Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 1, mar./jun., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.1.a01
ISSN: 2318-4620
Entre desigualdades no trabalho:
classe, raça, gênero e o emprego doméstico no Rio de Janeiro
Tamis Porfírio Costa Crisóstomo Ramos Nogueira
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil
tamispramos@gmail.com
Moema de Castro Guedes
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil
moguedes@yahoo.com.br
Neste artigo, objetivamos analisar o cotidiano laboral envolto por desigualdades vivenciado pelas trabalhadoras domésticas em relação às suas patroas e patrões, e como a subalternidade e desumanização destas mulheres se tornam latentes neste contexto. Nos interessa, particularmente, o modo como os marcadores sociais de gênero, raça e classe são vivenciados nestas relações e estruturam a (re)produção das desigualdades no cotidiano destas trabalhadoras. Apresentamos aqui, uma contribuição para a área dos estudos sociológicos sobre gênero e trabalho, mas especificamente, para os estudos tão amplos e diversos sobre o trabalho doméstico remunerado no Brasil.
Através de entrevistas em profundidade — ou entrevistas etnográficas (BEAUD; WEBER, 2007) —, foram entrevistadas dez trabalhadoras domésticas residentes e que trabalham no estado do Rio de Janeiro, cinco mensalistas e cinco diaristas na faixa etária entre 22 e 55 anos de idade. Das entrevistadas, apenas uma se autodeclarou branca, sendo sete que se autodeclararam negras e duas pardas. Encontra-se nos anexos um quadro sintético com as principais informações sobre as trabalhadoras domésticas entrevistadas. Não optamos por excluir trabalhadoras brancas, mas houve certa dificuldade de encontrá-las disponíveis para entrevista. Esse fato reflete a sobrerrepresentação de mulheres negras no campo do trabalho doméstico remunerado do Rio de Janeiro,1 dimensão que é abordada em nossa análise.
Todas as entrevistadas residem em áreas periféricas do estado, majoritariamente, a Baixada Fluminense e alguns bairros localizados na extrema Zona Oeste do Rio de Janeiro. A maioria trabalha em bairros da Zona Sul, e em alguns casos bairros da extrema Zona Oeste do Rio de Janeiro e arredores do próprio bairro onde moram. Percebeu-se que, no grupo entrevistado, eram maiores as remunerações entre as que trabalhavam na Zona Sul. A metodologia utilizada para chegar neste conjunto heterogêneo de mulheres foi através da própria indicação de cada uma delas a cada entrevista, que indicavam colegas conhecidas. Seguimos procurando novas entrevistadas até que alcançamos um ponto de saturação dos dados, em que poucos elementos novos apareciam nas falas analisadas.
Optamos pelas entrevistas em profundidade por nos permitirem aproveitarmos melhor os discursos dessas trabalhadoras, pois “[...] a entrevista etnográfica tem como motor essa relação social particular que é a relação ’pesquisador/pesquisado” (BEAUD; WEBER, 2007, p. 120). De modo que seja estabelecido o que Bourdieu (1997) chama de uma relação de “escuta ativa e metódica” (p. 695), que está tão longe de uma entrevista sem intervenções, quanto do dirigismo excessivo de um questionário. Esta postura associa uma disponibilidade total em relação à pessoa entrevistada, a submissão à singularidade de sua história particular e adoção (a partir de um mimetismo, mais ou menos controlado) de sua linguagem e entrada em seus pontos de vista, sentimentos e pensamentos, buscando, a partir disso, conhecer as condições objetivas comuns a toda uma categoria.
As entrevistas ocorreram a partir de um roteiro semiestruturado, duraram cerca de uma hora e meia cada uma, com utilização de gravador, objetivando captar o cotidiano de desigualdades vivenciadas por estas trabalhadoras. As perguntas que faziam parte do roteiro foram em direções diversas, desde sua entrada neste tipo de emprego e como conseguem/conseguiram suas contratações; passando pelo cotidiano de tarefas; o relacionamento com seus patrões e integrantes da casa; até perguntas diretas sobre racismo, humilhação, exploração e privação. Algumas entrevistas ocorreram de forma tão desenvolta que nos surpreenderam por revelar uma demanda por escuta. Outras se realizaram de modo mais arrastado ou constrangido, nada inesperado para esta técnica de pesquisa, que nos reserva certa imprevisibilidade.
O local das entrevistas foram, majoritariamente, as próprias casas das trabalhadoras, para que se sentissem mais à vontade. Essa foi uma escolha das entrevistadas, já que deixamos a seu critério o local de preferência. Apenas restringimos a casa dos patrões por acreditarmos que este ambiente pudesse intimidar e constranger a desenvoltura das domésticas nas entrevistas, principalmente quando perguntadas sobre seus patrões e suas relações com eles e com a casa. Por opção de cinco das domésticas as entrevistas foram realizadas em lugares que não suas casas.2 Os nomes das trabalhadoras domésticas e demais pessoas que possam aparecer nas falas são fictícios, por opção nossa, a fim de garantir uma maior proteção de suas identidades e vivências.
Nos surpreendeu um aspecto particular nas entrevistas: muitos casos não apareceram a partir de perguntas diretas, mas da vontade das entrevistadas de “desabafarem”, de exporem seu cotidiano, principalmente suas insatisfações. Como se fosse, naquele momento, a hora de dizerem o que pra muitos não importa: suas percepções e vivências que, na maior parte do tempo, são invisíveis em função da desvalorização sistemática do trabalho que desenvolvem. Os relatos nos impactaram pela clareza e lucidez. Fica mais evidente, ao fim do conjunto de entrevistas, o equívoco que seria supor que os sujeitos inferiorizados socialmente e em condição de subalternidade não estão suficientemente conscientes de suas próprias realidades e capacitados de agência.
As análises a seguir são resultado destas entrevistas. Com o objetivo de elucidar e trazer para o campo da empiria um pouco destas mulheres trabalhadoras e suas perspectivas de si mesmas, dos seus patrões, e do seu trabalho através da lente analítica dos estudos de gênero. Como vivenciam e como lidam com as desigualdades que as cercam e as atingem.
O propósito central do presente artigo é pensar as assimetrias de poder e as experiências de desigualdade que empregadas domésticas vivenciam em relação às suas patroas. Para tanto, acionaremos duas ferramentas teóricas que vem ganhando espaço no campo dos estudos de gênero e trabalho: os conceitos de interseccionalidade e consubstancialidade. O emprego doméstico remunerado se configurou historicamente como uma relação de trabalho baseada em afetividades que se constituem de forma exploratória, dominadora e subalterna. Diante disso, foi uma opção metodológica a instrumentalização das teorias de imbricação de eixos de desigualdade, partindo da constatação de que não há, no emprego doméstico, como falar de apenas um destes eixos sem tocar no outro, pois, na realidade são inseparáveis.
Os conceitos de interseccionalidade e consubstancialidade nasceram em diferentes contextos. Segundo Helena Hirata (2014) a interseccionalidade se originou no Black Feminism dos Estados Unidos e do Reino Unido no final dos anos setenta, motivado pelo descontentamento de tal grupo político com o chamado feminismo branco e sua tendência de generalização das experiências do “ser mulher”, subsumindo tais experiências no sujeito padrão do feminismo branco: mulheres brancas de classe média e heterossexuais. Outra dimensão importante, segundo Carla Akotirene (2018), foi ter surgido em contrapartida ao movimento antirracista que tinha seu sujeito padrão no homem negro. Havendo, assim, o silenciamento, apagamento e marginalização do cotidiano de opressão e dominação de tantas mulheres.
Apesar do grande alcance ter ocorrido nos anos 2000, o conceito de interseccionalidade foi criado em 1989 pela jurista e teórica feminista afro-americana Kimberlé Crenshaw. Ainda que o termo tenha sido cunhado pela autora, a partir do crescimento e do alcance deste conceito entre as acadêmicas e entre a militância negra e lésbica, que se apropriaram muito devidamente do conceito, este adquiriu distintas definições e diferentes formas de olhar. Porém, Crenshaw o definiu da seguinte forma:
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (CRENSHAW, 2002, p. 177).
