Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 51, n. 2, jul./out. 2020
DOI: 10.36517/rcs.2020.2.d01

 

 

Apresentação do Dossiê:
Diálogos contemporâneos da ecologia política, contribuições desde a América Latina

 

Sue A. S. Iamamoto OrcID
Universidade Federal da Bahia, Brasil
sueiamamoto@yahoo.com

Isabella Lamas OrcID
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil
isaalamas@gmail.com

Vanessa Lucena Empinotti OrcID
Universidade Federal do ABC, Brasil
v.empinotti@ufabc.edu.br

 

A ecologia política é uma construção coletiva interdisciplinar que emerge a partir dos silenciamentos das teorias sociais e políticas perante os desafios associados aos aspectos destrutivos da modernidade: uma crise ambiental de proporções dramáticas demarcada pela apropriação violenta da natureza e uma concentração cada vez maior do capital que gera a perpetuação e a acentuação das desigualdades sociais. O seu desenvolvimento está, portanto, associado à necessidade de formular respostas analíticas a esses fenômenos, que, como ressalta Héctor Alimonda, importante expoente da ecologia política latino-americana, as tradições das Ciências Sociais não eram capazes de oferecer.

Este artigo, assim como o Dossiê que ele introduz, são iniciativas que têm como objetivo fortalecer o diálogo entre a ecologia política e vertentes de pensamento crítico das Ciências Sociais na América Latina e, especialmente, no Brasil. A ecologia política, por essência interdisciplinar, na medida em que se constituiu e continua se reinventando por meio de esforços acadêmicos de diversas origens disciplinares que vão da Antropologia à Geografia, apresenta uma agenda de pesquisa que possibilita análises transversais, conjugando em uma esfera comum contribuições que têm como força impulsionadora às relações de poder desiguais que se configuram na intersecção entre meio ambiente e sociedade. Contudo, mais do que simplesmente contribuir à consolidação da ecologia política no Brasil, também temos como finalidade ampliar o diálogo entre as reflexões acadêmicas do Brasil e de outros países da América Latina. Como se verá nos artigos aqui apresentados, compartilhamos com nossos vizinhos não somente uma história comum de colonização e de inserção periférica na modernidade, mas também processos contemporâneos de lutas ambientais, expansão do extrativismo e Estados nacionais reprodutores de modelos desenvolvimentistas autoritários e excludentes.

Entendemos a ecologia política como uma forma de reflexão acadêmica crítica, que se contrapõe à academia tradicional por não ter como finalidade única o rigor analítico das suas observações da realidade, mas também expressar compromisso com o questionamento da ordem dominante e com a transformação social (HORKHEIMER, 1980; ALIMONDA, 2017). Contudo, ela incorpora a crise ecológica vivida nas últimas décadas de maneira radical: ao invés de tratar das condições para a liberação da dominação imposta pelo sistema capitalista, a ecologia política busca as condições para a sobrevivência humana frente ao colapso ambiental, também entendido como resultado desse sistema. Trata-se de uma perspectiva que “desloca o problema da abundância — da liberação da necessidade e da sujeição à dominação hierárquica e capitalista — para os imperativos da sobrevivência”, emergindo como uma resposta “ao esquecimento da natureza pela economia política”. (LEFF, 2015, p. 33). Assim, a ecologia política vincula teorias e práticas acadêmicas relacionadas às questões ambientais com a ação política, necessária tanto para evitar a destruição ambiental quanto para fazer emergir novas formas de conhecimento e sociabilidades que permitam imaginar formas de vida sustentáveis no tempo.

Ao incorporar a natureza na sua crítica ao modo de produção capitalista, a ecologia política também reflete sobre a diversidade de relações culturais com a natureza e as desigualdades territoriais na distribuição dos seus recursos, não somente sobre a redistribuição puramente econômica. Temas comuns em seus estudos são os conflitos territoriais orientados por concepções divergentes sobre a natureza ou os impactos ambientais desiguais causados pelo capitalismo nas periferias do poder, seja do ponto de vista global, nacional ou local (PEET; WATTS, 2004). Assim, a ecologia política se posiciona de maneira crítica a essas desigualdades, assim como defende formas de entendimento da natureza que enfrentem a tendência capitalista de contínua degradação ecológica.

