Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 1, mar./jun., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.1.d08
ISSN: 2318-4620

 

 

A escrita de mulheres como espaço de elaboração de traumas coletivos:
uma análise das obras Baratas, de Scholastique Mukasonga, e Meio Sol Amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie

 

Junia Saraiva OrcID
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil
juniamendes-barbosa@hotmail.com

 

Introdução

Os países africanos Ruanda e Nigéria possuem violentas marcas de guerra em sua história, ambos foram assolados por disputas internas nas quais o próprio povo, segregado por etnias, entrou em conflito, disseminando o ódio e culminando na morte de milhares de pessoas.

Em Ruanda, o povo era dividido entre as etnias tutsis, hutus e pigmeus, a grande maioria da população do país era registrada como da etnia hutus. No ano de 1994, foi orquestrado um ataque contra o povo da etnia tutsis, dizimando grande parte da população ruandesa.

De forma semelhante, na Nigéria, o povo era dividido entre diversas etnias; o grupo étnico mais numeroso eram os hauças-fulani, ocupavam o norte do país e faziam parte da religião muçulmana; o leste da Nigéria era ocupado principalmente pelo grupo étnico igbo, e o oeste era território dos iorubas; outros diversos grupos étnicos menores também ocupavam essas regiões nas quais a grande maioria professava a fé cristã. No ano de 1967, o país foi assolado por uma guerra civil, conhecida como a guerra de Biafra, cujas motivações étnica, religiosa e política causaram uma ação separatista de uma região localizada ao sudeste da Nigéria, onde a população era composta por pessoas do grupo étnico igbo. Os conflitos nos dois países foram fundamentalmente impulsionados por discursos de ódio entre os principais grupos étnicos.

Nesses contextos, são narradas as obras Baratas (2018), da autora ruandense Scholastique Mukasonga, que conta sua própria experiência durante o genocídio ocorrido em seu país, no ano de 1994; e Meio sol amarelo (2008), da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, na qual se narra a história da violenta guerra de Biafra. As duas obras revisitam as memórias da violência desses conflitos que ainda assolam o povo de Ruanda e da Nigéria, as escritoras rememoram suas próprias memórias assim como as dos seus antepassados.

A autora Scholastique Mukasonga nasceu em 1956, em Ruanda. Desde sua infância, conviveu com as consequências do ódio incitado contra sua etnia, os tutsis. No ano de 1994, a escritora perdeu grande maioria de seus familiares em um sanguinário genocídio que vitimou cerca de oitocentas mil pessoas em Ruanda. Dez anos após a tragédia, a autora começa a escrever seu livro mais conhecido. Baratas, nome que dá título à obra, remete à forma como os tutsis eram chamados antes do genocídio, conforme aponta o trecho a seguir: “Eles nos chamavam de inyenzis, as baratas. A partir de então em Nyamata, seríamos todos baratas. Eu era uma inyenzis.” (MUKASONGA, 2018, p. 47). Essa era uma das inúmeras formas encontradas para que a população tutsi fosse intimidada e subjugada. Ao chamá-los de baratas, os inimigos os marcavam como seres desprezíveis que deveriam ser exterminados como se fossem humanos de segunda categoria. A autora demonstra essa questão em outro trecho: “Eu não era apenas uma tutsi, mas uma inyenzi, uma dessas baratas lançadas para fora da Ruanda habitável, talvez para fora do gênero humano.” (MUKASONGA, 2018, p. 87)

Em sua obra autobiográfica, a autora tece sua narrativa a partir de suas próprias memórias no momento em que decide retornar ao seu país de origem, revisitando os lugares do genocídio em uma pesarosa tentativa de compreender os acontecimentos passados. A obra é construída através de suas lembranças e por relatos de familiares próximos que sobreviveram à tragédia, como forma de resgatar a história dos que brutalmente foram silenciados.

De forma semelhante, a autora Chimamanda Ngozi Adichie, nascida em 1977, na Nigéria, resgata a memória de seus antepassados que sobreviveram à guerra de Biafra, ocorrida entre os anos de 1967 e 1970, para tecer a história da sua obra Meio sol amarelo. O nome da obra é uma alusão à bandeira do país, que posteriormente foi incorporado ao território da Nigéria. A bandeira de Biafra possuía três listras nas cores vermelha, preta e verde e, no centro da bandeira, um desenho de sol pela metade. A obra Meio sol amarelo se passa na década de 60, na Nigéria pós-independência. É uma história narrada pela personagem Olanna, uma intelectual, descendente da classe alta do país, que não se reconhece em seu núcleo familiar, ao contrário da sua irmã gêmea Kainene, que assume os negócios da família. A obra também é narrada pela personagem Ugwu, que sai de seu pequeno vilarejo para trabalhar para Odenigbo, um professor da universidade de Nsukka e noivo da personagem Olanna.

