Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 2, jul./out., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.2.a03
ISSN: 2318-4620
Instabilidade balanceada:
o Kula melanésio à luz da teoria social de Georg Simmel
Robson Rocha de Souza Jr.
Universidade do Estado de Minas Gerais, Brasil
robson.rocha.jr@hotmail.com
As relações de reciprocidade são comumente caracterizadas pela formação de vínculos simétricos entre as partes em relação, ou seja, vínculos em que não se verifica qualquer tipo de imposição distintiva entre as partes. A reciprocidade representaria, portanto, o símbolo da superação do estado de guerra entre grupos conviventes, uma solução pacífica para as relações sempre instáveis entre os homens. (MAUSS, 2003). Embora não seja unânime, este argumento é hegemônico nas Ciências Sociais, o que justifica o fato de, ao longo do tempo, só ter sido acentuado o caráter pacífico das relações de reciprocidade. Segundo nos parece, é a pressuposição do primado da tendência à unidade social frente à tendência à distinção individual que justifica modo hegemônico de conceber as relações de reciprocidade.
Posto isso, pode-se dizer que o objetivo deste artigo é contestar esta definição obtusa das relações de reciprocidade, o que buscaremos realizar através de uma análise da natureza paradoxal deste tipo de vínculo social. Teoricamente, este estudo segue os princípios teóricos da teoria social de Georg Simmel, com especial destaque para o modo como este sociólogo concebeu a natureza dos vínculos baseados na troca de dádivas (SIMMEL, 1908). Empiricamente, este estudo está circunscrito à descrição realizada por Malinowski (1976) acerca do Kula Melanésio, instituição social que pode ser definida como um amplo sistema social alicerçado em vínculos de reciprocidade que são construídos e reforçados a partir da troca recorrente de dádivas. Sinteticamente, portanto, buscaremos testar a concepção das relações de reciprocidade elaborada por Georg Simmel para interpretar a descrição do Kula melanésio que nos foi legada por Bronislaw Malinowski.
Esta escolha se justifica pelo fato de que, como buscaremos demonstrar, este exemplo é paradigmático o suficiente para evidenciar que não há nenhum modelo puro de cooperação em que as partes envolvidas colaborem de forma absolutamente simétrica entre si, o que significa que, em qualquer relação de reciprocidade e em qualquer instituição social baseada neste tipo de vínculo, sempre será possível destacar elementos de imposição entre as partes, tal como expressa Simmel (1908) na sua análise dos vínculos sociais formados pela troca de dádivas. Com isso, espera-se destacar não só o aspecto político implicado nas relações pacíficas como também a natureza essencialmente bélica das relações políticas, ou seja, o fato de que “a política é a guerra continuada por outros meios; isto é, a política é a sanção e a recondução do desequilíbrio das forças manifestado na guerra.” (FOUCAULT, 1999, p. 23).
Como qualquer instituição social, o Kula também parece encarnar a complexa articulação de elementos de instabilidade e de estabilidade social que conformam a vida social de qualquer comunidade humana, como algumas interpretações desta instituição já indicaram (EVANS-PRITCHARD, 1985; LEACH, 1983). O que buscaremos demonstrar é que o equilíbrio que marca esta instituição humana emula, em uma escala mais abrangente, os princípios que estruturam as relações de reciprocidade, as quais são marcadas por uma articulação bem específica dos elementos de estabilidade e instabilidade que compõem qualquer relação humana. Sua escolha, portanto, não é fortuita, uma vez que sua configuração é determinante para revelar o caráter impositivo implicado nas relações de reciprocidade, o que muitas vezes foi negligenciado pela literatura sociológica e antropológica que abordou este tema.
O presente estudo pode ser definido, então, como uma pesquisa qualitativa baseada em fontes secundárias que visa reinterpretar a descrição etnográfica do Kula melanésio, elaborada por Malinowski, a partir dos princípios da teoria social de Georg Simmel, sobretudo de sua definição das relações de reciprocidade. Tomaremos, como fonte principal de dados, a descrição etnográfica elaborada por Bronislaw Malinowski em seu clássico Argonautas do Pacífico Ocidental (MALINOWSKI, 1976). Espera-se com esta análise desvelar como a instabilidade própria às relações sociais se mantém latente mesmo em uma instituição social que representa uma das estabilizações mais eficientes de contato inter-humano: o Kula melanésio.
Além desta introdução que buscou apresentar o problema a ser explorado e a hipótese que norteia este estudo, este artigo apresenta mais quatro seções. Na próxima seção apresentaremos alguns elementos estruturais da teoria social de Georg Simmel que serão fundamentais para compreender o modo como este sociólogo concebeu as relações de reciprocidade, para que, na seção seguinte, possamos apresentar como este autor concebeu as relações de reciprocidade. Já na terceira seção, buscaremos nos valer dos elementos que compõem a teoria social de Simmel e a forma como ele formulou as relações de reciprocidade para realizar uma reinterpretação das trocas cerimoniais do Kula melanésio. Por fim, na seção que encerra este artigo, buscaremos apresentar um balanço geral da análise.
Para este estudo, o aspecto mais importante da teoria social simmeliana consiste no primado que este autor atribui a dois elementos da vida social: (1) o primado do processo social frente às formas sociais e (2) o primado da interação frente aos elementos que a compõem. Estes pressupostos constituem elementos centrais na teoria social de Simmel, o que este autor pretende conjugar através do conceito central de sua teoria social: o conceito de influxo recíproco [Wechselwirkung] (SIMMEL, 1890, 1906, 1908, 1913, 1922, 1971, 2011). Para Simmel, portanto, o processo interativo constitui a realidade básica e primeira, o que significa que nada é ou pode ser substancial. Para compreender esta dupla dissolução, é necessário considerar a proximidade que existe entre o conceito de influxo recíproco [Wechselwirkung] e o conceito de vida [Leben] na teoria social de Simmel (PYYHTINEN, 2010).
