Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 51, n. 3, nov. 2020/fev. 2021
DOI: 10.36517/rcs.2020.3.e01

 

 

Entre cinzas e brasas que resistem:
50 anos de antropologia e lutas políticas

 

Moacir Palmeira
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
moapalm@gmail.com

Geísa Mattos OrcID
Universidade Federal do Ceará, Brasil
geisamattoslima@gmail.com

 

Entrevista com Moacir Palmeira por Geísa Mattos

Era uma alegria reencontrar Moacir Palmeira no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, naquele 13 de agosto de 2018.1 O Museu era sua casa profissional desde 1974, quando o Programa de Pós-Graduação em Antropologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no qual ele ingressara como professor em 1969, passou a funcionar ali. Na sala que Moacir ocupava, no segundo andar, com vista para o verde da Quinta da Boa Vista, gravamos a conversa, que durou quase sete horas, em meio ao acervo de teses, livros, projetos, cadernos de campo e outras produções de meio século de seu trabalho como pesquisador, orientador e professor. Naquele momento, jamais imaginaríamos que, exatos 20 dias depois, em 2 de setembro de 2018, um incêndio gigantesco viria a consumir não só aquela sala, mas a maior biblioteca de antropologia da América do Sul, a Francisca Keller, todo o prédio e demais acervos históricos, arqueológicos, botânicos e geológicos do Museu Nacional.

A entrevista me havia sido sugerida naquela ocasião pelo professor César Barreira (UFC),2 parceiro de trabalho de Moacir por mais de 20 anos. César foi responsável pelo convite para que Moacir atuasse como professor visitante na Universidade Federal do Ceará, em duas oportunidades, em 1996 e 2001. As temporadas no Ceará duraram dois anos e meio no total, no auge da produção do Núcleo de Antropologia da Política (NuAP), e se prolongaram em várias idas e vindas dele a Fortaleza.3 Após a tragédia do incêndio no Museu, no entanto, a entrevista acabou não sendo publicada.

Um ano depois, em julho de 2019, reencontrei Moacir, agora na sala que ele vinha ocupando provisoriamente, a convite de colegas professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Agricultura e Desenvolvimento (CPDA), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na avenida Presidente Vargas, centro do Rio de Janeiro. Ele ainda parecia um pouco deslocado no escritório provisório, como expressou na conversa naquele momento:

Tinha aquele negócio de estar há mais de 40 anos no lugar4, conhecia todo mundo. Estavam dizendo que eu era o mais velho que, naquele momento, continuava a frequentar o Museu, tinha outros que estavam vivos, mas não iam mais. Então era o meu lugar de trabalho, passava a maior parte do dia lá no Museu trabalhando na minha sala, indo à biblioteca, participando de reuniões, conversando com o pessoal, funcionários, colegas, estudantes, sempre almoçando por lá, essa coisa. Então realmente é uma pancada. Depois aquele entorno era extremamente agradável, aquele parque bonito, o prédio, essa história toda e depois a gente tinha montado um esquema de trabalho, reuniões. Você fica inteiramente desorganizado quando acontece uma história dessas. Foi duro. Todo mundo sentiu muito.

***

O texto aqui apresentado é uma edição combinada de dois momentos distintos de encontros com Moacir – antes e depois do incêndio. Para que o leitor possa distinguir os dois momentos na edição final, utilizei itálico para as falas de Moacir da conversa um ano depois do incêndio, inserindo-as de forma a complementar ou atualizar a entrevista original realizada em agosto de 2018.

Se no primeiro momento, havia a preocupação com o contexto político, e os cortes de verbas para as agências de financiamento à ciência já eram dramáticos, na segunda entrevista algumas perdas descritas por Moacir são irreparáveis. Foram consumidos no fogo do incêndio 50 anos de arquivos de pesquisas etnográficas iniciadas desde que ele ingressou como professor no Museu. Dentre estes arquivos, estavam questionários aplicados com trabalhadores rurais nos barracões de engenhos na Zona da Mata Pernambucana, ainda durante a Ditadura Militar, com várias notas escritas de próprio punho, e outros acervos de material ainda inédito, e não digitalizado, que ele pretendia explorar com outros pesquisadores. Havia também livros de alto valor afetivo, como o volume de O Capital que ganhara do pai, e que estava todo marcado com anotações que ele fizera durante a preparação de sua tese na França. Documentos pessoais importantes estavam guardados na sua mesa de trabalho, e sobre ela estava seu computador, onde havia vários artigos incompletos. As leituras que fazia para o curso que estava ministrando e outros artigos que estava lendo haviam sido deixados em cima de sua mesa de trabalho.

Porém a maior perda pessoal e profissional foi a do acervo antropológico da biblioteca Francisca Keller, com seus 37.000 volumes, entre obras de referência, livros, teses e periódicos. Uma pesquisa da Universidade havia mostrado que Moacir era o maior usuário de todas as bibliotecas da UFRJ. Ele brinca com isso, e ri, dizendo que planejavam lhe dar um diploma. Antes da expansão do acesso da produção acadêmica via internet, ele costumava passar na biblioteca todos os dias, dava uma olhada nas revistas acadêmicas mais importantes, e pedia para reservar aquelas que mais lhe interessavam. Também tinha o mapa mental da biblioteca na cabeça, sabia o lugar exato das obras que mais costumava consultar, e até ajudava a indicar nas prateleiras quando os próprios funcionários não as encontravam.

Embora a campanha Livros Vivos no Museu tenha conseguido arrecadar, um ano depois do incêndio, 10.500 livros, e mais 8.000 estivessem a caminho, como anunciado no site da biblioteca Francisca Keller,5 ainda é grande a mobilização de pesquisadores e instituições através das campanhas Livro Vivo no Museu e Museu Nacional Vive, para recuperar o acervo.

Somente na sala que Moacir ocupava havia uma estante que se estendia por duas paredes de ponta a ponta com 3.500 livros, muitos deles com anotações suas nas margens, além de centenas de outros não fichados. Havia ainda armários, com muitos artigos que ele gostava de ter por perto para consulta, e uma grande coleção de fotografias etnográficas,6 das quais não havia cópias.