Em meio aos conflitos pessoais e familiares das personagens, a história da guerra de Biafra é contada. Posto isso, a autora humaniza, nomeia e dá voz aos verdadeiros afetados pela guerra, deslocando a visão única que geralmente a sociedade ocidental direciona ao continente africano, uma visão que enxerga apenas o legado de colonialismo e desconsidera as inúmeras guerras civis que assolaram o continente.

À vista disso, a escrita das duas autoras africanas resgata memórias e conta a história de acontecimentos brutais e violentos que marcaram seus países, de uma forma que esses horrores não sejam esquecidos e não se repitam, uma maneira de contar ao resto do mundo que a história africana também merece ser lida e escrita. Nesse sentido, o comediante e apresentador Trevor Noah, em seu livro autobiográfico Nascido do Crime (2020), no qual conta sua perspectiva de uma criança mestiça nascida em pleno Apartheid, na África do Sul, reflete sobre essa questão ao relatar a importância de se fazerem conhecidos os horrores que assolaram o continente africano da mesma maneira que a história das guerras ocidentais são conhecidas e lembradas, conforme podemos perceber no trecho de sua obra:

É comum eu encontrar ocidentais que insistem que o Holocausto foi, sem sombra de dúvida, a pior atrocidade da história humana. Foi algo terrível mesmo. Mas fico me perguntando: e as atrocidades cometidas na África, como as do Congo, também não foram terríveis? O que os africanos não têm, mas os judeus têm, é documentação. Os nazistas mantiveram registros meticulosos, tiraram fotos, fizeram filmes. E aí está a explicação de tudo. As vítimas do holocausto contam porque Hitler as contou. Seis milhões de mortos. Podemos todos verificar os números e nos horrorizar, com razão. Mas, ao analisar a história das atrocidades contra os africanos, não há números, apenas suposições. (NOAH, 2020, p. 229).

A falta de registro contribuiu para que muito da história dos países africanos se perdesse. À vista disso, podemos compreender a importância e a necessidade do povo africano em contar e registrar sua história para que, dessa forma, as vozes silenciadas por um longo tempo saiam desse lugar de esquecimento. Nesse sentido, as obras das autoras Scholastique Mukasonga e Chimamanda Ngozi Adichie cumprem um importante papel para o registro histórico dos seus países, permitindo que o continente africano apresente suas próprias narrativas, para além da visão única considerada pelo ocidente.

Nesse sentido, a autora Chimamanda Ngozi Adichie, em seu discurso para o programa Ted Talk, intitulado O perigo de uma história única (2009), relata sobre a necessidade de narrar diversos pontos de vista. A autora alega que “A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história.” (ADICHIE, 2009, n.p.).

Em outro trecho de sua palestra, a autora nigeriana relata a importância em contar, conforme o trecho a seguir:

Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para expropriar e ressaltar o mal. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida. (ADICHIE, 2009, n.p).

Além do exposto, o ato de escrever sobre uma história quase apagada e esquecida, permite que as vítimas dos bárbaros e violentos acontecimentos possam rememorar os fatos e, dessa forma, elaborar os traumas que são transmitidos através de gerações. Os traumas coletivos não elaborados contribuem para a construção de uma sociedade baseada na violência e em uma nação na qual uma ferida aberta pulsa constantemente.

Diante disso, levaremos em consideração os escritos do psicanalista Sigmund Freud, em seu texto Recordar, repetir e elaborar (2010), como base teórica para a nossa análise sobre como os países de Ruanda e Nigéria repetem, em sua história, os traumas coletivos nos quais foram constituídos enquanto nação, ao silenciar as vítimas de acontecimentos de violência e horror. À vista disso, a escrita de mulheres torna-se um caminho possível para o impedimento da repetição e para a elaboração de traumas coletivos.

A escrita de mulheres

A literatura e a construção da história foi, por um longo período de tempo, um espaço exclusivamente masculino, coube às mulheres o lugar do silêncio e da passividade. Segundo Michelle Perrot e Georges Duby, na obra História das mulheres no ocidente (1990), foi negado às mulheres o direito de ter uma própria história, considerando que as mulheres participaram, embora de forma tímida e contida, da construção histórica e literária. Entretanto, foram relegadas à invisibilidade, conforme aponta o trecho a seguir:

Escrever a história das mulheres? Durante muito tempo foi uma questão incongruente ou ausente. Voltadas ao silêncio da reprodução materna e doméstica, na sombra da domesticidade que não merece ser quantificada nem narrada, terão mesmo as mulheres uma história? (PERROT; DUBY, 1990, p. 7).