Na formulação de Simmel, a vida pode ser concebida de duas formas distintas. Primeiramente como um fluxo contínuo e ininterrupto que a tudo atravessa (PYYHTINEN, 2010, p. 55), ideia que a verbalização do étimo Wirkung, que compõe o conceito Wechselwirkung, visa expressar. Em outros momentos, contudo, o conceito de vida se aproximaria mais da ideia de organismo e, por isso, se confunde recorrentemente com o conceito Wechselwirkung (PYYHTINEN, 2010, p. 56-57). Neste segundo sentido, a vida indica a unidade equilibrada entre os elementos díspares que compõem os organismos sociais. Ora, é justamente a partir da articulação destes dois significados do conceito de vida que Simmel constrói o conceito central de sua teoria, o influxo recíproco, o qual pode ser definido como uma unidade dinâmica que equilibra a relação entre os elementos díspares que compõem as relações sociais, de forma a garantir uma estabilidade às relações sociais que é eficaz, mas também precária, já que este equilíbrio não é capaz de superar a instabilidade que é inerente à vida social.
De maneira geral, isso significa, por um lado, que o processo social é sempre excedente a qualquer equilíbrio que visa estabilizar esta dinâmica inerente à vida social. Por outro lado, isso indica também que a proximidade que caracteriza o estabelecimento de um vínculo interativo é, concomitantemente, um distanciamento baseado na impossibilidade de se constituir um ser em comum com aquele com o qual se interage (PYYHTINEN, 2010, p. 100): a unidade funcional que vincula os indivíduos em interação entre si é, ao mesmo tempo, algo que ocorre entre eles, no espaço insistente que os separa apesar de uni-los, mas também algo que acontece no interior deles, já que os indivíduos alteram seu estado de ser na interação. Dito em outros termos, aquilo que está entre o influxo recíproco dos indivíduos é propriamente um nada, algo que simplesmente não pode ser objetivado já que constitui um processo que altera o estado de ser dos indivíduos em interação, embora estabeleça uma aproximação entre os mesmos que se dá sempre como um distanciamento.
Além de não substancial, o processo inovativo também recebe uma conformação de dois elementos paradoxais que compõem a vida social: a propensão à diferenciação que é própria aos indivíduos que agem no processo interativo (processo de individualização dos atores) e a tendência à unidade dos agrupamentos resultantes da continuidade deste processo inovativo (processo de sociação) (SOUZA JR., 2017). É esta configuração paradoxal que o conceito de influxo recíproco pretende articular, o que justifica o fato de ocupar o centro da teoria social de Simmel, embora seu significado só emerja quando é posicionado na relação interna que mantém com o intricado complexo conceitual que lhe circunda e que ele mesmo articula. Deste complexo, é possível destacar, além deste conceito central, estes dois desdobramentos que são decisivos na conformação do processo inovativo, apesar de serem fenômenos derivados dele: a sociação e a individualização.
O primeiro destes desdobramentos, que pode ser denominado de sociação, agrupação ou, enfim, processo de institucionalização e organização dos agrupamentos humanos, consiste na objetivação precária do influxo recíproco entre os atores sociais, ou seja, a cristalização histórica de formas relativamente estáveis de convívio humano que, apesar de representarem o resultado do processo interativo, são responsáveis por organizar sua continuidade. O conceito alemão Vergesellschaftung, forjado por Simmel através de uma verbalização do étimo cotidiano Gesellschaft (sociedade em alemão), é o conceito elegido por Simmel para expressar a forma social resultante do contínuo processamento da interação: a “sociação”. É em virtude deste desdobramento do processo interativo contínuo que as instituições humanas alcançam certa estabilidade, embora não superem sua instabilidade inerente, o que Simmel pretendeu expressar pela verbalização do conceito de sociedade.
Já o segundo desdobramento do processo interativo se refere ao processo de individualização dos atores envolvidos na interação, o que está expresso em um dos dois étimos que compõem aquele conceito central já destacado: a Wirkung da Wechselwirkung. Pode-se dizer que a Wirkung representa o caráter condicionante do influxo recíproco, o que significa que Simmel não negligencia a influência que a ação dos indivíduos pode exercer sobre a conformação do próprio processo interativo do qual participam. Ocorre que, embora o próprio indivíduo assuma sua forma distintiva em função da posição idiossincrática que ocupa na interseção dos múltiplos círculos sociais em que está envolvido, após sua personalidade assumir uma forma própria e irreproduzível, ele passa a ser capaz de alterar a conformação dos diversos processos inovativos de que toma partido. Os indivíduos representam, nestes termos, verdadeiros fatores de instabilidade nos processos inovativos, o que acaba imprimindo sua marca nas próprias formações sociais que são decorrentes do processo interativo: as sociações. Ao almejar suas necessidades distintivas nas relações sociais que estabelecem, os indivíduos acabam imprimindo o caráter precário e instável que é inerente às instituições sociais.
É bem verdade que os tipos possíveis de interação e as formas que assumem são as mais diversas, o que vai variar em função das diferentes ações que podem fazer parte do enlace interativo, dos diversos tipos de laço existentes e possíveis entre os atores envolvidos em cada interação ou, enfim, dos diferentes agrupamentos resultantes do concurso continuado destas ações entrelaçadas. Apesar desta variedade, porém, cada tipo específico de interação conjuga de maneira própria e específica estes dois desdobramentos constitutivos do influxo recíproco, o que é fundamental para sua configuração final. Em toda interação, estas duas totalidades abertas (o indivíduo e o grupo) formulam um equilíbrio mínimo, mesmo que em cada tipo de relação uma destas totalidades possa preponderar (SOUZA JR., 2017).
Por isso, ao discutir a natureza das relações de conflito, Simmel sustenta que todo tipo de interação é resultado de uma “síntese de elementos que trabalham juntos, tanto um contra o outro [Gegeneinander], quanto um para o outro [Füreinander].” (SIMMEL, 1908, p. 247). Seu argumento aponta para o fato de que, na medida em que o conflito representa o tipo de unidade mais basilar e, portanto, a estabilização interativa mais instável que existe, toda estabilização, por mais equilibrada e cristalizada que seja, será continuamente ameaçada por essa força instável que está em sua base. As relações de conflito indicam, portanto, que todo equilíbrio interativo promove, ao mesmo tempo, uma pulsão à aproximação e à disjunção: “Assim como o universo precisa de ‘amor e ódio’, de forças de atração e de repulsão, para que tenha uma forma, também a sociedade precisa de quantidades proporcionais de harmonia e desarmonia, de associação e competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis, para conquistar determinada formação [Gestaltung].” (SIMMEL, 1908, p. 249).