Por causa de uma reforma financiada pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN), o teto da sala onde Moacir trabalhava no último andar do Museu continuou existindo. O chão, no entanto, desabou. É uma significativa metáfora para um lugar que continua tendo um teto simbólico, com as inúmeras formas de suporte material e simbólico que vem recebendo para se reerguer, embora tenha perdido o chão. Sobre a construção de seu chão, profundamente afetivo, Moacir nos fala nesta entrevista, com muita dignidade e coragem. Sua história de vida e de trabalho, contadas em suas memórias nesta entrevista, ajudam a compreender e a explicar porque ele não se dá por vencido.

No dia seguinte ao incêndio, ele estava com outros professores e estudantes na Quinta da Boa Vista, em frente ao Museu Nacional, participando de uma manifestação. A Polícia Militar disparava cassetetes sobre a multidão que se aglomerava em frente ao portão principal à espera de notícias. Ele acabou sendo também atingido pelo gás lacrimogênio que a Polícia lançava contra os manifestantes, mas ainda permaneceu por ali, tentando chamar a atenção da TV Globo e de representantes da OAB presentes ao local, sem sucesso, para que denunciassem a absurda repressão policial, mesmo diante do trauma imenso vivido por aqueles que sabiam o que o Museu representava para o País e para suas pesquisas.

Moacir não parou de dar aulas depois da tragédia daquele 2 de setembro de 2018. No semestre em que ocorreu o incêndio, após uma breve interrupção de 15 dias, voltou às aulas em uma sala improvisada no prédio do Horto Botânico, na Quinta da Boa Vista, onde dividia o curso Política e Eleições no Brasil, com João Lagüéns (professor do PPGAS). Já no primeiro semestre de 2019, voltou a dar aula, dessa vez no curso Etnografia, escrita e teoria etnográfica, em parceria com Dibe Ayoub (que fazia pós-doutorado no Museu).

Tem pessoas que sonham em se aposentar, ficar em casa, pode ser que em algum momento isso me ocorra, mas não é o caso. Me aposentei aos 70 porque era compulsório, mas me mantive trabalhando, fazendo as coisas e até agora não desisti.

Tal grau de atividade realmente impressiona: não ter tido interrupções nem individualmente, nem coletivamente é um esforço memorável, que Moacir credita também aos seus colegas e estudantes do PPGAS, que hoje estão na batalha heroica de reconstrução deste chão perdido.

***

Onde você estava quando irrompeu o Golpe Militar de 1964?

Quando houve o golpe eu estava na Bahia.7 E quando cheguei aqui eles tinham destruído nosso diretório estudantil [do Curso de Ciências Sociais e Políticas da Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro], eles quebraram tudo, inclusive, nosso material de pesquisa sumiu. Então, esse era um pouco o clima.

Antes do golpe, quando ainda estava na Bahia, e tinha uma folga, corria pra Maceió. Tinha uns companheiros lá, um dos quais era o Dirceu Lindoso,8 que é um cara incrível, aprendi muito com ele. E começamos eu, ele e mais uns amigos, a planejar um Centro de Cultura Popular em Maceió. A Maria Brandão9 estava desenvolvendo essa ideia [na Bahia]... eu vinha colaborando com ela.

Foi um momento assim de grande mobilização, então o meu projeto, me formando em 1964, era voltar pra Alagoas para tocar esse centro. O primeiro voo que teve para cá me enfiei e vim, e algum tempo depois telefonam um desses amigos aí de Alagoas e me diz: “olha é melhor você não aparecer aqui, não apareça pelo menos durante um ano”, porque se eu fosse lá seria preso. Então foi um pouco com isso que fui ficando aqui no Rio.

Foi nesse contexto do Golpe que acabou surgindo a oportunidade de Doutorado na França e o seu encontro com Bourdieu. Pode nos contar sobre isso?

Tinha aberto um concurso para a SUDENE, eu tinha passado. Mas surgiu uma bolsa no Instituto de Estudos Avançados da América Latina,10 para participar de uma pesquisa na França. De repente essas pessoas que estavam se mantendo na SUDENE começaram a ser perseguidas. Então avisei à SUDENE que não tinha interesse, peguei a bolsa pra França.

A surpresa lá [na temporada do Doutorado na Universidade René Descartes, em Paris] foi o Bourdieu. O Chico Paiva Chaves tinha feito o Doutorado na Bélgica e estava morando em Paris, começou a me dar uns palpites, “você já ouviu falar do Pierre Bourdieu? Assisti umas aulas dele e tal, não fiz curso com ele, mas tem lá uns amigos meus que estão fazendo com ele”. Aí disse qual era o curso, e depois eu fui procurar naqueles cartazes, que na época a École tinha cursos fantásticos. Quando eu fui ver, o curso dele abordava cultura popular e eu tinha feito um trabalho sobre cultura popular no Brasil e resolvi assistir e fiquei. Na época tinha me inscrito em cursos com algumas figuras que eu já conhecia, Alain Touraine, Henri Lefebvre... peguei tudo que é coisa que me parecia boa, ficava o dia nos seminários e depois fui selecionando. Aí fui ver o seminário do Bourdieu e gostei muito, era realmente estimulante.

Um dia, no seminário seguinte, eu o vi saindo, e ele cumprimentou: “você está indo pra onde? Vamos juntos”. Fomos andando a pé até um metrô que ele ia pegar, uma boa caminhada. Ele disse “apareça”, e foi falando o que estava fazendo. Aí marquei uma entrevista com ele, deixei uma cópia do projeto, ele disse que lia português, e passei coisas pra ele em português e as outras coisas que eu estava escrevendo em francês. Eu sei que surgiu essa história e de vez em quando saíamos juntos e eu ia passando uns trabalhos meus, inclusive já estava revisando a tese, ele foi se animando, e assim se abriu o diálogo.

Ele foi basicamente um outro orientador, quer dizer, eu usei muito mais o trabalho dele como referências teóricas, embora com Bourricaud [orientador] eu discutia muito, ele era muito regular e foi alguém que me exigia uma disciplina. Eu chegava e entregava o trabalho, e ele dizia: “daqui a uma semana passe na minha casa”.