O silêncio, a lealdade e a fidelidade faziam parte do ideal feminino imposto para as mulheres. Nesse sentido, a personagem Penélope, da obra A ilíada (1996), de Homero, representou, durante um longo período, o modelo de comportamento feminino ideal a ser seguido pelas mulheres, considerada como sinônimo de submissão e fidelidade.

A mítica personagem de Homero viveu reclusa em seu palácio à espera do seu marido, Ulisses, enquanto este vivenciava grandes e heroicas aventuras, dignas de serem contadas. Algumas obras mais recentes deslocam a visão de passividade geralmente atribuída a Penélope, como é o caso da autora Ana Martins Marques, em sua obra A vida submarina (2009). Em uma sequência de poemas que levam o mesmo nome da personagem de Homero, a poetisa concede ao ato de esperar de Penélope a mesma carga da dramaticidade e heroísmo atribuídos à jornada de seu marido.

A forma como a personagem Penélope foi retratada ao longo da história revela como a sociedade imputou às mulheres um comportamento específico que as deixasse à margem de registros históricos e literários. As mulheres não podiam escrever, produzir ou realizar qualquer outro tipo de atividade acadêmica ou política, campos de legitimação e domínio considerados exclusivamente masculinos, conforme aponta a pesquisadora Norma Telles em seu ensaio Escritoras, escrita e escritura (2004):

À mulher é negada a autonomia, a subjetividade necessária à criação. O que lhe cabe é a encarnação mítica dos extremos da alteridade, do misterioso e intransigente outro, confrontado com veneração e temor. O que lhe cabe é uma vida de sacrifícios e servidão, uma vida sem história própria. Demônio ou bruxa, anjo ou fada, ela é mediadora entre o artista e o desconhecido, instruindo-o em degradação ou exalando pureza. É musa ou criatura, nunca criadora. (TELLES, 2004, p. 423, grifo da autora).

Entretanto, o discurso patriarcal, que consolidou toda uma época, não foi suficiente para silenciar completamente e abafar o impulso criador de algumas mulheres. Contudo, trilhar um caminho pela escrita ficcional foi uma tarefa constituída por diversos obstáculos. Nesse sentido, a autora Virginia Woolf, em sua obra Mulheres e ficção (2019), analisa os motivos pelos quais as mulheres escreveram ou se silenciaram em diferentes períodos de tempo, conforme trecho a seguir:

As leis e os costumes, é claro, foram em grande parte responsáveis por essas estranhas intermitências de silêncio e fala. Quando a mulher era passível, como foi no século XV, de levar uma surra e ser jogada no quarto se não se casasse com o homem escolhido pelos pais, a atmosfera espiritual não era favorável à produção de obras de arte. Quando ela se casava com seu próprio consentimento com um homem que desde então se tornava seu senhor e dono, “ao menos tal como as leis e os costumes o podiam fazer”, situação em que a mulher esteve na época de Stuart, é bem provável que ela tivesse pouco tempo para escrever, e ainda menos incentivo. (WOOLF, 2019, p. 11).

Diante disso, podemos compreender o motivo pelo qual obras escritas por homens se sobressaem na galeria dos grandes clássicos, não por possuírem qualidade literária superior às obras escritas por mulheres, mas pelo apavorante fato de não haver liberdade para que as mulheres pudessem escrever, algo conquistado recentemente. De acordo com Virginia Woolf, no séc. XIX, algumas mudanças nas leis, costumes e algumas práticas sociais, proporcionaram a liberdade, tempo livre e a instrução necessária para que as mulheres escrevessem. Foi nesse período que autoras como Emily Bronte, Charlotte Bronte e Jane Austen publicaram seus romances.

Entretanto, ainda impossibilitadas de experimentar o mundo, as obras escritas por mulheres se restringiam ao espaço íntimo de suas casas, conforme aponta Woolf:

Mesmo no século XIX, uma mulher vivia quase exclusivamente em sua casa e em suas emoções. E esses romances do século XIX, embora sejam tão extraordinários, foram profundamente marcados pelo fato de as mulheres que os escreveram serem excluídas, por seu sexo, de certos tipos de experiência. É indiscutível que a experiência exerce grande influência sobre a ficção. A melhor parte dos romances de Conrad, por exemplo, caso ele não tivesse podido ser um homem do mar, iria por água abaixo. Retire-se tudo o que Tolstói sabia sobre a guerra, como soldado, e da vida e da sociedade, como um jovem rico cuja educação o habilitava a qualquer tipo de experiência, e Guerra e Paz ficaria incrivelmente empobrecido. (WOOLF, 2019, p. 12).

