dois caminhos distintos: a história e a organização. Os dois enfoques levavam a uma visão global, a macroeconômica.” (FURTADO, 2013a, p. 45). Sobre seu interesse pela Economia, escreveu: “meti-me na Economia quando me convenci de que ela era a ciência social mais operacional, de maior importância para o mundo de hoje, e com maior capacidade para mudar o mundo.” (FURTADO, 2007, p. 77-78). A pesquisa econômica será para ele um meio de preparar a ação.

No mesmo mês em que concluiu o curso universitário (dezembro de 1944), Furtado foi convocado para integrar a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Meses depois, em sua primeira viagem para o exterior, embarcaria para o front, junto com seis mil soldados, a bordo do navio General Meigs. Serviu na Toscana, como oficial de ligação, junto ao V Exército norte-americano. Foi na Itália que ele começou a ver o mundo, tendo a oportunidade de observar “[...] na prática a importância da organização e do planejamento para um exército em tempos de guerra. [...]. Percebeu também o perigo de se transplantar o modelo de organização militar para uma sociedade democrática.” (FREIRE d’AGUIAR, 2014, p. 17). Ademais, a experiência da guerra demonstrou “[...] que uma adequada regulação do sistema econômico podia assegurar o pleno emprego, aspiração maior de povos que haviam sido vitimados por uma depressão sem precedentes.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 98).

De volta ao Brasil, manifestou a convicção de que não advogaria nem seguiria a magistratura. Seu desejo “é ser um escritor”, ou seja, dedicar-se “ao estudo de certos assuntos – política, administração, ciências sociais – e sobre eles escrever. Tenho vontade também de escrever obras de ficção.” (FURTADO, 2019, p. 88). Retomou suas atividades no DSP, como chefe da Divisão de Organização, e dedicou-se ao estudo – em traduções da Fondo de Cultura Económica – dos volumes de O Capital, de Karl Marx; Economia e Sociedade, de Max Weber; História do Pensamento Social, de Howard Becker e Harry Barnes.

O processo de reconstrução europeia estava em curso, o que despertou em Celso Furtado o desejo de retornar àquele continente para observar de perto as transformações que moldariam o quadro político-econômico internacional do pós-guerra. Afinal, “não é sempre que se pode testemunhar a gestação do futuro de toda uma geração.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 96). Os estudos de teoria de organização e a leitura da obra de Mannheim prepararam-no para o desafio que era apreender “[...] as opções com que se defrontava a Europa em reconstrução.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 100).

O plano inicial era fixar-se em Londres e frequentar a London School of Economics, “[...] uma escola de economia que se dava ao luxo de ter Karl Mannheim, o criador da sociologia do conhecimento, no seu quadro de professores.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 96). Esse plano, porém, foi malogrado. Seguiu, então, para a França, imbuído do “[...] desejo de conhecer o mundo, o vasto mundo, convencido de que os reformadores são movidos por ideias de pensadores que a eles se antecipam.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 102). Terá a oportunidade de viajar pela Europa, de observar o esforço de reconstrução europeia, o que lhe permitirá “[...] imaginar que [no Brasil] se podiam fazer coisas [...].” (FURTADO, 2011a, p. 395).

Em fevereiro de 1947, matriculou-se no Instituto de Ciências Políticas, em Paris, onde teve a oportunidade de frequentar os cursos de História do Socialismo, ministrado por Jean Baby; Marxismo, dado por Auguste Cornu; História das Ideias Políticas, oferecido por Jean-Jacques Chevallier; História dos Fatos Econômicos, ministrado por Charles Morazé; História Contemporânea e Princípios Econômicos e Políticos, dado por Jacques Rueff. Sobre esses cursos, declarou: “fascinava-me estudar a história das ideias, da técnica e da política do século XIX, pois estava a pensar que o descarrilamento da humanidade aí tivera início.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 102). Em outubro, começo de novo ano letivo, iniciou o doutorado em economia na Faculdade de Direito e Ciências Econômicas, da Universidade de Paris. Seguindo as recomendações de seu orientador, Maurice Byé, se concentrou em quatro disciplinas: Economia Política, História do Pensamento Econômico, Economia Social Comparada e Estatística Econômica. É nesse período que o autor, então com vinte e seis anos, começa a estudar Economia de modo sistemático. A essa altura, sua visão do mundo e suas convicções, no fundamental, estavam definidas. Desse modo, escreveu: “[...] a economia não chegaria a ser para mim mais que um instrumental, que me permitia, com maior eficácia, tratar problemas que [...] vinham da observação da História [...]. Pouca influência teve na conformação do meu espírito.” (FURTADO, 2013a, p. 45, grifo do autor).

Além desses cursos, Furtado seguiu as aulas de Economia Industrial, ministradas por François Perroux, que desenvolvia pesquisas em torno da ideia de “polo de crescimento” e sobre as “unidades interterritoriais”, que, anos depois, viriam a ser conhecidas como “empresas transnacionais”. “Essa linha de pesquisa, em que conjuntamente com Byé ele foi pioneiro, contribuiria mais do que qualquer outra para modificar a visão das relações econômicas internacionais.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 121). Em suas aulas, o economista francês buscava relacionar o desenvolvimento à ideia de poder, em contraposição às ideias de mecanismos ou automatismos, isto é, “[...] privilegiava o estudo das estruturas de poder. [...] a importância daquilo que ele chamou de ‘efeito de dominação’ nas relações econômicas em geral [...].” (FURTADO, 1996, p. 63). Numa entrevista concedida a Carlos Mallorquin, em abril de 1994, Furtado reconhece que Perroux o levou a pensar, prematuramente, na articulação entre “[...] economia e poder, com uma dimensão internacional.” (FURTADO, 1995b, p. 100).

Perroux transformou-se num dos principais mestres de Celso Furtado. No texto Retorno à Visão Global de Perroux e Prebisch, escrito em 1994, o autor destaca os elementos centrais da obra do economista francês, cujas formulações teórico-conceituais representam um esforço pioneiro para explicar as realidades de um mundo que se globalizava. O teórico dos polos de crescimento buscou elaborar uma “nova Economia Política”, tendo como referência um aparato conceitual ancorado nas noções de poder, estrutura, hierarquia e decisão, noções que o pensamento econômico convencional (neoclássico) insistia em ignorar por completo. Essas formulações exerceram forte influência sobre os cientistas sociais latino-americanos, incluindo aí, indubitavelmente, o próprio Furtado.

Outra ideia seminal, trazida pelo esquema interpretativo de Perroux, concerne ao conceito de macrodecisão, fenômeno que tem sua origem nas unidades dominantes, sejam elas o Estado, as economias centrais ou as empresas transnacionais. Esse tipo de decisão, que comanda os destinos de qualquer país, “[...] se funda em uma previsão global, isto é, numa avaliação antecipada do resultado final da cadeia de reações. Ela só é possível porque certos agentes estão em condições de exercer um efeito de dominação sobre os demais.” (FURTADO, 2000, p. 120). A noção de macrodecisão é importante, tanto para Perroux quanto para Furtado, porque é a partir dela que se torna possível unir, estreitamente, o desenvolvimento à ideia de poder, colocando em primeiro plano a relação entre poder, decisão e Estado, tríade conceitual que ocupará posição de destaque na vasta obra do economista brasileiro.

Os insights de Perroux contribuíram decisivamente para moldar a visão de Estado de Celso Furtado. Em entrevista concedida a Maria Rosa Vieira, em agosto de 2001, encontra-se a seguinte declaração: “o pensamento de François Perroux foi seguramente o que mais me influenciou, pela importância de sua teoria do ‘polo de crescimento’, que permite compreender que o crescimento econômico resulta de uma vontade política. Perroux me orientou para pensar o papel do Estado.” (FURTADO, 2004, p. 31). As aulas do economista francês levaram Celso Furtado a aprimorar sua visão sobre o papel do Estado na economia e sociedade capitalistas. Na mesma entrevista, Furtado afirma que o pensamento de Perroux foi o que mais lhe influenciou acerca da importância do Estado como promotor do desenvolvimento capitalista, mais ainda que as ideias do economista inglês John Maynard Keynes. Acompanhemos o diálogo:

Rosa Maria Vieira: Professor, o seu caminho para a descoberta do papel do Estado é um caminho que foi sedimentado pelo Keynes ou pelo Perroux?