Com Bourdieu, tinha uma liberdade muito grande. Por exemplo, a primeira coisa que colocava... [quando alguém dizia]: “não, porque a teoria do Bourdieu”... ele dizia “minha teoria está em permanente mutação, não existe isso”. Eu me dava ao luxo de fazer críticas às coisas deles [ao próprio Bourdieu e ao seu grupo de pesquisadores]. Eu não entendia essa coisa de teoria geral dos campos, não é uma reificação dos campos? “Você tem razão, não dá...” Essa foi uma coisa que rendeu e já nos anos 1990 voltei a esse negócio da teoria geral que era um conceito relacional, não era uma coisa tão abstrata. Tinha gente que já estava substantivando isso.

Para mim as coisas do Touraine ficaram duras, passei a percebê-las como coisas duras, de outros sociólogos também, quer dizer, coisas muito classificatórias... E essa coisa toda, o que foi apropriado como sendo Escola sociológica francesa, eram uns caras que não faziam pesquisa, só liam, faziam pesquisa assim de ler livros e isso e aquilo e ficavam teorizando em cima daquilo, tanto que ele [Touraine] prestava homenagem ao Sartre, teorias da prática que você vai encontrar nos romances do Sartre, então essas coisas [do Bourdieu] foram realmente importantes…

Isso é muito interessante. Como orientanda sua, pude conhecer essa maneira de você operar intelectualmente, evitando o tempo todo a reificação dos conceitos e usando o pensar relacional na prática. Acho que o fato de você ter tido esse contato pessoal com Bourdieu te fez incorporar esse modus operandi, diferentemente de quem só leu os livros e vê as coisas prontas como se os conceitos fossem definitivos ou acabados.

E a volta ao Brasil, como foi?

Quando voltei, quer dizer, já antes de voltar, o Roberto Cardoso estava querendo gente para organizar o Programa [PPGAS, UFRJ]... ele tinha já uma equipe, mas precisava de mais gente. Como eu teria o título de Doutor na França e era reconhecido aqui como Doutorado, o Roberto numa ida a Paris me convidou, então, quando eu vim já estava com uma coisa certa aqui. Não era contratado pelo Museu, eles tinham o financiamento da Fundação Ford e eu recebia uma bolsa.

Voltei em julho de 1969 e comecei a trabalhar aqui no segundo semestre. Ele estava contando que eu voltaria em 1968, ano em que o Programa começou. Eu realmente trabalhei num ritmo em Paris que até hoje eu não sei como que eu consegui, mas estava curtindo muito aquilo e tinha o estudo da América Latina, biblioteca muito boa, e fui daqui já com todo o investimento em pesquisa, estava trabalhando pra fechar isso antes de julho de 1968, mas aí teve o Maio de 68.

Entreguei a tese em abril em 1969, mas só em dezembro de 1969 tive a resposta do meu orientador, [François Bourricaud], de que poderia defender. Só tive condições de voltar a França em janeiro de 1971, quando enfim defendi.11 Já estava começando a trabalhar no Programa, mas sem o título de Doutor ainda. Eu escolhi esse projeto do Roberto [Cardoso de Oliveira] porque ele me colocou para coordenar o que seria o trabalho de campo no Nordeste. A primeira vez que voltei ao campo [no Nordeste], foi em novembro de 1969. Passei novembro e alguns dias de dezembro em Pernambuco... Nisso fomos descobrindo novas categorias e processos que não apareciam, que havia simplificações nos esquemas.

Você se tornou assessor da CONTAG nos anos 1970. Como se deu o seu envolvimento com o movimento sindical?

Quando fui, todo mundo dizia “não faça isso, o que sobrou lá de sindicato é só pelego”. Encontrei a Federação ativa, com o Euclides Nascimento que era católico e ligado ao Padre Crespo, a Federação atuando, quer dizer, colocando na Justiça os patrões.

Quando cheguei em Pernambuco, eu vi que estava tendo manifestações de rua, luta de massas, fiquei entusiasmado com aquilo e busquei aproximação. Se fazia luta de massa em plena Ditadura e aderi completamente a essa coisa deles.

Esse campo foi se estendendo e fomos criando uma rede de relações. Zé Francisco, que é de Pernambuco, presidente da CONTAG [Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura, então sediada em Brasília], quis me conhecer, e, em suas vindas ao Rio, vinha à minha casa, me apresentou ao pessoal da Federação dos Trabalhadores da Agricultura no Rio de Janeiro.

No segundo semestre de 1979 fui pra Brasília com a família e fiquei morando lá até julho de 1980. Daí voltei para o Rio e aí fiz um acordo com a Reitoria, e ficava quinze dias no Rio e quinze dias em Brasília, teoricamente. Mas às vezes ficava dois meses sem ir a Brasília, vinte dias viajando, estourava um negócio não sei aonde, ia para lá, me mandavam... pra mim foi muitíssimo bom.

Na primeira experiência [trabalhando como assessor na CONTAG] me mandaram para o Rio Grande do Norte, onde havia um trabalho de base lá, fantástico, e eu adorei. Fiquei cobrindo a área entre Maranhão e Minas. Quebrei uns galhos no Sul, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina. Foi uma experiência importante porque isso me aproximou muito do pessoal. Passei a ter acesso às famílias dos dirigentes e de outros trabalhadores. Eu ia pra Bahia, me hospedava na casa do Aloísio [secretário-geral da Federação dos Trabalhadores em Agricultura da Bahia], ele dizia “não, fique aqui em casa”, ficava hospedado lá em Salvador. No Ceará, eu ficava no alojamento lá da Federação. Na CONTAG tinha uma espécie de vanguarda sindical. Fizeram um trabalho extraordinário.

Foi possível conciliar o trabalho na Universidade com a assessoria sindical?

Quando eu fui pra CONTAG eu fiquei orientando os trabalhos e continuava dando cursos no Museu Nacional. Na CONTAG eu fui fazendo uma espécie já de campo... em vez de ser um obstáculo, não havia tempo e tudo mais, como eu já fazia pesquisa com camponeses, meu trabalho de campo continuava ali, ao vivo na própria CONTAG, tanto que teve uma série de anotações que eu fiz que depois seriam decisivas para o estudo posterior da política.12

O pessoal da CONTAG conseguia fazer política em plena Ditadura, e, enfim, quando já estava enfraquecida a Ditadura, já havia a campanha pela Anistia e depois pelas Diretas, tudo isso estava lá. E o pessoal da CONTAG tinha um diálogo grande já no Rio com a CNBB, com a CPT, com o pessoal da imprensa na ABI [Associação Brasileira de Imprensa], com o sindicato dos jornalistas, sindicato dos bancários. E em Brasília se acrescentou isso a contatos dentro do parlamento. Então, eu acompanhei algumas vezes o pessoal da CONTAG no seu contato com os parlamentares autênticos do MDB, mas também com setores mais conservadores do MDB e mesmo da Arena. O parlamento tinha certa força, também era um caminho para denunciar a repressão no campo, que era um dos mais temas mais discutidos por nós.