Nesse sentido, segundo Michelle Perrot, escrever sobre o universo familiar, na qual já estavam habituadas, permitiu que as mulheres entrassem gradualmente no mundo da escrita, conforme aponta: “[...] elas se apropriaram progressivamente de todos os campos da comunicação e da criação: poesia, romance sobretudo, história às vezes, ciência e filosofia mais dificilmente.” (PERROT, 2005, p. 13).

Além do exposto, retornando aos escritos de Virginia Woolf sobre as mulheres e a escrita, a autora pontua a diferença na abordagem em uma obra escrita por homens e mulheres, conforme podemos perceber no trecho a seguir:

É provável no entanto que, quer na vida, quer na arte, os valores de uma mulher não sejam os mesmos de um homem. Assim, quando se põe a escrever um romance, uma boa mulher constata que está querendo incessantemente alterar os valores — querendo tornar sério o que parece insignificante a um homem, e banal o que para ele é importante. [...] Se tentássemos então sintetizar as características da ficção das mulheres no atual momento, diríamos que ela é corajosa; é sincera; não se afasta do que as mulheres sentem. Não contém amargura. Não insiste em sua feminilidade. Porém, ao mesmo tempo, um livro de mulher não é escrito como seria se o autor fosse homem. Essas características, sendo bem mais comuns do que já foram, dão até mesmo a livros medíocres um valor de verdade, um interesse por sua sinceridade. (WOOLF, 2019, p. 15; 16-17).

Diante desse contexto, a escrita de mulheres, um espaço arduamente conquistado, possui relevância no que diz respeito à representação do oprimido e dos que constantemente foram silenciados.

À vista disso, podemos considerar que as obras das autoras Chimamanda Ngozi Adichie e Scholastique Mukasonga, ao narrar relatos de um povo silenciado e reprimido, tornam-se mais significativas por se tratarem de escritas femininas, considerando que as mulheres carregam uma herança social de repressão e silenciamento. Nesse sentido, a narrativa feminina possui uma sensibilidade genuína no que diz respeito a retratar os silenciados.

As autoras Chimamanda Ngozi Adichie e Scholastique Mukasonga apresentam, em suas obras, as caraterísticas apontadas por Virginia Woolf em seu ensaio Mulheres e ficção, ao construir narrativas sensíveis que resgatam a história dos seus países. São mulheres que, através da escrita, transformam a história de seu povo.

Memória, história e elaboração

O autor Primo Levi, em sua obra É isto um homem? (1988), conta os horrores vivenciados por ele em Auschwitz, na Segunda Guerra Mundial, quando os judeus foram encarcerados em campos de concentração pelo exército nazista. Em sua obra, o autor relata as dificuldades em narrar os ocorridos do período em que esteve preso devido às condições extremas de humilhação e horror, conforme podemos perceber no trecho a seguir:

Desse modo brutal, oprimidos até o fundo, viveram muitos homens do nosso tempo; todos, porém, durante um período relativamente curto. Poderíamos, então, perguntar-nos se vale mesmo a pena, se convém que de tal situação humana reste alguma memória. (LEVI, 1988, p. 75).

Como resposta a esse questionamento, o próprio autor responde em seguida: “A essa pergunta, tenho a convicção de poder responder que sim. Estamos convencidos de que nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que todas merecem ser analisadas” (LEVI, p. 75, 1988). Primo Levi aponta para o fato que todas as histórias merecem ser narradas e, nesse sentido, as obras Meio sol amarelo e Baratas trilham um caminho quase inexplorado, no que diz respeito a contar e dar voz às vítimas das guerras e conflitos de Nigéria e Ruanda, um povo silenciado e esquecido.

O silenciamento das vítimas dos conflitos proporcionou que um projeto de apagamento da memória fosse orquestrado. De acordo com Márcio Selligman-Silva, na sua obra Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofes (2008), em Ruanda, o Estado se voltou para um “trabalho de memória” que mais se pareceu com um trabalho voltado para o esquecimento. Segundo o autor, o Estado proporcionou um diálogo raso e insuficiente acerca do genocídio que impossibilitou um trabalho em prol da recuperação da memória da mesma forma que inviabilizou os testemunhos, acarretando a dificuldade em estabelecer pontes entre os sobreviventes e a realidade.

