Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 1, mar./jun., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.1.r01
ISSN: 2318-4620

RESENHA

 

 

A Guerra de Biafra (1967-1970) como evento traumático:
os olhares contemporâneos de Chinelo Okparanta em Under the Udala Trees

 

OKPARANTA, Chinelo. Under the Udala Trees. New York: Editora Houghton Mifflin Harcourt, 2015.

 

 

Rafael Barbosa de Jesus Santana OrcID
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
rafael.santana.001@hotmail.com

 

Nascida em Port Harcourt, cidade no sudeste da Nigéria, em 1981, Chinelo Okparanta é uma romancista que viveu em seu país natal até os dez anos de idade, quando então foi morar nos Estados Unidos. Antes de lançar Under the Udala Trees (2015), Okparanta lançou diversos contos, os quais só foram possíveis por sua trajetória acadêmica que passou por University of Iowa, Columbia University e Bucknell University, todas nos Estados Unidos. Seu primeiro romance, Under the Udala Trees ou Sob as árvores de Udala (em tradução livre), foi indicado a vários prêmios, ganhando, por exemplo, o Lambda Literary Award, em 2016, e o Betty Berzon Emerging Writer Award, em 2017.

O grande diferencial do romance de estreia de Okparanta é que a obra é protagonizada por uma jovem que tem relações homoafetivas, assim como a questão central da produção diz respeito à homofobia e ao machismo. Tal escrita foi oportuna na época, pois, no ano anterior à publicação, o então presidente da Nigéria, Jonathan Goodluck,

[…] sancionou um projeto de lei que criminaliza relacionamentos sexuais entre pessoas do mesmo sexo e o apoio de tais relacionamentos, tornando essas ofensas puníveis com até quatorze anos de prisão. Nos estados do Norte, a punição é a morte por apedrejamento (OKPARANTA, 2015, p. 152, tradução minha).

Nesse sentido, como a própria autora nigeriana verbaliza, seu romance de debute busca ouvir e “dar aos cidadãos LGBTQ marginalizados da Nigéria uma voz mais poderosa e um lugar na história da nossa nação” (OKPARANTA, 2015, p. 152, tradução minha). O livro ainda não foi traduzido para outras línguas, ou seja, o material que tive acesso está escrito em inglês; sendo este um dos motivos para a inexistência de trabalhos acadêmicos no Brasil sobre o romance de Okparanta. Além disso, a temática abordada não atrai grandes públicos, assim como a procedência da obra.

O romance se passa nas décadas de 1960 e 1970, período que podemos acompanhar através da história de Ijeoma, uma menina de onze anos (no início da narrativa), que cresce nessa Nigéria devastada pela Guerra Civil e pela homofobia nigeriana. A história é narrada em primeira pessoa, ou seja, por Ijeoma, uma personagem de etnia igbo, uma das três maiores da Nigéria. Nas primeiras páginas da obra, a personagem principal nos diz que antes da guerra sua vida e a da sua comunidade avançavam tranquilamente. No entanto,

em 1968, nossos homens começaram a atirar armas sobre os ombros e carregar machados e facões […]. Por esta altura, falar de todas as festividades que iriam ocorrer quando Biafra derrotasse a Nigéria já havia começado a diminuir, suplantada, ao contrário, por uma preocupação coletiva sobre o que seria de nós quando a Nigéria prevalecesse: seríamos despojados de nossas casas e de nossas terras? Seríamos forçados à servidão? Seríamos reduzidos a viver de comida racionada? Quanto tempo no futuro teríamos que suportar o fardo de nossa perda? Vamos nos recuperar? Todas essas perguntas, porque em 1968 a Nigéria já estava vencendo, e tudo já tinha mudado (OKPARANTA, 2015, p. 09).

Ao questionar-se sobre tudo isso, Ijeoma nos evidencia que a guerra foi um evento que alterou a rotina da sua família e da sua comunidade, mas que “nem todo mundo queria ser lembrado a cada momento do dia que o país estava desmoronando” (OKPARANTA, 2015, p. 09). Ao olhar os jornais, Ijeoma constata que, em um deles,

na primeira página superior estavam as palavras SALVE-NOS. Abaixo das palavras, uma fotografia de uma criança com a barriga inflada sustentada por membros tão finos […] uma garota que parecia ter a minha idade. Ela era apenas mais uma garota igbo, mas ela poderia facilmente ter sido eu […] como alguém poderia estar bem durante esses dias? (OKPARANTA, 2015, p. 10).

