Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 2, jul./out., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.2.a06
ISSN: 2318-4620
A concepção de classe social segundo Nicos Poulantzas:
a “nova pequena burguesia”
As novas formas de execução do trabalho em todos os setores da vida econômica, graças à introdução das tecnologias de informação, de comunicação e de inteligência e à adoção de novas técnicas de gerenciamento do processo de produção e da prestação de serviços, não só transformaram a natureza do trabalho e definiram o novo perfil do trabalhador do século XXI como também desestruturaram os mercados de trabalho e redefiniram as posições de milhões de trabalhadores na estrutura econômica das sociedades capitalistas mais desenvolvidas. Provocaram a elevação dos níveis de desemprego e subemprego em todos os países do mundo e o aparecimento de novas relações de trabalho — trabalho em regime de tempo parcial, contrato temporário de trabalho, banco de horas, contrato de prestação de serviços, trabalho em domicílio, terceirização — num processo de desconstrução das conquistas trabalhistas do século passado e surgimento de novos e variados desafios. As novas condições de trabalho, tecnológicas e organizacionais, reduziram muito significativamente o número de trabalhadores industriais, ao mesmo tempo em que aumentaram, também muito significativamente, o número de trabalhadores cujas posições no processo de produção determinaram, segundo alguns autores, práticas políticas e ideológicas típicas da pequena burguesia tradicional, razão pela qual receberam a denominação de nova pequena burguesia, embora sejam trabalhadores assalariados. Mas, qual a estrutura determinante das classes sociais?
Poulantzas (1936-1979) assistiu ao desenvolvimento da estrutura econômica do capitalismo, muito embora não tenha assistido aos efeitos da reestruturação produtiva que se iniciou na década de 70 a partir da introdução das tecnologias de informação e de novas técnicas de gerenciamento do processo de trabalho. No entanto, viu crescer e pôde prever o aumento considerável do número de trabalhadores que não mais são operários, como também não são proprietários dos meios de produção. Mas não viu surgir, no final do século XX e nas duas primeiras décadas do século XXI, um grande número de mini e pequenos empreendedores, proprietários dos meios de produção, como consequência da intensificação do processo de terceirização da produção e, ao mesmo tempo, da significativa elevação do desemprego, isto é, do mercado informal de trabalho, cuja existência e, sobretudo, sobrevivência se contrapõem a um dos pilares do próprio marxismo. Evidentemente, Poulantzas quis apenas responder à questão que lhe pareceu fundamental: quem são esses trabalhadores assalariados? A qual classe pertencem? Quais suas práticas políticas e ideológicas? Teriam posições políticas e ideológicas próprias? Se as têm, sua existência negaria a contradição fundamental da estrutura econômica tal como apontada pelo marxismo ortodoxo, isto é, pelo conjunto da obra de Marx. E suas respostas, para parafrasear Thompson (1981), o conduziram “a um planetário de erros”.
Quanto ao segundo grupo de trabalhadores, trabalhadores autônomos e proprietários dos meios de produção, o esquema teórico de Poulantzas não lhe permitiu e não lhe permitiria vislumbrar não só o seu surgimento, como muito menos a sua sobrevivência, ao considerar as classes sociais como simples consequência da estrutura social cuja existência e sobrevivência se sobrepõem à vontade humana. E, no entanto, as classes sociais são conjuntos humanos, isto é, homens e mulheres cujas ações produzem a história e, portanto, a estrutura social a partir da compreensão que dela têm e da qual surgem as alternativas de realização de seus interesses e expectativas. As classes sociais resultam, portanto, das ações humanas e seus lugares na estrutura social são definidos pelo dinamismo que nela imprimem.
“Nova pequena burguesia” é a expressão utilizada por Poulantzas para designar os novos conjuntos salariais — empregados em escritórios, técnicos, supervisores, funcionários públicos etc. — que se desenvolveram ao longo do processo de reprodução ampliada do modo de produção capitalista e que, dada a especificidade de sua posição no sistema de relações de produção, não podem ser incluídos nem na classe operária, nem na classe burguesa e também não poderiam ser incluídos na pequena burguesia, se considerados apenas os critérios econômicos para a delimitação das fronteiras entre as classes sociais. Não pertencem à classe operária porque realizam trabalho improdutivo; não pertencem à classe burguesa porque não são proprietários dos meios de produção; não pertencem à pequena burguesia porque são assalariados. Formariam, então, uma nova classe social? Repensar afirmativamente essa questão seria sustentar que o capitalismo, ao se desenvolver, produz novas classes sociais, o que implicaria colocar problemas teóricos reais extraordinariamente difíceis. Como resolver a questão da filiação de classe desses novos conjuntos salariais?