Quando nos referimos à consubstancialidade, estamos falando de um termo que foi cunhado pela socióloga feminista materialista Danièle Kergoat nos anos de 1970/1980, na França, com o objetivo de compreender de forma não mecânica as práticas sociais de homens e mulheres frente à divisão social do trabalho, a partir das dimensões de classe, de gênero e de origem (Norte/Sul). A autora compreende a sociedade em termos de relações sociais; sua maneira de apreender os fenômenos sociais é a partir de uma perspectiva materialista, histórica e dinâmica, sendo o gênero, a raça e a classe, compreendidos, antes de tudo, como relações de produção (KERGOAT, 2010).
A partir desta perspectiva, que está centrada nos estudos do trabalho, Kergoat (2010) concebe as relações sociais como relações baseadas, principalmente, no antagonismo e na disputa material e ideológica entre dois grupos sociais. Para que seja configurada uma relação social é necessário que esta domine, oprima e explore. O objetivo seria desnaturalizar radicalmente as construções que pretendem separar, diferenciar e desarticular as desigualdades, estabelecendo que não seja possível imputar apenas uma instância social para cada categoria. Como ressalta a autora, cada categoria se inscreve na outra de forma inseparável e relacional, ao mesmo tempo em que agem em diferentes instâncias sociais. Desta forma, por exemplo, o gênero é dotado de classe, como a classe de gênero que se inscrevem de forma inseparável na instância econômica, assim como na instância ideológica e vice-versa, construindo-se simultaneamente. Segundo a autora:
A minha tese, no entanto, é que as relações sociais são consubstanciais; elas formam um nó que não pode ser desatado no nível das práticas sociais, mas apenas na perspectiva da análise sociológica; e as relações sociais são coextensivas: ao se desenvolverem, as relações sociais de classe, gênero e “raça” se reproduzem e se co-produzem mutuamente (KERGOAT, 2010, p. 94).
Quando pensamos o trabalho doméstico remunerado tanto a interseccionalidade quanto a consubstancialidade contribuem para a busca de uma análise que se apropria dos limites e potencialidades de cada uma. Por um lado, esta pesquisa possui um viés que pensa a materialidade das relações sociais. Por outro, atentaremos aos relacionamentos de trabalho que envolvem afetividade e desigualdade não apenas econômica, mas racial e de gênero — sabendo-se que estes marcadores estão interligados.
A consubstancialidade auxilia na identificação do gênero, da raça e da classe enquanto relações de produção, concepção valiosa para analisar um tipo de emprego que tem os três marcadores enquanto indicadores dos sujeitos que, em uma sociedade de classes capitalista, irão promover a reprodução da vida cotidiana e dos próprios indivíduos. Esta dimensão é central em uma perspectiva que pensa a interdependência entre os trabalhos produtivo e reprodutivo na vida social. Desta forma, estes marcadores são construídos como subjacentes às relações de trabalho mais amplas, construindo e reforçando as desigualdades existentes na sociedade.
Sobre a interseccionalidade, referimo-nos, especialmente, ao objetivo pelo qual este conceito foi criado por Crenshaw (2002), enquanto jurista e militante dos direitos humanos. A autora cunha o conceito visando garantir humanidade a tantas mulheres desumanizadas por conta de suas marcas sociais, descriminadas e marginalizadas. Nesse sentido, trata-se de uma ferramenta teórica que pode ser acionada em diferentes contextos econômicos e políticos, a partir de diversos marcadores. O que a torna essencial para esta pesquisa é possibilitar ir além do mundo do trabalho e posicionar uma lente de aumento que nos permite enxergar questões ontológicas, como a desumanização da mulher negra.
Além disso, os dois conceitos partem de algo que é extremamente importante para este estudo: a agência dos(as) oprimidos(as) e subalternos(as). No que se refere à interseccionalidade, suas análises críticas também devem contribuir para o empoderamento de grupos em situação vulnerável. Crenshaw (1991) observa que os membros destes grupos também são capazes de subverter as classificações sociais existentes, mesmo inseridos em um sistema de opressão e dominação. “Existe, no entanto, um certo grau de agência que as pessoas podem e exercem na política de nomeação” (CRENSHAW, 1991, apud PRINS, 2006, p. 280).
A perspectiva consubstancial apesar de ter como base as relações sociais de exploração, dominação e opressão foi criada para pensar
[...] a saída dos sistemas de dominação, tendo a emancipação como horizonte. [...] pensar em termos de relações sociais é, lembremos, pensar em termos de relações de força, em termos de resistência e de luta. (KERGOAT, 2016, p. 24).
O presente estudo não pretende “enjaular” as trabalhadoras domésticas em suas condições de subalternas, oprimidas e exploradas; nem reforçar a visão simplista de mulheres negras vitimizadas e fadadas a um destino sem satisfações e esperanças. Buscamos, fundamentalmente, falar sobre este cotidiano, mas pensar, também, a não passividade destas mulheres, através de suas estratégias possíveis de autonomia e liberdade. Isso significa reconhecer e dar visibilidade ao fato de que elas estão ganhando a vida e o sustento material para si e seus dependentes do jeito que lhes é possível em um país que trata das mulheres negras como lixo social (grifos nossos). Esta pesquisa fala de mulheres que resistem.
Apesar de suas especificidades, todas as trabalhadoras domésticas possuem características em comum em suas trajetórias, vivências e experiências com o trabalho doméstico remunerado, e é justamente isso que as caracteriza enquanto um grupo social. Um elemento comum no universo pesquisado é o motivo da entrada no emprego doméstico: a carência de recursos materiais, a necessidade de sobrevivência, a busca pela independência financeira e, principalmente, a possibilidade de obtenção de renda, praticando um serviço naturalmente feminino, que supostamente toda mulher está apta a desempenhar (HIRATA; KERGOAT, 2007). Inês, uma trabalhadora doméstica negra de 47 anos, trabalha como mensalista de carteira assinada e possui em sua trajetória um fator incomum: é graduada em letras, mas ingressou no emprego doméstico anteriormente à sua formação. Apesar de ter dado aula por um período omo professora de português, acabou por voltar para o emprego doméstico. Inês nos fala como ocorre, na grande maioria dos casos, a entrada nesta ocupação:
[...] nós mulheres, ou a gente se casava, encontrava alguém pra casar e ia viver uma vida de casa ou encontrava um meio de sobreviver, porque não tinha... é... instrução pra ter um bom emprego. Eu vejo isso, a profissão de doméstica, por muito tempo, e até hoje, de certa forma, ainda é a opção praquela mulher que não estudou, só sobra... talvez por isso, grande parte das domésticas sejam negras, porque é uma profissão, eu até diria que, durante muito tempo eu acreditei, que doméstica não é uma profissão é uma... imposição! Que profissão você escolhe, profissão é aquela que você optou por ela, eu quero ser isso! Doméstica, não! Doméstica você... poxa! Eu não tenho estudo, eu não posso pagar faculdade, eu não tenho nada, preciso ganhar dinheiro e eu sei fazer serviço doméstico, então, eu vou pra casa de alguém que pode pagar e eu vou trabalhar lá, vou fazer o serviço pra pessoa me pagar. A condição da doméstica ainda é essa, né? E a minha vida foi mais ou menos isso, foi assim que eu entrei no mercado de trabalho doméstico (INÊS).
Inês discorre muito claramente sobre o que significa para estas mulheres o emprego doméstico enquanto uma entre tantas formas de trabalho, justamente, não é uma opção, mas sim, uma imposição, o que sobra. Porém, é interessante notar que esta constatação contrasta com sua situação de mulher graduada. É de se ressaltar, na fala de Inês, os aspectos de gênero, raça e classe, que levam à inserção nessa profissão; ser uma mulher negra e pobre não deixam abertas muitas portas para a qualificação, profissionalização e acesso a bens culturais e materiais que possibilitem a escolha de uma profissão de acordo com as preferências do indivíduo.