Na vertente latino-americana, a ecologia política pode ser vista como um ponto de encontro entre a tradição do pensamento crítico latino-americano e as inúmeras experiências e estratégias de resistência dos povos do continente (ALIMONDA, 2017). Tais estratégias emergem frente às contínuas expressões do colonialismo que permanece vivo, pois não teve fim com as independências políticas dos países, a inserção marginal dos países no sistema internacional e a intensa desigualdade das nossas sociedades. Assim, também resgatamos as origens da própria ecologia política no continente, que, como veremos abaixo, remontam também a uma tradição crítica das ciências sociais latino-americanas. Nesse sentido, este Dossiê apresenta trabalhos que fortalecem as pontes entre as Ciências Sociais e a ecologia política e que permitem, pela variedade dos seus estudos de caso e pela sua distribuição geográfica, um panorama comum do continente tanto do ponto de vista acadêmico quanto com relação aos processos sociais e ecológicos mapeados comumente pela ecologia política.

Com o objetivo de contextualizarmos a contribuição deste Dossiê, apresentamos o histórico da perspectiva da ecologia política e sua trajetória no mundo e na América Latina a partir da sua constituição enquanto campo acadêmico tanto nas suas no Norte global, como no Sul global, com atenção especial para a contribuição da sua vertente latino-americana, a chamada ecologia política latino-americana (EPL). Em seguida, apontamos também as particularidades do continente latino-americano que tornaram a EPL um instrumento tão importante para promover a convergência entre a academia e a prática social que resiste ao avanço da espoliação capitalista em seus territórios, especialmente nas últimas décadas. Por fim, apresentamos os trabalhos aqui publicados, todos desenvolvidos a partir da América Latina, e que expressam, por um lado, tanto os impactos da expansão territorial capitalista por meio de mega-obras ou atividades extrativas, quanto os meios de reprodução e resistência de modos de vida ameaçados por esta expansão, a partir das suas memórias ou formas próprias de produção de conhecimento.

A consolidação da ecologia política e sua trajetória na América Latina

A ecologia política começa a se configurar como uma agenda de pesquisa a partir dos anos 1970 em diferentes partes do planeta como resultado de reflexões sobre questões de acesso e controle de recursos naturais (PEET; WATTS, 2004). A sua leitura anglo-saxônica nasce influenciada tanto a partir de reportagens jornalísticas da problemática ambiental como de estudos acadêmicos que começam a definir o seu problema de pesquisa na interface das relações sociais e ambientais. Trata-se de uma leitura crítica que se contrapõe aos princípios neomalthusianos das práticas e estudos ambientais, misturando métodos e metodologias das Ciências Naturais e Sociais e reconhecendo a necessidade do diálogo de saberes e práticas entre os conhecimentos científico e tradicional. Assim, posiciona-se como uma contra-narrativa ao modelo de desenvolvimento imposto pela lógica ocidental e capitalista sobre outros modelos e formas de vida (ROBBINS, 2012; BRYANT, 2015).

Como pontuado por Robbins (2004), para a ecologia política, a degradação ambiental é uma questão econômica-política, e não apolítica. Essa visão começa a se difundir principalmente a partir do final dos anos 1980, quando surgiram contribuições significativas a partir de revisões marxistas e pós-estruturalistas da economia política (BLAIKIE; BROOKFIELD, 1987; GUHA; MARTINEZ-ALIER, 1997). No centro da ecologia política, está a análise sobre recursos, relações de poder e formas de violência (BILLON, 2012; PELUSO; WATTS, 2001), com especial ênfase analítica nos conflitos socioambientais, entendidos enquanto forma de luta pelo acesso e controle de recursos naturais.