A gente também dava cursos para dirigentes sindicais, delegados sindicais. A CONTAG teve um destino sobretudo nesse curso em atingir as bases, porque tinha federações que estavam em mãos de caras que eram comprometidos ainda com o Regime Militar, chegando na presidência por conta das intervenções militares. E então, uma coisa que aconteceu muito, os caras voltavam e, às vezes, derrubavam já o presidente do sindicato.

Então, foi esse o envolvimento. Depois da queda da Ditadura, acabei sendo chamado pra trabalhar no INCRA. Fiquei um ano [1985-1986] e nesse período conseguimos desapropriar mais do que o que havia sido feito durante todos os anos de vigência do Estatuto da Terra. Então, além de tudo, foi um desafio e eu estava nisso tudo também registrando... eu nem sei onde é que estão aí [neste momento, ainda em sua sala no Museu, ele olha para as estantes ao redor de si], mas eu tinha feito cadernos, tinha um caderno dos empresários, um caderno dos movimentos, caderno dos trabalhadores e de cada setor do INCRA.13

Então, havia esses cadernos de campo, tinha questionários que eu tinha aplicado, tinha alguns relatórios. Por exemplo, essa primeira pesquisa do Museu, tinha a ver com os barracões de engenho e aplicamos um questionário, tinha uma serie de anotações neles. Depois, algumas pessoas, uma delas foi a Renata [Menezes, professora do PPGAS-UFRJ], fizeram um relatório em cima daquele material, a partir de anotações que eu tinha feito no próprio questionário.

O questionário em si mesmo não tinha grandes coisas a dizer, mas tinha as anotações feitas no questionário, porque fazer pesquisa em barracão de engenho era, num certo sentido, impossível. Ter acesso a barracão era difícil – você não conseguia entrar no engenho através do trabalhador, mas se você entrasse através do patrão, você não teria a confiança do trabalhador; e o barraqueiro, geralmente subordinado ao patrão, algumas vezes tinha lá a autonomia dele.

Então, o que nós fizemos na época, foi um questionário todo aparentemente quantificado, mas aquilo era só pra constar, pra eles não ficarem com medo. Essa era a maneira de dizer que ia aplicar aquele questionário com o barraqueiro e, às vezes, o próprio patrão chamava o barraqueiro lá e dizia que era para ser entrevistado. Mas em outras vezes apareciam alguns gerentes de usina, até armados...

Eu começava a aplicar aquele questionário formal ao barraqueiro e enquanto isso tinha outros pesquisadores que ficavam como se estivessem esperando do lado de fora e conversavam com os trabalhadores...

Como começaram suas pesquisas sobre eleições?

Saí do INCRA e voltei a atuar na CONTAG e na Universidade. Depois da Constituinte, houve eleições em 1990, e fomos, Beatriz Heredia e eu, pesquisar sobre política.14 Um grupo de alunos nos ajudou, distribuídos por diversos municípios no Rio Grande do Sul e Pernambuco, e então ficamos lá entre um mês e dois meses.

Foi nessa experiência de campo que percebemos o uso generalizado da expressão tempo da política. Foi a partir daí que passamos a explorar o significado da política para estas populações estudadas, e particularmente essa associação entre eleição e política.15 Ao longo dos anos 1990, acompanhamos todas as eleições municipais nestes Estados e em alguns outros.

A sua ida para o Ceará coincide com o período de criação do Núcleo de Antropologia da Política, em 1997. Como foi esse processo de articulação?

Fomos nos encontrando e sei que o César [Barreira] já sabia que eu estava interessado na pesquisa sobre os significados da política e depois a Irlys [Barreira] acompanhou a segunda tentativa do Lula de ser presidente, ela seguiu lá, nos próprios municípios, a caravana dele.16 Mariza Peirano estava com alguns alunos que também mexiam com política. Então, encontros com o pessoal de Brasília, com o pessoal do Ceará. Esboçamos um projeto e apresentamos a outras pessoas [faz referência a Odacir Coradini, Federico Neiburg, Marcio Goldman]. O resultado foi um projeto conjunto de pesquisa, envolvendo as três universidades e alguns colegas de outras universidades.

Em conversa com Irlys e César Barreira, eles chamaram atenção para seu interesse pela produção local na época de sua estadia no PPGS. Eles contaram que você, por exemplo, assistia apresentações de alunos de iniciação científica, lia as dissertações do Programa, e também comentava com os estudantes as produções deles. Como é que você vê a produção do Ceará nas Ciências Sociais? Que temáticas lhe pareciam interessantes?

Na minha primeira experiência de estadia no Departamento de Ciências Sociais da UFC, em 1996, me deparei com uma estante com as dissertações, fui lendo algumas que tinha mais a ver e me impressionou muito a quantidade de dissertações que tinham sido feitas na periferia de Fortaleza, eram trabalhos realmente muito bons. Fiquei muito bem impressionado e isso levou a discussões com Irlys, às vezes com César e com Auxiliadora [Lemenhe]. Então, quer dizer, a minha primeira providência foi tentar saber o que estava sendo feito lá.

Quando entrei aqui no PPGAS acompanhei um pouco isso também. Roberto Cardoso me convidou para assistir às aulas dele pra entrar no clima e, depois, o Castro Farias me chamou e achei que esse era uma boa entrada, primeiro conhecer as dissertações.

Então [no Ceará também] fiquei muito bem impressionado, e também, o contato com os alunos que estavam no mestrado, pedia e ia vendo os trabalhos... e tinha uma riqueza de informações, a política no interior é [de uma riqueza] enorme. Então, nessa primeira ida [1996-1997] eu li algumas dissertações, peguei também alguns quatro trabalhos de final de curso e li, conversei com os estudantes, anotei as minhas coisas de política, coisas que eu até depois citei em situações dessas. Pois é, eu estava ligado nessa coisa de que ali se tinha um potencial enorme, foi muito legal e isso me estimulava também a pensar. Acho que realmente foi pouco tempo e disseram “você não toparia ficar mais um tempo?” Até que voltei em 2001.

