Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 3, nov. 2021/fev. 2022
DOI: 10.36517/rcs.2021.3.a04
ISSN: 2318-4620
Herdeiros da Violência:
Rotas juvenis atemporais
As reflexões desse artigo estão situadas em um campo da Sociologia com larga produção acadêmica: os homicídios de jovens no Brasil. Os dados são alarmantes e apontam anualmente os elevados índices de mortes no país, sinalizando, portanto, as complexidades e dramaticidades desse fenômeno. Segundo o Atlas da Violência (CERQUEIRA; BUENO, 2020), realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2018, o homicídio foi a principal causa de morte da juventude brasileira, representando 30.873 casos, em um universo de 57.956 mortes ocorridas no Brasil. As pessoas que foram assassinadas no país nesse ano eram 91,8% do sexo masculino, 75,7% negras, 77,1% foram mortas por arma de fogo e 53,3% eram pessoas na faixa etária de 15 a 29 anos de idade. O Brasil apresenta uma taxa de morte de 27,8 por 100 mil habitantes, no entanto, os estados com maiores números de mortes apresentam números superiores à média brasileira, são eles: Roraima (71,8), Ceará (54), Pará (53,2), Rio Grande do Norte (52,5), Amapá (51,4) e Sergipe (49,7).
Esse cenário retrata o perigo de ser um jovem preto, pobre, do sexo masculino e morador das regiões Norte e Nordeste do Brasil. Portanto, eles são o alvo, pois suas vidas estão em risco. Ulrich Beck (2010) define o risco como uma forma sistemática das sociedades modernas distribuírem os perigos e as inseguranças rumo a um outro tipo de modernidade: a sociedade industrial do risco. Nesse sentido, há uma distribuição de males, onde os riscos geram situações de perigo social que afetam diversas camadas da sociedade de forma diferenciada e transescalares, em vista disso, todos estão sujeitos aos riscos locais e globais. De todo modo, as juventudes vivenciam experiências em que riscos, instabilidades e incertezas atravessam suas vidas, sendo assim, o conceito de juventude apresenta-se dentro de uma vastidão de possibilidades de produções de culturas, de modos de ser, de imaginários, simbolismos e multipertencimentos. Com isso, são diversas as experiências juvenis vivenciadas por diferentes grupos, nos quais, as interseccionalidades (CRENSHAW, 2002) são estruturas importantes para a percepção de que os sentidos de uma vida arriscada são diferenciados para cada grupo social. Portanto, o conceito de juventudes, com sua flexão no plural, pressupõe o rompimento com a ideia de homogeneidade, considerando-a dentro de suas diversidades, de seus multipertencimentos, de seus campos de interação, de suas trajetórias e experiências, abandonando visões estereotipadas que dificultam a interpretação da condição juvenil marcado por desigualdades de várias ordens (MARINHO, 2013).
Dessa maneira, as diversidades de experiências desse grupo social sinalizam trajetos juvenis marcados por possibilidades inseguras e incertas. José Machado Pais (2009) destaca que os jovens atravessam no curso de suas vidas, ritos de impasses cada vez mais preocupantes, no que diz respeito aos seus futuros, especialmente a atual geração. Visto que, suas experiências são mais marcadas por desafios e contingências do que por oportunidades e seguranças. Para ele, os jovens até “[...] poderão galgar as fronteiras que, supostamente, permitem a passagem simbólica da juventude para a idade adulta; contudo a precariedade pauta as suas trajectórias de vida” (PAIS, 2009, p. 374). Observando imagens e representações cotidianas sobre a condição juvenil, nota-se, apesar de uma vastidão de produções teóricas sobre esse grupo social, a persistente construção de rótulos que sustentam a ideia da juventude como um grupo instável e revolto.
Sobre essas precariedades, podemos analisar o caso da denominada “Geração Nem Nem1”. Segundo dados da Pnad Contínua (IBGE, 2018), suplemento Educação, realizada pelo IBGE em 2018, há no Brasil, quase 11 milhões de jovens de 15 a 29 anos que não estão ocupados no mercado de trabalho e que não estão estudando. Esse grupo, que representa 23% da população do país nessa faixa etária, ficou conhecido como “nem-nem”, um termo que se tornou controverso e, por isso, seu uso vem sendo evitado.
Não devemos nos referir a esse grupo como jovens desinteressados ou indiferentes ao mundo do trabalho e as experiências escolares, mas sim, compreendê-los como jovens que vivem situações de precariedade de inserção nas atividades escolares e laborais. Um olhar crítico através das lentes da pesquisa científica aponta que essa geração trabalha muito, fazendo “trampos” ou “bicos”, em momentos esporádicos, indicados por parentes ou conhecidos, como uma forma de gerar uma renda, mesmo que pequena ou insuficiente. Esses dados constam na publicação “Eles dizem não ao não: um estudo sobre a geração N2”, uma pesquisa que realizei em Fortaleza no ano de 2019 sob coordenação de Glória Diógenes (2019). Observamos que para os jovens o desinteresse com as atividades de trabalho ocorria em razão dos tipos de serviços que lhes eram ofertados, sendo costumeiramente vinculados a atividades que os colocavam subordinados a uma chefia, um patrão, portanto, em serviços que descartavam a autonomia e a criatividade como forças motoras para as atividades juvenis. Logo, bem distantes de atividades na área de tecnologia da informação, de moda ou estética, como apontaram os seus desejos revelados na pesquisa em Fortaleza. Um destaque necessário é que a “Geração N” é representada em sua maioria por mulheres, atuando em atividades informais, e que saíram da escola no ensino médio, não só por desinteresse (26%) como principal motivação, mas também em razão da gravidez (20%) e da necessidade de trabalhar (24%), como apontam os resultados na referida pesquisa (DIÓGENES, 2019).
O desinteresse também é destacado como uma forte motivação da evasão escolar dos jovens brasileiros, segundos dados da Pnad (IBGE, 2018) realizado pelo IBGE.3 A média de anos de estudo das pessoas com 25 anos ou mais, em 2018, era de 9,3 anos. No entanto, as Regiões Nordeste (7,9) e Norte (8,7) ficaram abaixo da média nacional. Um jovem que concluiu todas as etapas da sua formação educacional (da infantil ao ensino superior) teria a oportunidade de ter, em média, 16 ou 17 anos de estudos, portanto, grande parte dos jovens brasileiros mal chegam na metade dessas formações. Pessoas brancas possuem mais anos de estudos do que as pessoas pretas. O grau de escolaridade das mulheres é mais elevado do que dos homens. Os jovens que finalizaram a educação básica obrigatória representavam 47,4%, em 2018. Em especial, chama-se atenção para o percentual de 16% de pessoas com o ensino superior completo. Comparando com os países da América Latina, aos 25 anos ou mais de idade, quando os jovens deveriam ter a experiência de concluir um ensino superior, o Brasil fica atrás da Argentina (21%), do Chile (22%) e da Colômbia (22%) em jovens diplomados. O gargalo do abandono ocorre quando um jovem cursa o ensino fundamental. É nesse momento que a escola fica desinteressante.
Segundo os dados da Pnad (2018), quase metade dos jovens do sexo masculino deixam de estudar para trabalhar, pois a captura do mundo do trabalho é uma necessidade imediata. Já entre as mulheres, a maior motivação foi a necessidade de realizar as tarefas domésticas e trabalhar cuidando de pessoas (atividade conhecida como cuidadora de idosos ou de crianças, ou cuidados não remunerados de um familiar). Após as amarras laborais, o desinteresse representa a razão seguinte de abandono das escolas, instituição essa envolta por contradições, pois é comumente reconhecida pelos jovens e por profissionais da educação como uma instituição desatualizada e inadequada aos interesses e desejos juvenis de informação, pertencimento, segurança e vinculação de projetos de futuro.