Diferentemente de outras abordagens, a ecologia política não parte da naturalização dos conflitos ambientais por meio da construção de relações de causalidade nas quais os elementos naturais funcionam enquanto variáveis explicativas centrais (por exemplo, conflitos causados pela abundância de recursos naturais ou conflitos causados pela escassez de recursos naturais). Ao contrário, a ecologia política evidencia o papel de complexas redes de atores na composição de arranjos institucionais e de economia política na compreensão do significado dos conflitos associados à exploração de recursos naturais (BILLON, 2015). Assim, ao invés de entender os conflitos como resultantes das condições ambientais, como fazem as linhas neomalthusianas supracitadas ou tradições geopolíticas de pensamento, este prisma investiga a politização do ambiente via conflitos ou, em outras palavras, como estas condições ambientais se tornaram politizadas (BILLON, 2015, p. 598).

Como ressaltam Peet e Watts (2004), a ecologia política se desenvolve a partir da realidade de novos movimentos sociais e apresenta em si um potencial emancipatório. Ou seja, os conflitos não são apresentados através de um viés negativo, mas sim a partir do potencial de produzir mudanças positivas nas estruturas de violência impostas a grupos marginalizados no acesso e distribuição aos recursos naturais (BILLON, 2015). O resultado disso é traduzido em uma grande sensibilidade para conflitos e resistências locais que são marginalizados por linhas teóricas de contornos mais tradicionais. No âmbito do entendimento da conflitualidade, a ecologia política adota uma concepção de violência — e, consequentemente, de resistência — de largo escopo, que pretende englobar fenômenos que vão além de eventos brutais de violência física, incorporando outras dimensões como as esferas simbólicas e culturais de representação, circulação e codificação dos danos causados pela exploração de recursos naturais (PELUSO; WATTS, 2001).

Além deste olhar apurado para os conflitos socioambientais, a ecologia política se localiza criticamente na geopolítica global a partir da análise da difusão tecnológica desigual aos países do Sul Global e de como o desenvolvimento capitalista leva ao empobrecimento e, consequentemente, à degradação ambiental dessas regiões (BLAIKEI; BOOKFIELD, 1987). Neste sentido, a importância de uma leitura histórica, contextualizada, multidimensional e multiescalar consolida os diferenciais da ecologia política no entendimento das questões ambientais (LOFTUS, 2017). Tal leitura se constitui a partir das populações marginalizadas, oprimidas e violentadas pela expansão do modelo capitalista sobre seu modo de vida tradicional, mas que representam também uma dimensão de resistência, como apontado acima. Assim, a perspectiva de análise começa no local para o global, ou seja, observa, de forma empírica, as consequências da desigualdade produzida como parte do sistema capitalista na escala local e as relaciona então aos processos que se constituem nas escalas regionais, nacionais e globais. Ao mesmo tempo, a ecologia política se apoia na reflexão de como as escalas são socialmente construídas e na importância de reconhecer a multiescalaridade dos fenômenos estudados (HEYNEN et al, 2007; BRYANT, 2015).

Na América Latina, a ecologia política adota uma trajetória própria e dialoga com questões particulares do continente (MOREANO; MOLINA; BRYANT, 2017; ALIMONDA, 2017; LEFF, 2015). Aqui, ela se fundamenta na teoria crítica latino-americana, alicerçada em figuras como Martí ou Mariátegui e seus questionamentos sobre a identidade local como um projeto a se realizar (ALIMONDA, 2017). Assim como as suas contrapartes no resto do globo, a ecologia política latino-americana (EPL) incorpora o marxismo e o pensamento crítico local, como a teologia da libertação (ALIMONDA, 2017) e o pensamento dependentista (LEFF, 2015). Da teoria da dependência, que aponta as desigualdades estruturais do sistema capitalista e a impossibilidade das periferias globais se desenvolverem à maneira dos países centrais, a EPL destaca como o desenvolvimento econômico capitalista leva à degradação ambiental de maneira desigual no globo (LEFF, 2015, p. 39-40).