A entrada no emprego doméstico é dada pela necessidade e, principalmente, pela condição de gênero (ÁVILA, 2009). Se não fosse assim, se fosse apenas pelas necessidades e carências materiais, apenas por questões de classe, haveria muitos homens negros e/ou pobres neste tipo de emprego, o que não é o caso. Há, portanto, o peso dos papeis sociais que são generificados, e o da mulher se encaixa naquele que cuida, que mantém a casa e os seus integrantes, que reproduz a vida (HIRATA; KERGOAT, 2007). Essa dimensão se insere na própria lógica da divisão sexual do trabalho através do princípio da separação. Segundo esta lógica, haveria trabalhos de homem e trabalhos de mulher e o emprego doméstico se associaria ao feminino e a reprodução social, razão pela qual é historicamente desvalorizado (KERGOAT, 2009).
Segundo Figueiredo (2011), a trabalhadora doméstica possui uma identidade construída pela negação, em sua grande maioria, elas optam por esse caminho pela falta de estudos ou outra qualificação profissional. Segundo pesquisas realizadas pelo IBGE (2009), as trabalhadoras domésticas possuem em média, 6,1 anos de escolaridade,3 enquanto o conjunto das mulheres com outras ocupações profissionais apresentam uma média de 9,3 anos. Esta distância entre os níveis de escolaridade sugere que, para quem possui níveis escolares tão baixos, não restam muitas opções que não sejam a exploração do trabalho manual ou a exploração de seus corpos.
Valeriano e Nunes (2017) apontam a pobreza e os desarranjos familiares como razões para uma inserção precoce no emprego doméstico remunerado. Segundo eles, haveria uma articulação deletéria na qual de um lado as mulheres que pagam pelo serviço doméstico se beneficiam dele para o exercício de suas profissões e, de outro, as trabalhadoras domésticas permaneceriam no ciclo de reprodução da própria condição subalterna, por vezes transferindo a ocupação para as filhas.
A recente expansão do ensino superior no Brasil, contudo, aumentou sobremaneira a população de nível universitário e trouxe uma dinâmica nova na qual algumas mulheres com alta escolarização acabam aceitando postos de trabalho precarizados, como o de empregada doméstica. Este foi o caso de Inês, citada anteriormente. Entre estes segmentos cabe uma análise mais cuidadosa que articule gênero e raça.
As evidentes desigualdades de raça explicitam o equívoco da chamada democracia racial, conceito que passou a ser amplamente conhecido através de Gilberto Freyre (2003) na década de 1930, passando a ser instituído como um mito fundador da identidade brasileira enquanto um povo tolerante às diferentes raças, encarando tal diversidade de forma amistosa, igualitária e afetiva. Segundo Paixão (2013), as tradicionais hierarquias sociorraciais nunca foram colocadas em questão por Freyre, o que nos faz entender que tal democracia só poderia se estabelecer garantindo relacionamentos amistosos e harmônicos uma vez que um dos polos, o dos “racialmente inferiores”, se submetesse a disparidade e inferioridade econômica, política e de prestígio social. As relações de intimidade, contato e diálogo só poderiam se manter no seio de uma sociedade amplamente desigual, dimensão que se mantém até os dias atuais.
Na mesma direção, Gomes (2005) destaca que a ideia implícita na suposta igualdade racial é de que há oportunidades e tratamento igual para todos, o que nega a discriminação racial no Brasil e perpetua estereótipos, preconceitos e discriminações sobre as raças negra e indígena. Se seguirmos a lógica instituída por este mito e concebermos que todos estão em plenas condições de igualdade, então, as oportunidades de alcançar a ascensão e o sucesso financeiro seriam as mesmas entre os indivíduos. No caso das empregadas domésticas esta premissa ganha contornos bastante perversos.
Quando nos atentamos para a história de Luzia4 vemos que as escolhas são restritas, mesmo para aquelas que conseguiram ampliar sua escolarização. Estas trabalhadoras, a partir da obtenção destes bens simbólicos, se tornam mais críticas de sua própria situação, menos dependentes de seus patrões e acumulam possibilidades profissionais para além do emprego doméstico. Luzia fez curso técnico em enfermagem, a muito custo, durante o tempo que trabalhou como doméstica e sem nenhum apoio ou facilidade de seus patrões. Segundo ela:
É porque se eu não tivesse determinado certas coisas ia continuar do mesmo jeito, e hoje, e de repente poderia até ser pior, né? Que a humilhação poderia ser pior! Por que? Quando eu comecei a falar assim: “não! Não quero mais ficar na casa dos outros!”, aí é que investi mesmo! Eu trabalhava de segunda a segunda, aí trabalhava na área de enfermagem, juntava dinheiro, era assim, final de semana e feriado, Carnaval, Natal, Ano Novo, eu aproveitava essas datas pra poder trabalhar e ganhar, eu ganhava muito mais, né? Aí foi daí que eu investi. “Não! Eu vou fazer a minha casa!”. Aí eu consegui construir uma casa pra mim e botei na minha cabeça: “não vou dormir mesmo na casa de ninguém! Quero minha liberdade! Quero ser igual a todo mundo que tem o seu direito de ir e vir, trabalhar e estudar! Ter uma vida normal, uma vida social, não ficar na casa dos outros direto, só vivendo a vida dos patrões!”. Aí foi dessa forma que eu consegui, né? E passei a conversar com ela [patroa]! (LUZIA).
A emancipação, não do emprego doméstico, mas da dominação de uma patroa abusiva (segundo relatos da própria doméstica Luzia) veio através do estudo, através do aprendizado de uma nova profissão, a enfermagem. Tanto a emancipação através da possibilidade de adquirir bens, como a casa própria, quanto da dependência que a fazia se submeter a situações bastante humilhantes. Esses fatores causaram em sua patroa o medo da insubmissão por parte de Luzia. Esse medo chegou ao ponto de aquela fazer pequenas insinuações de demissão enquanto Luzia estava em processo de formação. Ela apontava que, já que as crianças haviam crescido (Luzia cuidou dos filhos de seus patrões durante a infância deles), não precisava mais do serviço contínuo de uma mensalista. Essas ameaças só cessaram quando Luzia conseguiu um emprego de final de semana e feriados na área de enfermagem e sua patroa percebeu o “perigo” de ficar sem os serviços de uma empregada doméstica.
Quando analisamos apenas os estudos e a qualificação profissional a tendência é naturalizarmos que a partir da obtenção destes bens simbólicos seria automático o movimento de saída destas mulheres do emprego doméstico para outras ocupações profissionais. A raça se coloca como elemento central neste cenário, onde a maioria das mulheres é negra e desde muito novas estiveram ativas enquanto empregadas domésticas. Como destaca Damasceno (2000), as mulheres brancas por conta de seus privilégios de cor/raça, deslizam com muito mais facilidade do emprego doméstico para outros tipos de empregos mais valorizados. Isso porque estas mulheres estão livres do racismo que engessa as negras em imagens relacionadas à servidão, à subserviência e à irracionalidade, além de naturalizá-las enquanto empregadas domésticas, seja esta sua profissão, ou não (HOOKS, 1995; GONZALEZ, 1984; XAVIER, 2012). Portanto, para estas mulheres negras o grau de escolaridade e a qualificação profissional angariados nem sempre se convertem em formas de empregos compatíveis a tais bens simbólicos.
O desvalor conferido ao trabalho doméstico no Brasil está relacionado diretamente aos sujeitos que o praticaram desde sua origem colonial até os dias de hoje, não havendo expressiva ruptura neste sentido. Mulheres negras e mulheres pobres, em geral, são os sujeitos que executam o trabalho reprodutivo nas suas próprias casas e nas casas das famílias de classes médias e altas onde são empregadas. Além de mal remunerado, o trabalho doméstico ainda é desconsiderado enquanto um trabalho de fato, de modo que são comuns relatos de extremo desrespeito. Judite, mulher negra, 43 anos, mensalista de carteira assinada, fala-nos de forma muito significativa sobre o desvalor da profissão.