O significado de “desinteresse” que perpassa as narrativas juvenis em suas vivências com os estudos e o trabalho, está situado em um contexto de precarização dos acessos às políticas sociais, mas, é tomado pelo senso comum como uma forma de desapego juvenil à ideia de compromisso e responsabilidade, rótulos clássicos que reforçam as formas estereotipadas de se perceber à condição juvenil. Importante considerar que há pressões de um modelo de sociedade que estabelece o que considera como um exemplo de sucesso e honradez nas trajetórias juvenis. Suas imagens de futuro são associadas a um trabalho com estabilidade, uma família heteronormativa e uma religião cristã. O paradigma da felicidade deve colocá-los longe de drogas, “más influências”, “farras”, sexos eventuais e transgressões de toda ordem. Mesmo aqueles que se equilibram numa fronteira tênue de comportamentos regidos por moralidades e imoralidades, sentem as pressões de uma vida desenhada por esses moldes de segurança e dignidade. O Brasil é um país onde grande parte dos jovens precisam acessar as políticas de proteção social para superarem as desvantagens socioeconômicas e culturais na trajetória de famílias marcadas por desigualdades e pobrezas extremas. Com isso, esse contexto social é produtor de diversos personagens que encenam suas performances juvenis sob riscos diversos. Grande parte dos jovens brasileiros possuem baixa escolaridade, frágil inserção no mundo do trabalho, desigualdades de acesso às políticas de moradia, segurança, iluminação, mobilidade e cultura.
Portanto, as reflexões desse artigo se destinarão à análise das trajetórias de jovens que vivem nas periferias da cidade de Fortaleza, possuem experiência no mundo do trabalho, concluíram a educação básica, têm suas mães como chefes de suas famílias e tiveram seus pais vítimas de homicídios. Como eles constroem os significados de suas experiências? Quais as situações que destacam como importantes na condução de suas trajetórias de vida? Como pensam a condição juvenil na atualidade? Essas são algumas reflexões dessa pesquisa, que objetiva compreender as experiências de jovens, cuja morte e luto são partes de seus cotidianos, além de ser situações compartilhadas com frequência com outros jovens de suas comunidades.
O trabalho de campo da pesquisa ocorreu em Fortaleza/CE e possui dois marcos temporais. O primeiro ocorreu nos anos de 2000 a 2004 através da realização de entrevistas com jovens que tiveram relacionamentos afetivos e filhos com jovens que foram assassinados. O segundo momento se deu durante o ano de 2019, com a realização de entrevistas com jovens filhos de jovens que foram assassinados. Assim, essas rotas juvenis atemporais, como nomeio esse artigo, dizem respeito à banalidade da morte, não por essas vidas serem desprezíveis e descartáveis, mas sim, por essas mortes serem um acontecimento cotidiano, diário e comum. Com isso, essas experiências são compartilhadas entre as gerações, pois compõem os perfis de jovens viúvas e dos herdeiros dessa violência. Histórias de dores da periferia reveladas nas lutas e na voz ressonante de Marielle Franco (1979-2018), que alardeava: “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”.
Temáticas sobre a juventude brasileira encontram-se em destaque no mundo acadêmico. Marília Sposito (2009), no “Estado da Arte sobre a Juventude na Pós-Graduação Brasileira”, revela que as temáticas sobre a juventude brasileira são resultantes de processos que correlacionam as situações históricas com os questionamentos sobre os padrões normativos vigentes. Vários estudos que envolvem o universo juvenil são realizados nas universidades, desde questões que envolvem os desafios expostos pela sociedade capitalista e suas desigualdades, os diversos sentidos das participações políticas e das vivências sexuais, as diversas formas de manifestações culturais e as relações da juventude com as situações de violência, como a autora apresenta em seu texto. Essas experiências, recorrentemente assinaladas por uma “rebelião juvenil”, como define Marialice Foracchi no clássico “A Juventude na Sociedade Moderna” publicado em 1972, chama a atenção pelo fato de que, a juventude representa uma categoria histórica e social porta-voz da crise do sistema social, por possuir “[...] uma consciência jovem, expressão dos conflitos e tensões que se desenvolvem no sistema e que são extravasados nos movimentos de juventude” (FORACCHI, 2018, p. 16). Em situações de mudança social, observa-se a participação juvenil na vanguarda dos movimentos sociais, na crítica às instituições e ao instituído, figurando-se como porta-vozes das reinvenções éticas, estéticas e afetivas contemporâneas.
Quando compreendido como uma condição juvenil, esses atores sociais devem ser estudados e interpretados como uma construção social e histórica. Essa afirmação se configura como um lugar comum na investigação científica, pois o Estado da Arte da Juventude apresenta uma diversidade de trabalhos e estudos que destacam que a compreensão dessa categoria deve se dar pelo entendimento das singularidades inquietantes e das trajetórias de vida para compreender o lugar social desse grupo na contemporaneidade. Essa perspectiva analítica também circunda os estudos sobre “as gerações”, quando as pesquisas realizadas sobre a infância e a velhice também são entendidas como situações e construções sociais e históricas. E nessa linha de pensamento, autores como Janice Caiafa (1989), Helena Abramo (1994), Glória Diógenes (1998), Machado Pais (2003), Regina Novaes (2006), Marília Sposito (2009), Wivian Weller (2011) optam pela terminologia “culturas juvenis” (no plural), sugerida por Carles Feixa (1996) como uma possibilidade de transferir a ênfase das questões relativas à marginalidade para a identidade, das aparências para as estratégias, do espetacular para a vida cotidiana, da delinquência para o ócio, das imagens para os atores, dando mais complexidade ao entendimento dessa condição de vida.
Machado Pais (2003) destaca que os diferentes sentidos que o termo “juventude” tem tomado e as diferentes manifestações de sentido encontradas nos seus comportamentos cotidianos, nos modos de pensar e agir, em suas perspectivas sobre o futuro, nas suas representações e identidades sociais, compõem paradoxos analíticos importantes para a reflexão das culturas juvenis. O desafio, como indica o autor, é perceber a juventude não apenas como um conjunto social cujo principal atributo é o de ser constituído por indivíduos pertencentes a uma mesma fase de vida, mas sim compreender as culturas juvenis como um conjunto social com atributos que os diferenciam. Portanto, uma passagem do campo semântico que toma a juventude como uma “unidade” para o que a toma como uma “diversidade”.
Para decifrar os modos de vida juvenis, as orientações de José Machado Pais (2005) são importantes e nos levam a observar e perambular com os jovens em seus “contextos vivenciais cotidianos”, pois é no curso de suas interações sociais que eles constroem formas de compreensão e de entendimento que se articulam com formas específicas de consciência, de pensamento, de percepção e de ação. Dessa forma, segundo o autor, abre-se uma análise ascendente dos modos de vida dos jovens, que parte da diversidade de mecanismos, estratégias e táticas cotidianas significativas para entender como esses mecanismos são investidos, utilizados e transformados, assim como suas possíveis involuções e generalizações. Portanto, para Pais:
[...] alguns jovens movem-se no labirinto da vida numa entrega ao acaso ou ao destino, enquanto que outros atuam de forma estratégica, isto é, considerando várias tramas possíveis que podem modificar-se à medida que se confrontam com os imprevistos da vida, dado que está sujeito a uma série de contingências, as chamadas contingências da vida (PAIS, 2005, p. 14).
Dessa maneira, ser jovem implica uma multiplicidade de multipertencimentos (VELHO, 2006) localizados além da definição etária e geracional. É importante destacar que esses multipertencimentos culturais, sociais e institucionais podem se apresentar de forma transitória, mas são eles essenciais para a compreensão da condição juvenil. Para Denise Cordeiro (2009), a juventude como uma construção social, se afasta da ideia de homogeneidade ou totalidade, de uma “visão mítica, totalizante e estática”, que dificulta a interpretação da condição juvenil no tempo presente, pois a análise dos percursos de vida dos jovens é sinalizadora de suas condições de vida, além de possibilitar uma ampliação do entendimento das culturas juvenis sob suas múltiplas experiências e construções de significados.