Outro “marcador de identidade” da EPL que a diferencia das suas contrapartes no mundo é sua relação privilegiada com o pensamento decolonial da região (MOREANO; MOLINA; BRYANT, 2017). Ao identificar a colonialidade como constitutiva da modernidade, a crítica decolonial aponta a América Latina como primeiro espaço em que essa nova lógica de dominação foi aplicada, tornando-se também pioneiro território de resistência (QUIJANO, 2005; LANDER, 2005; BALLESTRIN, 2013). Assim, até hoje marcam a região relações econômicas de longa duração, como o extrativismo e as economias de enclave — a chamada “origem” potosina (MACHADO ARÁOZ, 2019) — combinadas com movimentos sociais de resistência à lógica colonial modernizadora ocidental, conformados por indígenas, quilombolas, camponeses sem-terra, e todos aqueles que resistem à mercantilização de seus territórios seja no campo ou na cidade.

A reflexão sobre a transformação da Abya Yala em decorrência dos processos de colonização expõe a opressão e a violência sofrida pelas populações nativas e sua resposta à expansão da fronteira agrícola e à recriação de tais fronteiras a partir das ondas de exploração capitalista. Essa leitura também é marcada por autores como Eduardo Galeano e Josué de Castro que, juntamente com Mariátegui, dão atenção às estratégias de resistência frente ao roubo e à economia de rapina que caracteriza esta região (ALIMONDA, 2017). Assim, a EPL é uma construção coletiva com ênfase no estudo das relações de poder, que são configuradas historicamente, como mediadoras das relações entre a sociedade e a natureza (MARTÍN; LARSIMONT, 2016).

Com sua contribuição marcante, a decolonialidade proporciona uma maneira crítica de entender o desenvolvimento como ideologia que condena as populações do Sul global à subalternidade (ESCOBAR, 1992; ESTEVA, 2010). Nesse sentido, a EPL contribui para a produção de conhecimento sobre a construção de uma alternativa ao atual modelo de desenvolvimento, como a “racionalidade ambiental” sustentável proposta por Leff (2015), ou os ideais de “viver bem” que emergem das cosmologias indígenas da região (ALBÓ, 2011; ACOSTA, 2016), que se contrapõem à racionalidade econômica moderna. Sua proposta é evidenciar as alternativas que podem se tornar referências para a construção de um novo sistema e modelo de desenvolvimento, fundado em bases epistêmicas descolonizadoras. A EPL se alinha a leituras do pós-desenvolvimento, por exemplo, que salientam e reconhecem a importância de práticas produtivas e de convivência com os não-humanos exercidos por populações tradicionais (ESCOBAR, 2008).

Na América Latina, a aproximação dos movimentos sociais típica da ecologia política se torna uma prática ativista, na medida em que pesquisadores e pesquisadoras não somente reconhecem o protagonismo dos sujeitos locais na defesa de seu meio e modo de vida, mas também se engajam ativamente nas lutas de resistência. Isso transforma a ecologia política em um “amplo movimento social e político por justiça ambiental que é mais forte na América Latina que em outros continentes” (MARTINEZ-ALIER apud ALIMONDA, 2017, p. 40). Assim, a posicionalidade da EPL é outro traço que a diferencia da disciplina em outras partes do mundo, já que o continente conta com uma tradição em pensamento social e político engajado, feito a partir de realidades locais (MOREANO; MOLINA; BRYANT, 2017).