“As classes sociais”, conceitua Poulantzas, “são conjuntos de agentes sociais determinados principalmente, mas não exclusivamente, por seu lugar no processo de produção, isto é, na esfera econômica” (POULANTZAS, 1975, p. 13). Isto é: a determinação estrutural das classes sociais não se reduz às posições econômicas dos agentes sociais no processo de produção. Critérios estritamente econômicos não bastam para explicar a determinação estrutural das classes sociais, embora sejam os critérios fundamentais, na medida em que determinam as possibilidades de sua organização política em torno de seus interesses de classe, polarizados entre os interesses das classes fundamentais do modo de produção capitalista, a classe burguesa e a classe operária.
As classes sociais definem-se por suas práticas econômicas — relações de produção — e por suas práticas políticas e ideológicas — relações sociais de produção — que podem ou não corresponder às relações de produção. Existe correspondência de relações nos três níveis, ou instâncias, ou estruturas regionais da estrutura do todo: a econômica (estrutura determinante em última instância), a política e a ideológica só no que diz respeito às duas classes fundamentais. Por isso, as demais classes não podem ser definidas senão por suas práticas econômicas, políticas e ideológicas referidas àquelas das classes fundamentais. Os critérios econômicos, políticos e ideológicos são, pois, decisivos na análise da determinação estrutural daquelas classes que não se situam na contradição fundamental da estrutura econômica, como a nova pequena burguesia e a pequena burguesia tradicional que, apesar de ocuparem posições diferentes nas relações de produção, têm o mesmo pertencimento de classe, segundo Poulantzas. Constituem a pequena burguesia.
Trata-se, portanto, de se analisar a determinação estrutural da pequena burguesia, isto é, o lugar que ocupa na divisão social do trabalho, em sua relação com a burguesia e com a classe operária. No entanto, se a posição na estrutura econômica não é critério suficiente para definir uma classe social, é o critério principal, razão pela qual a análise se inicia com a definição de critérios econômicos que nos permitam delimitar as fronteiras entre a pequena burguesia tradicional e a nova pequena burguesia, constituidoras da pequena burguesia, e a classe operária.
Os limites estritamente econômicos entre a nova pequena burguesia e a classe operária são demarcados com a utilização dos conceitos de trabalho produtivo e trabalho improdutivo, com os quais se explicam, a partir de Marx (1971), a relação capitalista básica e o caráter contraditório da acumulação capitalista, muito embora o próprio Marx não tenha estabelecido uma distinção, em termos de estrutura de classes, entre trabalhadores produtivos e improdutivos. O fulcro da discussão em torno da análise da determinação estrutural da nova pequena burguesia reside, dentre outros problemas, nas diferentes interpretações desses conceitos e, sobretudo, em sua utilização para delimitar fronteiras entre trabalhadores assalariados nas sociedades capitalistas.
Para Marx, o trabalho é produtivo se produzir mais-valia para o capitalista, e é improdutivo “se não for trocado contra o capital, mas diretamente contra a renda, isto é, salários ou lucro” (MARX, 1969, p. 157). A distinção entre trabalho produtivo e improdutivo não se alicerça nas características materiais do trabalho ou produto. Desde que produza mais-valia, isto é, desde que valorize o capital, o trabalho é produtivo e todos os assalariados que contribuem para a produção de mercadorias para um capital, desde o operador até o gerente ou engenheiro, devem ser incluídos na categoria de trabalhador produtivo.
Por contraposição, realizam trabalho improdutivo aqueles cujas tarefas não são produtivas de valor, embora delas dependa a realização da mais-valia. São tarefas que, por se inscreverem no processo de circulação de mercadorias, não podem ser consideradas produtivas em nenhuma circunstância; não pertencem ao processo de produção de valor; pertencem aos “faux frais” da produção capitalista. Porque aqui Marx ressalta o caráter não material do trabalho para conceituá-lo como improdutivo, fica aparentemente aberta a possibilidade de se considerar como produtivo apenas o trabalho implicado no processo de produção material de mercadoria. No entanto, a insistência de Marx ao afirmar que a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo não deriva do caráter material do trabalho, mas da “forma social definida, as relações sociais de produção, dentro das quais o trabalho se realiza” (MARX, 1969, p. 157), não deixa muita margem à discussão: é produtivo todo trabalho produtor de mais-valia, realizado ou não na esfera da produção material de mercadorias.