Celso Furtado: Por Perroux. Keynes, em relação à questão do Estado, dá, digamos assim, a sinalização do ponto de vista econômico. É o teórico da dinâmica macroeconômica. Na verdade, ele criou a necessidade de uma dinâmica. O modelo keynesiano é um modelo estático, mas é claro que na sua época representou um tremendo avanço. Keynes valorizou o papel do Estado. A partir dele cabia pensar em política econômica e não mais, simplesmente, no mercado para regular a economia. Foi um salto enorme. [...]. A ruptura qualitativa na minha visão do mundo deu-se aí: compreender o papel do Estado, perceber que o desenvolvimento, no fundo, é obra de uma ação política, e que essa ação política poderia ter sido facilitada por uma certa estrutura social, uma classe burguesa, como houve na Europa. (FURTADO, 2004, p. 32).

A influência de Keynes sobre o pensamento furtadiano também foi importante, pois veio reforçar a ideia, absorvida precocemente, segundo a qual não há organização sem coordenação e controle. Os ensinamentos do economista inglês vieram, portanto, complementar as influências de Mannheim e de Perroux. Por meio da obra de Keynes, o autor chegou à conclusão de que “[...] todo capitalismo é em certo grau um capitalismo de Estado [...].” (FURTADO, 2013a, p. 46). Isso significa que, para funcionar, o sistema capitalista não pode prescindir totalmente de certo grau de centralização, coordenação e controle de decisões. Cristalizava-se, assim, a ideia de que, na Economia Capitalista, os centros de decisão mais importantes estão no Estado.

A influência da obra de Keynes foi igualmente decisiva para mim. Compreendo que toda decisão econômica envolve o exercício de uma forma de poder [...]. A isso devo que a visão do mundo econômico como um conjunto de automatismos, marca do pensamento neoclássico, me haja sido totalmente estranha. Nada é tão esterilizante, para o economista que se interessa pelos problemas do subdesenvolvimento, quanto essa visão. Contudo, não basta a ideia de poder, tal qual o exerce compulsivamente o capitalista. O poder também deve existir como um sistema. E, na economia capitalista, os centros de decisão mais importantes desse sistema se situam no Estado. Essa ideia de que a economia capitalista não poderia operar sem um certo grau de centralização de decisões, ou seja, sem uma estrutura superior de poder (todo capitalismo é em certo grau um capitalismo de Estado), derivei-a da leitura de Keynes. Graças a ela, pude compreender muito cedo o fenômeno da dependência econômica em sua natureza estrutural. (FURTADO, 2013a, p. 46).

Uma contribuição central de Keynes foi conceber a política econômica como um importante esforço de coordenação de decisões, rompendo, assim, com a visão otimista referente à eficácia do mercado como mecanismo diretor do processo econômico. Furtado (2012a) chama a atenção para esse importante legado do economista inglês: “ao pôr no primeiro plano a visão sistêmica das decisões econômicas, cuja disposição insuficiente seria a causa primária do subemprego dos fatores, lorde Keynes restabelecera a primazia do político sobre o econômico.” (FURTADO, 2012a, p. 299). A visão de Keynes, “permitia, digamos, captar a importância da política econômica e da política como algo de Estado, não como algo que surge nas instituições internacionais tão dominantes hoje em dia.” (FURTADO, 1995b, p. 100).

A macroeconomia de Keynes valorizou os centros de decisão em nível nacional. Essa visão, destaca Furtado (1981), permitiu visualizar a superação do subdesenvolvimento no quadro de um projeto político. “Tem aí sua origem a ideia de que sem uma ação de choque do Estado visando à reconstruções de estruturas, a determinar em cada caso, tenderia a perpetuar-se um ‘equilíbrio de subdesenvolvimento’.” (FURTADO, 1981, p. 30). Fica, pois, evidente o papel de relevo a ser desempenhado pelo Estado na superação do subdesenvolvimento.

No curso de doutorado, Celso Furtado também frequentou um seminário de leitura sistemática de Marx. Sobre as influências de Marx, tem-se a seguinte afirmação do autor: “[...] o marxismo nunca me seduziu, propriamente, como uma doutrina. A grande sedução do marxismo estava na sua macroeconomia, que era pioneira: poder olhar a sociedade como um todo. Mas, quando eu cheguei a ela, já tinha passado por Keynes, cuja macroeconomia era mais sofisticada.” (FURTADO, 2004, p. 39). Conforme o autor, suas leituras atentas de O Capital ocorreram “[...] quando [seus] conhecimentos de economia clássica [economia ricardiana] já eram avançados e quando a macroeconomia [keynesiana] já se havia imposto.” (FURTADO, 2013a, p. 45). Das leituras de O Capital, Furtado absorveu duas ideias-chave, cujo sentido passaria a condicionar sua forma de apreender os processos sociais e econômicos. A primeira diz respeito à importância decisiva do progresso técnico no processo de desenvolvimento econômico. “A outra é que os capitalistas tendem compulsivamente a acumular capital, ou seja, tentará romper todos os obstáculos que se lhes oponham nesse caminho.” (FURTADO, 2013a, p. 46, grifo do autor). Essa segunda ideia permitiu ao autor afastar-se da noção de estado estacionário, presente nos arcabouços teóricos clássico e neoclássico.

Após a defesa de sua tese – “L’Économie Coloniale Brésilienne – XVIè et XVIIè Siècle” –, que mereceu a mention très bien, o autor retornou ao Brasil, desembarcando no Rio de Janeiro em 25 de julho de 1948. Reassumiu o posto no DSP, chefiando a seção de Seleção e Aperfeiçoamento. Em setembro, após decidir abandonar a carreira na administração pública, passou a colaborar na revista Conjuntura Econômica, editada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ), e cujo chefe de redação era Américo Barbosa de Oliveira. Permaneceu, porém, pouco tempo como pesquisador econômico nesta instituição.

Interregno cepalino

No início de 1949, visando ganhar um horizonte aberto, Celso Furtado seguiu para Santiago do Chile. Na capital chilena, integrou o staff técnico da recém-inaugurada CEPAL, agência das Nações Unidas que se transformaria na primeira escola de pensamento econômico surgida na América Latina, e mesmo no Terceiro Mundo, cujas ideias terão ressonância inclusive na Europa e nos Estados Unidos da América. Iniciava-se, aos vinte e oito anos, o primeiro período de suas atividades como economista.

Na CEPAL, entrou em contato direto com os problemas do desenvolvimento dos países latino-americanos. Isso o levou a “[...] compreender a necessidade de ver as coisas globalmente, evitando o horizonte estreito do regionalismo.” (FURTADO, 2002b, p. 24-25). As suas atividades iniciais foram desenvolvidas no âmbito do grupo de estudos de Economia Industrial, sob a supervisão do economista norte-americano Milic Kybal. Para a Conferência da CEPAL realizada em Havana, em maio de 1949, o autor traçou uma análise da situação habitacional e de saneamento básico prevalecente na América Latina, constatando “[...] o quadro de extrema precariedade em que viviam as massas urbanas latino-americanas.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 147). Além dessa tarefa inicial, o economista brasileiro foi incumbido da preparação de um estudo que versava sobre o comportamento da indústria manufatureira latino-americana, que também integrou o primeiro Estudio Económico de America Latina.

Ao lançar mão do método histórico-comparativo, o autor pôde descobrir que o Brasil era uma economia atrasada na área latino-americana. “Foi um choque, mas também um desafio”, comenta Furtado (2002a, p. 71). Essa descoberta lhe impôs uma questão: “que razões haverá para esse atraso?” (FURTADO, 1997, t. I, p. 149). Essa questão fundamental apresentar-se-ia para ele como uma obsessão e, por muitos anos, pesaria em suas reflexões, levando-o, inclusive, a estabelecer como missão de vida o desafio de explicar as razões do atraso social e econômico do país.

Assim, empregando o enfoque histórico, o autor pôs-se a investigar as razões do atraso brasileiro à luz das particularidades do processo formativo do Brasil. Esse enfoque resultou numa visão essencialmente diacrônica da realidade social, ou seja, permitiu que Celso Furtado apreendesse “[...] o desenrolar dos acontecimentos no tempo, o encadeamento dos fatores que perpetuavam o atraso clamoroso da economia brasileira. [...].” (FURTADO, 1997, t. I, p. 163). As pesquisas para compreender as causas desse atraso levaram-no a refletir sobre a especificidade do subdesenvolvimento e a teorizar sobre o capitalismo periférico. “Que caminhos nos havia trazido ao subdesenvolvimento? [...]. Tratava-se, então, de um estágio evolutivo ou de uma conformação estrutural que tende a reproduzir-se?” (FURTADO, 2002a, p. 72-73).