Do ponto de vista das suas temáticas contemporâneas, os estudos da EPL se concentram nos conflitos resultantes da expansão do desenvolvimento capitalista sobre populações marginais e tradicionais, principalmente nas áreas interioranas e rurais. Neste sentido, trabalhos com foco nos impactos de obras de infraestrutura, mineração, hidrelétricas, rodovias e expansão da fronteira agrícola se tornaram o contexto predominante de investigação (DE ALMEIDA et al, 2010; ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010; PORTO-GONÇALVES, 2001; MARTINEZ-ALIER, 2007). Entretanto, as contribuições atuais da EPL têm trabalhado com a defesa da justiça ambiental de maneira mais ampla, abordando conflitos que envolvem grupos marginalizados para além das populações tradicionais, como posseiros, agricultores familiares ou associações de bairro das grandes periferias urbanas, ou seja, todos aqueles alijados dos benefícios produzidos pelo sistema capitalista em seu modelo de desenvolvimento assim como os processos e mecanismos que levam a esta situação (EMPINOTTI et al, 2019; BERNABEU; MARTÍN, 2019; QUINTSRL, 2018).

Nos últimos anos, estes estudos foram potencializados pela conjuntura política global, marcada pelo surgimento de uma poderosa e nova confluência de forças relacionada ao crescente fluxo de capital internacional e à desregulamentação destes investimentos fruto da hegemonia neoliberal. A América Latina foi alvo privilegiado das mais diversas intervenções externas, promovidas por atores que vão de instituições financeiras internacionais a corporações multinacionais extrativistas. O chamado “consenso das commodities”, que imperou tanto em governos conservadores como em governos progressistas (SVAMPA, 2013), marcou as primeiras décadas do século XXI na região, expandindo o papel da América Latina na indústria extrativa global (DEONANDAN; DOUGHERTY, 2016). Tal expansão da transformação da natureza em commodities também trouxe a reflexão da ecologia política das áreas interioranas e rurais para as urbanas em decorrência do aumento das disputas pela água e da desigualdade em seu acesso (BRITO et al, 2016; HOMMES; BOELENS, 2017; SWYNGEDOUW, 2004). Paralelo a isso, esse processo fomentou uma ampliação dos conflitos envolvendo grupos ambientalistas e indígenas, resistindo a esta expansão extrativista (BEBBINGTON, 2009; DOUGHERTY, 2016).

Assim, há um reflexo importante dessas dinâmicas em termos de crescimento da produção da EPL, não só em quantidade de números de publicação e pesquisadores/as dedicados à área, mas sobretudo na relevância dos debates que, em muitos aspectos, dão um protagonismo crescente para a EPL no âmbito da construção de uma ecologia política global (MOREANO, 2019). Frente à voracidade da expansão da indústria extrativa na região, à virulência contra os povos indígenas praticada por governos (sejam eles autoritários ou progressistas), aos repetidos crimes ambientais resultantes de sistemas de governo ecocidas, assim como a inserção de novas práticas de governança e controle, a EPL se renova ao buscar ao mesmo tempo entender as contradições do novo tempo e forjar alianças de resistência. Nesse sentido, a realização nos últimos anos de três congressos latino-americanos sobre ecologia política e as articulações recentes promovidas pelo Grupo de Trabalho de Ecologia Política do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso); são, ao mesmo tempo, indícios e impulsionadores desse movimento, funcionando como espaços de diálogos entre acadêmicos, ativistas e movimentos sociais. É importante ressaltarmos que a iniciativa de realização desse Dossiê surgiu a partir do III Congresso Latino-Americano de Ecologia Política: Insurgências Decoloniais e Horizontes Emancipatórios realizado na cidade de Salvador, em 2019, com o objetivo de dar continuidade, e também, contribuir para ampliar a visibilidade aos diálogos e reflexões ali realizados.