Duas coisas na minha experiência de orientação com você me ajudaram muito, e também a outras pessoas que você orientou ou que se inspiraram na sua trajetória, que é essa sua sensibilidade à linguagem. Queria que você explorasse isso, porque você insistia que a gente prestasse atenção nas categorias nativas, mas sempre com o cuidado de não essencializar, de pensá-las em situação.

A gente presta atenção em outra língua, mas não presta atenção na nossa própria língua. As categorias também mudam ao longo do tempo, mudam de significado, de um lugar pra outro, se alteram. Então, essa eu acho que é uma preocupação que é legal que todo pesquisador tenha, porque tem trabalhos que são feitos muito de fora, ele chega lá e parece estar “aplicando questionário”, mas no fundo, o cara tem um questionário na cabeça, onde as coisas já estão meio prontas, meio definidas, às vezes preso a determinadas coisas.

Em pesquisa do projeto Emprego e Mudança Socioeconômica no Nordeste, o Afrânio [Garcia Jr] foi estudar na Paraíba e se encontrou com histórias de paraibanos que migravam para o Rio de Janeiro e voltavam, essa coisa toda. E o Afrânio começou a perceber que havia uma regularidade nessas migrações, que de fato, na Paraíba, saía aquele grupo de três, quatro, cinco, pra ir pra o Rio ou pra São Paulo, e os outros ficavam lá. E depois de cinco, sete anos, voltavam, e os que tinham ficado lá, vinham. Eventualmente se tinha um pai-avô que ficava lá, tinha uma terrinha de nada, e esse recurso é para às vezes aumentar um pouco o pedaço de terra, ou para reforçar o que estava conseguindo. Então, o problema era o seguinte, o pessoal via isso como uma família se despedaçando, como se o pessoal migrasse sozinho para uma grande cidade. Um negócio que eu me dei conta foi: quando você tem uma família de São Paulo, de empresários, saindo pra dirigir a filial que eles têm em Recife ou Fortaleza, ninguém diz que ele migrou. Agora se tem um camponês que vem pra cá pra trabalhar é migração, entende? O que é isso? O que é um deslocamento físico? Então, esse trabalho do Afrânio foi muito importante nesse sentido.

É muito interessante, como, a partir da atenção à categoria linguística, no caso, migração, você chega a uma compreensão bem mais ampla.

Pois é. Entender o funcionamento da família, essa mobilidade. A Ana Carneiro viu no Norte de Minas, na área que ela trabalhou, tinham pessoas lá que tinham ido pra Brasília, pra eles não tinham migrado. E depois, eles lá se movimentaram, e a gente geralmente não associa, os movimentos dentro do município, não são considerados migração.

Tem muita gente que fala “você tem que se preparar, ler muito sobre a região, isso e aquilo, e ler tudo o que foi escrito sobre isso, então, elaborar um modelo prévio, levantar hipóteses e isso e aquilo”. Eu acho que isso pode ajudar, mas às vezes, acaba complicando o próprio processo de conhecimento, porque você já desenhou as coisas para explicar sem se dar conta de como essa população pensa isso, reflete.

E não pensar só nessa situação, mas em outras situações também. Então pra você conhecer um grupo, você tem que, de certa forma, entrar no mundo deles, perceber também como eles veem as coisas de fora, ou seja, estabelecer condições de um diálogo efetivo, e aí com outro tanto de instrumentos que você já leu, que você aprendeu, você tenta formular, em vez de sair descartando a priori “ah não, isso é secundário”.

Eu me lembro de uma época que eu passei aplicando muito questionário, na Escola teve um período de pesquisa empírica, e eram surpresas enormes que apareciam, enfim, nós tínhamos esse grupo que ficava dialogando, se questionando, levava um professor.

Então, eu acho que nessa Antropologia mais recente acabamos esquecendo que tivemos alguns folcloristas fantásticos. Algumas coisas eu consegui meio que ter uma resposta com o Câmara Cascudo e com alguns outros folcloristas. Era um pessoal que tinha essa sensibilidade, nos dicionários que fizeram. O trabalho sobre expressões locais testa isso, para você levar em consideração uma série de coisas.

Acho que tem uma chave aí que é essa abertura pra fazer conexões, com coisas diferentes, coisas diversas, estar aberto. E isso aparece também no seu estilo como professor. Uma coisa que eu acho muito característica no seu modo de atuar é desafiar os seus estudantes. Você colocava as questões e deixava a gente se debatendo lá, horas. E a gente “Moacir, e afinal, qual é a resposta?” como se houvesse uma resposta certa que você ia no final dizer pra gente. E você não falava. Eu queria então que você comentasse seu método muito dialógico de trabalhar em sala de aula.

É, no meu jeito pessoal, eu não gosto desse negócio de ficar definindo regras para os outros. Não sei, acho que você aprende a fazer não é ouvindo o professor, é fazendo. Essa coisa de leitura não é para enfeitar o curso, nisso o Roberto Cardoso me ajudou muito. Os cursos daqui eram muito em cima de textos, eu não me dei bem com isso. Fazia às vezes a experiência de pegar um exercício que eu já tinha feito, e colocar esse exercício na sala de aula e ver como eles refaziam. Quando eu fiz minha tese peguei um pouco desse mecanismo.

Fiz um exercício depois: eu pegava um recorte de jornal e dizia “o que vocês acham disso?” A tendência primeira era todo mundo se identificar com esse ou com aquele, “não, mas o que está sendo discutido?”, ou “você reparou que esse diz isso aqui, mas esse outro diz isso?” Então, era um pouco como fazer o pessoal penetrar naquilo, ver que a princípio você é posto em uma situação como se aqueles ali tivessem o saber, e a dificuldade de você entrar naquilo é que às vezes você não sabe e eles sabem. Então, vai avaliando o que cada um está dizendo, qual é a coerência, esse tipo de coisa.