Ao ouvir os jornais no rádio, a personagem ficou sabendo que um homem Igbo fora queimado vivo “bem aqui no Sul, disse o locutor. Estava acontecendo em todo o lugar no Norte, mas de repente começou a acontecer no Sul também. Hausas nos colocando em chamas, tentando nos destruir, destruir nossa terra, e tudo o que possuímos” (OKPARANTA, 2015, p. 10).

O evento foi tão intenso para o pai (Uzo) da personagem principal que “ele abriu a boca para falar, mas as palavras não saíram” (OKPARANTA, 2015, p. 10), um típico sintoma do trauma. Uzo olhava com tristeza para o fracasso de Biafra,

talvez seja porque ele não poderia ter se imaginado em uma Nigéria em que Biafra foi derrotada […] um novo regime em que os biafrenses seriam considerados cidadãos inferiores — escravos — como afirmavam os rumores, também era muito para ele suportar […] Seja qual for o caso, ele havia perdido a esperança. Mamãe diz que a guerra tem uma maneira de mudar as pessoas, que até mesmo um homem corajoso ocasionalmente perde a esperança (OKPARANTA, 2015, p. 11).

E desiste de viver, se entregando para a guerra, como iria ocorrer com o pai da personagem. Ijeoma faz questão de explicitar que “antes do início da guerra, papai fazia planos” (OKPARANTA, 2015, p. 27).

Mas a guerra tornou-se onipresente na vida das personagens: nos sons de aviões de bombardeio, nos gritos “[…] seguidos por batidas de pés, ou de objetos, ou mesmo de corpos caindo no solo” (OKPARANTA, 2015, p. 13). Após os bombardeios, muitas pessoas gritavam, “um coro de vozes, uma coleção mista, como uma variedade de esperanças variadas lançadas juntas em um grande poço de desejos” (OKPARANTA, 2015, p. 14), ou seja, encontrar algum familiar vivo. Uma criança passa pela personagem principal gritando, procurando a mãe. Ijeoma lembra um ditado de sua mãe (Adaora): “se você está procurando alguma coisa, é bem provável que você encontre no último lugar que você pensa em olhar. Eu me perguntei se a menina encontraria sua mãe no cemitério” (OKPARANTA, 2015, p. 14). A guerra foi tão marcante que tinha cheiro de “mofo, um pouco metálico, algo como o cheiro de ferro enferrujado” (OKPARANTA, 2015, p. 14), um verdadeiro “fardo para todos nós” (OKPARANTA, 2015, p. 21).

Como exemplificado na página anterior, Uzo, enquanto estava vivo, tentava falar, mas não conseguia. Esse silêncio é muito simbólico e alegórico na narrativa. Silêncio é um termo que se repete sessenta e sete vezes na obra, simbolizando o evento extremo que a personagem e a sua nação vivenciavam; um silêncio cortante, opressor e violento. Silêncio e impotência que Ijeoma sentiu quando viu seu pai (Uzo) morto. Os eventos da guerra causaram efeitos na vida privada das personagens principais, fazendo com que mãe e filha não falassem “sobre o que realmente estava em nossas mentes, que papai estava morto” (OKPARANTA, 2015, p. 17).

Em termos alegóricos, o romance nos traz o significado do nome de Uzo, qual seria o mesmo que “porta” ou “caminho”. O que é simbólico na narrativa, visto que o personagem morre e deixa a filha desolada e perdida, sem ver portas ou caminhos para o futuro de seu país, de seu povo e de si mesma:

Uzo. Era o tipo de nome que eu gostaria de dobrar e segurar na palma da minha mão, se os nomes pudessem ser dobrados e segurados dessa forma. Para que se eu estivesse perdida, tudo que eu teria que fazer seria abrir minha palma e permitir que o nome, como uma lanterna, me mostre o caminho (OKPARANTA, 2015, p. 16).