As contribuições deste dossiê: a ecologia política perante os desafios contemporâneos da América Latina

A ecologia política latino-americana continua se reinventando enquanto movimento político-intelectual de “vanguarda enraizada” (ALIMONDA, 2017) em uma coprodução contínua perante os enormes desafios da contemporaneidade no continente. Assim se localizam as contribuições do presente Dossiê que, sobretudo, se caracterizam por serem feitas a partir de um lugar de enunciação latino-americano e do questionamento de abordagens teóricas, metodológicas e epistemológicas dos discursos científicos dominantes. São textos e reflexões sobre alguns dos principais desafios do continente perante a profunda crise ecológica e o avanço do capital na América Latina que inevitavelmente geram inúmeras situações de conflitos socioambientais e desigualdade. A partir de visões críticas, os textos deste Dossiê posicionam de maneiras diversas a conflitualidade e o confronto de subjetividades e narrativas entre diversos atores como movimentos sociais, populações indígenas e quilombolas perante o avanço das fronteiras extrativistas, mas também de tentativas de perpetuação da hegemonia e da colonialidade nas formas de produção de conhecimento e elaborações discursivas. As contribuições de autoras e autores latino-americanos aqui reunidas são uma expressão da riqueza das contribuições que a EPL tem desenvolvido, dentre as quais podemos mencionar também as abordagens do ecofeminismo latino-americano (SVAMPA, 2015) e iniciativas que visam pensar a dimensão racial da crise ecológica a partir da construção de pensamento e ação conjunta de articulações entre populações negras e indígenas (MILANEZ et al, 2019).

Em uma contribuição teórico-epistemológica, Adela Parra-Romero no artigo Producción de conocimiento en conflictos socioambientales, mostra como os conflitos socioambientais se configuram em distintos contextos da América Latina enquanto espaço de lutas políticas e de produção e mobilização de conhecimento. Os espaços de contradição criativa dos conflitos socioambientais possibilitam emergências de novas confluências e experiências de aprendizagem social que, por sua vez, resultam em formas distintas de produção e difusão de conhecimento que influenciam e coproduzem os próprios territórios e as políticas públicas ambientais.

A autora mostra, assim, o caráter situado e político da produção e difusão de conhecimentos no âmbito dos conflitos socioambientais. O artigo propõe uma revisão de três modos de produção de conhecimento (científico, ativista e local/comunitário). Não obstante, enquanto exercício reflexivo, destaca-se o caráter não mutuamente exclusivo de tais formas de produção de conhecimento, que podem, em diferentes ocasiões, se sobrepor e/ou estabelecer redes de colaboração entre si: o próprio artigo de Parra-Romero revela-se assim uma forma de produção de conhecimento científico de caráter contra-hegemônico que dialoga com a produção de conhecimento ativista. Temos também cada vez mais exemplos de membros de populações indígenas e de territórios quilombolas, entre outros, produzindo conhecimento científico, ativista e contra-hegemônico. Dessa maneira, é importante atentarmos à complexidade inerente às formas de produção de conhecimento e ao esforço da autora de mostrar como os conflitos socioambientais se constituem enquanto espaços privilegiados de construção de conhecimento ativista. Estas formas de produção de conhecimento se caracterizam por fazer parte da luta por justiça ambiental e possibilitam a emergência de estratégias de pressão para melhorar a governança socioambiental, bem como para influenciar as redes hegemônicas de produção de conhecimento.

O artigo Memoria intertextual y narrativa en la conformación de las ontologías de la naturaleza en las comunidades mazahuas de México relaciona a literatura da EPL com os estudos de memória e da sua constituição na construção de uma ontologia latino-americana para a água e que se contrapõe à sua transformação em uma commodity a partir das práticas e valores neoliberais. Neste artigo, David Figueroa coloca em diálogo a construção decolonial do significado da água para os Mazahuas com uma literatura das Ciências Sociais que, por meio da narrativa e da memória coletiva, traz um novo ponto de partida para se pensar o mundo e as interações entre humanos e não-humanos na produção de uma natureza.