Sendo assim, considero indispensável que os estudos sobre as culturas juvenis sejam atravessados por um debate que envolva o conceito de experiência e de reconhecimento. Sobre o conceito de experiência, Walter Benjamim (1975) discorre que a experiência é uma vivência compartilhada pela narrativa, que atravessa, que passa, que acontece com um sujeito social e que não será nada se não puder ser transformada em forma de narrativa compartilhada com grupo no qual o sujeito está inserido. Para Benjamim, é o compartilhar que transforma a vivência em experiência. Jorge Lorrosa (2018) enuncia que a experiência é algo que nos afeta, que nos toca, que nos acontece como uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar, nem “pré-ver”, nem “pré-dizer”. Portanto, é um saber adquirido em virtude do modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida.
O conceito de reconhecimento é importante para as reflexões sobre as culturas juvenis em situação de violência ou de violação de direitos, pois são grupos que lutam para que haja o reconhecimento da sua condição humana em diferentes perspectivas. Para Axl Honneth (2003), existe uma estrutura tripartite nas relações de reconhecimento: 1) Dimensão do Amor: produtora de autoconfiança, mas quando desrespeitada, pode causar algum tipo de violação, por exemplo: uma violência física; 2) Dimensão do Direito: produz autorrespeito, porém pode causar privações quando infringida, ou seja, situações de exclusão; e 3) Dimensão da Solidariedade: esfera da integridade social, que quando for ameaçada, mobiliza injúrias e estigmatizações. Isto posto, observamos como a preservação de suas vidas, cidadanias e integridades são lutas recorrentes vivenciadas pelas juventudes em situações de precariedades, vulnerabilidades e violências, assim como são traços e riscos de vida anunciados em suas breves experiências e trajetórias que sinalizam mapas sociais e afetivos sobre a condição juvenil.
Deste modo, a experiência compartilhada através de narrativas e de lutas pelo reconhecimento de suas trajetórias sinalizam formas de compreender as juventudes como o tempo da travessia. Os jovens são produtores de rotas, encontros e movimentos. Suas circulações por experiências, contingências e (re)existências possuem paisagens de sentimentos que consolidam formas de atravessar e construir significados às suas trajetórias de vida (MARINHO, 2020). Compreender a juventude como um tempo de travessia é reconhecer que seus percursos não estão estabelecidos por trajetos com começo, meio e fim, mas sim através da experiência que o ato de movimentar desencadeia. Suas travessias expressam o nomadismo e o fluxo da vida cotidiana, transformando percursos, experiências, etiquetas, emoções e desejos, em um movimento desordenado que produz uma temporalidade desalinhada, e não etária, resultante de experiências singulares e transgressoras que invertem padrões normatizados e normatizadores da vida social. Essas dimensões imbricadas designam modos de vida, afetos e multipertencimentos marcadores das juventudes contemporâneas.
Entre os anos de 2000 e 2004 eu realizei uma pesquisa sobre jovens garotas que tiveram filhos com jovens que foram assassinados em Fortaleza (MARINHO, 2004; 2009).4 Nessa época, a cidade registrou, no ano de 2002, 395 homicídios de jovens na faixa etária entre 15 e 29 anos.5 Dez anos depois, essa taxa teve um aumento surpreendente, chegando a um número de 1.294 casos. Nos anos seguintes não ocorreram quedas bruscas nas taxas de homicídios que pudessem revelar um cenário menos trágico na capital e no estado. Segundo o Atlas da Violência (CERQUEIRA; BUENO, 2020), no ano de 2018, o número de homicídios no Ceará de jovens na faixa etária de 15 a 29 anos foi de 2.812 casos.6 Portanto, rotas de morte e luto que enunciam diversos personagens que integram esse dramático cenário, como as jovens viúvas da violência.
Entrevistei garotas, basicamente entre 19 e 24 anos de idade, que namoraram rapazes moradores de seus bairros envolvidos em “gangues7” ou em situações de violência. Com eles tiveram filhos, e posteriormente foram surpreendidas com a notícia de suas mortes. Mortes prematuras, pois apesar de serem anunciadas, não eram acreditadas por elas. No entanto, quando aconteceram, inicia-se um novo período na vida dessas garotas, uma nova travessia. Em seus relatos percebemos como esse eterno recomeçar possibilita diferentes definições e marca suas trajetórias. Em cada um desses momentos elas acumulam experiências e estigmas, papéis e posturas, traumas e lições. As principais revelações das narrativas desse grupo de mulheres elucidam as dores sentidas e os estigmas carregados. No relato abaixo de Marcela, jovem viúva de 20 anos, ela destaca a preocupação que sente com os estigmas sofridos:
Eu só sei que vou ter que carregar pra sempre essa ideia que as pessoas têm de mim. Eu posso esquecer, mas as pessoas não esquecem, não. Onde eu passo as pessoas, nem todas as pessoas, mas tem umas que ficam falando as coisas. Que eu fui isso e aquilo outro, aí começa a me discriminar. Sinto uma coisa tão ruim quando eu passo [e] as pessoas falam. Como agora, eu não saio mais de casa, quando saio, as pessoas: “Olha essa menina foi isso, essa menina foi aquilo” (Marcela, 20 anos).
As jovens entrevistadas para essa pesquisa moraram sua vida quase toda nos mesmos bairros, atravessando assim, o tempo da infância e da juventude. Os moradores de suas comunidades acompanharam quando elas eram “as filhas” de uma família geralmente avolumada. Durante a infância, frequentaram a escola, brincaram na rua, e de certa forma, foram observadas pelos olhares cuidadosos de seus pais. Para elas, esse é o momento da obediência e da autoridade familiar que funcionam, pois um não poderia amedrontar e impossibilitá-las de fazer “algo errado”. No geral, as falas das jovens entrevistadas não revelam amarguras ou ressentimentos relacionados a esse momento de suas vidas. Uma infância envolvida por pobreza e exclusões dos mais diversos tipos, pode causar sentimentos de indignação e frustração, mas seus relatos não evidenciaram isso. Mesmo porque, elas não se consideram como jovens que “se revoltaram”, e por isso, se envolveram em situações de violência direta ou indiretamente.
As travessias juvenis anunciam tempos de transformação de papéis sociais, pois existem ritos que estabelecem o curso da vida e a mudança da fase juvenil para a vida adulta. A maternidade representa um signo feminino de transição para a vida adulta. Quando se tornam “mães”, as jovens viúvas deixam de ser “as filhas”. Nesse tempo elas estão nas ruas, conhecendo o que até então a delimitação da casa impossibilitava. É lá que encontram os namorados, as festas, a liberdade e os riscos. Para elas, a vida na rua simboliza a possibilidade de fazer o que quiserem sem a vigilância rígida de seus pais. Ao invés de “menininhas” são agora “as mulheres dos chefes”, e esse papel impõe a defesa da honra e do respeito, visto que devem zelar por suas imagens, até a chegada do tempo de serem as “jovens viúvas” ou a “mulher do finado [...]”. Na condição de viúvas, elas retornam aos lugares privados e domésticos do lar. Estão de volta a suas casas, mas com uma bagagem diferente e repleta das experiências arriscadas e vexatórias, mas também corajosas, aventureiras e afetivas, como classificaram.
Em seus relatos observa-se como a maternidade e a viuvez são travessias que ocasionam mudanças de papéis sociais e de visão de mundo. Ser mãe as incube de responsabilidades que não tinham antes, assim, o tempo para outras atividades fica comprometido. Já a viuvez marca o período de reclusão, o desaparecimento da cena pública, pois o luto deve ser vivido na invisibilidade da casa. Além de recordarem o tempo que viviam com os namorados falecidos como o tempo de amar, as jovens viúvas também constroem novos significados para seus relacionamentos afetivos após a viuvez, como relata Clara a seguir:
Até hoje, eu ainda não arranjei uma pessoa que eu amasse. Às vezes quando eu brigo com o meu namorado, ele diz que não sabe como é que vive com uma mulher que ama um defunto. Ele sabe que eu ainda gosto dele [...]. Quando é aniversário dele eu vou pro cemitério, Dia dos Pais eu vou pro cemitério [...] (Clara, 24 anos).