Essas questões levaram-no a publicar alguns livros ao longo dos anos 1950, os quais traduzem o esforço intelectual do autor para compreender as determinantes da situação de subdesenvolvimento da economia brasileira. Tal esforço, porém, não se esgota em si mesmo, isto é, não é o fim pretendido. Na verdade, é o meio utilizado pelo autor para descortinar a realidade, condição fundamental para intervir sobre ela, transformando-a. A esse respeito, escreveu: “[...] a opção que fizera de dedicar-me ao estudo das ciências sociais, em particular da economia, fora fruto de meu desejo de entender o Brasil e também de tentar contribuir para dar um sentido de justiça social à ação de seu governo.” (FURTADO, 1997, t. III, p. 95). Celso Furtado concluiu, a partir de suas pesquisas, que as causas do atraso relativo do Brasil tinham raízes históricas, portanto, passíveis de serem removidas pela sociedade, que encontraria no planejamento o seu principal instrumento de luta contra o atraso acumulado em um período multissecular.

Raúl Prebisch, criador e diretor geral do Banco Central da Argentina de 1935 a 1943, além de “[...] único economista latino-americano de renome internacional” (FURTADO, 1997, t. I, p. 151), ingressou na CEPAL, como consultor temporário, em fins do mês de fevereiro de 1949, com a missão de elaborar um estudo sobre a situação econômica da América Latina. Esse estudo, conhecido como “Manifesto da CEPAL”, foi concluído às vésperas da Conferência de Havana. Celso Furtado, após perceber o valor seminal das contribuições teóricas do estudo, decidiu traduzi-lo para o português e publicá-lo na Revista Brasileira de Economia, cujo editor era Eugênio Gudin. “Essa a razão pela qual foi na versão em língua portuguesa que o famoso ‘manifesto’ [...] teve sua primeira ampla difusão.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 157).

Os debates suscitados pelos estudos preparados pela CEPAL permitiram a Celso Furtado “[...] perceber que o subdesenvolvimento configurava um quadro histórico qualitativamente distinto [...]. Não se tratava de uma fase, e sim de algo diferente, cuja especificidade cumpria captar.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 190, grifo do autor). Assim, tendo como objetivo apreender melhor a problemática do subdesenvolvimento, Celso Furtado, em 1951, seguiu para os Estados Unidos da América. Neste país, o autor visitou alguns centros de pesquisa e entrou em contato com proeminentes intelectuais, entre eles economistas, historiadores e antropólogos, tais como Bert Hoselitz, Charles Kindleberger, Earl J. Hamilton, Melville Herskovits, Theodore Schultz, Walt Whitman Rostow, Wassily Leontieff. Após esses contatos rápidos em alguns centros universitários, Celso Furtado retornou ao Chile convicto da relevância dos trabalhos preparados pela CEPAL. Pela primeira vez, surgia no Terceiro Mundo um arcabouço teórico que permitia pensar a realidade da periferia capitalista a partir dela mesma, sem o recurso a ideias elaboradas alhures. A esse respeito, escreveu: “estava convencido de que na CEPAL havíamos avançado em terra ignota, e que ocupávamos posições de vanguarda.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 197).

Após a Conferência do México, realizada em maio de 1951, Raúl Prebisch, agora Secretário Executivo da CEPAL, criou a Divisão de Desenvolvimento Econômico, cuja direção ficou a cargo do economista brasileiro. No centro da agenda de trabalho dessa nova divisão estava a seguinte questão: o que é um plano de desenvolvimento? Essa preocupação metodológica permitiu a Celso Furtado retomar e aprofundar os temas que lhe eram caros: administração, organização e programação em empresas privadas e estatais; Estado e democracia; necessidade de criação e implementação do planejamento. Sem embargo, penetrar nesta esfera não constituía tarefa fácil, haja vista a quase inexistência de literatura disponível sobre técnicas de programação econômica.

O desafio a ser enfrentado foi assim resumido pelo autor: “tratava-se de inventar técnicas que permitissem colocar diante da sociedade o horizonte de opções permitido pela estrutura existente e pelo esforço de mudança consentido7.” (FURTADO, 2013b, p. 96). Em síntese, impunha-se a necessidade de elaborar técnicas de planificação que permitissem desvendar o rol de possibilidades, bem como os custos de oportunidade envolvidos. Os resultados desse esforço intelectual foram reunidos no Estudo Preliminar Sobre A Técnica De Programação Do Desenvolvimento Econômico, um tipo de manual de técnica de planejamento.8

Em 1953, o economista brasileiro, que já acumulava larga experiência na administração pública, foi designado presidente do Grupo Misto de Estudos CEPAL-BNDE, com a missão de elaborar um estudo de projeções da economia brasileira. Essa tarefa permitiu a Furtado “[...] seguir de perto os acontecimentos em uma das fases mais convulsivas e decisivas da [história brasileira].” (FURTADO, 1997, t. I, p. 268). Era a oportunidade de ir além da discussão teórico-conceitual em torno da natureza do planejamento. Havia chegado o momento de demonstrar a “[...] viabilidade de sua utilização a partir da informação disponível, e de seu alcance prático como instrumento de política de desenvolvimento.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 288). Em outras palavras, apresentava-se a oportunidade de transitar do pensamento à ação. “O trabalho do Grupo Misto Cepal-BNDE foi fundamental para estudar os anos de 1950 no Brasil. Ali tínhamos a chance de aplicar uma metodologia que era recente e que se aplicou pela primeira vez no Brasil.” (FURTADO, 2009, p. 108). O primeiro relatório do Grupo Misto foi divulgado em 1955 com o título Estudo de um Programa de Desenvolvimento para o Brasil, e serviu de base para o Programa de Metas do governo Juscelino Kubitschek (1956-1961). “Na época, foi uma pesquisa de vanguarda, pois não se conheciam técnicas de planejamento de base macroeconômica.” (FURTADO, 1999a, p. 13).

Nos quatro anos seguintes, entre outras atividades, Celso Furtado dirigiu um grupo de trabalho sobre a situação econômica do México, com equipe integrada pelos mexicanos Juan Noyola Vázquez e Oscar Soberón Martínez, e pelo chileno Osvaldo Sunkel; cumpriu, em 1957, uma missão de assistência técnica na Venezuela; e, além disso, apresentou uma série de dez conferências no Rio de Janeiro. Após esse quadriênio, tomou a decisão de afastar-se da CEPAL, sem vencimentos, por um ano. Assim, depois de nove anos como economista daquela instituição, o autor seguiu, em outubro de 1957, para o King’s College, onde estagiou, sob a orientação de Nicholas Kaldor. Na Inglaterra, como bolsista da Fundação Rockefeller, passou o ano letivo de 1957-1958.

Nesse ano sabático, Celso Furtado frequentou seminários semanais sobre análise comparativa dos processos históricos do desenvolvimento econômico, comércio internacional e sobre taxas de juros. Em Cambridge, entrou em contato com James Meade, Joan Robinson, Nicholas Kaldor, Piero Sraffa e Richard Kahn. Entre seus colegas de seminários estavam o economista italiano Pierangelo Garegnani e o economista indiano Amartya Sen, cujo doutorado foi dirigido por Joan Robinson, que “[...] acabava de publicar sua grande obra Accumulation of Capital, possivelmente o maior esforço, desde Marx, para penetrar na lógica da acumulação nas economias capitalistas.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 328). Após refletir sobre esse período, o economista brasileiro deixou o seguinte depoimento: “tenho a impressão de que Cambridge me permitiu conferir certas coisas, dar maior precisão à minha linguagem, ser mais rigoroso na análise econômica.” (FURTADO, 2004, p. 37).

No King’s College, além dos estudos de natureza teórica, Celso Furtado se concentrou em ordenar e depurar suas ideias em torno dos elementos significativos na formação econômica do Brasil. O resultado disso foi a publicação de Formação Econômica do Brasil, seu livro mais conhecido e considerado um clássico do pensamento social brasileiro (BIELSCHOWSKY, 2004; IGLÉSIAS, 1971; MALLORQUIN, 2005). A novidade metodológica do livro, elogiada por historiadores como Fernand Braudel, estava em lançar mão de uma visão global, derivada da história e da macroeconomia. Sobre esse aspecto de sua obra, escreveu que “o método era o mesmo que utilizara em trabalhos anteriores: aproximar a História (visão global) da análise econômica, extrair desta perguntas precisas e obter respostas para as mesmas na História.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 331).