Eu sempre achei muito chato aquele negócio de ler um texto e depois o cara ir lá dissertar, aí no final abria perguntas e não sei o quê. Então, sempre joguei com esse negócio de diálogo. Preparava a aula não pra dizer o que estava dito no livro, mas ir adiante.

E também tem o seguinte, essa coisa me dá agonia: quando um aluno começa a falar, e o outro desliga. Na hora que o professor fala ele começa a anotar. De vez em quando eu via um mexendo no celular, daí quando o colega parava de falar, eu gostava de fazer isso, perguntava “o que você achou do que o colega disse?”, daí eles “hã?”, “não, a sua colega/o seu colega acabou de falar, o que você achou?”, “ah não, desculpa professor, eu não ouvi”. E até às vezes o primeiro repetia, sintetizava. Mas com isso, essas aulas ganhavam uma densidade muito grande. O pessoal reclamava que eu começava 14h e era pra terminar às 17h, e às 17h eu começava a falar, daí vinham as perguntas, e eu só saía 18h, 18h30. Mas me pareceu uma ideia que era para garantir uma certa rentabilidade daquele investimento.

Além desse negócio de dialogar, eu acho que você valorizava muito as nossas falas. Tem uma coisa que é um pouco folclórica em relação a você, que você é um taquígrafo [risos] o tempo todo anotando tudo. E qualquer coisa que qualquer um está falando parece ter sempre uma importância diante dos seus olhos. Você nunca despreza as pessoas, você sempre está de ouvidos abertos.

É, é essa ideia do diálogo.

É também a ideia de aproveitar qualquer coisa do que a pessoa está falando, é interessante. Por um lado, a generosidade, por outro, quando a gente chega, nós orientandos, com uma hipótese, você desafia a gente, você começa a bombardear a pessoa, “sim, mas e aí? E isso? E aquilo lá?”. Então, você nos ensina a cercar a hipótese, isso eu acho que é uma coisa muito interessante, porque você nunca deixa a gente sentar sobre os louros dos nossos pretensos achados, você fica instigando a gente ir além. Os seus elogios são poucos e pontuais, mas ao mesmo tempo, a gente se sente valorizado na sua escuta, em querer que a gente vá mais longe. Como você acha que aprendeu isso?

Primeiro eu acho que é alguma coisa de família. Meu pai não aceitava de jeito nenhum que se dissesse que era “filho de deputado”, proibido de exigir qualquer vantagem nessa história, se alguém usasse isso era castigado, ficava de castigo lá sentado. Tinha que respeitar o outro, não tem esse negócio de ser melhor do que o outro. O importante é você fazer, cooperar, trabalhar junto, aprender, essa coisa de respeito, foi sempre muito enfatizado esse negócio de respeito pelo outro. Enfim, tem esse lado de formação.

Depois, na própria prática do ensino, professores que eu tive, era muito comum esse negócio de levantar o braço, de perguntar só no final da aula. Eu ficava bem encabulado com essas coisas. Então, os professores com quem eu dialogava, tinha um professor de Geografia que era um cara fantástico, e foi um estímulo muito grande pra ir nessa direção. Já o professor de História, eu gostava muito de História, mas não suportava o professor. Então, a coisa foi um pouco por aí, eu nunca fiz curso de pedagogia e essas coisas.

Eu me sentia bem como aluno dialogando com o professor, e ao mesmo tempo incorporei. Acho que foi positivo esse negócio [que aprendi] na minha família, o pessoal que queria chegar e se mostrar era desvalorizado. Meu pai era uma pessoa extremamente discreta, essas coisas pesaram. E o próprio rendimento nessas matérias que tinham professores que atuavam assim, que você entregava um trabalho e o cara lia pra valer, “olha isso, aqui tem um equívoco, pá-pá-pá”, eu sempre admirei.

E quando era pequeno sempre gostei de ler, o trabalho propriamente intelectual, isso foi coisa de formação. Alguns irmãos preferiam outro tipo de coisa, eu preferia tentar aprender, pegava um romance e ficava lendo ali. Quando eu comecei a ler os romances era um atrás do outro.

Até meus romances estavam aqui [se refere ao Museu]. Tem momentos que eu quero ler uma coisa que eu tenho lá no Museu, ou tinha. Nos primeiros dias, agora não mais, mas nos primeiros dias eu ficava pensando “ah, vou pegar tal livro”, aí lembrava que não existia mais, estava no Museu...

Em termos de literatura, o que é que te influenciou mais?

Comecei lendo as coisas do José Lins do Rêgo, tinha que fazer uns trabalhos e fiquei entusiasmado, tinha muito a ver com o mundo da minha família por parte de pai, essa coisa toda e esse negócio dos engenhos. Graciliano Ramos era muito amigo do meu pai, mas eu não cheguei a conhecê-lo pessoalmente, chegando no Rio, ele já estava com câncer e meu pai todo final de semana ia visitá-lo.

Dos brasileiros fui para os estrangeiros, sugestões feitas nas escolas, papai tinha uma biblioteca grande, porque também gostava de ler. Minha mãe era católica, e meu pai era ateu, era católico só de formação. Então, comecei com essa literatura, a brasileira era um investimento maior, tentei essas coisas internacionais, mais conhecidas, Tolstói, Dostoievski, os russos, depois os franceses. Quando eu fui pra França e comecei a controlar mais o francês, aproveitei pra pegar os romances do Sartre, por exemplo, li um atrás do outro, esses textos do existencialismo.

Então foi assim, os próprios trabalhos que eu ia fazendo, esse negócio da política, uma das coisas que funcionava pra mim foi a leitura de textos literários, tem coisas que você pega os historiadores falando, de repente, você pega uma crônica desses cronistas do século XIX, tem coisas incríveis sobre política numa perspectiva analítica, a descrição de uma situação. Aí eu realmente me empolguei.

[Moacir mostra o livro A carteira de meu tio, de Joaquim Manuel de Macedo, que seria incluído no curso que ele estava ofertando naquele segundo semestre de 2018 com João Lagüéns no PPGAS/UFRJ]. Nesse livro aí, um tio chama o sobrinho e leva ele até o jardim da casa. Tinha lá um saco, um bauzinho, uma coisa assim, daí abre e tem uma fortuna, daí ele fecha e diz assim “você gostaria de ter isso?”, “claro!”, daí ele: “tudo bem, eu já estou com uma certa idade, te dou o direito disso aí, mas quero que você me faça um favor”. E põe o cara, porque ele era um político no estado do Rio de Janeiro, e pede pra ele sair percorrendo o Rio de Janeiro todo pra falar com os chefes políticos ligados a ele. Você não encontra nenhum historiador que faça isso, e o cara está inventando dentro das concepções da época.