As narradoras dessa pesquisa alegam que a imaturidade foi o fator que conduziu suas trajetórias ao encontro dos “gangueiros”. Essa é uma das explicações dada ao fato de terem se interessado por jovens integrantes de gangues e envolvidos em atos criminosos. Suas narrativas revelam que esses relacionamentos “perigosos e proibidos” não cabem mais em suas histórias de vida, porque o tempo da imaturidade (e do amor) ficou no passado. Elas contam que seus atuais relacionamentos são com rapazes “sem envolvimento” com o mundo do crime. São jovens que trabalham e ajudam nas despesas da casa, e até mesmo na criação dos “herdeiros da violência”, que na maior parte dos casos, atribuem a esses namorados/padrastos o referencial paterno.
Viver o luto é um ritual de apreciação do tempo, de esperas e tentativas de conciliar a dor e a saudade. Para as mulheres, a viuvez inaugura um momento de controle muito maior de seus corpos e sentimentos. É comum esperar delas uma declaração infinita de honra e fidelidade ao companheiro perdido, onde se nutre um desejo de que elas rompam com o social e mergulhem por completo em si mesmas, pois viver o luto é lembrar o morto. A pesquisadora indiana Gayatri Spivak no texto “Pode o subalterno falar?” (2010), ao analisar um ritual fúnebre, no qual a viúva hindu se autoimola sobre a pira funerária do marido falecido, demonstra como a condição da mulher é de subalternidade e de dupla opressão, pois além de não ter espaço para enunciar sua voz política, e com isso não ser ouvida, sua condição de gênero e a reprodução e manutenção das estruturas de poder da sociedade são produtoras de “mudez” e “silenciamento” feminino. No caso da viuvez, um comportamento não regido pela reclusão e pelo sofrimento público, pode levar as pessoas a pensarem que elas não estão vivendo o luto como deveriam, portanto, são anuladas, negadas e condenadas por não expressarem reconhecimento e consideração pelo companheiro perdido conforme a sociedade espera.
Para Paul Connerton (1999), toda a forma de conhecimento do novo, do presente está estruturada pelo que já foi conhecido e experimentado no passado. A memória pessoal diz respeito às recordações contidas nas histórias de vida de cada um, porque estão localizadas no passado pessoal e a ele se referem (CONNERTON, 1999). Desse modo, através das narrativas das jovens viúvas percebe-se que elas não querem esquecer ou apagar de suas lembranças à época em que foram as “mulheres dos chefes” das “gangues juvenis” dos bairros periféricos, marcados por um número expressivo de assassinatos. Elas dizem que tomam essas experiências como “lições” e continuaram lutando pelo reconhecimento de suas condições como mulheres, mães e cidadãs. Por estarem apaixonadas pelos namorados no momento de suas mortes, suas recordações são marcadas por sentimentos de alegria e felicidade, ao mesmo tempo em que, a forma trágica como a relação terminou revela a dor e a aflição ocasionadas pelo envolvimento com os garotos marcados para morrer.
Sobre o futuro, foi comum observar em suas narrativas que a ressignificação de suas travessias e trajetórias de vida ocorrem, principalmente, por causa das experiências e responsabilidades frente à maternidade. São falas que enunciam as tensões com o futuro de seus filhos, pois acreditam que eles possam sofrer preconceitos em razão de serem jovens periféricos e filhos de garotos com trajetórias perigosas. Essa preocupação é demonstrada na fala de Sabrina:
Pelo simples fato que não tem nada a ver a pessoa se meter na vida da outra, cada uma tem sua vida. Ninguém deve dar obstáculo na vida de ninguém não, porque, principalmente pessoa que tem filho, em vez da mãe pagar, quem paga é os filho, só cai pra cima dos filho, que não tem nada a ver, né? Caí pra cima da mãe, mas o pior parte cai pros filho (Sabrina, 24 anos).
As garotas entrevistadas nessa pesquisa dizem que não pretendem esconder suas histórias, nem mesmo as histórias dos pais para os filhos. Elas acreditam que através das experiências que possuem com drogas, gangues e atitudes criminosas, poderão afastá-los desses caminhos. O medo de viver com seus filhos as mesmas angústias e os mesmos dilemas que vivenciaram com os pais dessas crianças é um espectro que ronda os corações de mães que vivem em cenários de insegurança nas regiões violentas e periféricas das cidades, pois elas reconhecem a sedução que o “mundo do crime” pode exercer sobre os jovens de seus bairros, assim como vivem sob o medo de ter seus filhos assassinados. As que perdem seus filhos, transformam o luto em luta, e muitas se fortalecem em redes de mães capazes de manter pulsante a memória de seus filhos, a busca por justiça, a coragem para suportarem viver. Elas lutam cotidianamente contra a indiferença e a naturalização dos acontecimentos violentos nas periferias que ocasionam os elevados índices de homicídios da juventude brasileira (LEITE; MARINHO, 2020).
O fato de a maior parte das entrevistadas não ter se mudado da rua ou do bairro onde moravam no momento de seus envolvimentos com os jovens assassinados, indica a relação do lugar com a produção dos elementos de identificação pessoal. Em seus bairros, elas são reconhecidas como “a mulher do finado [...]”, e isto estabelece uma identidade que pode condenar. Se tivessem saído desses lugares, poderiam não dizer tanto sobre suas histórias, e assim não condená-las causando os constrangimentos que relatam, mas por outro lado, foram esses lugares os cenários de suas “histórias de amor” e da gestação dos “herdeiros da violência.”
A partir de agora, este artigo apresentará a trajetória de vida de três jovens fortalezenses que são filhos de jovens vítimas de homicídios nos idos dos anos 2000.8 Em comum, eles possuem experiências no mundo do trabalho e concluíram o ensino médio. No entanto, compartilham o medo e o receio de sofrerem algum tipo de violência, seja diretamente contra eles, ou contra uma pessoa de seus ciclos de afetos. São jovens que escutam rap, música regional e brasileira. Namoram, se divertem, convivem com suas mães e familiares e assumem os discursos do modo de vida de sua geração. Carregam rótulos, memórias e multipertencimentos como emblemas das culturas juvenis ao sinalizarem as singularidades inquietantes de suas experiências de vida (MARINHO, LIMA; SANTOS, 2019). Com isso, podemos refletir sobre as travessias juvenis que dialogam com questões gerais relacionadas aos desafios de ser um jovem brasileiro periférico do Século XXI. Observa-se que os rótulos são elementos produzidos pelo imaginário social, que geralmente ignoram as interseccionalidades que atravessam seus modos de viver. Cada trajetória ao revelar os cenários de instabilidade e incerteza, que marcam as travessias juvenis, também destacam a importância das relações de reconhecimentos afetivos, interditos quando o assunto são as vidas de jovens em risco.
Minha mãe é a pessoa mais batalhadora que eu conheço na vida. Não me imagino num mundo sem ter ela por perto e do meu lado. Ela sempre fez tudo por mim e fez o que podia pra me dar o que ela não teve e não me deixar passar pelo que ela passou.
Clarissa é uma jovem universitária de 20 anos de idade. Sua trajetória de vida é marcada pela presença de duas mulheres importantes para ela: sua mãe e sua avó. A jovem é filha de um tempo em que os discursos feministas são mobilizadores de gestos e atitudes que reivindicam equidades, sororidades e proteções. Sobre o movimento feminista, ela diz: “[...] é essencial. Como mulher, sei bem o que é sofrer de misoginia, abuso e preconceito. É necessária essa luta por igualdade e empoderamento feminino, além do papel que ele traz desconstruindo o machismo que tá enraizado na gente”. Em sua narrativa há o reconhecimento que sua entrada como estudante na Universidade Estadual do Ceará foi importante para ela se conectar com outras visões de mundo e modos de viver. Portanto, as vivências juvenis em espaços educacionais são significativas, não só para a produção de projetos de futuro, que podem ser realizados ou não, mas também por possibilitar outras experiências distintas das recebidas nos círculos familiares. Nesse sentido, algumas recusas desses referenciais podem associá-los às imagens estigmatizadoras que os classificam a partir da ideia de imaturidade ou de rebeldia. No caso de Clarissa, ela não se vincula à referência religiosa de sua família: “Eu fui batizada na igreja católica muita nova. Costume, né? Frequentei a igreja evangélica com a minha avó até uns 12, 13 anos, mas depois, nem interesse eu tenho”.