O importante, portanto, é notar que mesmo os elementos de discórdia impelem os indivíduos a se unirem, uma vez que “Certa quantidade de discordância interna [innere Auseinardergehen] e controvérsia externa estão organicamente vinculadas aos próprios elementos que, em última instância, mantém o grupo unido.” (SIMMEL, 1908, p. 251). E isso não caracteriza apenas as relações de conflito, mas sim todos os outros tipos de relação, o que quer dizer que também as relações de reciprocidade conjugam de modo próprio elementos de discórdia e unidade. Isso porque, a conclusão inevitável do argumento de que o conflito também constitui uma sociação (já que também há unidade entre indivíduos em conflito) é que este tipo específico de relação representa a sociação em seu status nascens, já que se trata de uma relação que, por assim dizer, nega a própria unidade que a constitui. O conflito constitui, assim, a base de toda sociação, já que se trata da sociação que mais se aproxima da não sociação. Embora constitua uma unidade, é uma relação que permanece no limiar que separa aquilo que induz a formação de uma unidade daquilo que induz sua dissolução. Logo, seja qual for a unidade formada por dois ou mais indivíduos, ela terá em seu âmago um caráter conflituoso que é insuperável e que tem como fundamento último aquela insistência dos indivíduos em se distinguir mutuamente.
Sendo assim, pode-se dizer, sinteticamente, que o fluxo constitutivo dos elementos vivos (1), equilibrados pelo concurso mútuo de suas potências (2), é responsável pela produção de organismos sociais que são justamente aquelas formas (3) que brotam do concurso dos elementos equilibrados. Assim, aquilo que era puramente funcional (equilíbrio das forças) se cristaliza e se torna substancial (forma dos organismos), o que é responsável pela estabilização em uma forma relativamente fixa do equilíbrio instável que caracteriza o processo interativo. É por isso que, para Simmel, a vida é, ao mesmo tempo, mais-vida [Mehr-Leben] — o que aponta para o fluxo contínuo que a caracteriza — e mais-do-que-vida [Mehr-als-Leben] — característica que indica justamente aquelas formas produzidas pelo concurso continuado dos elementos vitais articulados entre si. Todo processo interativo conjuga, então, elementos de instabilidade — já que a ação individual é caracterizada por uma pulsão temporal em contínuo desenvolvimento e transformação — com elementos de estabilidade — pois as ações enlaçadas num processo interativo sempre alcançam um equilíbrio que regula o contato entre as pulsões individuais e produz formas de convívio que são relativamente estáveis (SIMMEL, 1922).
Nestes termos, é possível definir as instituições e organizações sociais como verdadeiras unidades de viventes [Einheit des lebendige], as quais são formadas por um equilíbrio específico entre os diversos e distintos atores que dela participam. Como estes atores são abertamente propensos à polaridade, a unidade formada por este equilíbrio não pode ser concebida como uma unidade absoluta, mas sim como uma unidade relativa, instável e funcional; isto é, um todo formado por partes que possui a configuração de uma oposição-orientada-para-uma-conjunção (SIMMEL, 1913, p. 68). Trata-se, portanto, de uma unidade composta por uma multiplicidade, já que “não teria, por assim dizer, nenhuma função se não houvesse uma multiplicidade que ela reunisse. [...] Assim como os viventes, o mundo não é algo unitário, mas sim sempre algo múltiplo; e, por isso, assim como os viventes, o mundo é uma unidade dessa multiplicidade” [die Einheit dieses Vielen] (SIMMEL, 1913, p. 69).
Visto sob esse prisma, e apesar das variadas formas de combinação destas duas tendências, conclui-se que todas as instituições e relações humanas têm que ser homólogas entre si, uma vez que expressam de forma própria e específica o caráter eminentemente paradoxal das interações humanas, as quais conjugam sempre os elementos de instabilidade e estabilidade social (SOUZA JR., 2017). Posto isso, não é exagero afirmar que mesmo as relações de reciprocidade mais perenes não escapam do estabelecimento de um vínculo de domínio entre as partes. Logo, embora seja verdade que nas sociações formadas por relações de reciprocidade, como é o caso do Kula melanésio, predomine a tendência à unidade dos agrupamentos sociais, isto não significa que ela é capaz de superar a instabilidade que inerente à vida social, já que a propensão à distinção dos atores envolvidos na interação constitui um fator inerente aos diversos tipos de relação humana.
Do que foi exposto anteriormente sobre a teoria social de Georg Simmel, pode-se dizer que a unidade formada em cada processo interativo está em função do tipo de equilíbrio alcançado pelos atores em interação, o qual deverá articular as propensões à distinção de cada indivíduo específico de modo específico. Cada interação é caracterizada, portanto, pela unidade que conjuga de forma determinada a ação distintiva dos agentes envolvidos. Esta conjunção só é possível, por sua vez, em virtude do equilíbrio entre as forças vitais mobilizadas por cada ator, pois é justamente este equilíbrio que proporciona a organização necessária para o estabelecimento do vínculo que une os agentes em um processo interativo. Sendo assim, todo tipo de organização se fundamenta em um tipo específico de equilíbrio entre diferentes repartições de um quantum vital constante que representa a substância da vida, formada por força, vitalidade e significado.
Posto isso, cumpre agora analisar que tipo de equilíbrio subjaz, de maneira geral, aos vínculos formados pelas relações de reciprocidade. Se o Kula melanésio pode ser definido como uma complexa instituição social baseada em vínculos de reciprocidade, então a análise do tipo de equilíbrio que subjaz às relações de reciprocidade constitui a tarefa fundamental para a construção de uma análise desta instituição social específica.
O tema da dádiva e do tipo de vínculo que caracteriza as relações de reciprocidade foi tratado por Simmel em um ensaio de sua Soziologie (SIMMEL, 1908) intitulado Exkurs über Treue und Dankbarkeit. Nele, sobretudo no que se refere ao tema da gratidão, Simmel pretende desvelar uma das manifestações do influxo recíproco que subjaz a qualquer interação humana. De acordo com Simmel (1908), este sentimento social específico, a gratidão, possui a peculiaridade de revelar como dois homens, por meio de uma troca de dádivas, estabelecem um vínculo em que um é condicionante e o outro é condicionado. Por estabelecer o enlace dos indivíduos, a gratidão é responsável também, consequentemente, pela possibilidade de uma vida comum e estável entre os homens, na medida em que mantém o vínculo que permite o influxo recíproco mesmo depois da interação. Por isso nos dirá Simmel que “a gratidão é um dos elos microscópicos, apesar de infinitamente tenazes, que mantém unidos os elementos da sociedade e, portanto, junta a todos eles em uma vida em comum e de forma estável.” (SIMMEL, 1908, p. 598).