A perspectiva de comunidades tradicionais como os Mazahuas contribui para a construção de uma ontologia latino-americana, que se contrapõe ao discurso e às práticas de valoração da sociedade ocidental. Trata-se de uma narrativa a partir do Sul Global na construção de um novo modelo de mundo, como os fundamentos da EPL propõem. Ao mesmo tempo, o impacto de obras que levaram ao secamento de lagoas e à diminuição do volume de água em corpos hídricos rompe com a leitura da natureza até então estabelecida em um contexto de fluxos de água com limitado impacto da ação humana. Neste momento, a explicação e a relação dos seres humanos com o não-humano aparecem como memória, uma vez que as relações anteriores não existem mais. Entretanto, a leitura das novas dinâmicas de disponibilização da água nestes locais continua a ser feita a partir da ontologia indígena e leva à atribuição de novas práticas e explicações de seus significados, se constituindo assim como resistência à nova visão imposta a partir do modelo ocidental de conhecimento e controle da natureza. Dessa forma, Figueroa chama a atenção para as narrativas e memórias a partir de uma ontologia latino-americana, que enlaça o ser humano com o não-humano e que assim resiste às pressões globais de ressignificação e controle da água.

Em Procesos de territorialidad y de subjetivación política en Cerro de San Pedro, San Luis Potosí: el Frente Amplio Opositor y Minera SAN Xavier, Claudia Bucio explora como diferentes atores sociais de um conflito socioambiental produziram e expressaram territorialidades distintas. A autora relata a formação e a atuação de uma frente de resistência às atividades da mineradora canadense San Xavier no estado de San Luis de Potosí, no México. Presente na região desde a década de 1990, San Xavier abriu uma mina a céu aberto que, além de ter relocalizado uma comunidade, pôs abaixo a histórica montanha de San Pedro, que dá origem ao nome do estado ao remeter à montanha de Potosí, na Bolívia.

Ao analisar os conflitos sociais e legais que surgiram em resposta às atividades da mineradora, Bucio identifica três formas de territorialidades: uma territorialidade estrangeira, que concebe o território como mera fonte de recursos naturais a serem transferidos a outro lugar e que, assim, modifica radicalmente a paisagem de acordo com seus interesses econômicos; uma territorialidade politizada, que emerge quando a população local — entendida de maneira ampla, como migrantes que retornaram ou descendentes que moram na região, mas não mais na comunidade diretamente afetada — se posiciona para resistir aos avanços da mineradora, denunciando danos ambientais e defendendo sua identidade local; e uma territorialidade negociada, também expressada pela população local, mas que carrega ambiguidades com relação às atividades de mineração, ponderando estratégias de sobrevivência de mais curto prazo. Com isso, a autora nos fornece ferramentas teóricas mais afinadas para entender e avaliar conflitos socioambientais marcados por contradições e ambivalências expressadas pelos atores sociais envolvidos.

Também sobre disputas de narrativas e da conflitualidade em torno de projetos econômicos e da expansão do capital, o artigo O Povo Indígena Anacé e o Complexo Industrial e Portuário do Pecém no Ceará: desenvolvimento e resistências no contexto da barbárie por vir, de Luciana Nogueira Nóbrega, apresenta um estudo de caso sobre a implementação de um megaprojeto de desenvolvimento pelo Estado brasileiro em um território indígena. O caso é representativo do fenômeno de injustiça socioambiental, na medida em que evidencia como os custos de implementação desses megaprojetos são distribuídos de maneira profundamente desigual na sociedade brasileira, contribuindo para acentuar a marginalização histórica dos povos indígenas.

O artigo apresenta o conflito entre as perspectivas indígenas e do Estado, aliado a agentes econômicos privados, através das narrativas produzidas em torno da construção do complexo do Pecém, parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal do Brasil. A autora mostra como, ao longo do período de implementação do complexo, o povo indígena Anacé produziu mobilizações que incluíram a associação com diversos atores estatais, como o Ministério Público Federal e a Funai, e não-estatais, como as universidades, além da construção de uma rede de ativismos em conexão com movimentos sociais e coletivos socioambientais, para que suas narrativas se tornassem públicas e assim entrassem na arena de disputa política. Nesse espaço criado através de um processo longo de luta, em contraposição ao discurso oficial e hegemônico do Estado brasileiro, que associa desenvolvimento com crescimento econômico, os Anacé evidenciam outras concepções de desenvolvimento, território e modos de vida, de modo a reivindicar que sejam tratados como sujeitos de seu próprio desenvolvimento.