Machado de Assis tem uma gozação numa crônica dele, que no norte do Rio de Janeiro, o pessoal do partido A passou para o partido B e vice-versa, uma troca de partidos. Então, essas coisas as pessoas não se dão conta. Textos literários como esse são cruciais, tinha um do Antônio Cândido, “Os parceiros do Rio Bonito”, que muito se refere a uma espécie de padrinho político, eu achei curioso. Há uma riqueza que não foi inventada por ele, esse pessoal estava tentando responder a questões, igual a gente faz hoje como pesquisador.

E alguns escritores você tem a impressão que são verdadeiros sociólogos, antropólogos. A gente abre os olhos para isso, vê o quanto você pode entender o que se passava em determinado momento do passado. E que indo mais além daquilo que os historiadores veem nos documentos oficiais, nas declarações, nas coisas que saem em jornal. O cara que escreveu na época fez uma fantasia própria da época, o cara formula em termos que eram aceitáveis e compreensíveis para quem estava lendo. Então, só o que o cara está dizendo, independente da veracidade da coisa, já dá uma ideia que te oferece informações.

Uma coisa que eu gostaria de pensar com você, é que alternativas nós temos de resistência, nesse tempo que nós estamos vivendo?

É complicado. Nós estamos em uma situação que não se havia cogitado. Um golpe com essas características. Um golpe parlamentar, esse desmonte da máquina do Estado que está sendo feito. Coisas mais complicadas ainda. Não é só o encaminhamento da economia, os próprios limites do Estado brasileiro estão sendo apagados. Quando você vê a Justiça Americana entrando aqui, havendo entendimentos com setores do Judiciário, que sempre foi um setor mais preservado... Mesmo durante a Ditadura, houve momentos em que eles aceitaram a cassação de ministros, mas houve momentos também em que os próprios ministros se rebelaram contra a coisa toda do Estado. Então de algum modo, sofrendo pressões, ainda conseguiram manter sua integridade. Agora, atualmente, percebe-se uma completa destruição da Justiça brasileira.

Não é só o Brasil que está sofrendo isso. Vários países, sobretudo, na América Latina. Reconfigurações na política mundial estão nos levando para lugares que, até pouco tempo, eram impensáveis. O Governo está desnacionalizando tudo, a máquina do Estado está sendo quebrada com esse negócio de fechar ministérios, mudar as feições dos ministérios, a reforma agrária que já precisava ter ido mais longe em governos anteriores, e nesse destruiu-se o que tinha. O INCRA passou a ser vinculado à Casa Civil, foi fragmentado de alguma maneira. E por aí vai. A questão da saúde. Acabando com os investimentos em centros de pesquisa, como a Fiocruz, que está produzindo vacinas contra dengue, coisas novas. Então, você importa as vacinas e suspende as pesquisas.

No período do Lula e primeiro mandato da Dilma tiveram políticas sociais que foram eficazes, como Bolsa Família e outros tantos, também os avanços que se conseguiram a nível universitário. Essa democratização do ensino, que hoje permite que nós tenhamos pessoas que a família jamais imaginaria que pudessem chegar na Universidade e estão chegando graças às cotas… até mesmo na competição comum, conseguiram cursar o seu primário, secundário, tem uma bolsa, chegar à faculdade, à pós-graduação. Esses são os alunos mais empenhados, porque aqui realmente importa para eles, diferente de alguém da classe média alta, até da classe dominante, os mais ricos.

Não há quem não cometa erros, mas essa experiência do período Lula e primeiro mandato da Dilma realmente teve avanços que, mesmo na Europa, no pós-guerra, com todo o Plano Marshall, não conseguiu ir nessa velocidade. Então, houve distribuição de renda, que poderia ter sido estendida, aumentar o poder de consumo das classes populares e, aliado ao desenvolvimento do ensino, das pesquisas nas universidades, depois de décadas, séculos, o Brasil começava a ter uma presença nas instituições científicas internacionais, em várias áreas isso aconteceu.

Universidades de fora do Brasil estão tentando atrair pesquisadores brasileiros, tanto das Ciências Exatas, como das Humanas, e de repente se corta isso. O que se está querendo para esse país a médio e longo prazo? Realmente estamos vivendo uma situação extremamente difícil, que ninguém sabe o que vai dar. A solução que eles encontraram foi esse golpe parlamentar, depois, a pretexto de combater a corrupção, paralisam o país… obras que foram suspensas, de repente estamos com 13 ou 14 milhões de desempregados. É algo inaceitável.

Uma coisa que eu aprendi com você, e nos seus cursos, é que as eleições são ficções de alguma forma. De modo geral, existe muita ficção em torno dessa ideia de “um homem, um voto”. As eleições de 2018 no Brasil parecem mais ficção do que todas as outras. Queria que você falasse um pouco sobre isso… que legitimidade a eleição de 2018 tem, quando se tem um preso político?

Pois é, esse é o absurdo maior. Um candidato que tinha a preferência majoritária da população em todas as pesquisas, estando preso sem fundamentos aceitáveis. O que é lamentável, o Supremo Tribunal Federal que sempre teve e manteve um mínimo de dignidade em decisões esteja aceitando isso, compartilhando desse tipo de coisa. Da parte dele foi uma demonstração de coragem, deixar-se ir preso… houve sugestões para ele sair do país, que se exilasse em alguma embaixada, ele preferiu ser preso e movimentar as forças que o apoiam. Que se consiga quebrar a história, que consigam restabelecer a democracia no país, que se abram perspectivas.

Em nome ao combate à corrupção, figuras, ao que tudo indica, corruptas, indicações muito mais sérias do que aquelas que foram manipuladas contra o Lula… que estão no governo, que estão querendo se eleger. É um enorme desafio. O Lula aceitou ser posto na cadeia, mas está cobrando que provem a culpa dele. A maneira como a Justiça está atuando é absurdamente surda.