Por isso, de acordo com esta perspectiva, o que menos importa nas relações de reciprocidade é a troca. Fundamental é o vínculo estabelecido nela, o que está expresso pelo sentimento de gratidão que permanece após a transação das dádivas. Isso porque, ao oferecer uma dádiva a alguém, o indivíduo não está oferecendo apenas este objeto específico, mas sim toda a sua personalidade, ao passo que quem recebe este dom também tem toda a sua personalidade envolvida na relação, na medida em que o vínculo estabelecido pela troca é inquebrantável e exige uma resposta que só terá validade se também representar uma oferta de toda a sua personalidade. A peculiaridade da troca de dádiva se refere, portanto, ao fato de que, com esta oferta, o doador realiza “o oferecimento de sua completa personalidade ao outro, como por um dever de gratidão, porque a recompensa é adequada justamente a toda a sua personalidade.” (SIMMEL, 1908, p. 592-593).
Além disso, é igualmente importante destacar o modo como este vínculo é estabelecido. Neste caso cumpre notar que a gratidão é um sentimento socialmente constituído que expressa a “memória moral da humanidade” (SIMMEL, 1908, p. 591) e que vincula, através de uma obrigação, o indivíduo que recebeu a dádiva ao doador, de tal modo que aquele que recebe a dádiva é implicado numa situação de subordinação em relação àquele que estabeleceu o vínculo através da dádiva ofertada. Nota-se, portanto, que este simples ato de doação é gerador de vínculo, mas também se apresenta para aquele que recebe a dádiva como uma imposição, já que jamais é possível retribuir à altura a uma dádiva recebida, ainda que seja uma obrigação igualmente constringente retribuir-lhe. Isso porque “não podemos corresponder a uma dádiva, pois nela palpita uma liberdade que nossa correspondência não pode possuir, precisamente por ser uma correspondência.” (SIMMEL, 1908, p. 596).
Percebe-se, então, que o que Simmel visa destacar ao acentuar a peculiaridade deste sentimento social é um elemento fundamental do influxo recíproco que subjaz às interações humanas: o sentimento de gratidão representa a expressão emotiva do fato de que, nas relações humanas, as partes em interação permutam sua situação enquanto parte condicionante e parte condicionada. Logo, o objetivo deste pequeno ensaio de Simmel não é apenas formular uma teoria da dádiva, mas sim debater o fundamento interno do conceito central de seu pensamento: o influxo recíproco. Nestes termos, a gratidão deve ser concebida como o fundamento de toda interação possível, um vínculo que expressa e mantém uma relação de poder, uma vez que “não há, provavelmente, reciprocidade alguma em que o dado e o recebido se refiram a qualidades homogêneas, exatamente iguais.” (SIMMEL, 1908, p. 593), pois “quando recebemos um favor, quando outra pessoa começa nos fazendo um favor, nunca podemos recompensá-la com um obséquio subsequente ou um favor restitutivo.” (SIMMEL, 1908, p. 595).
Se a gratidão constitui o sentimento fundamental que subjaz a interação humana de maneira geral, mas mais especificamente as relações de reciprocidade, também é possível analisar este tipo de interação a partir de outro critério avaliativo, qual seja a ponderação do grau de liberdade e de obrigação entre o doador e o receptor de uma dádiva. Como acentua o próprio Simmel no ensaio supracitado, é o doador que exerce de maneira predominante sua liberdade, na medida em que, por ter agido primeiro e espontaneamente, não estava sujeito a uma determinação direta da outra parte. O receptor sim, ao retribuir, já estará plenamente obrigado a tal ato, de tal forma que sua retribuição jamais poderá ser tão espontânea como a doação.
Nota-se, portanto, que as relações de reciprocidade revelam uma característica geral de toda e qualquer interação humana: o fato de estarem baseadas no estabelecimento de um vínculo onde uma das partes em interação é condicionante e a outra é condicionada. No caso específico das relações de reciprocidade, o caráter impositivo que é inerente às interações humanas é escamoteado pelo fato de que a cooperação é clara e a imposição é discreta neste tipo de interação, o que quer dizer que, neste caso, a unidade formada pelos indivíduos tem mais força do que a pulsão à distinção destes últimos, embora não seja capaz de eliminá-la. Isso indica que, mesmo nas relações de reciprocidade mais perenes tanto a natureza distintiva dos indivíduos envolvidos como a tendência à unidade dos agrupamentos sociais resultantes possuem seu espaço e estão articulados de alguma forma. É igualmente evidente, contudo, que este tipo determinado de interação articula de modo típico e próprio estas duas tendências que compõem qualquer interação possível, já que, nas relações de reciprocidade predomina a tendência à unidade dos agrupamentos.
É com base nestes princípios teóricos que buscaremos interpretar e analisar o Kula melanésio na próxima seção deste artigo.
O Kula foi definido por Malinowski (1976) como um sistema ampliado de trocas de dádivas, no qual indivíduos pertencentes às diversas comunidades melanésias permutam objetos cerimoniais específicos (vaygu’a) que podem ser tanto colares longos de conchas vermelhas (soulava) como braceletes de conchas brancas (mwali). É através destas trocas que os melanésios e suas respectivas tribos formam alianças sócio-políticas que são cruciais para a vida destas comunidades e para o balanço de poder entre elas. Este sistema é composto por dois circuitos complementares. O primeiro circuito é percorrido pelos colares e o outro, em sentido contrário, pelos braceletes:
O Kula é uma forma de troca e tem caráter inter-tribal bastante amplo; é praticado por comunidades localizadas num extenso círculo de ilhas que formam um circuito fechado. [...] Ao longo desta rota artigos de dois tipos — e somente esses dois — viajam constantemente em direções opostas. No sentido horário movimentam-se os longos colares feitos de conchas vermelhas, chamados soulava. No sentido oposto, movem-se os braceletes feitos de conchas brancas, chamados mwali. Cada um destes artigos, viajando em seu próprio sentido no circuito fechado, encontra-se no caminho com os artigos da classe oposta e é constantemente trocado por eles. Cada movimento dos artigos do Kula, cada detalhe das transações é fixado e regulado por uma série de regras e convenções tradicionais; alguns dos atos do Kula são acompanhados de elaboradas cerimônias públicas e rituais mágicos (MALINOWSKI, 1976, p. 75).