[...] Muitas das vezes, uma calça jeans, uma blusa vale mais do que o que você faz, né? Um calçado vale mais do que o que você faz. Do que a pessoa chegar e encontrar a casa limpinha, cheirosinha, tudo arrumadinho, né? Às vezes, um objeto vale mais do que o que você faz (JUDITE).
Chama a atenção, na fala de Judite o que Karl Marx ([1867] 1978) chama de “valor de uso”. Judite compara este valor relacionado ao seu trabalho ao valor de produtos que foram materializados através de outros tipos de trabalho: calças jeans, blusas, sapatos. Se por valor de uso temos a utilidade de algo material, fruto de um trabalho, torna-se mais complexo discutirmos o trabalho doméstico que gera algo que não pode se materializar. Porém, Judite compara o seu trabalho imaterial e o valor deste ao valor de outras coisas materiais com o objetivo de equiparar o valor de uso do seu trabalho ao de qualquer outro.
Todas as domésticas entrevistadas deixaram transparecer em suas falas, em algum momento, a desvalorização da sua profissão e o quanto se sentem atingidas por isso. Tal dimensão se agrava quando nos damos conta que o cotidiano de trabalho entre patrões e as empregadas os obriga a viver um relacionamento de proximidade e, frequentemente, afetividade, principalmente, entre as mensalistas. Muitas vezes tal proximidade acarreta tensões, como podemos observar na fala de Inês:
[...] eu não gostava de limpar banheiro. Era uma coisa que fazia eu me sentir mal. Porque eu achava que era uma tarefa que, além de ser um serviço... não que eu achasse um serviço humilhante, mas é que eu achava que não havia necessidade, de, por exemplo, ela [patroa] era uma pessoa que ela sujava demais, ela era o tipo da pessoa que sujava pro empregado ter o que limpar, então, era uma coisa que eu não gostava de fazer porque eu me sentia diminuída por causa da situação. De saber que ela estava fazendo para me colocar numa posição de... pra provar, pra mostrar que “aqui quem manda sou eu!”, e como muitas vezes ela me disse claramente isso: “manda quem pode e obedece quem tem juízo!” (INÊS).
Aspectos relacionados à servidão acompanham a desvalorização e exploração do trabalho das domésticas. A desvalorização do trabalho muitas vezes é usada pelos patrões e integrantes da casa para mostrar às empregadas quem elas são e o que representam naquele espaço. E, acima de tudo, quem eles são em contraste com elas e a figura de poder que representam.
São comuns os relatos referentes à banalização do trabalho realizado pelas domésticas, principalmente sobre a manutenção do trabalho já feito. Segundo as trabalhadoras ter de fazer a mesma tarefa, repetidas vezes ao dia ou repeti-las sem que julguem necessário, por conta do descuido dos habitantes da casa em, por exemplo: sujar o que já foi limpo e não limparem eles mesmos, desarrumar o que já foi arrumado e não arrumarem eles mesmos. Isso torna-se um dos aspectos de maior demonstração de desvalorização do seu trabalho.
Assim... eu gosto do que eu faço! Eu gosto do que eu faço, e o ruim é que a gente faz e a pessoa: fez! Tanto fez! Bagunça! Acha que a gente tem que fazer de novo, tipo assim, entendeu? Aí eu não gosto! (JUDITE).
Para as domésticas a desvalorização do trabalho é perceptível, principalmente, quando este aparenta se tornar invisível. Como se ninguém percebesse, elogiasse ou tivesse cuidado com o trabalho já feito. Elas ressaltam a falta de respeito com o seu trabalho quando é desconsiderado como algo que depende de esforço, tempo, conhecimento e habilidades práticas. Um elemento importante que aparece como reflexo deste reconhecimento almejado seria uma remuneração justa, queixa frequente na fala das entrevistadas.
A questão da agência diante da desvalorização destas trabalhadoras se fez presente em alguns momentos das entrevistas. Nesta pesquisa estamos lidando com trabalhadoras que não estão organizadas politicamente, nem em sindicatos e nem em movimentos de mulheres ou movimento negro. Sendo assim, as formas de suavizar as opressões vivenciadas em seus ambientes de trabalho se constroem a partir das ações cotidianas de subversão e, principalmente, através do diálogo, diretamente confrontador ou amigável. Tais ações não transformam as estruturas de desigualdade que envolvem o trabalho doméstico remunerado, porém são instrumentos legítimos usados por tais trabalhadoras, considerando suas atuais condições sociais e empregatícias (SCOTT, 1985, apud, ÁVILA, 2009; BRITES, 2000).
O quarto era, tipo assim, o quarto da bagunça! Botou uma cama lá e acabou! Eu reclamava muito em relação a isso! Poxa, é um absurdo não ter uma televisão, não ter um quarto decente, sem bagunça, né? Porque a gente é empregada que vai ficar dormindo na bagunça de sujeira, de aspirador de pó, de cheiro de vassoura, né?! Aí, ela ficava... não gostava muito. Mas eu mostrava que a gente também tinha o mesmo direito que eles. “Ah, isso aqui é pra botar não sei aonde, bota lá no quarto lá onde a Luzia...”, “não! Não quero! Bota lá no quarto de vocês!”. Eu batia muito na tecla em relação a isso! (LUZIA).
Luzia é um exemplo muito representativo do que o diálogo e as reclamações sistemáticas direcionadas aos patrões podem gerar enquanto mudanças qualitativas em seu cotidiano de trabalho doméstico, o que teria o poder de suavizar seu próprio cotidiano de desvalorização.
A ideia de uma agência diferenciadamente imperfeita, cunhada por Biroli (2012), sintetiza bem as possibilidades de ação em um universo restrito de escolhas e opções por parte destas mulheres trabalhadoras. Partindo de uma discussão conceitual mais ampla, a autora aponta que a agência autônoma ocorre com frequência em meio a constrangimentos e pressões. Esta constatação nos permitiria fugir de análises simplistas que ora pensam as mulheres como indivíduos incapazes de agir, ora (no outro extremo) como livres para exercerem suas escolhas. Nesse sentido, a agência é vista pela autora como “sempre imperfeita em relação ao ideal normativo da autodireção e autodeterminação pelos indivíduos de suas preferências” (BIROLI, 2012, p. 27).
As entrevistas levadas a cabo na presente pesquisa foram realizadas por uma pesquisadora negra, oriunda da classe popular do Rio de Janeiro. Essa dimensão teve influência direta no contato pesquisador/pesquisado e nas abordagens empregadas no momento das entrevistas. Frequentemente o racismo e o sexismo apareceram como temas difíceis de serem abordados. Acreditamos que a proximidade de raça e classe da entrevistadora e as estratégias metodológicas em relação ao questionário utilizado nas entrevistas tenham sido fundamentais para a extração das informações coletadas que tanto foram fundamentais para a realização desta pesquisa.
Toda vez que a palavra “racismo” aparecia nas entrevistas era notório o desconforto e a negação, bastava mudar a palavra e o tom da pergunta para que as respostas fluíssem melhor, tal comportamento foi observado e a pergunta reelaborada. A não utilização de palavras que estejam carregadas de significados dolorosos e constrangedores e que provoquem o silenciamento, como “racismo” e “assédio sexual” foi fundamental. Tais palavras foram substituídas, mas estiveram presentes intrinsecamente, por exemplo, nas perguntas: “você já se sentiu mal ou colocada para baixo por perceber que alguma situação humilhante tenha acontecido por causa da sua cor?”; e também, “você já passou por alguma situação desagradável ou estranha com seu patrão ou companheiro da sua patroa?”.