A jovem mora com sua mãe e sua avó em uma casa alugada em um bairro periférico da cidade. Em outros tempos, Clarissa disse que sua casa era mais movimentada, pois além dela, sua mãe e avó, moravam também: o avô (que faleceu quando ela tinha 16 anos), tias e primos (que ela considera como seus irmãos). Diz viver em um bairro tranquilo, de forma confortável, “apesar de não termos bens materiais, como casa e carro”, e considera ser uma jovem de uma família de classe média baixa, pois, segundo ela, para definir a classe social de uma pessoa ou de uma família, teria que “[...] ter alguns parâmetros de, como eu posso dizer, do que a pessoa possui, bens materiais, casa própria, carro próprio, nível de contas, de cartão de crédito e até nível cultural do que a pessoa consegue adquirir culturalmente”. Ela reconhece sua mãe como a chefe da família e a responsável pela renda da casa.
Clarissa disse que sua mãe trabalha muito para que ela possa se dedicar integralmente aos estudos. Ela admira a força e a coragem de sua mãe que se dedica ao cuidado da família: “Um colégio, com todo o esforço do mundo, ela conseguiu pagar um colégio particular pra mim, pra me ver melhor e tentar ser diferente do que ela passou”. Ressalta que sua renda desde que ingressou na Universidade ocorre através das bolsas de assistência estudantil, do programa de monitoria acadêmica e de projeto de extensão. Antes disso, ela teve experiência com o trabalho informal atuando como vendedora, durante um ano e meio, em duas empresas, mas atualmente, para ela: “[...] minha meta principal é conseguir me formar e não sei se eu quero levar adiante os estudos acadêmicos ou se eu quero passar num concurso ou entrar no mercado de trabalho agora. Ainda não tenho nada definido”.
A jovem destaca a sua segurança profissional como o seu principal projeto de futuro. Marca de uma geração de mulheres, cuja atuação na esfera pública como trabalhadora é uma prioridade. No entanto, a jovem não escapou de uma experiência que ainda acompanha a condição feminina, geração a geração: foi vítima de um relacionamento abusivo. Indagada sobre o que compreende como violência, disse: “violência para mim não é só física. É qualquer forma de ataque a uma pessoa em si ou a uma sociedade. Atacar seus direitos, sua cidadania, etnia, religião... é uma forma de violência”. Clarissa conta que aos 18 anos de idade namorou um rapaz que a violentava física e verbalmente, e que essa experiência a deixou traumatizada e com medo de viver novamente uma relação abusiva, mas atualmente está namorando um rapaz que compartilha com ela o mesmo gosto musical. A jovem disse que gosta de todo tipo de música, “do rock ao samba e funk”, gosta de ouvir MPB, porque disse que consegue entender a música, pois “ela fala da nossa realidade, do que eu vivo, fala da força da mulher, de pertencimento”. Para ela há um sentido terapêutico nas músicas brasileiras: “O relacionamento abusivo que eu tive me marcou muito, sabe? Aí tem algumas coisas que eu vejo e levo para mim como forma de me ajudar a superar e eu acho que tem umas músicas que ajuda nisso”.
Outras situações sobre o medo da violência são apontadas nas narrativas de Clarissa, especialmente pelo fato dela ser uma jovem pertencente a uma geração que frequentemente perde amigos, irmãos e primos em conflitos armados, nos quais muitos são vítimas de homicídios. Portanto, para alguns jovens são criados limites de ocupações e perambulações de seus corpos na rua, na comunidade, na cidade, nas instituições. Fronteiras invisíveis que demarcam permissões de uso dos espaços públicos que autoriza uma necropolítica (MBEMBE, 2018) legitimada pelo fato de quem deve viver e de quem deve morrer. Para Clarissa, “[...] a gente percebe que o aumento da milícia tá enorme. Na época do meu pai tinha policial corrupto, mas nesta época está muito pior, principalmente pela conjuntura política atual”. Clarissa teme pela vida de um primo de 18 anos que considera como irmão.
Esse medo segue com ela os percursos de sua trajetória de vida, pois além do pai e do tio, ela também teve um primo assassinado. Quando soube do envolvimento de seu primo-irmão com o tráfico de drogas, ela disse que sofreu muito, pois considera que é trágico o destino de jovens que entram para o mundo do crime: “[...] a gente sabe que tem poucas saídas: ou morre ou vai preso. Eu não conheço histórias de gente que se redimiu do crime e hoje está inserido na sociedade completamente”. Ela lamenta o primo-irmão ter se envolvido com práticas ilegais e perigosas, pois: “[...] eu não sei o porquê dele tá fazendo isso. Eu não tô dizendo que pra você entrar pro crime você precisa não ter apoio familiar, você precisa não ter condições financeiras, porque isso tudo ele tinha”. Tensões e sentimentos daqueles que reconhecem como cada vida importa e como o genocídio da população juvenil deixa um rastro de dor nos círculos afetivos dos jovens. Os sofrimentos coletivos, a desesperança com o futuro e outros tantos sentimentos movem um caleidoscópio de emoções que circundam travessias e trajetórias juvenis contemporâneas.
Sobre as lembranças e esquecimentos que circundam sua história com o pai, ela aponta a ausência como o principal sentido e diz que lembra do dia do assassinato dele, quando ela tinha 11 anos de idade. Seu pai e o irmão eram envolvidos com o tráfico de drogas no bairro. Aos 27 anos, ele foi assassinado numa situação de vingança e disputa de território. Seu pai estava na casa de um familiar quando duas pessoas invadiram, atiraram e mataram seu irmão. Na troca de tiros, seu pai matou os invasores e ficou jurado de morte, precisando se esconder na casa de familiares da mãe de Clarissa. No entanto, a jovem narra que o sentimento de vingança de seu pai foi maior do que o de proteção à sua vida, e ao enfrentar os matadores de seu irmão, acabou sendo morto. Nessa época, seu pai morava com outra mulher e tinha um filho com ela. Sobre sua reação com a morte do pai, a jovem desabafa: “[...] não tive nenhuma emoção na hora. Eu sabia que isso podia acontecer a qualquer momento por causa do histórico dele. O que mais me chateou na morte dele foi eu não ter tido contato nenhum com ele, que podia ter pedido para me ver”. Para ela, sofrer por essa morte exigiria algum tipo de sentimento provocado pela convivência paterna, com isso: “[...] o único sentimento que eu tinha por ele era indiferença. Eu nunca tive contato com ele. A única figura paterna que eu tive na minha vida foi o meu avô”. Sentimentos e emoções delimitam mapas afetivos constituídos por (com)vivências e não por convenções, e assim, a jovem universitária Clarissa segue sua vida.
Houve uma mudança na minha vida. Meu aniversário foi dois dias antes da morte da Marielle Franco. Após a morte dela teve uma ciranda gigantesca na Praça da Gentilândia só com mulheres. Parece que aquele dia mudou minha vida porque foram tantos sentimentos.