Na Nigéria, de forma semelhante, um projeto de esquecimento do passado vigora sobre as vítimas da Guerra de Biafra, assim como sobre seus descendentes. Segundo a pesquisadora Alexandra Gomes Nunes (2016), mesmo após um longo período depois da guerra, alguém que mencione discutir abertamente as questões relacionadas à Biafra, poderia sofrer sanções do Governo. O apagamento da memória do passado não só dificulta que a história seja escrita, assim como impossibilita que os traumas da nação sejam elaborados.

Nesse sentido, Jeanne Marie Gagnebin, em seu ensaio O que significa elaborar o trauma? (2009), cita Adorno para dizer que o lembrar e guardar memória dos fatos ocorridos de violência e horror, como em Auschwitz, torna-se importante para que algo semelhante não se repita. A autora, seguindo a trilha de Adorno, aponta para a necessidade de travar uma luta contra o esquecimento, visto que “Se essa luta é necessária, é porque não só a tendência a esquecer é forte, mas também a vontade, o desejo de esquecer.” A vontade de que ocorra o esquecimento, segundo Gagnebin, acontece pelo enorme peso do passado que assola as vítimas e as impede de viverem no presente.

À vista disso, a obra Meio sol amarelo, da autora Chimamanda Ngozi Adichie, retrata como a violência e o horror podem devastar a alma humana, deixando marcas na memória que podem ser avassaladoras. No romance, a personagem Richard, um branco inglês que decide viver na Nigéria com o objetivo de escrever um romance, inicia um relacionamento com Kainene, irmã gêmea da personagem Olanna. Richard se apropria de sua identidade como cidadão de Biafra, junto com Kainene e sua família, e, por esse motivo, vivencia os horrores da guerra. Podemos perceber essa questão na cena em que a personagem testemunha o assassinato de pessoas da etnia igbo no aeroporto de Kano, conforme trecho a seguir:

Levantou-se para partir, sabendo que também nada mudara para ele; continuaria sentindo as mesmas coisas que sentia desde que saíra de Kano. Algumas vezes, torcia para enlouquecer, ou para que a memória desaparecesse de todo, mas, em vez disso, tudo assumia uma transparência tenebrosa e bastava fechar os olhos para rever os corpos estrebuchando no chão do aeroporto, para se lembrar da intensidade dos berros. (ADICHIE, 2008, p. 197).

Em outro trecho da obra, a personagem Olanna vivencia a atrocidade da guerra ao visitar sua família na cidade de Kano, descobrindo os corpos de seus tios e primos dilacerados em sua própria casa, conforme trecho a seguir:

Tio Mbaezi estava de bruços, com o corpo retorcido, as pernas esparramadas. Alguma coisa branco-cremosa escorria do rasgo enorme aberto atrás da cabeça. Tia Efeka estava na varanda. Os cortes em seu corpo nu eram menores, pontilhando braços e pernas como lábios vermelhos meio abertos. [...] Olanna sentiu uma tontura aquosa em seus intestinos, antes que um entorpecimento tomasse conta do corpo e fosse parar nos pés. (ADICHIE, 2008, p. 176).

Após presenciar esses momentos, Olanna entra em uma espécie de estado catatônico, chamado na obra como “Mergulho no Escuro”, uma resposta psíquica ao forte trauma vivenciado, conforme demonstra trecho a seguir da obra:

Os Mergulhos no escuro de Olanna começaram no dia em que voltou de Kano, no dia em que suas pernas fraquejaram. [...] Nessa noite, teve o primeiro Mergulho no Escuro. Um grosso cobertor desceu de lá de cima e comprimiu seu rosto firmemente, enquanto ela lutava para respirar. Depois, quando se foi, liberando-a para respirar fundo muitas vezes, Olanna viu corujas em fogo na janela, sorrindo e chamando por ela com as penas chamuscadas. (ADICHIE, 2008, p. 186-187).

A personagem se depara com cenas que fogem ao campo simbólico, se esbarrando com um “estranhamento do mundo”, conforme aponta Márcio Selligmann-Silva: “Para o sobrevivente sempre restará este estranhamento do mundo advindo do fato de ele ter morado como que ‘do outro lado’ do campo simbólico.” (SELLIGMANN-SILVA, 2008, p. 65). Em outro trecho, o autor aponta que esse estranhamento está ligado à irrealidade e à inverossimilhança dos fatos vivenciados.