A desvalorização que cerca a profissão se estrutura na concepção social de que estas mulheres negras da classe trabalhadora não são dotadas do mesmo tipo de humanidade e nem são tão dignas de individualidade quanto os indivíduos padrões da sociedade, aqueles que são brancos e pertencem às classes médias e altas. A partir das entrevistas, foi constatado que a estigmatização e os estereótipos são muito presentes e perceptíveis a estas trabalhadoras que vivenciam experiências de acusação, humilhação e desumanização em amplos sentidos.
[...] era como se a gente não existisse, como se a gente fosse uma máquina de trabalho, que não tivesse direito a nada (LUZIA).
A invisibilidade, acompanhada do sentimento de exploração e servidão, são fatores que pesam muito sobre as trabalhadoras domésticas. É comum o sentimento de diminuição perante os patrões e o ambiente social diferente, tido como superior. O tipo de relacionamento trabalhista e pessoal que será estabelecido da parte da patroa (patrão) com a empregada é moldado através de preconceitos de diferentes tipos direcionados a estas trabalhadoras. Tais comportamentos baseados em diferenças e desigualdades de classe, raça e gênero, quando não demonstrados de forma direta, aparecem de forma velada, mas são suficientes para formarem nestas trabalhadoras concepções bastante definidas sobre seus patrões e sobre a sociedade em que estamos inseridos.
[...] existe o mito de que toda empregada tem caso com o patrão, existe o mito de que toda empregada é... muitas empregadas são desonestas. Existe muito preconceito em torno dessa profissão. Além do que muitas pessoas acham que, só porque a pessoa é doméstica, a pessoa é ignorante, a pessoa não tem estudo, a pessoa não tem educação, né? Vê-se ainda a profissão, talvez por causa da condição da escravidão, por causa da maioria das domésticas serem negras, ainda se vê, quando se diz assim, “a fulana é doméstica”, pensa-se logo o quê? Que a pessoa é ignorante, que a pessoa não sabe falar, a pessoa não sabe se impor, não sabe se comportar (INÊS).
Foi comum o relato de domésticas sobre patrões com essas concepções e na sociedade em geral, mas se torna nítido na fala de Inês os estereótipos e estigmas empregados a estas trabalhadoras domésticas negras apreendidas como aquelas desprovidas de racionalidade, moralidade, honestidade, de sexualidade descontrolada, encaradas como o “baixo nível” social. Estas mulheres têm de viver sua rotina de trabalho e sua rotina social impregnadas de tais imagens fixas, impossibilitadas de desenvolverem e manifestarem com clareza sua própria individualidade (HOOKS, 1995; GONZALEZ, 1994; XAVIER, 2012). Sua condição de classe, raça e gênero as precedem e determinam o que supostamente são, antes que consigam, efetivamente, se apresentar.
Vemos no caso de Judite a contestação de sua honestidade e a acusação, mesmo diante de provas:
Tamis: quais foram seus piores patrões?
Judite: [risos] Se eu for citar... [pausa] Bem... Seu Fábio e a dona Neuza, que eles acusavam de coisas que a gente não fazia. Tipo, é... quebrava as coisas lá, teve obra na casa deles, então, quebraram muito... Eles eram católicos, então, tinha muito santinho, assim, então, eu não sei quem foi, pegou aquele santinho, quebrou e escondeu lá no cantinho. Aí, eu cheguei pra poder limpar [...] quando eu vi quebrado, aí eu peguei, e sendo que a casa tinha câmera, ainda mostrei, assim, que a santinha tava quebrada. Ele cismou que fui eu! E eu falei que não fui eu, e ele cismou que fui eu! E foi uma coisa muito chata, porque eu dizendo que não e ele alegava que “não! Foi você sim!”, entendeu? Todo tempo ele falava que era eu! Então, assim, eu me senti muito triste com essa situação, porque não fui eu! Se eu quebrar, eu chego e eu falo “oh aconteceu isso e isso!”. E sendo que tinha câmera e ele me acusando. Então pra mim... bem chato!
A experiência de acusação foi algo bastante significativo para que Judite citasse aqueles como alguns dos seus piores patrões. Mesmo com provas concretas de sua inocência, no caso a câmera, foi acusada como se fosse natural que essa culpa recaísse sobre ela. No imaginário socialmente construído sobre as empregadas aparecem como aquelas de moral duvidosa, de comportamento capcioso, desonesto, traiçoeiro, as que estão a todo tempo em contato com os bens materiais da casa e que oferecem perigo à integridade do lar e da família (XAVIER, 2012; BRITES, 2000; TELLES, 2018).
Na maioria das vezes os piores patrões são citados como aqueles que dão um tratamento menos humanizado às domésticas, os que não cumprem com o combinado, que não pagam em dia, que importunam seu trabalho e que as acusam ou as prejulgam. Porém, como os melhores patrões são citados aqueles que tratam a relação patrão/empregado de forma profissional, isso não exclui o fato de algumas das domésticas entrevistadas considerarem o tratamento afetivo como importante. É interessante notar, contudo, que estes só são considerados “os melhores patrões” se a afetividade não for usada como um mecanismo de manipulação para exploração.
Brites e Picanço (2013) chamam atenção para a relação de intimidade e afeto entre as crianças e suas empregadas e o processo crescente de separação e hierarquia que se produz ao longo da socialização. Segundo as autoras, o controle do acesso das crianças aos espaços “da empregada” no domicílio ocorre por meio de uma lógica que não passa pelo respeito ao espaço do outro igual. O perverso elemento implícito nestas relações seria o medo do “contágio” pelo sujo e impuro corpo dos subalternos.
A partir da consciência dessas mulheres sobre a imagem que seus patrões atribuem a elas, são levadas a desenvolverem estratégias de defesa para manterem sua integridade moral e seus empregos. Luzia diz que sempre que vai tomar banho para ir embora da casa em que trabalha deixar sua bolsa bem aberta e à mostra para que todos os integrantes da casa vejam, de forma proposital, mas dando a entender casualidade. Já Miriam deixa muito claro para seus patrões que não limpa a parte de dentro de geladeiras, armários, cômodas e guarda-roupas. A não ser que sua patroa esteja junto, a acompanhando ou a ajudando para se certificar que não será acusada de roubo.
A experiência de sexualização também faz parte da vivência destas mulheres. Assim como foi citado, a partir da transcrição de suas próprias falas, muitas estão cientes dos estigmas relacionados à prostituição e a moralidade sexual pouco confiável que as envolvem.
[...] O homem [patrão] chegou da rua, velho já! Aí entrou, ele nunca me pediu pra eu levar um chá na sala dele, porque quem fazia o chá dele era a esposa dele. Nesse dia, o homem inventou de chá, cara! E eu já desconfiada. Meu Deus do céu! “Ah, a senhora faz o chá e leva pra mim na sala?”, falei: “levo!”. Peguei fui lá, fiz lá o chá e levei. Só que quando eu cheguei lá ele chegou pra mim e falou assim: “os seus pais te criaram pra que? Pra você casar? Pra você ter uma família?”, eu falei: “acho que todo pai quer uma filha que tenha uma família e que seja uma pessoa decente”. Aí ele virou pra mim e falou assim: “eu vou arrumar um serviço pra senhora na Fundição!”. Nem falou senhora, “pra você na Fundição!”. Aí, eu falei: “vai arrumar um serviço pra mim na Fundição?!”, “vou!”. Aí, ele falou pra mim: “só que o negócio é o seguinte: lá na Fundição, você vê essas meninas aí tudo sendo chefinha, trabalhando de secretária, não pensem vocês que elas tão lá porque elas têm capacidade, não! Elas tão lá porque os outros colocam elas lá dentro e elas ficam”. Aí ele virou pra mim e falou assim: “eu vou arrumar um emprego pra você, mas só que, quando você chegar lá, você vai ter que ficar com alguém lá dentro, você já fica comigo.” [...] Cara, oh aquilo pra mim acabou comigo, acabou! Olha e a mulher da casa não chegava e eu desesperada com aquele homem! “Gente, esse homem vai me agarrar aqui agora, eu vô tá perdida!”. Aí, passou. Aí, daqui há pouco ele virou assim: “não... então tá! Se você não quiser...”, bem assim na minha cara! “Se você não quiser trabalhar na Fundição, você fica comigo e continua trabalhando aqui em casa, que eu vou alugar um apartamento na Barra e você me encontra, e eu vou te ensinar o código da chave do meu carro e, quando eu chegar, eu faço e você vai.”. Menina! Olha eu não falei nem que sim, nem que não pro homem. [...] Eu acabei de almoçar, arrumei a cozinha, peguei o meu dinheiro e fui embora. [...] Peguei, saí de lá e nunca mais voltei! (MIRIAM).