José ganhou o nome de seu pai. Esse é um signo perpétuo que delineia as histórias entrecruzadas de pai e filho: José é o filho de José. Uma marca desenha uma travessia ou uma classificação social, aproximando ou diferenciando experiências pessoais, singulares e intransferíveis. Mesmo seguindo um caminho diferente de seu pai, como afirmou em entrevista, o menino percebe que no bairro onde nasceu, apesar de não morar mais e voltar apenas para visitar sua mãe, seus passos deixam rastros da dúvida na comunidade que deve pensar, segundo ele: será que José será como o pai? Essa percepção foi revelada pelo jovem quando indagado sobre sua memória paterna. José disse que por mais que tenha construído uma vida diferente, concluindo os estudos, trabalhando em uma empresa com carteira assinada, morando em outro bairro com sua companheira e filha, ele fala que carrega essa marca que o estigmatiza frente a sua comunidade de origem. No entanto, o jovem disse que pretende voltar a morar no bairro com a família que formou, especialmente em uma grande casa de propriedade de sua avó que é uma referência afetiva para ele. José tem um irmão e costuma visitar a mãe com frequência.
Ele perdeu o pai aos 04 anos de idade. O ocorrido foi na porta da casa de sua família. Conforme seu relato, um motoqueiro atirou na direção de seu pai que estava com José no colo. Assim, um fim de tarde aparentemente corriqueiro ocasionou uma tragédia que marcou a vida dessa família. Quando percebeu que poderia sofrer esse atentado, o pai de José, ao avistar a moto, jogou o filho para longe dele para salvá-lo dos tiros. E conseguiu. Como já tinha sido ameaçado de morte, em razão de conflitos que possuía em seu bairro com integrantes de “gangues” e de milícias, seu pai sabia que sua vida estava ameaçada. E assim, aos 28 anos de idade, mais um jovem entrou para as estatísticas de homicídios da juventude brasileira.
Passados 16 anos do ocorrido, José que atualmente tem 20 anos de idade, diz que o esquecimento marca sua história com seu pai, pois cada vez mais as lembranças vão sumindo de sua memória. Porém, ele disse que não possui uma imagem negativa do pai. O que o incomoda é saber que outras pessoas o rotulam com preconceitos e maledicências, mesmo tendo ele escolaridade elevada e uma “identidade de trabalhador”, signos que poderiam livrá-lo da percepção de ser um jovem perigoso e de vida arriscada. José tem lembranças da perda de amigos vítimas de homicídios, como um jovem que foi assassinado na Chacina do Benfica,9 um trágico evento que marcou a história de Fortaleza e acarretou a morte de um amigo que esteve com ele nas ocupações das escolas no ano de 2016.
Sua adolescência foi embalada pela participação em movimentos estudantis, especialmente em um importante movimento de estudantes protagonizados por jovens em diferentes cidades brasileiras: as ocupações das escolas públicas no ano de 2016, ou como os jovens preferem definir, a “primavera secundarista”.10 Nesse momento, as principais bandeiras de luta do movimento estudantil secundarista cearense eram: melhorias estruturais das escolas, qualidade da merenda escolar, instalação de bebedouros e bibliotecas, oposição ao projeto escola sem partido, contra a reforma do ensino médio e revogação da PEC 241 — conhecida como a PEC do teto de gastos com políticas públicas ou a “PEC do Fim do Mundo.” José figurou como um importante líder de uma das escolas mais mobilizadas e articuladas em Fortaleza, localizada em uma área privilegiada da cidade. Sobre essa experiência, ele analisou: “Quem ocupou a escola não foi quem tinha dinheiro. Foi quem não tinha perspectiva de nada e viu aquela oportunidade de ter alguma coisa na vida. De se sentir importante”. Ele destaca que essa experiência foi fundamental, não só para a sua formação política, como também para sua formação pessoal.
No tempo das ocupações, o jovem disse que ficou na escola durante os 03 meses que durou o movimento, retornando pouco a sua casa. Por lá, além de organizar atividades de formação política, realizar reparos nas estruturas escolares, negociar com a secretaria de educação do Estado do Ceará, José revela que também foi um importante lugar para a mobilização de experiências juvenis referente às afetividades, ao consumo de substâncias psicoativas permitidas e proibidas, ao questionamento das relações hierárquicas escolares e aos projetos de futuro. Para ele foi um “tempo muito doido”, pois da mesma forma que a luta política exigia certa ordem, nos “bastidores” ocorreram situações transgressoras que fez com que alguns jovens desalinhassem seus caminhos escolares, abandonando a escola.
Com o fim das ocupações, José foi expulso e transferido para uma escola de ensino profissional. Ele disse que se sentiu injustiçado, pois era muito contraditório aquela instituição formada por professores ligados aos partidos políticos ditos progressistas, favoráveis às bandeiras de luta que o movimento estudantil defendia, agir de forma autoritária indicando a sua saída da instituição e disse: “[...] a escola enxota e a facção tá lá para abraçar”. Posteriormente, o jovem reconheceu que essa mudança foi fundamental para o curso de sua vida. Ele não fez a escolha pelo abraço das facções criminosas, pois teve a possibilidade de seguir de mãos dadas com uma outra instituição (com grau diferente de periculosidade): uma instituição bancária.
Na nova escola, o jovem iniciou um estágio profissional em um banco privado. Nessa época, saiu da casa de sua mãe e foi morar com sua namorada. Segundo ele, essa responsabilidade com a manutenção da casa o fez reconhecer a importância de sua formação escolar e inserção no mundo do trabalho. No entanto, reconhece que por ser um jovem branco, ou seja, por ter esse “privilégio branco”, como relatou, foi possível ser escolhido para trabalhar no setor de atendimento ao público de um renomado banco no centro da cidade. Tendo a oportunidade de trabalhar em uma instituição, que um dia foi opositor e “pixou” seus muros com grifos que enunciavam a luta contra as opressões e explorações capitalistas, José reconhece que foi essa instituição que “lhe deu a mão” em um momento de transição para a vida adulta. Esse deveria ser o papel de uma instituição escolar que, ao invés de acolher, expulsou ele e seu amigo, posteriormente assassinado na Chacina do Benfica. José diz que: “[...] depois da morte do Joca teve gente que tocou o foda-se. Teve realmente um grupo que se fudeu por falta de atenção da escola”.
No momento da entrevista, José continuava trabalhando no banco, e como concluiu o ensino médio, fez uma revelação sobre seu futuro: “Tenho o sonho de ser professor, gosto da área de jovens e adultos. Sou paulofreiriano mesmo. Gosto muito de Pedagogia e História. Gosto de sala de aula”. No entanto, o jovem teve que deixar esse sonho de lado e estava se planejando para começar um curso à distância na área de Administração que será custeado pela empresa que trabalha. Ele disse que vive o tempo de ter responsabilidades com suas escolhas, pois tem uma filha para criar, e que o tempo de fazer política ficou para trás. Apesar de continuar se inspirando na história de luta de Marielle Franco, afirmando que ela continua sendo uma importante referência para sua vida.
José se considera um jovem com ideias progressistas, pois é contrário à redução da maioridade penal, à pena de morte e favorável à descriminalização de drogas. Sabe que é um sobrevivente de uma condição excludente, na qual, a oferta de acesso às políticas públicas de proteção social para os jovens da periferia é escassa. José sabe que está na contramão da abundância cotidiana de situações de violências sofridas pelos jovens periféricos. Apesar de ser um “jovem branco e trabalhador” não está livre das invertidas discriminatórias das abordagens policiais ou da dor ocasionada pela perda de um irmão, um amigo, um conhecido de vidas breves e matáveis que enunciam os sentimentos cotidianos e partilhados das dores das periferias.
Uma lembrança que eu tenho da minha infância foi de quando o meu pai era vivo. Eu e meus irmãos brigávamos muito. Éramos crianças e vivíamos brigando. Teve um dia que um amigo do meu pai deu um biscoito para mim e para meus irmãos mais novos. Aí a gente ficou brigando para saber quem ia ficar com mais biscoitos. Aí meu pai pegou e tomou o biscoito e foi dividir o biscoito um por um. Deu um para cada. Aí quando acabou ele disse: “vocês são irmãos. Não é para tá com essas brigas, não. Porque quando um tiver, o outro vai lá e divide. Vocês têm que ser unidos.” Essa é a lembrança mais viva que eu tenho dele.