Não obstante a importância desses conceitos para se conhecer melhor o processo de expansão do capital, o próprio Marx minimizou seu alcance como instrumento para a compreensão dos diferentes posicionamentos sociais na divisão social do trabalho ao reunir sob a mesma denominação de “trabalhadores assalariados” tanto os trabalhadores na produção quanto os empregados comerciais, submetidos da mesma maneira ao capital e contribuindo para a sua expansão. É o que se pode deduzir desta passagem de O Capital:
Num sentido, esse empregado comercial é um trabalhador assalariado como outro qualquer. Em primeiro lugar, seu trabalho é comprado com o capital variável do negociante, não com o dinheiro despendido como renda, e consequentemente não é comprado para o serviço particular, mas com o fim de expandir o valor do capital adiantado para ele. Em segundo lugar, o valor de sua força de trabalho, e por conseguinte seus salários, são determinados como os dos demais assalariados, isto é, pelo custo da produção e reprodução de sua força de trabalho específica, não pelo produto de seu trabalho. Assim como o trabalho não pago do trabalhador cria imediatamente mais-valia para o capital produtivo, do mesmo modo o trabalho não pago do trabalhador assalariado comercial garante uma parcela dessa mais-valia para o capital do negociante. (MARX, 1971, p. 337-338).
Apesar disso, Poulantzas utiliza o conceito de trabalho produtivo para distinguir a classe operária dos novos conjuntos salariais — aí incluídos não só os empregados de comércio, mas também os empregados dos bancos, dos escritórios e serviços, os funcionários públicos etc., “em suma, a quem se costuma chamar empregados de ‘colarinho branco’ ou terciários” (POULANTZAS, 1975, p. 209), situando-os diferentemente no sistema de relações de produção e, daí, na divisão social do trabalho. Para ele,
é trabalho produtivo, no modo de produção capitalista, aquele que produz a mais-valia ao reproduzir diretamente os elementos materiais que servem de substrato à relação de exploração: aquele, pois, que intervém diretamente na produção material produzindo valores de uso que aumentam as riquezas materiais (POULANTZAS, 1975, p. 235).
Isto é: o que distingue o trabalho produtivo do improdutivo é o caráter material do trabalho produtor de mais-valia. Por conseguinte, todos aqueles trabalhadores assalariados cujas tarefas não estão implicadas diretamente na produção material de mercadorias devem ser considerados trabalhadores improdutivos e, desde já, excluídos da classe operária.
Mas, dizíamos, os critérios econômicos não são suficientes para compreender aqueles grupos cuja posição nas relações econômicas não é dada pela contradição fundamental no processo de produção. Porque “as classes só existem na luta de classes”, ou seja, não existem senão na expressão da oposição que as constitui como tais, definem-se por suas práticas políticas e ideológicas que podem ou não corresponder a seus interesses objetivos nas diferentes fases de desenvolvimento da estrutura econômica.
Pode-se dizer, assim, que uma classe social define-se pelo seu lugar no conjunto das práticas sociais, isto é, pelo seu lugar no conjunto da divisão social do trabalho que compreender as relações políticas e as relações ideológicas. A classe social é, neste sentido, um conceito que designa o efeito de estrutura na divisão social do trabalho (as relações sociais e as práticas sociais). Este lugar abrange assim o que chamo de determinação estrutural de classe, isto é, a própria existência da determinação da estrutura — relações de produção, lugares de dominação-subordinação política e ideológica — nas práticas de classe: as classes só existem na luta de classes. (POULANTZAS, 1975, p. 14).
A referência às relações políticas e ideológicas é sempre necessária para se compreender os lugares das classes sociais na divisão social do trabalho. Também a burguesia e a classe operária só podem ser pensadas a partir de suas práticas políticas e ideológicas. No entanto, no caso da nova pequena burguesia, a análise dessas relações requer um cuidado especial na medida mesma de sua situação real na luta de classes: por não estar no âmago das relações de exploração dominantes de extração direta da mais-valia, “a nova pequena burguesia sofre a polarização que produz distorções-adaptações muito complexas nas relações políticas e ideológicas em cujo seio se situa.” (POULANTZAS, 1975, p. 225). São essas distorções-adaptações que a definem: as fronteiras entre ela e a classe operária só serão precisamente delimitadas considerando-se seus lugares de dominação-subordinação política e ideológica nas relações de classes, mesmo quando se trata daqueles conjuntos salariais que as relações econômicas excluem desde já da classe operária por realizarem trabalho improdutivo, como os empregados de escritório, os funcionários públicos etc.