O desvalor da empregada doméstica só não supera o da prostituta. Contudo, o senso de domínio masculino sobre os corpos destas trabalhadoras por vezes guarda alguma proximidade, como na fala acima. Muitas mulheres ingressam neste tipo de emprego para fugirem da prostituição, mesmo assim, não conseguem escapar do estigma que conecta estas profissões. Numa espécie de espelho a sociedade as encara como uma sendo o reflexo da outra. Sem a intenção de desqualificar as prostitutas, tratamos aqui não do teor da profissão especificamente, mas da questão de que estas mulheres trabalhadoras domésticas têm tal imagem como imposição e não como escolha.
Lélia Gonzalez (1984) destaca a dupla imagem da mulher negra, mulata e mucama, abrindo-nos a reflexão de que ao mesmo tempo que esta pode ser concebida como a que seduz, que está disponível para o sexo e que é naturalmente mais sexual, mantém tais supostas características combinadas a subserviência e ao cuidado com o outro. Se considerarmos que os serviços sexuais também são serviços de cuidado quando partem de mulheres (BORIS, 2014), entendemos a lógica que institui mulheres negras e/ou empregadas domésticas como aquelas figuras naturalmente aptas a satisfazerem as carências e necessidades sexuais dos seus patrões.
A desumanização destas trabalhadoras domésticas aparece desde situações extremas até corriqueiras, mesmo assim, dizem e significam muito para estas mulheres em constante estado de diminuição do que são enquanto indivíduos. Como caso extremo, temos uma situação de muita agressividade por parte da patroa com Inês, na qual a mesma lança em sua direção um cinzeiro por não ter feito o que havia mandado. Relatos de situações como esta não foram comuns, a violência contra as trabalhadoras domésticas, segundo os relatos das entrevistas, é muito mais de ordem verbal e simbólica do que com propósito de agredir fisicamente. Na prática, este tipo de situação revela aspectos perversos de servidão, pois apenas direcionada a escravos e servos a violência foi vista como algo aceitável para corrigir o trabalho e o comportamento do empregado.
[...] ela era uma pessoa extremamente agressiva, mal-humorada, grosseira, entendeu? Sem respeito algum pelas pessoas, cruel, entendeu? Tratava empregada muito mal, sabe? E fui vendo, cada vez descobrindo o pior e o pior e o pior dela. [...] eu era tratada, mesmo, era aos gritos e palavrões, sabe? E todo mundo via, o marido presenciava, e não falava nada. As amigas dela que iam lá presenciavam e todo mundo via a maneira que eu era tratada, era tratada de uma maneira deprimente, entendeu? (INÊS).
Uma coisa em especial chama a atenção no relato de Inês, a omissão dos membros da família e amigos de sua patroa em relação à forma desumana como era tratada. A omissão reflete uma percepção compartilhada por alguns, como se fosse socialmente permitido ser tratada desta forma porque se é empregada. Uma espécie de convenção de classe que tornaria aceitável um indivíduo privilegiado sujeitar de forma explícita e grosseiramente humilhante um subalterno nestes termos.
Quando abordamos especificamente a raça nas entrevistas, diante de perguntas mais diretas sobre o racismo que poderiam ter sofrido nas casas dos seus patrões, algumas respostas chamaram a atenção.
Teve uma época, logo assim que eles foram morar no condomínio que eles moram hoje, quando tinham pessoas, assim, negras, na piscina, ela [patroa]: “aqui tá virando a maior bagunça! Olha os tipos de pessoas!” eu pensei assim: “é mole? Isso é por causa da cor! Por causa da cor! Caramba!”. [...] Quando ela vem pra mim com preconceito, eu falo na cara dela, “ué, doutora Léa, só porque a senhora acha que é melhor do que eu na cor? Que isso? Tem esse negócio não! A gente tem que aprender a respeitar as diferenças, tem que aprender a conviver. E a senhora não é melhor do que eu em nada. Porque a senhora é branca e eu sou amarelinha”. Entendeu? Aí, ela pega e “não, Luzia! Que é isso?”, “não! Senti isso sim! A forma que a senhora me tratou ali na frente da sua amiga! Eu não gosto dessas coisas! Eu só não falei com a senhora na frente da amiga pra senhora não ficar com vergonha, entendeu?” [...] (LUZIA).
Luzia nos contou que trabalha há trinta anos na casa de Léa, conquistou certa autonomia para expor o que não lhe deixa satisfeita e o que lhe ofende. Diante disso, expôs claramente sua indignação em relação ao comportamento racista de sua patroa, a partir da consciência de sua raça e identificação com aquelas pessoas negras que sua patroa discriminava, mesmo estes não sendo subalternos a ela, mas visitantes de seu condomínio. Luzia procurou se defender da humilhação e do preconceito através do diálogo. Não deixa de ser curioso, no entanto, ela se identificar como “amarelinha” diante da patroa racista. Em certo sentido há certa vacilação na autoafirmação como negra.
Chamam a atenção também os silêncios e os constrangimentos relacionados ao racismo sofrido. No caso de Judite, isso se apresentou de forma muito intensa, pois não negou, mas também não expôs com clareza.
Tamis: você já sofreu alguma experiência de racismo com seus patrões, em geral?
Judite: [pensativa] não.
Tamis: você nunca se sentiu mal por alguma situação em que você tenha se sentindo diminuída por ser negra e seus patrões brancos?
Judite: aaaah sim... isso aí acontece, né? Isso aí acontece... isso aí acontece... [pensativa]
Tamis: mas como aconteceu?
Judite: aí, eu... não, isso aí acontece.
Tamis: você prefere não falar?
Judite: prefiro não falar. [pausa] Porque às vezes, tipo assim, é... uma palavra, tipo: “oh se põe no seu lugar!” que..., né? Acontece muito...
[pensativa]. Mas eu não tô nem aí! Eu quero é... nem esquento, não!
As repostas constrangidas de Judite, quando perguntada sobre racismo, talvez demonstrem muito do porquê a maioria das respostas das entrevistadas negras a esta pergunta tenham sido negativas. Há certo constrangimento em falar da questão diretamente, com as situações sendo expostas em perguntas que tangenciavam este aspecto. Este silêncio também reflete uma concepção social brasileira muito significativa no que se refere a como lidamos com as questões raciais: sem lidar. Segundo Guimarães (2009) o Brasil é um país que construiu sua imagem interna e externa a partir do mito da democracia racial. A princípio, (e até recentemente) a raça seria um tabu, sendo, portanto, um assunto reprimido; todos são identificados a partir de uma identidade nacional construída pela mestiçagem; todos são “brasileiros” e em todos contém o sangue das três raças (branca, negra e indígena). A identidade racial, a partir disso, é vista como uma afronta à democracia racial que os brasileiros acreditam viver.
Além disso, a tendência no Brasil de se tratar a pobreza e as condições de precariedade do negro a partir de um viés apenas de classe, ignorando-se a dimensão racial é muito forte, como constata Guimarães (2001). Isso se reflete amplamente na teoria social sobre o trabalho doméstico no Brasil. É nítido como os (as) teóricos (as) que abordam esta temática fundam suas concepções sobre os conflitos, tensões e desigualdades vivenciados no lar a partir da inserção de uma trabalhadora doméstica muito baseados no âmbito de classe e de gênero (inclusive intragênero). Há uma maior desenvoltura teórica em relação a tais marcadores e um apagamento dos conflitos e tensões raciais presentes neste meio.