Aos 5 anos de idade, Marcus presenciou a morte do seu pai, em uma situação de defesa da honra de sua mãe frente a um assédio sofrido por homens desconhecidos. A família estava em um momento de lazer, se refrescando do calor fortalezense, em um banho de lagoa. Seu pai, aos 28 anos de idade, estava de folga do trabalho naquele dia. E foi em uma briga com homens desconhecidos, que assediaram sua esposa, que ele levou cinco tiros e morreu na frente dos filhos, da esposa e de outros banhistas, interrompendo um dia de lazer e mudando a trajetória de uma família vítima de uma atitude machista, no qual, os homens coisificam a condição feminina, tomando os corpos das mulheres de posse e dando a eles limites de exposições, liberdades e direitos. Com isso, a história de amor dessa jovem viúva, que estava grávida quando seu companheiro foi morto, é interrompida por um ato de violência, inaugurando o tempo do luto, de sofrer pela morte repentina de seu companheiro com quem tinha uma família. Agora ela passará a cuidar de seus 5 filhos sozinha, nutrida pelo medo comum das mães das periferias que temem que seus filhos se envolvam ou sejam envolvidos em alguma situação de violência.
Após a morte de seu pai, a avó paterna de Marcus passou a ajudar financeiramente a família, os acolhendo em sua casa. Desse modo, o jovem afirma que teve uma infância simples. Na época, morava com sua mãe, três irmãos, a avó e uma tia, mas a família não viveu por muito tempo reunida. Marcus disse que sua mãe tinha “uns problemas com bebida”, assim como seu pai, que inclusive, tinha conflitos com os moradores do bairro e já tinha sofrido ameaça de morte. Mudar de bairro seria uma segurança para toda família. Diante dos problemas de saúde da mãe, ela foi morar com sua filha mais velha que se comprometeu em cuidar dela. O jovem ficou com os outros irmãos morando na casa da avó e narra que, nessa época, sua mãe grávida, teve que “dar o filho”, alegando não conseguir cuidar de uma bebê sozinha, especialmente em virtude de seu problema com a bebida. Portanto, Marcus passou a infância com os irmãos mais novos na casa da avó. Quando sua mãe conseguiu uma aposentadoria por invalidez, ela fez sua inscrição no programa “Minha Casa Minha Vida11” e logo foi contemplada. Diante disso, levou os filhos mais novos para morar com ela. Marcus preferiu continuar vivendo com a avó e a tia e continuava até o momento da entrevista para esta pesquisa.
Durante sua infância, ele estudou em uma conhecida escola de educação formal e profissional que possui uma modalidade de internato em Fortaleza. A instituição ficava em um bairro distante do que ele morava com a avó. Marcus diz que só voltava para casa no sábado à tarde, e com isso, aproveitava cada minuto para ficar com sua família. Relata que teve pouca convivência com as crianças do bairro, mas mesmo assim, gostava de brincar de bila (bola de gude) e de raia (pipa) com os irmãos e uns poucos amigos. Em sua adolescência, começa a perceber como sua família construiu uma percepção sua similar à imagem de seu pai. Sua mãe frequentemente fazia essa referência. E isso era algo que o incomodava: “[...] o que mais dói é algumas pessoas da minha família abrir a boca e dizer que eu vou no mesmo caminho dele. Minha mãe mesmo já disse várias vezes que eu ia ser igual a ele.”
Mesmo vivendo em um bairro que considera perigoso, ele disse que nunca entrou em conflito com os grupos criminosos ou foi ameaçado de morte: “[...] os pivete aqui é sossegado. Nunca botaram queixo comigo, até porque, alguns deles cresceu junto da gente.” É importante destacar na fala de Marcus o reconhecimento da dimensão afetiva nas relações interjuvenis. Ele disse que os jovens de seu bairro não “mexem” com ele em razão de um laço afetivo, possivelmente atado desde a infância. Para ele: “Não adianta você reduzir a maioridade penal, sendo que você vai colocar um menor de idade, dentro de um presídio com caras muito mais experientes do que ele. Que podem corromper ele a ficar ainda mais mau”. Ele fala que a vida na comunidade é complicada, pois falta assistência do Estado e o maior perigo na comunidade é a intervenção policial que costuma encerrar com violência os eventos e movimentos culturais e de entretenimento da juventude, seja um “racha” (jogo de futebol), um reggae, um baile funk ou uma aglomeração de jovens numa praça.
Atualmente com 19 anos, ele concluiu o ensino médio e logo após se inscreveu em um programa governamental de geração de trabalho e renda que disponibilizava bolsas e uma vaga de estágio em empresas conveniadas. Com o fim de seu tempo no programa, Marcus inicia sua trajetória em busca de uma colocação profissional, mas o que consegue são trabalhos eventuais, precários, incertos e indicados por um familiar ou por conhecidos. Ele é um jovem representante da chamada Geração N,12 não porque “nem trabalha e nem estuda”, mas sim por trabalhar muito sob formas precárias e instáveis. Marcus já foi ajudante de garçom numa barraca de praia, fez “trampos” com amigos vendendo drinks em festas e eventos, e atualmente ajuda a tia em um salão de beleza cuidando da limpeza do lugar. Na entrevista disse que sua avó sempre o aconselhou a ser um trabalhador, pois era uma característica de seu pai: “[...] ela sempre enfatizou que ele, apesar de tudo, não era vagabundo. Sempre foi trabalhador. Começou a trabalhar cedo. Com doze anos ele começou a pegar dindin para vender em tal canto”.
Marcus sabe como é importante ter uma identidade de trabalhador em sua comunidade, não só por ser uma herança positiva referente à imagem de seu pai, mas também, para protegê-lo de estigmas e violências em razão de ser um “jovem periférico”, e diz ter sorte por conseguir uns “bicos”. Sorte essa não destinada a todos, especialmente quando revela que: “[...] aqui até quem não é envolvido sabe que cadeia pra malandro é sorte”. Portanto, seu anúncio profetiza uma trajetória comum a muitos jovens, no qual a cadeia ou o caixão representam um destino final, uma paragem de suas breves vidas, observada no número expressivo de assassinados e na seletividade penal, que elimina e encarcera, quase que exclusivamente, jovens pobres e pretos. Dessa forma, viver sob a égide da violência e da discriminação pode produz riscos e rótulos para as travessias juvenis daqueles que vivem à margem das políticas de proteção social.
Marcus falou sobre as atividades de cultura, lazer e esporte que ocorrem em seu bairro. Para ele, o Estado não se preocupa em realizar projetos e programas que abarquem os desejos e as habilidades dos jovens. Destaca que os “rachas” (jogo de futebol) deixaram de acontecer, pois a polícia ao trocar tiros com os traficantes locais, ignorava a presença dos moradores que estavam ocupando os espaços públicos, assim como as festas que aconteciam no bairro. Portanto, ocupar o bairro, suas ruas e praças se tornou algo perigoso: “[...] até o reggae que tinha aqui nas áreas, os homi (polícia) chega e acaba. Deixam nós fazer nada, aí os pivete se envolvem. Não tem nada pra ocupar a mente. Eu dei sorte porque tive apoio familiar”.
Sorte, um termo recorrente no discurso de Marcus, assim como no de José e Clarissa. Como estão vivos isso já designa uma sorte, um privilégio, uma alegria, mesmo diante de travessias juvenis marcadas pela precariedade, pela ausência, pela tristeza. A sorte pode mobilizar uma esperança, em vista disso, na perspectiva spinoziana, “[...] a esperança é uma alegria instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida” (SPINOZA, 2011, p. 143). E assim, a dúvida pode alimentar a ideia de dias melhores para a juventude brasileira.