A identificação desses lugares de dominação-subordinação política e ideológica assume importância decisiva quando se considera o trabalho de supervisão e direção do processo produtivo que, como se sabe, para Marx, tem dupla natureza: é trabalho produtivo porque é trabalho de coordenação e unificação do processo de produção, portanto, trabalho necessário para a produção da mais-valia. Ao mesmo tempo, é trabalho improdutivo, não apenas requerido pelo processo técnico de produção, mas pela divisão social do trabalho.
O trabalho de supervisão surge necessariamente em todos os modos de produção baseados na antítese entre o trabalhador, como produtor direto, e o dono dos meios de produção. Quanto maior esse antagonismo, maior o papel desempenhado pela supervisão. Daí alcançar ele o seu auge no sistema escravista. Mas é indispensável também no modo de produção capitalista, já que o processo de produção nele é simultaneamente um processo pelo qual o capitalista consome força de trabalho. (MARX apud POULANTZAS, 1975, p. 245).
Neste último sentido, o trabalho de supervisão e direção é uma exigência do capital e todos aqueles que o realizam, realizam funções do capital, isto é, a função de extrair a mais-valia dos operários e a de exercer total controle sobre o processo produtivo para aumentar a produtividade do trabalho e, daí, as taxas de mais-valia. Isso implica afirmar que engenheiros e técnicos de nível superior, aos quais são atribuídas estas funções na fábrica moderna, “reproduzem diretamente, no processo de produção em si, as relações políticas entre a classe capitalista e a classe operária.” (POULANTZAS, 1975, p. 247). Sua situação é específica: ao mesmo tempo em que são dominados pelo capital, dominam politicamente a classe operária, à qual, por esta razão, não podem pertencer.
O desenvolvimento da estrutura hierárquica da fábrica moderna e, daí, o recrudescimento do despotismo de fábrica, isto é, do controle da gerência sobre o processo produtivo, também se compreende como expressão da dominação ideológica sobre a classe operária, cujo eixo central é a divisão trabalho manual/trabalho intelectual. A hierarquização funcional nas empresas capitalistas, e também nas instituições superestruturais do Estado moderno, fundamenta-se no princípio da aplicação do critério de qualificação profissional para a distribuição de cargos e responsabilidades. A qualificação profissional é mensurada cada vez mais pela comprovação (via diploma) da aquisição do saber técnico-científico nos bancos escolares e, sobretudo, nas universidades. Porque estão desprovidos desse saber, operários e empregados subalternos estão condenados à execução de tarefas simplificadas e repetitivas, cujo significado técnico desconhecem. Para executá-las bem, basta a habilidade prática, manual, adquirida no dia a dia do trabalho. A partir daí, são levados a reconhecer a própria incapacidade de exercer o poder de controle sobre o processo produtivo e de organizar a produção, poderes que transferem “naturalmente” aos engenheiros e técnicos de nível superior — enquanto portadores daquele saber e responsáveis pelas aplicações tecnológicas dos conhecimentos científicos ao processo de trabalho —, no exercício dos quais, no entanto, estarão produzindo meios sempre mais sofisticados de exploração e opressão sobre a classe operária. Engenheiros e técnicos de nível superior são, para retomar as expressões de Gramsci, “os intelectuais orgânicos da burguesia”, “os intelectuais modernos”, os “funcionários da ideologia.” Sua presença no interior da fábrica significa a valorização ideológica do trabalho intelectual e a desqualificação do trabalho manual. Disso se conclui: todos aqueles que, no exercício de suas funções, contribuem para a legitimação ideológica da subordinação do trabalho ao capital pela legitimação da divisão trabalho manual/trabalho intelectual não pertencem à classe operária, pois que
essa divisão está diretamente ligada ao monopólio do saber, forma de apropriação capitalista dos conhecimentos científicos e de reprodução das relações ideológicas de dominação-subordinação, pela perene exclusão do lado subordinado daqueles que não sabem, ou que se supõe “não saberem” (POULANTZAS, 1975, p. 257).
A identificação dos lugares de dominação-subordinação política e ideológica nas relações de classes é menos problemática quando se trata dos assalariados não produtivos. Empregados de escritório e do comércio, se já estão excluídos da classe operária por realizarem trabalho improdutivo, a ela também não podem pertencer porque, embora não exerçam funções de dominação política e ideológica, “estão associados à legitimação dos poderes que a direção das empresas exerce sobre os operários” (POULANTZAS, 1975, p. 296).