De volta ao Brasil, em setembro de 1958, o autor encontrou “[...] um país em extraordinária efervescência [...], com uma enorme vaga de confiança.” (FURTADO, 1997, t. II, p. 63). Eram os anos do governo JK, cujo Programa de Metas contribuiu para despertar sentimentos de otimismo e confiança. “Abriam-se horizontes, falava-se de um continente novo a ser conquistado.” (FURTADO, 1997, t. II, p, 63). É sob esse clima de euforia, entusiasmo e esperança que tem início a segunda fase da atividade de Celso Furtado como economista, a qual o levará a abordar a fundo os problemas da região nordestina, além de indicar linhas de luta e de trabalho para erradicá-los. “É quando o ‘saber’ se torna ‘poder’”. (FREIRE d’AGUIAR, 2015, p. 125).

Interlúdio nordestino

Após desligar-se de seu cargo nas Nações Unidas, Celso Furtado assumiu uma diretoria do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), dedicando-se, com exclusividade, à região nordestina. Nessa época, seu percurso intelectual e político ganhou dimensões prioritariamente nacionais. Sua primeira tarefa foi intervir no Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), que vinha sendo presidido pelo advogado e político paraibano Aluízio Campos, e cujos trabalhos “[...] marchavam em ritmo lento [...].” (FURTADO, 1997, t. II, p. 68). Paralelamente, e de maneira independente do GTDN, Furtado constituiu, ele mesmo, um grupo de trabalho com técnicos do BNDE, para realizar uma pesquisa que tinha como objetivo explicar o “[...] subdesenvolvimento do Nordeste visto como região de um país, o Brasil, subdesenvolvido.” (FURTADO, 1997, t. II, p. 73). A ideia era produzir um documento que comportasse duas partes: um “diagnóstico da problemática regional” e uma estratégia de ação, “[...] cujo objetivo último era deter a degradação da economia e incorporar a região ao processo de desenvolvimento então em curso no Centro-Sul do país.” (FURTADO, 1997, t. II, p. 73).

A oportunidade de “[...] contribuir de forma decisiva para ‘mudar o Nordeste’ [...]” (FURTADO, 1997, t. II, p. 78), cujo desenvolvimento passaria a contar com projeto próprio, concretizou-se no início de 1959, numa reunião convocada pelo presidente Juscelino Kubitschek, que objetivava promover um amplo debate sobre a questão nordestina. Juscelino, após ouvir as ideias apresentadas por Furtado, decidiu lançar uma nova política de desenvolvimento econômico para o Nordeste, batizada de Operação Nordeste (OPENO). A condução dessa Operação, cujo comando foi assumido por Celso Furtado, estaria, contudo, condicionada à criação de um novo órgão de planejamento. A proposta de criação do novo ente autárquico, denominado Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), foi anunciada pelo presidente em fevereiro de 1959. Enquanto o projeto de lei estivesse tramitando no Congresso, seria instituído, mediante decreto executivo, com sede no Recife, o Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (CODENO), “[...] o qual poria em andamento tudo aquilo que fosse possível ao governo realizar no âmbito da competência que lhe dava a legislação vigente.” (FURTADO, 1997, t. II, p. 84).

Não obstante a forte oposição e as incontáveis barreiras colocadas pelos defensores dos interesses ligados ao latifundismo, clientelismo e à “indústria da seca”, a Lei n. 3.692, instituindo a SUDENE, foi aprovada em 15 de dezembro de 1959. Sobre a aprovação da SUDENE, escreveu: “Eu bem me lembro de que quando conseguimos aprovar a lei da SUDENE foi contra a maioria dos deputados nordestinos. Portanto, só foi possível a SUDENE porque o Sul do Brasil tomou consciência do perigo que é para todo o país a miséria do Nordeste.” (FURTADO, 2008, p. 13, grifo do autor).

Furtado, nomeado superintendente da SUDENE, cargo que também ocupará nos governos Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-1964), pôde avançar o projeto de construção do “novo Nordeste”, levando adiante as reformas necessárias para superar o imobilismo social e mitigar as estruturas de privilégios que contribuíam para perpetuar a situação de subdesenvolvimento da região. Segundo Iglésias (1997), “a gestão de Celso Furtado na SUDENE é talvez a página mais expressiva, fecunda e brilhante de um organismo administrativo entre nós.” (IGLÉSIAS, 1997, p. 8). Em 2001, fazendo um balanço dos anos em que ficou à frente da SUDENE, afirmou: “O Nordeste cresceu mais do que o resto do Brasil, o que era coisa nova em nossa história.” (FURTADO, 2001, p. 54). Apesar disso, pondera que a mudança foi apenas parcial, pois a dimensão social não se transformou a contento.

Nesses anos, as ações político-institucionais de Celso Furtado não se circunscreveram somente à dimensão regional, ao Nordeste. Em 1962, com a criação do Ministério do Planejamento pelo presidente João Goulart, ele foi nomeado seu primeiro titular, com a difícil missão de elaborar um plano de governo que seria apresentado à nação por ocasião do plebiscito, realizado nos primeiros dias de 1963, que restauraria o regime presidencialista no Brasil. Na cerimônia de posse, diante do primeiro-ministro, Hermes Lima, o autor resumiu numa questão o cerne do problema que teria que atacar: “como conservar o dinamismo e mesmo intensificar o crescimento, devolvendo à economia uma adequada estabilidade? Esse é o nosso problema central.” (FURTADO, 2011b, p. 33). A solução desse imbróglio passaria pelo planejamento, técnica que vinha aprimorando desde os anos dedicados ao DSP, em Niterói, e que, agora, teria a oportunidade de aplicá-la ao conjunto do sistema econômico brasileiro.

Essa difícil tarefa, realizada em poucos meses, resultou no documento intitulado Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social 1963-1965, que, além de prever medidas de estabilização, voltadas para a restauração dos equilíbrios interno e externo, comportava uma política global, que continha um conjunto de diretrizes das reformas estruturais mais prementes (administrativa, fiscal, bancária e agrária). O Plano visava demonstrar “[...] que era possível [por meio de”terapêutica gradualista“] conduzir a economia a relativa estabilidade sem impor-lhe a purga recessiva.” (FURTADO, 1997, t. II, p. 244).

Após desligar-se da função ministerial, Celso Furtado reassumiu plenamente o comando da SUDENE, que entrava numa fase de intensa atividade e cujas realizações já eram notáveis. Porém, o seu projeto de transformação da região Nordeste não duraria mais que alguns meses, sendo obstado em 01 de abril de 1964, por ocasião do Golpe Militar no Brasil. “Esses seis anos, encerrados com o Golpe Militar [...], dão a Celso a rara oportunidade, como ele reconhecia, de conjugar teoria e prática, de conciliar pensamento e ação, de intervir diretamente na realidade antes só vislumbrada no plano teórico.” (FREIRE d’AGUIAR, 2015, p. 125).

O Ato Institucional n. 1, de 09 de abril de 1964, cassou seus direitos políticos por dez anos. A esse respeito, escreveu: “fora expelido de meu próprio país, que deixara de ser para mim a pátria que nos protege para transformar-se em ameaça.” (FURTADO, 1997, t. III, p. 143). Nas últimas páginas de A Fantasia Desfeita, o autor revela ao seu leitor a frustração que dominou seu espírito, dizendo que: “dedicara anos a organizar minha fantasia, na esperança de um dia transformá-la em instrumento de ação a serviço de meu pobre e desvalido Nordeste. Agora, essa fantasia estava desfeita [...].” (FURTADO, 1997, t. II, p. 305). Em outra ocasião, revelou: “sabia que meu exílio seria longo e que as condições tão particulares que me haviam permitido tentar ir além da esfera intelectual no empenho de realizar algo para minorar aflições de meu povo já não se repetiriam.” (FURTADO, 1997, t. III, p. 143).