O teor do trabalho doméstico remunerado favorece os relacionamentos de intimidade entre a trabalhadora e os integrantes da família para a qual trabalha. O convívio com a rotina familiar, o presenciar e, em alguns casos, até mesmo o envolvimento em conflitos familiares, os cuidados com a casa e com seus membros. Porém, trata-se de uma relação ambígua já que o afetivo está envolto em desigualdades, um não excluindo o outro. Para caracterizar tal relação, Brites (2000) utilizou a noção de ambiguidade afetiva de Goldstein (2000), que segundo a autora é sobre a troca afetiva entre aquelas mulheres privilegiadas e outras que têm sua mão-de-obra doméstica para oferecer. Neste cenário seriam praticadas e reproduzidas as relações de classe. Quando perguntada sobre o que gostaria de mudar em suas condições de trabalho, Miriam é categórica:
Ah eu não queria me apegar a ninguém mais. Porque você começa a conviver com a pessoa, você acaba se apegando com as pessoas [...)]. Então, assim, acho que a gente deveria ser mais, assim, mais seca com o patrão. Patrão lá e você cá! Só que a gente não consegue dividir isso assim, patrão lá e você cá! (MIRIAM).
Miriam chega a relatar também que as questões afetivas interferem em suas decisões práticas enquanto diarista, sua autonomia em poder escolher para quem vai trabalhar, por conta da ausência de vínculos empregatícios fica prejudicada por conta do apego que tem a algumas empregadoras. Apesar de comuns, inesperadamente também estiveram presentes entre as entrevistadas aqueles casos de recusa desta afetividade. Dentre os relatos em relação a esta questão temos o de Inês como um dos mais representativos.
Eu não acredito em amizade entre patrões e empregadas. Eu acredito em uma relação de trabalho dentro da cordialidade e do respeito. Amizade, não! Entendeu? Porque amigo é uma coisa, amigo senta na mesa pra comer com você, amigo participa da sua vida, mas amigo não lava a sua roupa, entendeu? Amigo não limpa o seu banheiro, então, não é seu amigo, é seu patrão (INÊS).
É perceptível que as afetividades presentes neste tipo de relacionamento de trabalho são de alguma forma prejudiciais às domésticas, segundo suas próprias concepções. Isso porque envolvem desigualdades e por vezes a utilização deste afeto na troca de interesses e benefícios. Fica claro na fala de Inês que amizade e subalternidade não se misturam, de acordo com o seu ponto de vista.
No caso das diaristas a questão afetiva é dada de forma mais racional por conta das suas condições de trabalho mais autônomas. Por isso, é possível observar que parte das suas escolhas de trabalho obedecem, também, a uma lógica eminentemente afetiva. A preferência é para patrões que as tratam bem, oferecem comida (refeições básicas, principalmente), deixam que desempenhem seu trabalho de forma livre, além, é claro de pagá-las o valor estipulado e da forma combinada.
[...] a gente, como diarista, a gente não precisa ser muito fixo com a pessoa, então, de certa forma, a pessoa tem que fazer de uma forma pra cativar a gente a permanecer naquele serviço, não somente pagando. [...] é igual um vendedor, se você vai num vendedor de uma loja que você costuma sempre comprar, e ele te cativa, você sempre vai procurar ele. Então, é a mesma coisa, então, tipo, se a pessoa é boa com você, a gente sempre arruma um jeito de ter um espaço, um horário, [...] mas quando a pessoa não é boa, a gente já logo descarta, porque é uma troca, né? É todo mundo trocando ali, a gente, o nosso trabalho, eles, o dinheiro, mas não somente o dinheiro, porque a gente também não quer ser tratado igual lixo. (MELISSA).
Quando usa a palavra “cativar” para expressar a relação que, segundo Melissa, os patrões deveriam ter com as diaristas, esta demonstra que, na verdade, a relação de trabalho que se estabelece não é exatamente a de patrão, assim como com as mensalistas, mas de cliente. Na venda do seu trabalho doméstico, é preciso que o contratante a conquiste não apenas com o dinheiro, mas com respeito e afeto, um lugar na sua agenda de diárias. A demanda por diaristas é muita, o trabalho não é escasso, pelo menos para Miriam e Melissa,5 segundo elas, não há necessidade, então, de aceitar indiscriminadamente qualquer pessoa que lhes chame para trabalhar. Isso faz parte do que Monticelli (2013) chama de “afetividade seletiva”. É, a partir de tais critérios afetivos que as diaristas levam em consideração para a escolha de quem vão atender, o que não exclui, mesmo assim, a possibilidade de exploração e dominação que por vezes se escondem atrás de um tratamento mais humano.
Lia relata que muitas vezes tem de dedicar um tempo a mais para atender suas patroas em escutas e aconselhamentos, o que marca, em certo sentido, um acesso à intimidade nestas conversas.
Eu, além de cuidar da casa, eu ainda conheço a vida pessoal de cada um, todos os patrões, de todos! (risos) Não tem um que eu chego, às vezes, e perco lá, de Campo Grande tem dias que eu chego, se ela tiver na sala, ali, eu já perco meia hora, uma hora... aí, eu já até sento! Porque ela vai contar o que aconteceu no domingo, no sábado, aí fala, fala, fala, aí fala! Quando tá de mal com o marido, então...! Eu já conheço a vida pessoal de todos, até da de Cacaria, de Campo Grande, é... do passado. [...] Essa Celina mesmo, essa daí eu já falei que não volto a trabalhar pra ela, porque ela é muito chata, mas aí ela roda, roda, roda, roda, tem dez anos essa novela! Eu vou e volto, vou e volto, vou e volto. Aí, outro dia ela virou e falou assim: “ah, minha amiga, fica doente, não. Porque só pra cuidar de mim tem que ser você, porque só você me atura!”, entendeu? Aí, passei pelo casamento dela, se separou, vi o esposo casar de novo (LIA).
Fica evidente na fala de Lia que dentre suas incumbências presumidas estavam um trabalho extenso de escuta e cuidado em relação às patroas, que vai desde questões psíquicas até o cuidado concreto em situações de vulnerabilidade por problemas de saúde. A reciprocidade afetiva em relação à Lia não nos foi relatada em nenhum momento da entrevista.
As empregadas domésticas muitas vezes são tidas como um bem e até mesmo uma herança. Famílias de todas as classes sociais tinham serviçais em suas casas em épocas coloniais, desde então, ter uma empregada doméstica sempre foi sinal de status social (GRAHAM, 1992). A naturalização do fato de um indivíduo doar a maior parte de sua vida produtiva a uma família a ponto de não ter possibilidade de construir a sua própria, de construir uma individualidade, advém fundamentalmente da concepção de posse em relação a estas empregadas.
Luzia relata uma situação muito reveladora desta dimensão. Rafaela, filha de seus patrões, mesmo após se casar e morando junto do seu marido, em outra casa, ainda permanecia mandando suas roupas para que Luzia lavasse, inclusive suas roupas íntimas sujas.6 Esta atitude reflete claramente sua visão do que é ter uma empregada doméstica. Luzia foi tratada como se fosse uma posse da família e não uma trabalhadora da casa, obrigada a não só servir aos que nela moram, mas também, integrantes da família que não se encontram no domicílio, mas que ainda assim, mantêm laços senhoriais com ela.
Os trabalhos sobre emprego doméstico remunerado no Brasil são vastos e consolidam um campo de estudos fértil. Quando olhados em conjunto nos parece haver uma preeminência da classe e do gênero enquanto categorias analíticas sobre a raça, dimensão que optamos por analisar mais na presente empreitada.
Os conceitos de consubstancialidade e interseccionalidade aqui não foram pensados como divergentes, mas complementares. Ambos nos auxiliaram a explorar as articulações entre os marcadores sociais da diferença, suas imbricações e articulações nos diversos modos de reprodução da desigualdade nas relações entre as empregadas domésticas entrevistadas e seus patrões. Nesse sentido, mais do que confrontar abordagens analíticas das questões de gênero, nosso objetivo foi pensar os contextos sociais e políticos a partir dos quais as ferramentas teóricas emergem.