Com relação ao corpo de funcionários do Estado, a situação é semelhante. Não pertencem à classe operária não só porque realizam trabalho improdutivo. A ela não pertencem porque, mesmo no exercício de funções subalternas,
participam, somente como simples executantes (o que os distingue dos “vértices” burgueses dos aparelhos aos quais eles próprios estão submetidos e subordinados), das tarefas de inculcação ideológica e de repressão política sobre as classes dominadas, e principalmente sobre a vítima principal, a própria classe operária (POULANTZAS, 1975, p. 297).
A citação também é esclarecedora da determinação estrutural de classe daqueles que ocupam os cargos superiores da estrutura hierárquica das instituições supraestruturais do Estado moderno, nos quais é elaborada a ideologia dominante: pertencem à burguesia.
Em resumo: os assalariados não produtivos e também aqueles que exercem funções de supervisão e direção do processo produtivo, mesmo que realizem trabalho produtivo na divisão técnica do trabalho, devem ser incluídos na nova pequena burguesia, fração de classe da pequena burguesia, na qual também se insere a pequena burguesia tradicional.
A nova pequena burguesia se diferencia da pequena burguesia tradicional pela especificidade de sua posição no sistema de relações de produção: é constituída de trabalhadores assalariados cuja reprodução depende do capitalismo monopolista, ao passo que a pequena burguesia tradicional é constituída de pequenos proprietários dos meios de produção e pequenos produtores, constantemente ameaçados pelo desenvolvimento do capitalismo monopolista. Posições diferentes na produção e na esfera da produção podem ter — e têm, neste caso específico — os mesmos efeitos no nível político e ideológico, razão pela qual nova pequena burguesia e pequena burguesia tradicional constituem uma só classe.
A nova pequena burguesia se divide em frações de classe que refletem diferenciações econômicas importantes em seu próprio seio. Em função da conjuntura, essas frações podem desenvolver práticas políticas e ideológicas divergentes das de outras frações da classe de que dependem. Entretanto, apesar de todas as diferenciações econômicas e das eventuais divergências políticas, as frações de classe da nova pequena burguesia e a pequena burguesia tradicional constituem uma só classe. A unidade entre elas é dada pelo subconjunto ideológico de que são portadoras. (Porque a pequena burguesia não tem posição política autônoma a longo prazo, não se pode falar de ideologia pequeno-burguesa, mas apenas de subconjunto pequeno burguês, reservando-se o termo ideologia para identificar as práticas políticas e ideológicas das classes fundamentais politicamente opostas “até o fim”.)
O subconjunto ideológico pequeno-burguês resulta dos efeitos da ideologia burguesa (dominante) e da ideologia operária sobre as aspirações próprias dos agentes pequeno-burgueses relativamente à sua determinação específica de classe. Em outras palavras, o subconjunto pequeno-burguês é um terreno de luta e um campo de batalha particular entre a ideologia burguesa e a ideologia operária, mas com a intervenção própria dos elementos especificamente pequeno-burgueses. Os traços ideológicos principais da pequena burguesia são: individualismo pequeno-burguês, inclinação ao “statu quo” e temor à revolução, mito da promoção social e aspiração ao status burguês, crença no Estado neutro acima das classes, instabilidade política e tendências a apoiar Estados fortes e bonapartismos, formas de rebelião do tipo “jacquerie” pequeno-burguesa (POULANTZAS, 1975).
A pequena burguesia não tem posição de classe autônoma a longo prazo e não pode ter organizações políticas próprias que representem seus interesses específicos. Sua adesão a partidos políticos — aos partidos das classes sociais fundamentais — depende essencialmente das estratégias políticas desses partidos para conquistá-la nas diferentes conjunturas. Hoje, a tendência política da pequena burguesia é a da polarização em direção a posições de classe proletárias, dada a proletarização de suas posições objetivas na estrutura das relações de produção.
Para Poulantzas, como vimos, as classes são o resultado de um conjunto de estruturas e de suas relações e, por isso mesmo, não podem ser concebidas como existindo num único nível da estrutura da formação social. As classes resultam da articulação dos níveis econômico, político e ideológico nas diferentes conjunturas. São, de um lado, determinadas pelas relações de produção, isto é, combinações específicas de agentes e das condições técnicas e materiais de produção — a estrutura econômica, que define o lugar dos agentes nas relações de produção — e, de outro lado, pelas relações sociais de produção que se inscrevem nas estruturas política e ideológica. É preciso lembrar que “as relações que constituem cada nível nunca são simples, mas antes sobredeterminadas pelas relações dos outros níveis” (POULANTZAS, 1971, p. 9). Da totalidade objetiva das relações econômicas, políticas e ideológicas resultam as classes sociais, cujas práticas efetivas são por ela determinadas.