Cessava-se, ali, sua contribuição de ordem político-administrativa para o desenvolvimento da região Nordeste. Interrompia-se, outrossim, a ação de Furtado como homem de Estado a serviço da nação brasileira. A luta contra as estruturas anacrônicas, responsáveis pela perpetuação da pobreza e do subdesenvolvimento, continuaria a ser travada, mas, agora, em outro plano, qual seja, o do pensamento e da cultura. Assim, seguiu em frente, tendo a certeza de que atuaria sobre o mundo por meio do pensamento, afinal “[...] a luta no plano das ideias [é], de todas, a mais importante [...].” (FURTADO, 1997, t. III, p. 187). “Que influência teria sido maior? A de Alexandre ou a de Platão?” (FURTADO, 1997, t. I, p. 102).

O exílio

Iniciavam-se os anos de exílio e, concomitantemente, o terceiro momento de Celso Furtado como economista: o da vida universitária, que para ele representou “[...] uma imposição da história”, melhor dizendo, ele só se tornou professor “quando [foi] cassado, em 64.” (FURTADO, 1992, p. 5). No começo, o autor tomou o caminho dos Andes, instalando-se mais uma vez na capital chilena, onde vinculou-se ao Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social (ILPES). Alguns meses depois, decidiu deixar a América Latina, e seguiu para os Estados Unidos da América, fixando-se em New Haven, como pesquisador visitante na Universidade de Yale, que possuía um importante centro de pesquisas voltado à problemática do desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo. Na Universidade de Yale, Celso Furtado entrou em contato com James Tobin, Martin Shubik, Robert Triffin, Stephen Hymer e Werner Baer. Com Hymer, o pensador brasileiro teve a oportunidade de manter longos diálogos sobre a emergência da empresa transnacional, temática que ocupará posição de destaque em sua produção intelectual a partir dos anos 1960.

Em New Haven, além de aprofundar seus estudos sobre o subdesenvolvimento, pôs-se a analisar a economia e a sociedade norte-americanas, visando contribuir para que o povo latino-americano tivesse um melhor entendimento dos Estados Unidos, pois, para ele, “[...] era evidente que, sem uma clara percepção do que estava acontecendo [na economia e sociedade estadunidenses], o próprio sentido das transformações em curso em escala planetária nos escaparia.” (FURTADO, 1997, t. III, p. 100).

Após curta estada nos Estados Unidos, mudou-se para a França, que se encontrava sob a liderança do general Charles de Gaulle. A convite da Universidade de Paris, assumiu a cátedra de Teria do Desenvolvimento Econômico na Faculdade de Direito e Ciências Econômicas, sendo o primeiro estrangeiro nomeado para uma universidade francesa, por decreto presidencial assinado pelo general De Gaulle. Seu vínculo com a Universidade de Paris foi duradouro, permanecendo nos quadros desta instituição por vinte anos. Nesse período, suas pesquisas concentraram-se em torno de três eixos: i) a expansão do capitalismo; ii) a teoria do subdesenvolvimento; e iii) a formação histórica da América Latina vista do ângulo econômico.

Na década de 1970, além de suas atividades na Universidade de Paris, o autor estendeu sua prática docente a várias outras universidades. Além de Columbia University (Nova York), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade das Nações Unidas (Tóquio), lecionou na American University, em Washington D. C., em 1972, e na Universidade de Cambridge, Inglaterra, no ano letivo de 1973-1974. Em 1974, foi o primeiro ocupante da cátedra Simon Bolívar na Universidade de Cambridge, voltada para o estudo das economias subdesenvolvidas, onde ministrou um curso sobre a problemática do desenvolvimento, baseado nas ideias que vinha elaborando desde os anos de 1950. Fez, também, várias viagens a países da América Latina, América do Norte, África, Europa e Ásia, em missão de agências das Nações Unidas, tendo a oportunidade de disseminar amplamente as suas ideias. Transformou-se num verdadeiro cidadão do mundo; "corazón, cabeza, en el aire del mundo", como registra a epígrafe9 do livro Os Ares do Mundo, publicado em 1991.

O retorno ao Brasil

Com a Lei de Anistia (1979), Celso Furtado passou a visitar periodicamente o país, inaugurando, assim, o que pode ser chamado de quarto e último momento de suas atividades como economista: uma fase de reflexões, balanços10, dedicada à organização de suas memórias intelectuais. É, essa, uma época de novas esperanças, em que se busca reorganizar as fantasias com vistas a retomar a construção interrompida. No ensaio-síntese intitulado Entre Inconformismo e Reformismo, publicado em 1987 por solicitação do Banco Mundial, o autor deixa transparecer esse estado de otimismo e confiança, ao afirmar que “há exemplos, [...], de avanços rápidos no plano político após o despertar de uma longa noite de imobilismo [...]. [...] a rica fermentação de ideias e iniciativas políticas que se observa no Brasil neste fim de 1984 parece traduzir uma ânsia de recuperação do tempo perdido.” (FURTADO, 1997, t. III, p. 38). A recuperação do tempo perdido, porém, não se verifica, o que o leva a afirmar, no apagar das luzes do século XX, que “em nenhum momento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser.” (FURTADO, 1999b, p. 26).

Nessa década de renovação das esperanças, o economista brasileiro retomou suas atividades de homem público, sendo, em 1985, convidado pelo recém-eleito presidente Tancredo Neves para participar da Comissão do Plano de Ação do Governo. Em setembro de 1985, assumiu o posto de embaixador do Brasil junto à então Comunidade Econômica Europeia, em Bruxelas. No ano seguinte, após mais de duas décadas sem desempenhar um cargo político, foi nomeado pelo presidente José Sarney para exercer o Ministério da Cultura, cargo que ocupou até julho de 1988.11 “Mais de cem intelectuais se reuniram e fizeram um abaixo-assinado, pedindo que eu aceitasse o cargo”, diz Furtado (2002b, p. 35). Essa é uma prova de que Celso Furtado foi mais que um economista, apresentando-se como cientista social, pensador criativo e intelectual detentor de uma visão holística do mundo. Em grande parte de suas reflexões teóricas, em especial, nos escritos publicados a partir dos anos 1970, sempre destacou a dimensão cultural do processo de desenvolvimento, ou melhor, buscou relacionar, em todo o tempo, o desenvolvimento à ideia de criatividade e inventividade do Homem.

O interesse do autor pela questão cultural vinha de longe, pelo menos desde a publicação de Dialética do Desenvolvimento, obra de 1964, que traz uma análise do desenvolvimento econômico no contexto de mudança cultural. A ênfase na dimensão cultural do desenvolvimento atingiu seu clímax com a publicação de Criatividade e Dependência na Civilização Industrial, de 1978. O elemento cultural reaparece em primeiro plano no livro Cultura e Desenvolvimento em Época de Crise, de 1984. Além disso, cumpre observar, Celso Furtado foi “[...] singularizado como o único pensador do estruturalismo a enfatizar o conceito de cultura e sua importância na teorização sobre o desenvolvimento.” (FREIRE d’AGUIAR, 2015, p. 126).

Nesses anos, além de lutar pela redemocratização, ao lado do deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Celso Furtado lançou um conjunto de livros em tom combativo, de denúncia, sobre a política econômica, a crise da dívida externa, a inflação, os desequilíbrios regionais, a recessão e o desemprego, questões que, de imediato, mais afligiam a economia brasileira no fim do regime militar.

Ao longo da década de 1990, integrou várias comissões da ONU/UNESCO, com destaque especial para a Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento (1992 a 1995), presidida pelo diplomata e político peruano Javier Pérez de Cuéllar, e a Comissão Internacional de Bioética (1996). Na entrevista concedida a Carlos Mallorquin, o autor resumiu o seu horizonte de preocupações, dizendo: “atualmente, me preocupam dois temas. Um, [é] a ideia de que a lei do mercado e sua lógica é a medida de todas as coisas, convertendo-se em ‘ética’. Também reflito muito sobre os sistemas monetários latino-americanos, que é a segunda problemática que me preocupa.” (FURTADO, 1995b, p. 109). Em 1997, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, na cadeira número 11, ocupada, anteriormente, pelo antropólogo Darcy Ribeiro. No mesmo ano, a Academia de Ciências do Terceiro Mundo criou o Prêmio Internacional Celso Furtado, que seria conferido a cada dois anos ao melhor trabalho de um pesquisador do Terceiro Mundo no campo da Economia Política. Em 2003, economistas da América Latina e outras personalidades encaminharam seu nome ao Comitê do Prêmio Nobel de Economia, em Estocolmo.