Os vaygu’a são, então, objetos cerimoniais utilizados em uma troca intertribal de caráter honorífico, diferindo, portanto, dos objetos utilizados no cotidiano e dos adornos simples. Possuir e repassar um vaygu’a garante renome e é justamente esta a sua função primordial. Além disso, nenhum dos vaygu’a pode ser retido, já que precisam estar em constante movimento no circuito, e sua troca não encerra a relação entre os parceiros, já que a parceria kula é permanente e deve ser continuamente alimentada no decorrer dos anos. O importante é notar, portanto, que a recepção, a posse temporária e a subsequente doação desses vaygu’a confere prestígio ao participante, além de fortalecer os laços permanentes formados entre eles. Isso porque os vaygu’a não possuem qualquer valor prático, mas sim ritual e honorífico, conferindo renome ao seu possuidor temporário e dando peso moral às relações entre os parceiros.
Também merece relevo o fato de que cada participante tem um número determinado de parceiros nas ilhas vizinhas, com quem terá de trocar seus vaygu’a ao longo da vida. Não obstante, a transação é sempre realizada de maneira formal e com enorme decoro e constitui um assunto de especial interesse para todos os melanésios que participam, direta ou indiretamente, do Kula. Os vaygu’a nunca param nem saem do circuito, pois um bracelete recebido tem que ser passado para um terceiro parceiro numa direção do circuito de transações, além de ter de ser retribuído, num momento subsequente, por um colar que percorrerá o circuito no sentido inverso. Todas estas características fazem do Kula uma instituição onde há grande peso moral constrangendo as relações, já que as mútuas obrigações e os direitos envolvidos nessa rede de parcerias impõem seu peso sobre cada relação específica, e enorme responsabilidade pessoal, já que a honra de cada participante está em jogo em cada troca de um vaygu’a no circuito Kula.
Não por acaso, a troca dos artigos kula está sujeita a uma série de limites e regras de transação, que constituem mecanismos institucionais responsáveis pela consolidação e manutenção do caráter próprio do Kula. Estas regras determinam que (a) as trocas só podem ser feitas entre parceiros já estabelecidos, (b) que cada nativo deve possuir um número determinado de parceiros e (c) que nem todos os nativos podem participam do Kula. Além disso, (d) para se estabelecer uma parceria é necessário atentar para algumas coisas, já que (1) o seu estabelecimento deve seguir regras específicas e (2) obedecer a uma série de formalidades, dentre as quais se destaca o fato de que (3) toda parceria deve ser permanente. Por fim, merece destaque que o número de parceiros que uma pessoa pode estabelecer, sobretudo no que diz respeito às ilhas Trobriand, está em função da posição social ocupada por esta pessoa na estrutura de status definida pelo pertencimento aos diversos subclãs melanésios (MALINOWSKI, 1976, p. 75).
Sobre essas limitações e regras, cumpre assinalar que elas apresentarão sempre a associação entre as restrições impostas pelas normas e a liberdade de escolha dos participantes no Kula. Em conjunto elas abrem espaço a uma margem relativamente abrangente de ação para os participantes, mas limitam seu livre funcionamento com variadas regras e normas de ação. Isso quer dizer que, por um lado, esses mecanismos institucionais dão vazão à instabilidade inerente às parcerias kula, já que permitem que os indivíduos escolham alguns parceiros e, consequentemente, desconsidere outros, o que inevitavelmente provoca uma série de atritos e represálias mútuas entre os participantes. Por outro lado, porém, essa instabilidade é controlada por essa série de regras e limitações que se impõem aos parceiros em transação e às próprias transações, o que arrefece os ânimos dos participantes, em alguns casos, além de orientar sua conduta e restringir sua margem de ação, em outros casos. Não fosse essa articulação, o Kula certamente não teria o caráter que tem.
Obviamente, como um participante do circuito de dádivas Kula possui muitos parceiros de um lado e de outro, então os possíveis destinatários de cada artigo são variados, o que significa que não há uma circulação automática de cada artigo pelos mesmos parceiros. Muito pelo contrário. Cada artigo percorrerá o circuito muitas vezes, e em cada uma de suas voltas cada artigo passará, muito provavelmente, por diferentes participantes, de tal forma que nenhuma volta completa deverá percorrer o mesmo trajeto que outra volta subsequente. “Dessa forma, qualquer objeto que em seu itinerário passou pelas mãos de certos nativos poderá, em seu segundo itinerário passar por canais inteiramente diferentes.” (MALINOWSKI, 1976, p. 214). Não obstante, a troca de vaygu’a no circuito Kula também é geograficamente restrita em sua amplitude, o que significa que cada participante só pode estabelecer parceria com algum distrito vizinho ao seu próprio distrito. Logo, ainda que todas as pessoas que participam do Kula estejam indiretamente vinculadas umas às outras, não obstante, os laços diretos entre elas só podem ser estabelecidos entre distritos previamente determinados. Isso não define, contudo, quais parceiros deverão ser escolhidos dentre todos os que existem em cada distrito, nem tampouco com quais nativos se pode ou não estabelecer uma parceria.
Por fim, também há uma limitação no tempo de retenção de um vaygu’a. Logo, um mwali recebido por um nativo de Kiriwina dado por um nativo de Kitava deve ser repassado para o nativo de Sinaketa e, subsequentemente, ao nativo de Dobu sem que isso demore muito tempo. Por conta desta regra, a manutenção de um vaygu’a por um período longo é inapropriado e inevitavelmente levará o nativo que assim proceder a ser taxado como mesquinho ou como um indivíduo que é lerdo e duro nas transações kula, já que a regra é que os artigos permaneçam em constante movimento neste circuito. A quebra desta regra é um dos motivos de maior descontentamento entre os nativos, que não se inibem na condenação da conduta mesquinha de algum de seus parceiros (MALINOWSKI, 1976, p. 214).