Não se trata, segundo um antigo equívoco, de uma “estrutura” econômica que designa, sozinha, de um lado os lugares, e de outro uma luta de classes que se estende ao domínio político e ideológico: tal equívoco toma atualmente com frequência a forma de uma distinção entre “situação (econômica) de classe” de um lado, e posições político-ideológicas de classe por outro lado. A determinação estrutural de classe refere-se desde já à luta econômica, política e ideológica de classe, expressando-se todas essas lutas pelas posições de classe na conjuntura (POULANTZAS, 1975, p. 16).
Os interesses objetivos de classes são determinados pelo lugar objetivo de classe no processo de produção — a determinação objetiva de classe –, mas isso não significa que haja correspondência necessária entre posições de classes nas lutas concretas de classes e interesses objetivos de classes. As posições de classe podem diferir de seus interesses objetivos, isto é, as posições políticas e ideológicas de classe não são redutíveis à posição econômica de classe. São formas de relações de classes. No entanto, as práticas políticas e ideológicas de classe são efeitos da determinação objetiva de classe, do lugar objetivo de classe no processo de produção.
Dizer, por exemplo, que existe uma classe operária nas relações econômicas implica necessariamente um lugar específico desta classe nas relações ideológicas e políticas, mesmo que esta classe possa, em certos países e em certos períodos históricos, não ter uma “consciência de classe” própria em uma organização política autônoma (POULANTZAS, 1975, p. 17).
Em outras palavras: as práticas políticas e ideológicas são efeitos da determinação objetiva de classe, mas a ela não são redutíveis.
As explicações teóricas elaboradas por Poulantzas a partir da obra de Marx, além de muito complicadas, nos colocam extraordinárias dificuldades. A primeira: para Marx — todos sabem —, “O concreto é concreto por que é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade” (MARX, 1957, p. 165). O significado dessa afirmação é suficiente para invalidar a operação intelectual de decomposição do real concreto em seus elementos: o econômico, o político e o ideológico, constituidores de instâncias relativamente autônomas, postas ao lado, por cima e embaixo umas das outras, a instância econômica determinando as demais em “última instância”, e as classes sociais definindo-se em cada uma delas.
Digamos, antecipadamente, que tudo se passa como se as classes sociais fossem o efeito de um conjunto de estruturas e das suas relações, no caso concreto 1º) do nível econômico, 2º) do nível político, e 3º) do nível ideológico. Uma classe social pode ser identificada quer ao nível econômico, quer ao nível político, quer ao nível ideológico, e pode pois ser localizada em relação a uma instância particular. No entanto, a definição de uma classe enquanto tal e a sua conceptualização reporta-se ao conjunto dos níveis dos quais ela constitui o efeito (POULANTZAS, 1971, p. 69).
Ora, Poulantzas esquece que a totalidade não é composta, é complexa. Não se trata de se estabelecer diferenças, mas sim de se captar a trama, o tecido das mediações e determinações que constitui a totalidade em processo. Considerando a totalidade “composta”, fica difícil depois fazer a articulação entre as partes, a não ser que se estabeleçam critérios, sempre arbitrários, de articulação dos elementos de cada uma das estruturas e de articulação das diferentes estruturas na estrutura do todo. Como afirma E. P. Thompson, em A miséria da teoria – ou um planetário de erros: “E ficamos nessa lengalenga, pois as permutas possíveis de ‘estrutura’, ‘níveis’, ‘instâncias’, ‘últimas instâncias’, ‘autonomia relativa’, ‘especificidade’”. (THOMPSON, 1981).
É esta postura teórico-metodológica que possibilita a Poulantzas estabelecer critérios econômicos, políticos e ideológicos com os quais pretende delimitar as fronteiras entre as classes. O que disso resulta é um conceito indeterminado de classe, segundo o qual as classes são efeitos da estrutura econômica como também das estruturas política e ideológica. E o que é mais grave: tudo isso nos leva a pensar a classe como um atributo que se define por critérios.
[...] seria conveniente ressaltar que, neste tipo de análise, o fato de pertencer ou não a uma classe não pode ser visto separadamente do conjunto de relações que estruturam a situação de classe. A classe não é um atributo que se define por critérios, por mais sutis que eles sejam, ainda que incorporem “dimensões” políticas e ideológicas. Ao contrário, como expressamente diz Poulantzas, em outros textos de seu trabalho, é preciso compreender as classes por seu lugar na divisão social do trabalho. Esta resulta, por sua vez, do processo social de produção, que, nas sociedades capitalistas “significa ao mesmo tempo e num mesmo movimento, divisão em classes, exploração e luta de classes” (CARDOSO, 1977, p. 139).