Por fim, o artigo Propiedad, infraestructura y conservación como mecanismos de exclusión en el proceso de desarrollo turístico en la costa de Oaxaca, México analisa a estratégia do Estado mexicano na promoção do turismo nas praias de Oaxaca. Ignacio Rubio identifica três formas por meio das quais o Estado promove a exclusão da população local nos projetos turísticos. A primeira forma seria a mudança na estrutura de propriedade de terras, que, no caso de Oaxaca, era herdeira de formas comunitárias de posse e que, com a chegada do turismo, se modificou radicalmente para abrir espaços para empresários privados do setor. A segunda forma seriam as obras de infraestrutura, com a construção de caminhos que conectaram as regiões da costa, mas as separaram da serra e do restante do estado de Oaxaca, e com a construção de serviços urbanos que priorizaram o visitante e excluíram os habitantes locais, que acabaram ocupando as periferias urbanas. Por fim, o Estado também promoveu, como terceira forma de exclusão, uma legislação ambiental ambígua, que penalizou de maneira desproporcional as pequenas atividades pesqueiras tradicionais da região, sem ter sido capaz de impedir ações devastadoras de atores econômicos mais poderosos. Assim como no caso do povo indígena Anacé, este trabalho contribui para entender como uma percepção exógena de desenvolvimento — frequentemente imposta pelo Estado nacional — é implementada à revelia dos interesses e das práticas sociais e econômicas das populações locais, trazendo “benefícios” questionáveis.

Dessa maneira, os artigos presentes neste Dossiê nos oferecem a oportunidade de aproximar a reflexão proposta por estudos a partir da ecologia política com o campo das Ciências Sociais brasileiras. Partindo destas contribuições, a publicação deste Dossiê na Revista de Ciências Sociais fortalece a presença de autores/as latino-americanos/as na consolidação de uma ecologia política global, na qual as contribuições de distintas vertentes possam ser consideradas de forma horizontal na constituição deste campo de conhecimento e ativismo. Tais perspectivas enfatizam a importância de se respeitar a multiplicidade para refletir e denunciar as tensões e injustiças presentes nas relações socioambientais que se consolidam tanto no Sul como no Norte Global.

Julho de 2020

Referências

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Resumo:
Neste artigo, que introduz o dossiê “Ecologia Política: contribuições da América Latina”, expomos de maneira ampla as definições desta agenda de pesquisa. Resgatamos a trajetória da ecologia política no mundo e seu desenvolvimento na América Latina, destacando suas particularidades na região, como a incorporação da perspectiva decolonial e um maior engajamento ativista. Identificamos também processos comuns contemporâneos – o avanço do extrativismo, a imposição de projetos desenvolvimentistas à revelia das populações locais, e a resistência de movimentos indígenas, rurais e urbanos à contínua degradação da natureza – que marcam a experiência dos países do nosso continente. Por fim, apresentamos as contribuições que compõem este dossiê, ressaltando seu potencial para a construção de uma ecologia política global diversa e horizontal.

Palavras-chave:
Ecologia política; América Latina; conflito socioambiental.

 

Abstract:
In this introduction to the special issue “Political Ecology: Contributions from Latin America”, we outline the definitions of this research agenda. We describe the trajectory of political ecology in the world and its development in Latin America, highlighting its particularities in the region, such as the incorporation of the decolonial perspective and a greater activist engagement. We also identify common contemporary processes in the countries of our continent: the expansion of extractivism, the imposition of developmentalist projects in spite of local populations, and the resistance of indigenous, rural and urban movements against the continuous degradation of nature. Finally, we present the contributions that comprise this issue, emphasizing its potential to collaborate with a diverse and horizontal global political ecology.

Keywords:
Political ecology; Latin America; socio-environmental conflict.

 

Recebido para publicação em 07/06/2020
Aceito em 20/06/2020