Isso nos leva diretamente ao problema das características próprias da parceria kula. De acordo com Malinowski, trata-se de uma relação amistosa que pode ter um grau maior ou menor de intimidade, o que irá variar em função (1) da distância e das diferenças culturais entre as aldeias às quais pertence cada parceiro e (2) da distância de status social entre eles. Em geral, os nativos possuem parceiros kula que são muito próximos a eles, seja por viverem na mesma aldeia, seja em função dos vínculos de afinidade estabelecidos em função do matrimônio. Também é comum que um nativo possua parceria com um ou dois chefes vizinhos, a quem dedicará seus melhores vaygu’a com a esperança de obter vantagens desse chefe. Há, por fim, os parceiros de além-mar, que além de assumirem a função de hospedeiros dos estrangeiros em suas expedições (dando-lhes alimentos e pequenos presentes), também são seus patronos (defensores) e aliados, o que constitui um grande alento para um indivíduo que, em virtude de uma expedição kula, precisa permanecer numa aldeia distante permeada por uma série de perigos relacionados, sobretudo, à magia negra. Como afirma o próprio Malinowski, “O Kula, portanto, provê a cada um de seus participantes com alguns amigos próximos e alguns aliados em distritos longínquos, desconhecidos e perigosos. São essas as únicas pessoas com quem ele pode realizar o Kula — mas, é claro, dentre todos os seus parceiros o nativo tem liberdade de decidir a qual deles fornecer quais objetos.” (MALINOWSKI, 1976, p. 82).
Em suma, portanto, o que se acentua é que toda transação kula é iniciada pela doação de uma dádiva cerimonial (vaygu’a). Após esse primeiro passo deve-se passar um lapso de tempo determinado (horas, dias, meses ou anos) que é seguido por uma retribuição através de uma dádiva que se presume ser equivalente à dádiva inicial. Apesar de ser importante que os vaygu’a sejam equiparáveis para que uma transação seja bem sucedida, sua equivalência não pode ser discutida publicamente, o que contrariaria o decoro próprio a esse tipo de transação, na qual a prática da pechincha é cesurada. Segundo Malinowski (1976), o que regula a conduta dos nativos nas trocas kula e garante a equivalência nas transações é certa noblese oblige, o que impele os indivíduos a serem generosos para demonstrarem seu poder, de tal forma que quanto mais importante for um nativo (alta posição social, líder de aldeia, chefe de distrito), maior será o seu desejo de se sobressair pela generosidade.
Embora impeça os regateios, que são altamente indecorosos, esta noblese oblige não elimina os desentendimentos. Por isso, não é incomum que o parceiro que se sente prejudicado em uma transação kula reaja à ofensa demonstrando uma dose extra de generosidade, de forma a destacar seu poder sobrepujante em relação ao parceiro que não pode retribuir à altura sua dádiva. Agindo assim, o parceiro prejudicado na transação aponta para a avareza daquele que não foi capaz de retribuir ao seu vaygu’a, o que constitui uma grave ofensa:
É óbvio que, por mais que um indivíduo queira dar um equivalente justo em troca do objeto recebido, às vezes ele não consegue fazê-lo. Então, como há sempre intensa competição no sentido de ser o doador mais generoso, o indivíduo que recebe menos do que dá não esconde o seu aborrecimento, mas gaba-se de sua própria generosidade e a contrasta com a avareza do seu parceiro; o outro se ressente com isso, e assim a briga está pronta para começar. (MALINOWSKI, 1976, p. 86).
Além disso, as transações kula também são rigidamente reguladas e o mais interessante para o argumento aqui levantado é que esta regulação está de acordo com os princípios da concepção de Simmel (1908) sobre a troca de dádivas. De acordo com Malinowski (1976), os vaygu’a permutados nas transações kula podem receber dois nomes distintos: caso sejam dados como presentes iniciais receberão o nome de vaga, ao passo que o presente que encerra uma transação é chamado de yotile. Apesar de receberem nomes distintos e possuírem uma natureza distinta, ambos são presentes cerimoniais, o que significa que sua troca é necessariamente acompanhada do toque cerimonial do búzio e deve ser realizada ostensivamente e em público. Apesar desta similaridade, o que é de fato revelador são suas diferenças. Por ser o presente de abertura, o vaga sempre é dado espontaneamente. Ele abre uma transação kula, o que significa que não há nenhuma imposição ou obrigação que constranja seu doador e lhe exija escolher um parceiro específico para oferecer seu vaygu’a. Já o yotile, o presente de retribuição, é sempre oferecido sob a pressão da retribuição exigida por um presente recebido anteriormente, este que é justamente o vaga oferecido espontaneamente.
Não obstante, caso um indivíduo receba um yotile que considere ser inferior ao vaga oferecido anteriormente, então ele tem o direito de se enfurecer e pode, inclusive, pegar à força (lebu) de seu parceiro o vaygu’a que lhe parecer condizente com a sua dádiva inicial. Este é mais um indício da posição de superioridade do doador inicial na transação, já que além de a retribuição nunca ser espontânea, o doador inicial também tem o direito de se queixar da não equivalência de um vaygu’a de retribuição, ainda que, neste caso, ele tenha que quebrar o decoro exigido na transação, o que tende a incorrer, inevitavelmente, em uma grave contenda:
Se eu dei um vaga (presente de abertura) a um dos meus parceiros, digamos, há um ano, e agora, em visita, descubro que ele tem um vaygu’a equivalente, considero sua obrigação dá-lo a mim. Se ele não o fizer, fico com raiva e minha fúria é justificada. Isso, porém, não é tudo; se, por acaso, eu puder pôr as mãos em seu vaygu’a e arrebatá-lo à força (lebu), tenho, pelo costume, o direito de fazê-lo, embora meu parceiro, num caso assim, possa ficar bastante enraivecido. A briga subsequente seria meio histriônica, meio verdadeira (MALINOWSKI, 1976, p. 266).
Esta associação peculiar entre decoro e animosidade também se manifesta na etiqueta exigida nas transações kula. De acordo com Malinowski (1976), a etiqueta da transação kula exige que tanto o doador como o receptor demonstrem total indiferença em relação ao vaygu’a trocado. Por isso, o comum é que seu doador o jogue no chão com desdém, enquanto que o receptor não deve pegá-lo com suas próprias mãos, mas sim solicitar que algum de seus subordinados o faça por ele. “A etiqueta da transação requer que o presente seja oferecido de maneira descortês, brusca e quase violenta e recebida com indiferença e desdém equivalentes.” (MALINOWSKI, 1976, p. 265). Esta associação curiosa de desdém e agressividade certamente impressiona no primeiro momento, sobretudo quando se considera o interesse que de fato os nativos nutrem por estas transações. Contudo, é possível lançar luz sobre seu significado caso se considere aquele peculiar equilíbrio entre unidade e distinção que caracteriza as relações de reciprocidade de acordo com a teoria social simmeliana.