A segunda dificuldade: para fugir do economicismo (que reduz as classes sociais a efeitos da matriz econômica — as classes existindo “em si”), Poulantzas acaba apresentando uma análise da pequena burguesia na qual atribui às posições políticas e ideológicas dos agentes econômicos o primado na determinação de classe. Isso, evidentemente, subverte a teoria marxista. Para Poulantzas, a nova pequena burguesia e a pequena burguesia tradicional, apesar das posições diferentes que ocupam nas relações de produção, constituem, no entanto, uma só classe social. Sua unidade não é dada pelas relações de produção, mas por práticas políticas e ideológicas nas diferentes conjunturas; se bem sejam efeitos das posições econômicas, são as práticas políticas e ideológicas que definem a classe da pequena burguesia e não as suas posições econômicas.
Para Marx, as classes sociais são determinadas pelas relações de produção que incluem, a um só tempo e num mesmo movimento, as relações de produção e as relações sociais de produção, que Poulantzas distinguiu e distribuiu nos diferentes níveis da estrutura social. Dessa operação intelectual resulta a conceituação de classes como efeitos das estruturas, existindo à parte delas — como relações sociais —, embora a elas subordinadas. “[...] a classe social não pode ser teoricamente considerada como uma estrutura regional ou parcial da estrutura global, do mesmo modo, por exemplo, que as relações de produção, o Estado ou a ideologia constituem efetivamente estruturas regionais” (POULANTZAS, 1971, p. 75). Repetindo: para Marx, as classes sociais são determinadas pela matriz econômica: sua origem e formação como forças sociais são determinadas pelas relações sociais de produção. E não existe, nessa afirmação, nenhum perigo de economicismo, pois como lembra Fernando Henrique Cardoso:
não existe o fantasma do economicismo na compreensão das classes sociais como categorias economicamente determinadas: elas, como conceito, só se aplicam em situações nas quais a distribuição dos homens na produção é o critério fundamental — desta situação ou modo de produção particular — para a estrutura das camadas da população (CARDOSO, 1977, p. 138).
Esta análise da determinação estrutural de classe da pequena burguesia — segundo a qual são as práticas políticas e ideológicas que a definem — resulta do privilegiamento que Poulantzas concede à estrutura política na determinação da estrutura total e, daí, da estrutura de classes.
Numa concepção anti-historicista da problemática original do marxismo, devemos situar o político na estrutura de uma formação social, por um lado, enquanto nível específico, por outro, contudo, enquanto nível crucial em que se refletem e se condensam as contradições duma formação, a fim de compreender exatamente o caráter anti-historicista da proposição segundo a qual é a luta política de classes que constitui o motor da história. (POULANTZAS, 1971, p. 39).
As classes sociais só existem na luta de classes, afirma Poulantzas. A luta de classes não se reduz às lutas econômicas. São lutas políticas que concentram os níveis de luta de classes. “Opondo-se a uma concepção evolucionista de ‘estádios’ de luta — primeiro econômico, em seguida político — a luta política deve deter o primado sobre a luta econômica — é o papel do partido” (POULANTZAS, 1971, p. 105). Ora, se as classes só existem na luta de classes e se estas lutas, enquanto lutas políticas, são organizadas pelo partido, fica claro que as classes não só são efeitos das estruturas como efeitos de sua própria organização por um agente que lhes é externo: o partido. Daí poder-se, como o faz Adam Przeworski, afirmar que não há luta-de-classe, mas luta-sobre-classes. (PRZEWORSKI, 1977). Para fugir do economicismo e do historicismo, não estaríamos caindo no politicismo.
A terceira dificuldade: concebendo as classes sociais como efeitos das estruturas, Poulantzas as considera como encarnações particulares de princípios estruturais fundamentais. O resultado de sua postura teórico-metodológica é, obviamente, a supressão do sujeito da história, isto é, a desistoricização da própria história. As classes sociais são “agidas” por um sujeito trans-histórico: a estrutura, cuja “vontade” é determinada pelas contradições em sua própria personalidade. A história deixou de ser um processo humano em realização. É realização de estruturas. Como afirma E. P. Thompson:
Nenhuma categoria histórica foi mais incompreendida, atormentada, transfixada e des-historizada do que a categoria de classe social: uma formação histórica auto-definidora, que homens e mulheres elaboram a partir de sua própria experiência de luta, foi reduzida a uma categoria estática, ou a um efeito de uma estrutura ulterior, das quais os homens não são os autores mas os vetores. Althusser e Poulantzas não só fizeram à história marxista esse mal, como também queixaram-se ainda de que a história (de cujos braços arrancaram esse conceito) não tem uma teoria acabada de classe. O que eles, e muitos outros, de todos os matizes ideológicos, não compreendem é que não é, e nunca foi tarefa da história elaborar esse tipo de teoria inelástica. E se o próprio Marx teve uma prioridade metodológica suprema, esta foi, precisamente, a de destruir a fabricação de teorias não-históricas desse tipo. (THOMPSON, 1981, p. 57).