Sobre as contingências da vida que podem impossibilitar a realização de projetos de futuro dessa geração “desfuturizada”, como enuncia Machado Pais (2005), os jovens criam suas estratégias de sobrevivência contra as precariedades diversas decretadas às suas trajetórias de vida. Uma geração que vive tempos caracterizados pelo desejo em superar as inserções não-precárias no mundo do trabalho, em ter experiências em instituições escolares inclusivas e não violentas, em poder transitar pela cidade sem temer as ameaças das violências institucionais e ter suas afetividades, racialidades e credos plurais respeitados. Essas circunstâncias fazem com que suas possibilidades de escolhas sejam restritas e guiadas pelo espectro da precariedade em seus mais variados sentidos. Com isso, são produzidas imagens sobre a “periculosidade juvenil” delineadas por estigmas que não levam em consideração as dimensões estruturais da sociedade, no caso a brasileira, marcada por situações recorrentes de desigualdades e injustiças sociais, violências, autoritarismos, racismos, machismos e LGBTfobias que atingem com frequência as juventudes.
No entanto, as rotulações que marcam as classificações sociais dos jovens pobres, pretos, periféricos e de vidas em risco podem invisibilizar as marcas delineadas por seus mapas afetivos. Refiro-me às lembranças dos amigos, irmãos, primos e conhecidos que perdem a vida na juventude ou que estão ameaçados de morte. Por serem alvos do trânsito de armas ilegais que ficam à disposição dos jovens para o uso nos casos de conflitos interpessoais ou grupais, que mais do que um adereço fálico, como outrora já foi representado, passa a significar as mãos e os abraços dados pelas organizações criminosas. Especialmente, quando a escola, que deveria acolher e proteger os jovens, os afasta e se torna desinteressante para eles. Assim, os rastros do medo e de sofrimentos individuais e coletivos, para uma geração que vive cotidianamente sob o espectro da morte e do luto, se configuram como rotas juvenis atemporais, inclusive reveladas em discursos necropolíticos de gestores públicos que reconhecem a morte ou a prisão como destinos inerentes às trajetórias de vida de determinados grupos juvenis.
Como toda experiência geracional é inédita, olhares superficiais sobre a condição juvenil no Século XXI diriam que as experiências precárias são opções. Já um olhar mais afinado com as complexidades da condição humana e as contradições de uma sociedade injusta socialmente, revela a ideia da naturalização da desigualdade social como produtora do grupo dos “sobrantes”. As travessias dos “jovens ameaçados”, das “jovens viúvas” e/ou dos “herdeiros da violência” sinalizam, com suas singularidades e similitudes, uma compreensão a partir de uma perspectiva cultural que humaniza os sujeitos sociais (BUTLER, 2015), portanto, olhares que humanizam as vidas juvenis, as dores das periferias, dos que vivem o luto e as indignações dos que não naturalizam o genocídio da juventude brasileira.
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Ver dados do IBGE em: agenciadenoticias.ibge.gov.br.↩︎
Ver relatório em: www.dragaodomar.org.br.↩︎
Ver dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) de 2018 realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: biblioteca.ibge.gov.br.↩︎
Pesquisa que realizei em minha formação acadêmica sob a orientação do Professor César Barreira. Foi iniciada quando fui bolsista do Programação Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq) e finalizada com a defesa da dissertação “Jovens Viúvas: o universo interdito da violência urbana juvenil” durante o curso de Mestrado que realizei no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (MARINHO, 2004).↩︎
Ver dados em: www.mapadaviolencia.net.br.↩︎
Ver: www.ipea.gov.br.↩︎
Sobre a discussão dos grupos juvenis denominados como “gangues”, Glória Diógenes (1998) realizou um importante estudo sobre gangues e galeras, enunciando suas singularidades e imaginários acerca da violência e suas construções culturais durante a década de 1990, na qual, essa terminologia era empregada pelos jovens como uma forma de identificação de um grupo juvenil residente das periferias e envolvidos em dinâmicas de violências e ilegalidades de ordens diversas.↩︎
As trajetórias que serão apresentadas nesse artigo integram o trabalho de campo de uma pesquisa qualitativa que coordeno sobre as juventudes financiada pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico (FUNCAP) durante os anos de 2019 e 2020. Essa pesquisa também integra as atividades do TRAVESSIAS: Trajetória juvenil, afetividades e direitos humanos — grupo de pesquisa que lidero vinculado à UECE. Na primeira fase do trabalho de campo optamos em entrevistar jovens com experiências em atividades laborais e instituições educacionais, ficando para o segundo momento, os jovens que estão cumprindo medidas socioeducativas. Agradeço o compromisso e entusiasmo dos bolsistas de iniciação cientifica que me ajudaram na realização dessa pesquisa: Samara Edwiges Andrade Lima e Vinicius Cavalcante Santos, estudantes dos cursos de Serviço Social e Ciências Sociais (campus Fortaleza) da UECE.↩︎
Chacina do Benfica ocorreu no referido bairro, no dia 9 de março de 2018, com eventos em três locais diferentes da região, incluindo a Praça da Gentilândia. Sete pessoas foram executadas e três ficaram gravemente feridas. Todos jovens na faixa etária de 20 a 29 anos. Segundo as investigações da Polícia Civil, cinco pessoas participaram ativamente do crime e três delas estão presas. A principal motivação foi por vingança pela morte do primo de um dos réus. Os denunciados pelo crime e o alvo principal da chacina — que não foi encontrado pelos algozes — cresceram juntos no bairro e se distanciaram em razão das filiações diferenciadas a facções criminosas rivais que disputam territórios na capital cearense. Essa noite violenta, em um bairro reduto da juventude fortalezense que abriga um campus universitário, marcou a história do lugar, que vem desde então, reconstruindo sua imagem com um bairro cultural e acolhedor dos multipertencimentos juvenis.↩︎
Foi um movimento de ocupações de escolas brasileiras no ano de 2016, no qual, mais de mil escolas foram ocupadas por estudantes que criticavam as medidas na área de educação do governo Michel Temer (2016-2019). O movimento era contrário à Reforma do Ensino Média e a chamada PEC do Fim do Mundo (PEC 55/241) que congelou os gastos públicos por um período de 20 anos.↩︎
Programa de habitação popular do governo federal criado no ano de 2009 que oferece financiamentos para aquisição da casa própria com juros diferenciados e baixos para atender a população das áreas urbanas formadas por famílias com renda familiar bruta de até R$ 7.000,00 por mês.↩︎
Ver dados publicados na pesquisa “Eles dizem não ao não: um estudo sobre a geração N” anteriormente citada.↩︎
Resumo:
Esse artigo analisa trajetórias juvenis marcadas por situações de violência que são expressadas em sua forma mais cruel: os homicídios de jovens. Para tanto, os personagens centrais dessa pesquisa são os jovens que são filhos de jovens vítimas de homicídios. Tratam-se de reflexões sobre rotas juvenis atemporais, pois a morte e o luto são experiências cotidianas que atravessam gerações, marcando as periferias das cidades brasileiras, através de suas dores e de sentimentos de perdas de pessoas que compunham seus ciclos de afetos. Portanto, são memórias afetivas de jovens que, por conviverem pouco com seus pais falecidos, podem, por um lado, ser marcadas pela saudade ou por sofrimentos, e por outro lado, memórias atravessadas por esquecimentos e indiferenças, demarcando, assim, a singularidade das travessias juvenis.
Palavras-chave:
Juventudes; Homicídios; Experiência; Trajetórias; Reconhecimento.
Abstract:
This paper analyzes youth trajectories marked by situations of violence that are expressed in their most cruel form: youth homicides. To this end, the central characters of this research are young people who are the children of young victims of homicides. These are reflections on timeless youth routes, as death and mourning are everyday experiences that span generations, marking the peripheries of Brazilian cities through their pain and the feelings of loss of people who made up their cycles of affections. Therefore, they are affective memories of young people who, because they live little with their deceased parents, can, on the one hand, be marked by longing or suffering, and on the other hand, memories crossed by forgetfulness and indifference, thus demarcating the singularity of juvenile crossings.
Keywords:
Youths; Homicide; Experience; Trajectories; Recognition.
Recebido para publicação em 06/07/2020
Aceito em 19/02/2021