A catatonia que acomete os sobreviventes de eventos traumáticos, devido a esse “estranhamento do mundo”, também é representada na obra Baratas. Mukasonga consegue resgatar os poucos familiares sobreviventes do genocídio, entre eles, duas sobrinhas que apresentavam as características típicas de um sobrevivente, conforme podemos perceber no trecho a seguir:

Sobreviviam sem viver, fora delas, sem prestar atenção ao fato de que continuavam existindo, sem família em meio aos seus, com primos e primas da sua idade, em um presente congelado, em um passado indizível, que só ressurgia em seus pesadelos, em um futuro sem esperança. (MUKASONGA, 2018, p. 137).

As obras das autoras africanas Chimamanda Ngozi Adichie e Scholastique Mukasonga, demostram como as experiências da Guerra de Biafra e do genocídio em Ruanda devastaram os sobreviventes e as nações como um todo. No entanto, os sobreviventes desses conflitos foram silenciados e impedidos de elaborar os seus traumas. Dessa forma, os países africanos Nigéria e Ruanda seguem com um enorme peso do passado em sua história, na qual a ferida aberta de violência e horror continuam latentes na memória coletiva da nação. São países que se desenvolveram em torno de uma estrutura de violência que tende a se repetir.

Nesse sentido, o psicanalista Sigmund Freud, em sua obra Recordar, repetir e elaborar (2010), aponta para o entrelaçamento do recalcamento, ou seja, uma lembrança jogada para o escuro da inconsciência e que não pode vir à tona, e o ato de repetir. Segundo o autor, a repetição é definida como algo que se opõe ao saber, sendo ela da ordem da ação. A repetição é uma forma de recordar em ato, ou seja, o indivíduo não mais rememora o que esqueceu ou reprimiu, mas sim reproduz enquanto uma ação, repetindo sem necessariamente saber que o faz.

Segundo Freud, uma vez constituídos os determinados circuitos pulsionais do sujeito, é muito provável que ele insista em se manter nesse circuito. Dessa forma, o sujeito irá repetir padrões ao longo da sua vida, por sempre buscar satisfação nesses impulsos que o constituiu. Por não se lembrar, o sujeito repete aquilo que experimentou e da forma como experimentou.

Devemos ponderar que o contexto proposto por Freud diz respeito à clínica e ao tratamento individual de seus pacientes. Entretanto, conforme aponta Jeanne Marie Gagnebin, “[...] essas preciosas observações foram, diversas vezes, usadas para pensar, por analogia, processos coletivos: de memória, de esquecimento, de repetição.” (GAGNEBIN, 2009, p. 103).

À vista disso, podemos considerar que os países Nigéria e Ruanda estão constantemente repetindo, de forma coletiva, os padrões pulsionais em que foram constituídos enquanto nação. Além das guerras civis que assolaram as duas nações, Ruanda e Nigéria ainda possuem um legado de colonização que ainda pulsa como uma ferida aberta. As vítimas do colonialismo também sofreram com o silenciamento e o apagamento de suas memórias e histórias.

Em sua clínica, Sigmund Freud propõe que a repetição pode ser contornada na transferência com o terapeuta, este marca a existência desse algo que não pode ser lembrado, auxiliando no preenchimento de lacunas da memória através da interpretação do material inconsciente. Entretanto, diante do exposto, permanece o questionamento de como contornar a repetição em nível coletivo que permitirá que lacunas da memória, e história, de uma nação sejam preenchidas?

Nesse sentido, podemos considerar que o ato de escrever sobre a história, as guerras e as tragédias promove o espaço terapêutico para que tal ação aconteça, conforme pontua o pesquisador Márcio Selligman-Silva: “A imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma. O trauma encontra na imaginação um meio para sua narração. A literatura é chamada diante do trauma para prestar-lhe serviço.” (SELLIGMAN-SILVA, 2008, p. 65).

A autora Aleida Assmann, em sua obra Espaços da recordação (2011), recorre ao uso das metáforas como um potente recurso contra o esquecer considerando “que sem metáforas não há como se falar em recordação.” (ASSMANN, 2011, p. 162). Nesse contexto, a autora aponta a escrita como umas das metáforas mais produtivas contra o esquecimento devido ao fato de a escrita permanecer inalterada mesmo depois da morte de seu autor. Além disso, a escrita proporciona uma forma de alcançar a memória que foi perdida e tornada inconsciente.

A escrita das autoras Scholastique Mukasonga e Chimamanda Ngozi Adichie possibilitam o resgate da memória necessária para que seus países abandonem o ato de repetir, mesmo que de forma inconsciente, o sistema de violência no qual foram constituídos. Isso acontece devido ao fato de as autoras retirarem o véu de silêncio que encobriam as vítimas e contribuem para que, dessa forma, encontrem um caminho possível de elaboração de seus traumas.