Nesse período, Celso Furtado retomou os temas que lhe eram caros: a inserção nacional e latino-americana no “mundo globalizado”, a teorização do subdesenvolvimento e a discussão do desenvolvimento em suas múltiplas dimensões. Ao retomar esses temas, o autor incorporou novos conceitos e ideias ao seu sistema de pensamento, numa clara demonstração de sua ampla capacidade para renovar permanentemente seu pensamento, de modo a adaptá-lo aos novos contextos históricos. Assim, tendo em vista captar o essencial das transformações no curso do capitalismo mundial, o autor passou a operar um conjunto de novas expressões e categorias analíticas: “novo capitalismo”, “capitalismo global”, “primazia financeira”, “ingovernabilidade”, “capital financeiro”, “identidade nacional”.

Em 20 de novembro de 2004, vítima de parada cardíaca, faleceu em casa, no Rio de Janeiro.

Considerações finais

Ao longo deste artigo, realizou-se um esforço de sistematização da trajetória intelectual e política de Celso Monteiro Furtado (1920-2004), reunindo os elementos necessários para retratá-lo como teórico independente, intelectual reformista e homem público voltado à ação e a serviço da nação. Paralelamente, buscou-se desvelar as principais bases teóricas e as influências intelectuais que moldaram o sistema de pensamento e o projeto desenvolvimentista deste economista brasileiro, em especial, aquelas que contribuíram para moldar sua maneira de pensar o binômio desenvolvimento-subdesenvolvimento.

As ideias aqui reunidas permitiram demonstrar que, por mais de meio século, Celso Furtado foi um intelectual criativo de vocação reformista, cujo pensamento contribuiu não apenas para descortinar as múltiplas dimensões da realidade, mas, também, para produzir meios de intervenção racional nas esferas social e econômica, tendo em vista a superação dos dilemas e tensões típicos das economias e sociedades capitalistas subdesenvolvidas, sem, contudo, colocar em xeque a ordem social burguesa.

Nesse sentido, apresenta-se o ponto essencial da proposta de Celso Furtado, a saber, a vocação intelectual reformadora. Esse horizonte reformista, somado ao ideário intervencionista do autor, encontra respaldo nas matrizes teóricas cepalino-keynesiana e perrouxiana, e nas proposições mannheimianas acerca da noção de planejamento democrático. Essa convicção reformista perpassa toda a sua obra, podendo ser identificada, principalmente, na defesa incansável do autor sobre a possibilidade de superação da barreira do subdesenvolvimento nos marcos do próprio capitalismo. Tem-se, pois, que sua obra deve ser concebida não como um fim em si mesma, mas como um meio para se alcançar um objetivo maior, qual seja a ação política reformadora das estruturas sociais e econômicas anacrônicas, responsáveis pela reprodução da armadilha histórica do subdesenvolvimento.

Conforme demonstrado, sua trajetória intelectual e política foi fortemente marcada pela indissociabilidade entre pensamento e ação. Isso significa que, além de teorizar o capitalismo periférico, ele teve a oportunidade de agir. E foram vários os espaços de ação, incluindo o Grupo Misto de Estudos CEPAL-BNDE, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, o Ministério do Planejamento e o Ministério da Cultura. Em síntese, uma luta incansável em prol da (re)construção social e econômica da nação.

No que diz respeito às influências intelectuais, pode-se afirmar que o autor, em seu esforço autônomo de teorização, com vistas a deslindar as especificidades do subdesenvolvimento, serviu-se de uma profusão de ideias, coordenando e assimilando, criativamente, as mais diversas bases teóricas. Sua formação intelectual deu-se sob uma tríplice influência: o positivismo, o marxismo e a sociologia norte-americana. À essas primeiras influências, soma-se uma miríade de correntes de pensamento, quais sejam: a sociologia do conhecimento de Karl Mannheim, que permitiu a Celso Furtado perceber que pensamento e ação são elementos indissociáveis; a teoria sociológica alemã (Alfred Weber, Ferdinand Tönnies, Georg Simmel, Hans Freyer, Max Weber e Max Scheler); a história econômica de Antônio Sérgio, Camille Sée, Henri Pirenne e Werner Sombart, que mostrou para o economista brasileiro a importância da Economia para melhor compreender a História; a teoria geral da administração (Henri Fayol, Frederick Taylor e William Willoughby), que revelou para Celso Furtado a importância do planejamento como técnica para a ação racional; a economia clássica, especialmente em sua vertente ricardiana; as contribuições de Perroux à compreensão do processo de desenvolvimento capitalista; a macroeconomia de Keynes; o pensamento de Karl Marx, em especial, sua macroeconomia, que era pioneira e permitia olhar a sociedade como um todo, ou seja, globalmente; a teoria do desenvolvimento econômico de Schumpeter, em particular, a ênfase na centralidade do progresso técnico na dinâmica da economia capitalista; o pensamento de Prebisch e da CEPAL, cuja ênfase nas reformas estruturais e na necessidade de programação do desenvolvimento veio reforçar a ideia de que não pode haver desenvolvimento autêntico sem a ação efetiva do Estado; os aportes teóricos dos economistas de Cambridge (James Meade, Joan Robinson, Nicholas Kaldor, Piero Sraffa e Richard Kahn); e um conjunto de pensadores econômicos, que de uma ou outra forma exerceu alguma influência sobre o esquema teórico-analítico de Celso Furtado (Albert Hirschman, Arthur Lewis, Friedrich List, Gunnar Myrdal, Mihail Manoilescu, Paul Baran, Ragnar Nurkse e Stephen Hymer).

Referências

BIELSCHOWSKY, R. Formação econômica do Brasil: uma obra-prima do estruturalismo cepalino. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 9, n. 4, p. 38-55, out./dez. 1989.

_____. Pensamento Econômico Brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo (1930-1964). 5. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

BRAMSTEDT, E. K.; GERTH, H. Nota sobre a obra de Karl Mannheim. In: MANNHEIM, K. Liberdade, poder e planificação democrática. São Paulo: Mestre Jou, 1972. p. 9-16.

BRANDÃO, C. O compromisso com a (n)ação em Celso Furtado: notas sobre seu sistema teórico-analítico. Economia Ensaios, Uberlândia, v. 22, n. 2, p. 29-49, jan./jul. 2008.

BRESSER-PEREIRA, L. C. Método e paixão em Celso Furtado. In: BRESSER-PEREIRA, L. C.; REGO, J. M. (Orgs.). A grande esperança em Celso Furtado. São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 19-43.

_____. Celso Furtado: o desenvolvimento como missão. In: SABOIA, J.; CARVALHO, F. J. C. (Orgs). Celso Furtado e o século XXI. Barueri, SP: Manole, 2007. p. 63-80.

FORACCHI, M. M. Aspectos da contribuição de K. Mannheim para a análise sociológica da educação. In: FORACCHI, M. M. (Org.). Mannheim: Sociologia. São Paulo: Ática, 1982. p. 9-48.

FREIRE d’AGUIAR, R. (Org.). O Nordeste e a saga da SUDENE 1958-1964. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2009.

_____. Anos de formação 1938-1948: o jornalismo, o serviço público, a guerra, o doutorado. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2014.

_____. Pensando a cultura. In: FREIRE d’AGUIAR, R. (Org.). Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Rio de Janeiro: Contraponto/ Centro Internacional Celso Furtado, 2012, p. 7-18.

_____. Apresentação. In: FREIRE d’AGUIAR, R. (Org.). Essencial Celso Furtado. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2013, p. 7-18.

_____. Celso Furtado: um retrato intelectual. Cadernos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, v. 10, n. 17, p. 122-127, jul./dez. 2015.

FURTADO, C. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.

_____. Dialética do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964.

_____. Pequena introdução ao desenvolvimento: enforque interdisciplinar. 2. ed. São Paulo: Nacional, 1981.

_____. Celso Furtado. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 jul. 1992. Caderno 6. Entrevista concedida a Amir Labaki e Gilson Schwartz.

_____. Comentários de Celso Furtado. In: GAUDÊNCIO, F. S.; FORMIGA, M. (Coords.). Era da esperança: teoria e política no pensamento de Celso Furtado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995a.

_____. O pensamento econômico latino-americano. Novos Estudos, São Paulo, n. 41, p. 96-110, mar. 1995b. Entrevista concedida a Carlos Mallorquin.