Ao mesmo tempo que tinha que lidar com a perda do seu pai, Ijeoma teve que lidar com a falta de alimentos, com as perdas materiais (casa e objetos pessoais) e, com isso, a falta de perspectiva para o futuro. No que tange ao psicológico, Ijeoma relata “ter esses sonhos onde eu ficaria presa no meu sono e não conseguia me mover” (OKPARANTA, 2015, p. 18), mais um sinal de trauma. Da mesma forma, Adaora, mãe de Ijeoma, no momento em que seu marido falece, não demonstra sofrimento, devido ao alto grau de singularidade e violência do momento. Mas após algumas semanas, a personagem começa a se dar conta que realmente Uzo morrera e começa apresentar sinais de negação e trauma, como por exemplo, a passagem em que ela fala para Ijeoma que

ainda [está] tendo pesadelos com seu papai […] Para piorar as coisas, de vez em quando, disse ela, sentia o cheiro dele — de sua morte, algo como o cheiro de sangue. Todas as coisas que via eram um lembrete constante de que ele havia partido, ela explicou: […] Galhos secos quebradiços estalando a cada virada do vento. A maneira como as pétalas das flores de hibisco também começaram a secar. Ela os imaginou sufocando — as árvores e as flores. Ela os imaginou crescendo sem vida, sem ar, sem respiração, assim como papai […] As vozes e todos os sons também eram uma lembrança de sua morte. Não apenas os gritos e os sons de guerra, mas agora o chão da casa rangeu, e cada rangido era algo como o som de seu passos […] Durante o dia, ela viu sombras, e cada uma tinha a forma de papai (OKPARANTA, 2015, p. 22, grifo meu).

Assim como Uzo, a mãe de Ijeoma começa a perder a esperança na sociedade: “não parecia que ela se importava mais em viver” (OKPARANTA, 2015, p. 19). Para Ijeoma, sua mãe “começou a fazer planos para se livrar de mim. Em uma distorção, induzida pela guerra, fazia sentido que ela encontrasse maneiras de se livrar de todos nós: os soldados, eu e a casa. Para se livrar, se ela pudesse, de todas as memórias da guerra” (OKPARANTA, 2015, p. 21).

A guerra não fora nefasta apenas com as pessoas, mas também com a natureza:

Antes da guerra, a terra, onde havia plantas, estava coberta com grama verde exuberante. Na grama cresciam ervas daninhas, e entre o joio e os arbustos cresciam flores […] Mas agora quase todas as plantas haviam murchado, e o vento carregava apenas vestígios de destruição. Todas as flores de hibisco pareciam ter perdido a cor (OKPARANTA, 2015, p. 22).

Por motivos de segurança, a protagonista do romance é obrigada a deixar Ojoto, sua cidade natal e único local que ela conhecia no mundo. Nesse processo de refúgio, Ijeoma fica de frente com corpos destroçados, os quais lembram o corpo de seu pai destruído com a bomba. A jovem personagem chega à conclusão que “talvez fosse disso que se tratava a guerra: a morte das massas em troca da ressurreição de um” (OKPARANTA, 2015, p. 49).

É nesse momento que o enredo começa a tomar outros ares, pois, em meados de 1968, Adaora se separa de sua filha, no intuito de protegê-la. Na nova casa de Ijeoma, na qual a personagem ficou até 1970, a mesma conhece Amina, sua primeira paixão. Essa relação terá fortes consequências na vida da personagem após o conflito, quando Ijeoma reencontra sua mãe. Sobre a relação das duas garotas, Adaora expõe:

‘Você é igbo. Essa garota é Hausa. Mesmo se ela fosse um menino, você não vê que igbo e hausa significaria a mistura de sementes? Você não vê? Seria contra os estatutos de Deus’. Ela pausou. ‘Além disso, você está esquecendo o que eles fizeram conosco durante a guerra? Você esqueceu o que eles fizeram a Biafra? Você se esqueceu de que foi o povo dela que matou seu pai?’ (OKPARANTA, 2015, p. 39).