Na obra Meio sol amarelo, a autora Chimamanda Ngozi Adichie aponta para o fato de como a escrita pode auxiliar a elaboração de traumas em contexto de guerra. Durante o romance, o leitor se depara com uma obra sendo escrita intitulada de “O mundo estava calado quando nós morremos”, cuja temática diz respeito à Guerra de Biafra. Durante a narrativa de Meio sol amarelo, paira a dúvida sobra a autoria da obra, na qual indícios apontam para a personagem Richard, o branco inglês que se muda para a Nigéria com o objetivo de escrever um romance. Entretanto, a autora surpreende ao revelar, no final da obra, que o romance era escrito pela personagem Ugwu.

A personagem chega para trabalhar na casa de Odenigbo, ainda analfabeto, e recebe incentivo do patrão para aprender a ler e escrever, assim como de frequentar a escola da faculdade de Nsukka, reservada para os filhos dos professores. Ao longo da narrativa, o leitor acompanha o desenvolvimento da personagem que segue seus patrões na luta pela independência de Biafra. Na narrativa, Ugwu não faz parte da elite intelectual que orquestra os movimentos da guerra, tampouco possui escolhas em relação ao seu destino.

Ugwu é uma vítima passiva dos horrores da guerra e, no momento em que é sequestrado para fazer parte do exército de Biafra, passa a ser um agente de violência, conforme podemos perceber na cena em que a personagem participa de um estupro coletivo, mesmo mostrando repulsa pelo ato:

No chão, a moça não se mexia. Ugwu desceu a calça, surpreso com a rapidez de sua ereção. Ela estava tensa e seca quando entrou nela. Ugwu não olhou para o rosto dela, nem para o homem segurando seus ombros, nem para nada, enquanto se movia rapidamente e sentia seu próprio clímax, a onda de fluídos chegando: um desafogo de auto-repulsa. Abotoou a calça, enquanto alguns soldados aplaudiam. Por fim, olhou para a moça. Ela o fitou de volta com uma raiva mansa. (ADICHIE, 2008, p. 423).

Diante da incapacidade de conviver com as lembranças da guerra e dos seus próprios atos, a escrita aparece como um espaço de redenção e elaboração, conforme trecho a seguir:

Mais tarde, Ugwu resmungou o título do livro para si mesmo: O mundo estava calado quando nós morremos. O título não o deixava em paz, e o enchia de vergonha. Trouxe-lhe à mente a moça no bar, o rosto franzido e o ódio que vira nos olhos dela, deitada no chão sujo do bar. (ADICHIE, 2008, p. 458).

Por sua vez, na obra Baratas, a autora Scholastique Mukasonga mostra como o ato de rememorar através da escrita pode facilitar o caminho da elaboração. Ao final de sua obra, a autora relembra as pessoas com as quais conviveu durante a sua infância e que foram brutalmente mortas durante o genocídio, conforme trecho:

Théodore, o professor. [...] Rutabana, de cujo arroz eu tanto gostava. [...] Rukorera, que possuía vacas [...] Buregeya, que se achava bonito e desposou Mariya que, na opinião de todos, era uma das meninas mais lindas da aldeia [...] Tadeyo Nshimyimana, muito respeitado por ser professor na escola principal de Nyamata, no quinto ano primário. (MUKASONGA, 2018, p. 164).

A autora continua citando e rememorando os nomes de seus amigos assassinados. A escrita é uma forma encontrada pela autora de manter a memória das vítimas longe do esquecimento e como forma de elaborar seu luto, conforme podemos perceber no trecho em que relata copiar várias vezes os nomes dos seus parentes e amigos mortos no genocídio em um caderno de capa azul: “Copio inúmeras vezes o nome deles no caderno de capa azul, quero provar a mim mesma que eles existiram, pronuncio seus nomes um a um na noite silenciosa.” (MUKASONGA, 2018, p. 8).

Diante do exposto, podemos perceber como a escrita pode agir em prol da resolução de traumas coletivos, auxiliando que não ocorra o apagamento de memórias e destruição da história. Nesse sentido, as obras Meio sol amarelo e Baratas, das autoras africanas Chimamanda Ngozi Adichie e Scholastique Mukasonga, cumprem seu papel de agentes terapêuticos ao retirar do silêncio as vozes que foram brutalmente silenciadas, gerando a oportunidade para que as sociedades ruandesa e nigeriana possam refletir e compreender melhor suas histórias.