Com Poulantzas, o real fica esvaziado de seu conteúdo histórico (humano) — as classes sociais no processo de sua formação — e o pensamento abraçou o formalismo.
CARDOSO, Fernando Henrique . Comentário: althussertanismo ou marxismo? A propósito do conceito de classe em Poulantzas. In: ZENTENO, R. B. As classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
MARX, Karl. Contribuition à la critique de l’economie politique. Paris: Ed. Sociales, 1957.
_____. Theories of surplus value. parte 2. Londres: Lawrence & Wishart, 1969.
_____. O Capital — Crítica da Economia Política. livro 3, vol. 56. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971.
POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. Porto: Portucalense Editora, 1971.
_____. As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.
PRZEWORSKI, Adam. O processo de formação das classes. In: Revista Dados, Rio de Janeiro, n. 16, 1977.
THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria — ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
Resumo:
Este artigo tem como objetivos: 1) apresentar e analisar as explicações teóricas elaboradas por Nicos Poulantzas – um dos mais renomados representantes do marxismo estrutural – sobre as classes sociais e que o levaram a denominar de “nova pequena burguesia” os trabalhadores assalariados que não são operários e também não são proprietários dos meios de produção, mas cujas práticas políticas e ideológicas tendem a ser iguais ou similares às da pequena burguesia tradicional. Mas, segundo Marx, nas sociedades capitalistas, a estrutura determinante das classes sociais não é a estrutura econômica? 2) demonstrar que as posturas teórico-metodológicas do marxismo estrutural, em especial, as de Poulantzas, suprimem o sujeito da história, pois, para seus autores, a história deixou de ser um processo humano em realização para tornar-se realização de estruturas. E, no entanto, este é um fato inelutável: indivíduos, seres humanos, pessoas, com suas motivações, interesses, preferências, crenças, atitudes e comportamentos são os produtores da história. Produzem-na, é verdade, em condições dadas: nas condições produzidas e legadas por outros indivíduos, a partir das quais deliberam acerca de suas próprias vidas, criando novas condições de acordo com as escolhas de alternativas que puderam efetivar; 3) e reafirmar que, desvirtuando as explicações genuínas de Marx, o marxismo estrutural não oferece contribuição alguma para a investigação, análise e explicação da realidade social que, esvaziada de conteúdo histórico, tentou retratar com o formalismo de um mundo de definições e subdefinições.
Palavras-chave:
Estrutura econômica; classe social; trabalho produtivo e improdutivo; luta de classes; marxismo estrutural.
Abstract:
This article aims to: 1) present and analyze the theoretical explantions elaborated by Poulantzas – one of the most renowned representatives of structural marxismo – about the social classes and which led him to call “new small bourgeoisie” salarieda workers who are not workers and also do not own the means of production, but whose political and ideological practices tend to be equal or similar to those of the traditional bourgeoisie due to their special positions in the economic structure. But, according to Marx, in capitalist societies the determining structure of social classes is , because, fornot the economic structure?; 2) to demonstrate that the theoretical and methodological postures of structural Marxism, especially those of Poulantzas, suppress the subject of history, because, for its authors, history has ceased to be a human process in realiazation to become a realization of structures. And yet this is na inescapable fact: individuals, human beings, people, with their motivations, interests, preferences, beliefs, atitudes and behaviors are the producers of history. They produce it, it is true, under given conditions: in the conditions produced and bequeathed by other individuals, from which they deliberate about their own lives, creating new conditions according to the choices of alternatives that could take effect; 3) and to reaffirm that, by distorting Marx’s genuine explanations, structural Marxism does not offer any congtribution to the investigation, analysis and explanation of the social reality that, emptied of historical contente, tried to portray with the formalism of a world of definitions and subdefinitions.
Keywords:
Economic structure; social class; productive and unproductive work; class struggle; structural Marxism.
Recebido para publicação em 28/07/2020
Aceito em 08/03/2021