O que fica evidente nesta passagem é que, além da homofobia, há um ressentimento social dos igbos em relação aos hausas e seus atos durante a Guerra de Biafra. “Mas lá estava ela, uma garota Hausa, um inimigo do povo igbo” (OKPARANTA, 2015, p. 53). No final das contas, o que estava em jogo era a ideia de que “manter [por perto] um Hausa era um risco à segurança” (OKPARANTA, 2015, p. 53, grifos meus). No entanto, o que a romancista nigeriana nos evidencia em sua escrita é que a guerra não expôs apenas o que havia de ruim na sociedade, mas também o companheirismo, como da vez que um vendedor divide um pão com Ijeoma, a qual passava fome; e o amor, aquele surgido em relação à Amina.

Com o fim da guerra, Ijeoma questiona-se sobre o significado real disso: “[…] estava acabado, mas nem mesmo este fato poderia trazer papai de volta. Tinha acabado, mas nada poderia ser feito para trazer a família de Amina de volta” (OKPARANTA, 2015, p. 55). Sobre os silêncios do Estado nigeriano em relação às violências cometidas durante a Guerra de Biafra, Okparanta, através de sua personagem principal nos apresenta um ditado popular que diz: “a madeira já tocada pelo fogo não é difícil de ser reacesa” (OKPARANTA, 2015, p. 56), que simboliza os desejos separatistas na Nigéria.

Entretanto, com a suposta paz cotidiana após o conflito, Ijeoma percebe que os ressentimentos sociais estavam enraizados nas relações sociais. Por exemplo, na escola que a adolescente começa estudar, a maioria das meninas eram igbo, as quais só andavam com outras conterrâneas. Havia um silêncio sobre a guerra nesses espaços, assim como Ijeoma e Amina não falavam sobre os sentimentos delas uma pela outra ou sobre a homofobia da sociedade na qual elas estavam inseridas.

A partir dos dezenove anos, em 1975 ou 1976 (não fica muito evidente no romance), Ijeoma começa a sentir mais a pressão social em relação aos seus comportamentos sexuais e amorosos. Ao refletir sobre o silêncio que a sociedade nigeriana impõe às relações homoafetivas, Ijeoma coloca que várias pessoas foram silenciadas: “nossas respirações silenciadas, como costumávamos fazer naqueles dias durante a guerra” (OKPARANTA, 2015, p. 99). Essa comparação entre os silenciamentos por causa da guerra e por causa da homofobia é muito interessante para pensarmos a opressão desses dois tipos de violência.

Ao ceder às heteronormatividades sociais, Ijeoma acaba casando com um vizinho que conhecia desde a infância, o Chibundo. No dia a dia da relação, a protagonista constata: “nós prendemos as paredes descascadas novamente. Selamos os buracos novamente” (OKPARANTA, 2015, p. 117). A citação refere-se à nova casa de Ijeoma depois de casada com um homem, mas pode facilmente ser empregada ao contexto da vida pessoal da personagem, a qual continua silenciando seus desejos por mulheres; assim como ao contexto da Nigéria, que mesmo sofrendo as consequências da Guerra de Biafra, do machismo e da homofobia, continua vivendo sem tratar suas imperfeições. Esses eventos e sentimentos que, supostamente, estavam no passado, continua a assombrar Ijeoma e a Nigéria, afinal,

a ausência de qualquer tipo de comunicação […] não era nada parecido com uma ausência. Em vez disso, foi uma presença: de dor mental, como uma flecha grossa e enferrujada disparando direto na minha cabeça, envenenando minha mente com algo como o tétano, fazendo meus pensamentos ficarem descontrolados, um espasmo aqui, um espasmo ali (OKPARANTA, 2015, p. 118).

Nesse cenário todo, possíveis remédios sociais são suscitados. Como constata Ijeoma, o simples fato de falar sobre o seu passado já funciona “[…] como um medicamento temporário” (OKPARANTA, 2015, p. 118).

Resumo:
Resenha de OKPARANTA, Chinelo. Under the Udala Trees. New York: Editora Houghton Mifflin Harcourt, 2015.

Palavras-chave:
Chinelo Okparanta; Nigéria; Guerra de Biafra; Trauma; Literatura Africana.

 

Abstract:
Book review from OKPARANTA, Chinelo. Under the Udala Trees. New York: Editora Houghton Mifflin Harcourt, 2015.

Keywords:
Chinelo Okparanta; Nigeria; Biafra War; Trauma; African Literature.

 

Recebido para publicação em 19/09/2020
Aceito em 22/09/2020