Considerações finais

Uma sessão de terapia se inicia com uma narrativa, o paciente direciona ao terapeuta sua história, por sua vez, o terapeuta recebe aquela história e devolve ao paciente algo que impulsione a reflexão e análise do que foi dito. Dessa forma, o paciente retorna para sua casa capacitado para lidar com suas dificuldades, traumas e medos, a intervenção do terapeuta possibilita que o paciente conheça melhor sua própria história. Sigmund Freud construiu sua clínica psicanalítica baseada nesse modelo terapêutico.

Para que ocorra uma reflexão, compreensão de fatos nebulosos, para que o oculto da inconsciência apareça e que ocorra elaboração de traumas é necessário que, antes de tudo, aconteça uma narrativa. Por esse fato, silenciar uma vítima de um grande trauma impede que esse sujeito compreenda e elabore sobre o ocorrido, o aprisionando nesse passado que tende a se repetir continuamente. Segundo Sigmund Freud, a repetição ocasiona para o sujeito sintomas que prejudicam sua vida e impede a construção de um futuro, o sujeito que repete estará preso em um passado que nunca termina. Para o autor, o ato de repetir acontece devido a um não saber que permanece oculto na inconsciência.

À vista disso, silenciar um povo vítima de um grande horror e violência, como o genocídio em Ruanda e a Guerra de Biafra na Nigéria, impede a elaboração de traumas em nível coletivo, contribuindo para que a nação se construa com um enorme peso do passado e uma grande ferida aberta, repetindo em nível nacional a violência que fez parte de sua constituição.

No entanto, como seria possível elaborar traumas em nível coletivo? Uma resposta a esse questionamento seria através da escrita, ao resgatar a história da nação e dar voz aos silenciados desses brutais acontecimentos. Nesse sentido, as obras Baratas e Meio sol amarelo, das autoras africanas Scholastique Mukasonga e Chimamanda Ngozi Adichie, cumprem seu papel enquanto espaço terapêutico para elaboração dos traumas coletivos de seus países. Além disso, a escrita das autoras africanas revela o retrato do duplo silenciamento, acometido a elas devido ao seu gênero e a sua etnia. Dessa forma, a escrita das autoras proporciona aos seus países uma dupla potência e significação ao mostrar o importante papel das mulheres na luta pela sobrevivência de seu povo.

As obras fornecem elementos para que uma reflexão acerca da guerra e do genocídio aconteça, assim como uma compreensão sobre os fatos ocorridos. Ao narrar e preencher lacunas da história e da memória, as autoras tiram do esquecimento as vítimas que sofrem com o peso do passado, permitindo, assim, que possam seguir na construção de um futuro e na construção de uma Nigéria e uma Ruanda que contornem a repetição de um sistema baseado na violência. As obras possibilitam que, finalmente, uma narrativa sobre os bárbaros acontecimentos possa ser feita.

Referências

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Resumo:
O presente artigo se propõe a analisar a escrita literária das obras Meio sol amarelo (2008), de Chimamanda Ngozi Adichie, e Baratas (2018), de Sholastique Mukasonga, considerando que as obras propiciam o espaço terapêutico necessário para que os traumas provenientes de guerras e genocídios em seus países possam ser elaborados. Dessa forma, a escrita das autoras, além de resgatar a história perdida de Ruanda e da Nigéria, permitem a elaboração necessária para que as sociedades que foram construídas em um sistema baseado na violência superem a repetição de atos violentos, conforme aponta Sigmund Freud em sua obra Recordar, repetir e elaborar (2010). Além disso, consideramos que a escrita das autoras retrata as vozes dos que foram duplamente silenciados, no que diz respeito ao silêncio imposto para seu gênero e para sua etnia, o que confere às obras uma dupla potência e significação.

Palavras-chave:
Guerra; Genocídio; Repetição; Escrita; Elaboração.

 

Abstract:
The present article describes itself to analyze the literary writing of the works Meio sol amarelo (2008) in Chimamanda Ngozi Adichie and Baratas (2018) in Scholastique Mukasonga, whereas the works provide the necessary therapeutic space so that the traumas from wars and genocides in their countries can be elaborated. Thus, the writing of the authors, in addition to rescuing the lost history of Rwanda and Nigeria allow the necessary elaboration so that the societies that were built in a system based on violence can overcome the repetition of violent acts, as Sigmund Freud points out in his work Repetir, recordar, elaborar (2010). In addition, we consider that the authors’ writing portrays the voices of those who were doubly silenced, with regard to the silence imposed on their gender and ethnicity, which gives the works a double power and meaning.

Keywords:
War; Genocide; Repetition; Writing; Elaboration.

 

Recebido para publicação em 17/09/2020
Aceito em 01/12/2020