Destaca-se, inicialmente, o esforço do receptor de disfarçar seu interesse pelo vaygu’a recebido, seguindo assim o decoro exigido na transação que exige desapego pela dádiva. Acerca do doador, por outro lado, também é nítida sua tentativa de enfatizar desapego pelo vaygu’a ofertado, o que está de acordo com o decoro da transação kula. O lançamento agressivo do vaygu’a, por sua vez, simboliza a obrigação que é estabelecida com a doação, já que quem recebe uma dádiva assume o compromisso de retribuí-la, além de pôr em relevo a propensão à distinção que guia o ator que participa do Kula. Por outro lado, porém, a própria escolha deste parceiro em detrimento de outro demonstra por si só que aquele ato fortalece a aliança entre eles, sobretudo se o vaygu’a ofertado for de alto valor.
A indiferença do receptor, marcadamente influenciada pelo decoro exigido na transação, também representa um misto de distinção e unificação. Com a indiferença em relação a algo que é altamente valorizado por todos, o indivíduo que recebe um vaygu’a pretende acentuar sua superioridade em relação não só ao seu parceiro, como também em relação à própria transação. Embora distintiva, esta atitude também é unificadora, uma vez que está de acordo com a formalidade da transação kula, que proíbe qualquer tipo de regateio e demonstração pública de interesse pelo vaygu’a recebido mesmo com toda a agressividade manifesta no ato de doação. Esta rede de significados se fecha com a regra final desta etiqueta da troca, que exige que não seja o receptor o indivíduo que deve pegar a dádiva jogada ao chão, mas sim um de seus subordinados.
A única exceção a esta etiqueta ocorre quando a transação envolve dois parceiros que apresentam uma grande diferença hierárquica entre si, o que ocorre quando um chefe troca um de seus vaygu’a com um plebeu. Neste caso, o chefe manterá a mesma postura de desdém e não pegará o vaygu’a com suas próprias mãos, ao passo que o plebeu, por outro lado, deverá demonstrar grande interesse pelo vaygu’a ofertado pelo chefe. (MALINOWSKI, 1976, p. 265). Mesmo neste caso, porém, o misto de decoro, animosidade e marcação de distinção é evidente, o que mais uma vez corrobora com a interpretação proposta neste artigo.
Como se trata de um costume arraigado, a etiqueta que regula as transações kula e o comportamento típico dos nativos referentes a este tema encontram-se consolidados na tradição mitológica destas comunidades. Na verdade, Malinowski (1976) destaca a existência de um amplo repositório de significados, composto por um conjunto de mitos tradicionais, que orienta a conduta destes agentes no amplo espectro de atividades relacionadas à prática do Kula. Tudo o que se relaciona ao Kula está previsto neste conjunto de mitos: o impedimento à manifestação direta de interesse pelas transações kula, a demonstração velada de descontentamento por indivíduos que se sentem prejudicados nas transações, as reações violentas de retaliação, quase sempre a partir da magia negra, etc. Esta vigorosa base mitológica é analisada por Malinowski no Capítulo XII de Os Argonautas do Pacífico Ocidental (1976), sobretudo a partir da apresentação dos dois principais mitos referentes ao Kula: o mito de Tokosikuna e o mito de Kasabwaybwayreta.
Apesar das especificidades de ambos os mitos Kula, Malinowski (1976) destaca algumas características gerais. Ambos os heróis eram nativos velhos, decrépitos e feios que rejuvenesceram em virtude de seus conhecimentos da magia mwasila da beleza e, por isso, obtiveram êxito no Kula (1); em virtude deste rejuvenescimento e do consequente sucesso no Kula, estes nativos provocaram inveja em seus companheiros (2); em ambos os casos, os companheiros invejosos se vingaram dos heróis na ilha Gabula (3); e, por fim, depois de serem traídos, ambos os heróis estabeleceram residência no sul: enquanto Kasabwaybwayreta já vivia nestas terras antes dos acontecimentos narrados no mito, Tokosikuna se mudara para logo após (4). O aspecto importante destes mitos, contudo, é seu peculiar acento da vaidade e da inveja implicadas no Kula, o que revela a importância que esta transação tem para esses nativos. O que é ainda mais notório, contudo, é que essa instituição resolve as instabilidades inerentes às relações entre estranhos através da estabilização destas mesmas relações em alianças vitalícias ao mesmo tempo em que instiga a instabilidade nas relações entre parceiros de uma mesma tribo que estão, em alguns casos, até mesmo vinculados por laços de parentesco, como é o caso de Kasabwaybwayreta que é abandonado por seus parentes afins: filhos e netos. Se levarmos em conta que a ação destes heróis míticos é tida como um exemplo paradigmático para estes nativos, sua demonstração vaidosa de agressividade e indiferença na transação ganha significado. O Kula é composto por múltiplas alianças que são recorrentemente alimentadas por uma recorrente troca de dádivas. Mas estas dádivas não são trocadas gratuitamente. Por um lado, elas simbolizam a imposição do doador em relação ao receptor e, por outro, instigam a inveja dos que foram preteridos ou suplantados em determinadas situações. Honra, inveja, vaidade e decoro. Uma mistura explosiva e marcante, mas funcional na prática do Kula.