_____. Celso Monteiro Furtado. In: BIDERMAN, C.; COZAC, L. F. L.; REGO, J. M. Conversas com Economistas Brasileiros. São Paulo: Ed. 34, 1996. p. 61-87. Entrevista concedida aos autores do livro.

_____. Obra Autobiográfica de Celso Furtado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. 3 v.

_____. A fantasia organizada. In: FREIRE D’AGUIAR, R. (Ed.). Obra Autobiográfica de Celso Furtado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, t. I, 1997. p. 87-367.

_____. A fantasia desfeita. In: FREIRE D’AGUIAR, R. (Ed.). Obra Autobiográfica de Celso Furtado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, t. II, 1997. p. 27-312.

_____. Os ares do mundo. In: FREIRE D’AGUIAR, R. (Ed.). Obra Autobiográfica de Celso Furtado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, t. III, 1997. p. 41-376.

_____. A longa marcha da utopia. In: FURTADO, C. O capitalismo global. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999a. cap. 1, p. 9-23.

_____. O longo amanhecer: reflexões sobre a formação do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999b.

_____. Teoria e política do desenvolvimento econômico. 10. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

_____. Trabalhei como um condenado. In: QUEIROZ, R. (Coord.). Celso Furtado 80 anos: homenagem da Paraíba. João Pessoa: SEBRAE/PB, 2001. p. 50-55.

_____. Em busca de novo modelo: reflexões sobre a crise contemporânea. São Paulo: Paz e Terra, 2002a.

_____. Celso Furtado. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002b. Entrevista concedida a Aspásia Camargo e Maria Andréa Loyola.

_____. A responsabilidade dos cientistas. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 jun. 2003. Caderno 1, p. 3.

_____. Entrevista com Celso Furtado. História Oral, Rio de Janeiro, n. 7, p. 21-40, 2004. Entrevista concedida a Rosa Maria Vieira.

_____. Foto de uma conversa. São Paulo: Paz e Terra, 2007. Entrevista concedida a Cristovam Buarque.

_____. Entrevista com o Professor Celso Furtado. Revista Economia Ensaios, Uberlândia, v. 22, n. 2, p. 9-27, jan./jul. 2008.

_____. Celso Furtado. Memórias do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, ano 3, n. 3, p. 101-121, out. 2009.

_____. Entrevista a Eduardo Kugelmas. Cadernos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, ano 6, n. 8, p. 379-415, maio 2011a.

_____. Discurso de posse. In: FREIRE d’AGUIAR, R. (Org.). O plano trienal e o ministério do planejamento. Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado, 2011b. p. 33-34.

_____. Retorno à visão global de Perroux e Prebisch. Cadernos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, v. 7, n. 10, p. 296-304, jan./jun. 2012a.

_____. A síntese segundo Celso Furtado. In: FREIRE d’AGUIAR, R. (Org.). Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado, 2012b, p. 191-198.

_____. Aventuras de um economista brasileiro. In: FREIRE d’AGUIAR, R. (Org.). Essencial Celso Furtado. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2013a. p. 35-52.

_____. A Comissão Econômica para a América Latina. In: FREIRE d’AGUIAR, R. (Org.). Essencial Celso Furtado. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2013b. p. 84-106.

_____. Notas de um diário. In: FREIRE d’AGUIAR, R. (Org.). Anos de formação 1938-1948: o jornalismo, o serviço público, a guerra, o doutorado. Rio de Janeiro: Contraponto/ Centro Internacional Celso Furtado, 2014. p. 247-250.

_____. Diários intermitentes: 1937-2004. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

GUIMARÃES, J. A trajetória intelectual de celso furtado. In: TAVARES, M. C. (Org.). Celso Furtado e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p. 15-32.

IGLÉSIAS, F. Celso Furtado, pensamento e ação. In: IGLÉSIAS, F. História e Ideologia. São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 159-234.

_____. Apresentação. In: FURTADO, C. Obra Autobiográfica de Celso Furtado. 3 vols. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 1-9.

MALLORQUIN, C. Celso Furtado: um retrato intelectual. São Paulo: Xamã; Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

MANNHEIM, K. Liberdade, poder e planificação democrática [1951]. São Paulo: Mestre Jou, 1972.

OLIVEIRA, F. (Org.). A navegação venturosa. In: OLIVEIRA, F. (Org.). Celso Furtado: Economia. São Paulo: Ática, 1983. p. 7-27.

_____. Um republicano exemplar. In: BRESSER-PEREIRA, L. C.; REGO, J. M. (Orgs.). A Grande Esperança em Celso Furtado: ensaios em homenagem aos seus 80 anos. São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 157-165.

REZENDE, M. J. Celso Furtado e Karl Mannheim: uma discussão acerca do papel dos intelectuais nos processos de mudança social. Acta Scientiarum. Human and Social Sciences, Maringá, PR, v. 26, n. 2, p. 239-250, 2004.

SAMPAIO JR., P. A. Furtado e os limites da razão burguesa na periferia do capitalismo. Economia Ensaios, Uberlândia, v. 22, n. 2, p. 69-98, jan./jul. 2008.

SZMRECSÁNYI, T. Celso Furtado. Estudos Avançados, São Paulo, v. 15, n. 43, p. 347-362, set./dez. 2001.

TAVARES, M. C. Subdesenvolvimento, dominação e luta de classes. In: TAVARES, M. C. (Org.). Celso Furtado e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p. 129-154.

VIEIRA, R. M. Celso Furtado: autorretrato e retórica. In: BRESSER-PEREIRA, L. C.; REGO, J. M. (Orgs.). A Grande Esperança em Celso Furtado: ensaios em homenagem aos seus 80 anos. São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 157-165.


  1. Ver Bielschowsky (1989).

  2. Estimativa baseada em Freire d’Aguiar (2009).

  3. Nesse sentido, apresenta-se o ponto essencial da proposta de Celso Furtado, a saber, a vocação intelectual reformadora. Essa convicção reformadora somada ao ideário intervencionista do autor encontra respaldo nas matrizes teóricas cepalino-keynesiana e perrouxiana, e nas proposições mannheimianas acerca da noção de planejamento democrático. No livro A Fantasia Desfeita, o autor não deixa dúvidas quanto à sua opção pela via reformista, afirmando ser “evidente que ‘reformar’ a escravidão é uma indecência, mas foi eficaz, pelos resultados que produziu, reformar as sociedades europeias que se industrializaram a partir da metade do século XIX. Se o reformismo é de curto alcance, que dizer dos riscos a que se expõe uma sociedade que se embrenha pela via revolucionária?” (FURTADO, 1997, t. II, p. 154). No mesmo livro, após relatar a visita que fizera a Che Guevara, em 1961, descreve a sensação que sentira ao despedir-se do herói da revolução cubana: "ficou-me, como um travo amargo, a sensação de que havia querido explicar-me, justificar-me. Por que não dissera claramente que não aceito a revolução como opção, exceto para enfrentar uma ditadura? Tentar mudanças sociais por meios violentos em uma sociedade aberta, com governo representativo e legítimo, é meter-se por um túnel sem saber onde vai dar. (FURTADO, 1997, t. II, p. 190, grifo nosso). Essa convicção reformadora perpassa toda a sua obra, podendo ser identificada, principalmente, na defesa incansável do autor sobre a possibilidade de superação da barreira do subdesenvolvimento nos marcos do próprio capitalismo.

  4. Karl Mannheim desenvolveu o que veio a ser conhecido como “Sociologia do Conhecimento”. A hipótese central dessa abordagem sociológica pode ser assim apresentada: o pensamento social emerge, desenvolve-se e é condicionado pelo contexto sócio-histórico em que se encontram os grupos intelectuais mais experimentados. Através dessa abordagem, Mannheim mostra que “as categorias básicas que esclarecem a nossa perspectiva da realidade social, a visão do passado e do futuro, especialmente o conceito de liberdade humana, demonstram estar ligados à posição política básica e ao grupo com o qual o pensador se identifica.” (BRAMSTEDT; GERTH, 1972, p. 9). Tem-se, por conseguinte, que o pensamento social é um “pensamento perspectivista”, derivado “[...] de um ponto de observação localizado no contexto histórico e social.” (BRAMSTEDT; GERTH, 1972, p. 10). Em outros termos, a Sociologia do Conhecimento expõe que cada grupo ou estrato social possui uma ideologia própria, melhor dizendo, uma maneira própria de interpretar a realidade social. Cada “visão da realidade” é apenas parcial, ou seja, parte da verdade. Deduz-se, então, que o papel do intelectual para Mannheim é tentar, por meio do debate político racional, uma síntese das várias perspectivas ou ideologias, contribuindo, assim, para encontrar o melhor caminho a ser seguido.