Miguel (2017) chama atenção para o fato de que no Brasil, para um segmento de mulheres abastadas, temos um dispositivo perverso de ajuste da divisão sexual do trabalho pouco comum no resto do mundo: a possibilidade de transformar parte do trabalho doméstico de atividade manual para atividade de gestão, com a contratação de uma mão de obra mal remunerada. Essa tendência acentua as desigualdades no interior do segmento de mulheres trabalhadoras entre aquelas do topo da pirâmide salarial e as da base, aqui analisadas. Tendo-se em vista que as condições de trabalho vêm piorando com a precarização pós Reforma Trabalhista de 2017, vemos segmentos cada vez maiores de mulheres (por vezes escolarizadas) disponíveis a desempenhar este trabalho de reprodução social que é o emprego doméstico remunerado. Cabe destacar, como fizemos ao longo do texto, que a chance desta mulher mais pobre que desempenhará estas atividades ser negra é enorme, o que evidencia também uma divisão racial do trabalho como lógica organizadora do mundo laboral.
De modo mais amplo, as questões aqui pensadas evidenciam o quanto o trabalho doméstico remunerado é conformado na articulação inextricável de gênero, raça e classe, o que impõe uma análise relacional destas três dimensões nas falas, percepções e vivências das trabalhadoras entrevistadas.
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Nome:
Idade:
Qual a sua cor/raça?
Grau de escolaridade:
Em qual bairro você mora?
Em qual bairro fica a casa dos seus patrões?
Desde quando começou a trabalhar como doméstica?
Você é diarista ou mensalista?
Como sua atual patroa te contratou? Como ela chegou até você? Como foi a conversa inicial de vocês?
Você tem carteira assinada?
Em quantas casas você trabalha? Quantas vezes por semana?
Quem dita as regras e as condições de trabalho? Como, por exemplo, quantas horas de trabalho serão ou o valor do salário?
Qual sua renda mensal?
Conte-me um pouco do seu histórico de trabalho como doméstica?
Você se vê como empregada doméstica até se aposentar ou esse é um trabalho passageiro?
Quais as vantagens e desvantagens de ser trabalhadora doméstica?
Quais as tarefas domésticas que você tem que realizar na casa?
Quais tarefas você prefere fazer e quais você não gosta?
Seus patrões fazem alguma tarefa doméstica enquanto você está trabalhando ou quando não está na casa deles?
Como são disponibilizados a você os produtos da casa? Em relação aos produtos de higiene pessoas, os alimentos, a roupa de cama e etc.
Como é sua relação com seus atuais patrões?
Quais foram seus melhores patrões? Por quê?
Seus atuais patrões já fizeram você se sentir mal alguma vez? Humilhada, desrespeitada ou menor do que eles?
E sobre os seus antigos patrões, já aconteceu algo do tipo?
Você já enfrentou alguma situação difícil com a sua patroa? Algo que te deixasse mal?
E com o seu patrão (companheiro ou marido da sua patroa)?
Qual é a cor dos seus atuais patrões?
Eles têm filhos? Qual a sua relação com eles?
Se você pudesse mudar algo nas suas condições de trabalho e no relacionamento com os seus patrões o que você mudaria?
Raça/ cor | 7 negras; 2 pardas; 1 branca |
Idade | 3 entre 20 e 29 anos; 1 entre 30 e 39 anos; 4 entre 40 e 49 anos; 2 entre 50 e 59 anos |
Modalidade | 5 diaristas e 5 mensalistas |
Vínculo no emprego | 7 sem carteira assinada e 3 com carteira assinada |
Escolaridade | 4 ensino fundamental incompleto; 3 ensino médio completo; 3 graduação completa ou incompleta |
Renda | 3 entre 1.000 e 1.500 reais; 3 entre 1.500 e 2 mil reais; 2 entre 2 mil e 2.500 reais; 2 não informada |
Locais de trabalho | 4 zona sul ou centro do Rio; 3 Baixada Fluminense; 3 zona norte ou oeste do Rio |
No Rio de Janeiro, dados do IBGE do ano de 2009 mostram que 8,5% da população economicamente ativa era empregado doméstico, sendo a maioria absoluta deste contingente, feminino, pois em âmbito nacional, as mulheres representavam 94,5% dos trabalhadores domésticos no mesmo ano. Apenas 33,3% destes trabalhadores do Rio de Janeiro possuem carteira assinada. Sendo 66,6% dos empregados domésticos do estado, negros. Infelizmente não pudemos desagregar tais dados por gênero por conta das limitações do próprio IBGE.↩︎
Uma foi realizada na casa de uma das presentes pesquisadoras; uma na casa da irmã de uma das domésticas; outra na casa da mãe de uma das domésticas que ficava na parte de baixo da sua própria; outra em um café no centro do Rio de Janeiro; e uma outra na casa da mãe de uma das entrevistadas, porém a mãe também é uma das domésticas presentes nesta pesquisa.↩︎
As trabalhadoras domésticas negras são as que possuem menor escolaridade, tendo em média, 6,0 anos de estudo, enquanto para as brancas, são 6,4 anos de estudo.↩︎
Mulher negra, 52 anos, trabalhadora doméstica mensalista com carteira assinada. Acumula trinta anos de profissão trabalhando na mesma residência.↩︎
Miriam é mãe de Melissa, uma jovem de 22 anos, autodeclarada negra e estudante de Ciências Sociais. Mãe e filha trabalham como diaristas, porém, Melissa atua como uma espécie de “ajudante” de sua mãe.↩︎
Quando Luzia passou a recusar fazer tal serviço que, segundo ela, não era parte das suas obrigações, Rafaela exigiu que fizesse, desrespeitando e xingando Luzia através de uma conversa de Whatsapp. Rafaela comunicou seu pai do ocorrido que também exigiu que Luzia fizesse esse tipo de serviço. No entanto, a trabalhadora foi firme em sua decisão e acabou no final conseguindo estipular o limite pretendido por ela (à custa de uma intensa briga com seu patrão em que os dois acabaram passando mal).↩︎
Resumo:
O artigo analisa o cotidiano de desigualdades ao qual estão submetidas trabalhadoras domésticas, em sua maioria negras, no Rio de Janeiro. Para isto, foram realizadas entrevistas em profundidade com roteiro semiestruturado nas quais o fio condutor fundamental foram os marcadores sociais de gênero, raça e classe e suas imbricações enquanto eixos estruturantes das dinâmicas de desigualdade. Desta forma, a partir dos relatos destas trabalhadoras, esta pesquisa busca compreender, através de uma perspectiva interseccional, como as relações sociais podem moldar e interferir no relacionamento desigual entre patroa/patrão e empregada em diferentes âmbitos. Foi possível constatar o escasso universo de escolhas das trabalhadoras em relação à ocupação; a estrutural exploração e desvalorização à qual estão submetidas, por realizarem diretamente o trabalho de reprodução social de forma remunerada e os estereótipos racializados articulados a este tipo de emprego.
Palavras-chave:
Gênero; raça; trabalho doméstico pago; mulheres negras.
Abstract:
The article analyzes the everyday inequalities that domestic workers, mostly black, are subjected in Rio de Janeiro. For this, in-depth interviews were conducted with a semi-structured script in which the fundamental guiding thread was the social markers of gender, race and class and their overlapping as structural axes of inequalities dynamics. Thus, based on the reports of these workers, this research seeks to understand, through an intersectional perspective, how social relations can shape and interfere in the unequal relationship between employer and employee in different scopes. It was possible to verify the scarce universe of workers’ choices in relation to occupation; the structural exploitation and devaluation to which they are subjected, as they directly carry out paid social reproduction work and racialized stereotypes linked to this type of employment.
Keywords:
Gender; race; paid domestic work; black woman.
Recebido para publicação em 02/04/2020
Aceito em 15/09/2020