Com o que foi exposto até aqui é possível definir o Kula como uma complexa instituição baseada em uma variedade de vínculos formados por transações recorrentes de dádivas, ou seja, uma complexa rede de relações de obrigação entre indivíduos pertencentes a múltiplas comunidades distintas entre si. Este sistema de relações de dádiva em parte mantém e em parte ameniza o caráter impositivo que caracteriza as relações de reciprocidade de maneira geral. Esta característica é amenizada em virtude do fato de que a dádiva recebida deve ser repassada para um terceiro participante. De algum modo, portanto, o receptor é investido do direito de se valer da dádiva recebida para alimentar um vínculo onde ele agirá por espontaneidade, ainda que em um momento subsequente esta mesma dádiva que recebeu na primeira transação tenha que ser retribuída ao doador inicial. Por um lado, portanto, o vaygu’a recebido investe o receptor de um poder do qual ele poderá se valer, em momento posterior, ao iniciar uma nova transação kula. O vaygu’a recebido na primeira transação poderá ser utilizado, então, como um presente de iniciação (vaga). Como, por outro lado, o vínculo com o doador inicial não foi quebrado, esta dádiva deverá ser retribuída por uma contradádiva (yotile) a ser oferecida ao doador inicial, sob a pena de se perder todo o renome conquistado com o oferecimento do vaygu’a inicial no estabelecimento de uma nova transação kula:
Há no circuito inteiro do Kula um encadeamento de relações que naturalmente fazem dele um todo entrelaçado. Pessoas que vivem a centenas de milhas umas das outras relacionam-se através da parceria direta ou indireta, realizam trocas, passam a conhecer-se e, às vezes, se encontram em grandes reuniões intertribais. [...] O que se verifica, então, é um vasto encadeamento de relações intertribais numa grande instituição que incorpora milhares de pessoas, todas elas unidas por uma paixão comum pelas transações Kula e, em segundo plano, por muitos pequenos laços e interesses. (MALINOWSKI, 1976, p. 82).
Vê-se, portanto, que o que marca esta instituição específica é o equilíbrio formado por uma rede baseada em múltiplos vínculos de reciprocidade, onde o doador, sob uma perspectiva, é sempre o receptor, sob outra. E o que confere maior ou menor poder a cada indivíduo nesse contexto é a configuração de seus vínculos nesta rede, o que está em função tanto do número de vínculos que cada indivíduo possui, como da importância específica de cada um desses vínculos.
Agora temos condições de finalizar este estudo, cujo objetivo foi reinterpretar a descrição de Malinowski acerca do Kula melanésio através do modo como Simmel concebeu as relações de reciprocidade. Alguns princípios teóricos da teoria social de Simmel foram cruciais para esta análise, dentre os quais destacamos o primado do processo frente ao equilíbrio social, o primado da interação frente aos partícipes da relação e a articulação sempre tensa entre os elementos de estabilidade e de instabilidade na conformação de toda e qualquer interação humana. Contudo, este artigo explorou sobretudo o modo como Simmel concebeu as relações de reciprocidade para realizar esta nova interpretação do Kula melanésio. Neste caso, destacou-se o aspecto impositivo que persiste nos vínculos formados pela troca de dádivas, mesmo que a unidade do grupo prevaleça sobre esta tendência distintiva dos indivíduos, conformando uma conjugação de unidade e distinção que é peculiar deste tipo de interação.
Foi com base nestes princípios teóricos que se estabeleceu uma nova interpretação do Kula melanésio, tal qual fora descrito por Malinowski em Os Argonautas do Pacífico Ocidental (1976). Sob a luz dos princípios teóricos da teoria social de Simmel, o Kula pode ser definido como uma complexa instituição intertribal que se alicerça pela manutenção de uma variedade de vínculos sociais que são recorrentemente alimentados por trocas de objetos cerimoniais específicos, os vaygu’a, de forma a estabelecer uma complexa rede de relações de obrigação entre os múltiplos parceiros kula que estão distribuídos entre as mais diversas comunidades que participam deste grande sistema de trocas intertribais de dádivas. Direta ou indiretamente, todos estes indivíduos estão ligados entre si. Apesar desta unidade, cada vínculo desta rede pretende se destacar frente aos demais. O Kula ao mesmo tempo institui e regula os múltiplos vínculos que compõem esta rede complexa, por meio da qual as comunidades e os indivíduos constroem suas alianças, demarcam sua distinção e dão sentido às suas existências.
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Resumo:
O presente estudo pode ser definido como uma pesquisa qualitativa baseada em fontes secundárias que visa reinterpretar a descrição etnográfica do Kula melanésio elaborada por Malinowski baseado nos princípios da teoria social de Georg Simmel, com destaque para sua teoria da dádiva e sua concepção das relações de reciprocidade. Por isso, a principal fonte de dados desta investigação é a descrição etnográfica elaborada por Bronislaw Malinowski em seu clássico “Argonautas do Pacífico Ocidental”. Teoricamente, o primado do processo frente ao equilíbrio social, o primado da interação frente aos partícipes da interação e a articulação sempre tensa entre os elementos de instabilidade e de estabilidade representam os princípios da teoria social de Simmel que apresentam especial relevância para este estudo. Não obstante, o caráter impositivo que é persistente nas relações de reciprocidade constitui o elemento central a ser mobilizado na interpretação da clássica descrição do Kula melanésio de Malinowski que este estudo visa oferecer. O que buscaremos demonstrar com esta análise é que a instabilidade que compõe qualquer relação humana, inclusive as relações de reciprocidade, se mantém latente mesmo em uma instituição social que representa uma das estabilizações mais eficientes de contato inter-humano, o Kula melanésio, o qual pode ser definido como uma ampla rede de vínculos de obrigação consolidados através da troca permanente de dádivas.
Palavras-chave:
Teoria da dádiva; relações de reciprocidade; Kula melanésio; Brownislaw Malinowski; Georg Simmel.
Abstract:
The present study can be defined as a qualitative research based on secondary sources that aims to reinterpret the ethnographic description of the Melanesian Kula elaborated by Malinowski based on the principles of Georg Simmel’s social theory, highlitghing his gift theory and his definition of reciprocity relations. Thus, the main source of data for this investigation is the ethnographic description elaborated by Bronislaw Malinowski in his classic “Argonauts of the Western Pacific”. Theoretically, the primacy of the process over social balance, the primacy of interaction over the participants of the interaction, and the always tense articulation between the elements of instability and stability represent the principles of Simmel’s social theory that are particularly relevant to this study. Nevertheless, the imposing character that is persistent in reciprocity relations constitutes the central element to be mobilized in the interpretation of Malinowski’s classic description of the Melanesian Kula that this study aims to offer. What we will try to demonstrate with this analysis is that the instability that make up any human relationship, including reciprocity relationships, remains latent even in a social institution that represents one of the most efficient stabilizations of inter-human contact, the Melanesian Kula, which can be defined as a wide network of links of obligation consolidated through the permanent exchange of gifts.
Keywords:
Gift theory; reciprocity relations; Melanesian Kula; Brownislaw Malinowski; Georg Simmel.
Recebido para publicação em 24/03/2020
Aceito em 29/01/2021