  5. Leitor de Thomas Mann, Proust e Robert Musil, Celso Furtado alimentava o desejo de escrever romance de maturidade, pois acreditava que o “[...] romance de ficção era a melhor forma de pintar o homem.” No entanto, pensava ele, “para pintar uma sociedade, como romancista, como fez Proust é preciso um talento ou um gênio, natureza que eu não tinha. Se eu tivesse, não tinha ido para a economia.” (FURTADO, 1992, p. 5-6). Furtado chegou a desenvolver alguns projetos de romances, como observa Freire d’Aguiar (2015, p. 122): “há nos cadernos de Celso fragmentos e rascunhos de contos, esquemas e esboços de romances que indicam uma forte vertente literária”. Em uma entrevista concedida a Gabriela Marinho, em junho de 1986, o autor relata que a influência da vertente literária esteve sempre presente no seu trabalho intelectual, moldando, inclusive, seu método de análise. Diz ele: “queria inicialmente ser romancista, ficcionista. A minha grande leitura até hoje é literária. A descoberta que faço do homem é através da literatura, nunca pela ciência. As ciências sociais são métodos de reduzir, e o homem só se capta totalmente. [...]. Tudo que é global depende muito da imaginação. [...]. Quando penso uma realidade, penso primeiro pela imaginação, depois pela análise”. E acrescenta, concluindo: “meu método sempre foi este, globalizar pela imaginação.” (FURTADO, 2012b, p. 198).

  6. Seu primeiro livro, publicado em 1946, não tinha nenhuma relação com Administração, Economia ou História. Foi um volume de contos, registro que deixou da experiência brasileira na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial, intitulado De Nápoles a Paris. Contos da Vida Expedicionária.

  7. O trecho transcrito permite abordar uma questão importante, qual seja a dos limites à mudança colocados por estruturas tradicionais de poder que prezam pela reprodução do status quo; por forças, nacionais e estrangeiras, contrárias à transformação das estruturas sociais e econômicas, condição sine qua non à superação do subdesenvolvimento. Esses limites à ação política transformadora ficam patentes nas expressões “horizonte de opções permitido pela estrutura existente” e “esforço de mudança consentido”, empregadas pelo autor. Mesmo consciente da existência dessas barreiras que aparentam intransponíveis, Celso Furtado, no conjunto de sua obra, preserva uma obstinada defesa da viabilidade da luta contra o círculo vicioso do subdesenvolvimento nos marcos do regime capitalista. Não há nessa defesa, conforme demonstra Sampaio Jr. (2008), nenhuma contradição entre diagnóstico e receituário, nem inconsistência metodológica. Há, na verdade, perfeita coerência com respeito às bases teóricas e metodológicas que sustentam o esquema interpretativo de Furtado: “a coerência analítica entre diagnóstico e receituário é dada pelo seu modo de interpretar a realidade como uma contingência histórica, maleável a diferentes configurações, e não como uma necessidade histórica com sentido imanente, decorrente de contradições irredutíveis que regem o movimento do capitalismo.” (SAMPAIO JR., 2008, p. 87). Sampaio Jr. (2008, p. 88) argumenta que “[...] o nexo entre diagnóstico e receituário, perfeitamente coerente quando avaliado em seus próprios termos, põe em evidência o limite [da] crítica do subdesenvolvimento [de Furtado] e o horizonte ‘reformista’ que orienta a sua utopia de um desenvolvimento capitalista civilizado na periferia da economia mundial”.

  8. Apresentado na Conferência da CEPAL de 1953, realizada no Brasil, esse estudo suscitou debates e reações. Logo em seguida à conferência, Eugênio Gudin publicou no Correio da Manhã uma série de artigos, intitulada A Mística do Planejamento. “Já não se tratava de um debate confinado a páginas de revistas especializadas. Pretendia-se chamar a atenção de setores mais amplos para a ameaça que constituía a doutrina industrialista da CEPAL.” (FURTADO, 1997, t. I, p. 274). Prebisch respondeu às críticas de Gudin com outro conjunto de artigos, publicado no Diário de Notícias, com o título A Mística do Equilíbrio Espontâneo da Economia.

  9. A frase – “Pie en la Patria, casual o elegida; corazón, cabeza, en el aire del mundo” – é de autoria do poeta espanhol Juán Ramón Jiménez, Prêmio Nobel de Literatura (1956), e que Furtado tanto apreciava.

  10. Em um desses balanços, o autor expõe o que considerava ser a ideia sintetizadora de suas reflexões teóricas: “se tivesse que singularizar uma ideia sintetizadora de minhas reflexões de economista sobre a história, diria que ela se traduz na dicotomia desenvolvimento-subdesenvolvimento, que utilizei como título do livro em que reuni meus primeiros ensaios de teoria econômica.” (FURTADO, 2002a, p. 78, grifo do autor).

  11. Entre as realizações do autor no Ministério da Cultura, a mais inovadora foi a elaboração e implementação da primeira legislação brasileira de incentivos fiscais à cultura, conhecida como Lei Sarney. “A lei apelava para a parceria com o empresariado no financiamento de projetos culturais, e em troca o governo abria mão de parcelas do imposto de renda devido. [...]. Mas a lei ia mais longe, apelando também para o contribuinte individual, pois as pessoas físicas podiam dedicar à cultura parte de seu imposto de renda. Ou seja, a ideia era que a sociedade civil assumisse as propostas culturais da própria comunidade, arcando com o financiamento dos recursos.” (FREIRE d’AGUIAR, 2012, p. 13-14).

Resumo:
Celso Monteiro Furtado (1920-2004) é um dos economistas e cientistas sociais latino-americanos mais influentes de todo o século XX. Já há algum tempo passou à categoria de clássico, sendo considerado um autor indispensável para compreender o Brasil e para pensar a problemática do desenvolvimento-subdesenvolvimento. Sua vasta e profícua obra, forjada ao longo de seis décadas, compreende quase quatro dezenas de livros, mais de uma centena de ensaios e artigos acadêmicos, além de folhetos, prefácios, apresentações, resenhas, entrevistas, conferências, relatórios e planos. Assim, no momento em que se comemora o centenário do nascimento deste economista político brasileiro, faz-se necessário retomar e refletir sua trajetória intelectual e política, reunindo os elementos que permitem retratá-lo como teórico independente, intelectual reformista e homem público voltado à ação e a serviço da nação. Este é exatamente o propósito deste artigo. Para alcançá-lo, recorreu-se às memórias intelectuais do autor, às entrevistas que ele concedeu a várias personalidades e aos trabalhos de inúmeros intérpretes que escreveram sobre a vida e a obra de Celso Furtado. A pesquisa permitiu concluir que a trajetória intelectual de Celso Furtado traduz o sentido que ele sempre atribuiu ao exercício da atividade intelectual, a saber, uma luta frequente em prol da (re)construção social e econômica da nação.

Palavras-chave:
Celso Furtado; Reformismo; Desenvolvimento; Subdesenvolvimento.

 

Abstract:
Celso Monteiro Furtado (1920-2004) is one of the most influenceful Latin American economists and social scientists of the entire 20th century. For some time now, he has been in the classic category, being considered an indispensable author to understand Brazil and to reflect on the development-underdevelopment problematic. His vast and fruitful work, forged over six decades, consists of almost forty books, more than one hundred essays and academic articles, in addition to leaflets, prefaces, presentations, reviews, interviews, conferences, reports and plans. Thus, as we celebrate the hundredth anniversary of the birth of this Brazilian political economist, it is necessary to resume and reflect on his intellectual and political trajectory, bringing together the elements that allow us to portray him as an independent theorist, reformist intellectual and public man focused on action and in the service of the nation. This is exactly the intention of this article. In order to achieve it, the author’s intellectual memories, the interviews he gave to various personalities and the works of numerous interpreters who wrote about the author’s life and work were used. The research allowed us to conclude that the intellectual trajectory of Celso Furtado translates the meaning that he always attributed to the exercise of intellectual activity, that is, a frequent struggle in favor of the social and economic (re)construction of the nation.

Keywords:
Celso Furtado; Reformism; Development; Underdevelopment.

 

Recebido para publicação em 16/07/2019
Aceito em 27/11/2019