Tanto que internacionalmente o pessoal está escandalizado. Os sindicatos americanos todos se manifestaram, protestaram contra isso, grupos de esquerda, políticos conservadores, pessoas decentes. Um país do tamanho do Brasil voltar a uma situação semelhante a uma Ditadura Militar, voltar a ser submisso aos EUA. Uma das situações mais difíceis que nós já enfrentamos. Depuseram a Presidente legalmente eleita e depois começaram com essa política, inclusive, vários desses que fazem essas acusações de corrupção contra pessoas ligadas ao ex-governo Lula e pessoas ligadas ao PT, tem acusações pesadíssimas contra elas mesmas. Os meios de comunicação monopolizados… notícias importantíssimas que a TV Globo não dá. É uma situação semelhante a uma Ditadura formalmente reconhecida. Acho importante que quaisquer que sejam as posições das pessoas, aqueles que são a favor da democracia, de algum modo se unam para reverter isso.

Com a ameaça de corte às bolsas da CAPES e CNPq, chegou-se ao ponto da ameaça à própria ciência hoje no Brasil. Como você vê essa questão?

Antes dos cortes orçamentários, estava havendo um impulso de pesquisas. Com a exploração de petróleo em alto-mar, os royalties estavam sustentando pesquisas feitas em todas as áreas, sobretudo nas Engenharias, também nas Ciências Humanas. Estava facilitando também estudantes irem para o exterior, a criação de novas instituições de ensino e pesquisa, democratização do ensino. Tudo isso veio por água abaixo. Então já aquele corte orçamentário do que era destinado a educação e saúde, já era absurdo. Agora todas as frentes da ciência estão sendo atacadas. A CAPES de repente falou em cortar bolsas de todos os ângulos. É algo realmente criminoso que está sendo feito.

Espero que consigamos atravessar essa fase terrível da história brasileira, que voltemos todos, não só o NuAP, mas a universidade brasileira, os centros de pesquisa, não necessariamente ligados às universidades, possam voltar a sua atividade. O futuro secular do país depende muito disso.

Referências

BARREIRA, Irlys. Chuva de papéis. Rituais e símbolos de campanhas eleitorais no Brasil. São Paulo: Relume Dumará, 1998.

PALMEIRA, Moacir. Latifundium et Capitalisme au Brésil: lecture critique d'un débat. Tese de Doutorado, Université René Descartes, URD, França. Orientação: François Bourricaud, 1971.

PALMEIRA, Moacir. Política e tempo: nota exploratória. In: PEIRANO, Marisa (org.). O Dito e o Feito. Ensaios de Antropologia dos Rituais. Rio de Janeiro, Relume Dumará/ Núcleo de Antropologia da Política (NuAP), 2001.

PALMEIRA, Moacir; HEREDIA, Beatriz. Os Comícios e a Política de Facções, Anuário Antropológico n. 94. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.


  1. Fui orientanda do Professor Moacir Palmeira no Doutorado em Sociologia realizado entre 1999 e 2004 pela Universidade Federal do Ceará. A tese foi publicada em livro ("A Favor da Comunidade. Modos de Viver a Política no Bairro. Campinas: Pontes, 2012).

  2. César Barreira dividiu com Moacir (Coordenador Geral), Mariza Peirano (UNB) e José Sérgio Leite Lopes (PPGAS-UFRJ) a coordenação do projeto financiado pelo CNPq através do então Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex). Os recursos do Pronex possibilitaram a fase mais produtiva do Núcleo de Antropologia da Política, que durou sete anos, de 1997 a 2004, reunindo pesquisadores do Rio de Janeiro, do Ceará, de Brasília e do Rio Grande do Sul.

  3. A ideia original de César Barreira era que a entrevista abordasse a experiência de Moacir no Ceará, na oportunidade dos 50 anos do Departamento de Ciências Sociais, comemorados naquele 2018. Era também a de que ele remetesse à sua relação com o Nordeste e as memórias de 20 anos de sua experiência como coordenador da rede de pesquisadores no NuAP.

  4. Embora Moacir tenha ingressado como professor em 1969, o PPGAS começou a funcionar no Museu Nacional em 1974, portanto, havia 44 anos que Moacir trabalhava ali. Antes disso, as aulas do PPGAS e as salas dos professores ficavam no Centro Latino-Americano, em Botafogo.

  5. Para saber mais sobre como fazer doações para a campanha, consulte o site ppgas.biblioteca.ufrj.br (acesso em 06 de setembro de 2019)

  6. Grande parte destas fotografias era de sua parceira de pesquisas etnográficas por mais de 30 anos, a antropóloga argentina naturalizada brasileira Beatriz Heredia, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, que faleceu em 2018.

  7. Moacir estava cursando o que seria posteriormente considerado Mestrado no Instituto de Ciências Sociais, na Bahia, sob a direção de Thales de Azevedo.

  8. Dirceu Lindoso foi homenageado em 2017 na 8a Bienal do Livro de Alagoas como Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Alagoas. É considerado o “maior escritor vivo de Alagoas”. Autor de, entre outras obras, “Formação de Alagoas Boreal, a utopia armada: rebeliões de pobres nas matas do Tombo Real”.

  9. Maria de Azevedo Brandão, professora de Sociologia da Universidade Federal da Bahia. Ameaçada com dois processos durante a Ditadura Militar, entre 1964 e 1965, exilou-se na Grã-Bretanha.

  10. Fundado em 1954, ligado à Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris 3).

  11. Moacir defendeu tese intitulada “Latifundium et Capitalisme au Brésil: lecture critique d'un débat”, na Université René Descartes, URD, França, sob orientação de François Bourricaud, em 1971.

  12. Todos estes cadernos de campo de Moacir na época da CONTAG estavam entre os materiais queimados pelo incêndio do Museu Nacional, em 02/09/2018.

  13. Aqui Moacir faz referência a outro conjunto de cadernos de campo queimados no incêndio do Museu Nacional.

  14. Os resultados desta pesquisa envolvendo eleições municipais de 1988 e estaduais de 1990 foram publicados no clássico “Os Comícios e a Política de Facções”, em co-autoria com Beatriz Heredia (Anuário Antropológico/94. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995)

  15. Para uma dimensão mais aprofundada das análises de Moacir sobre a categoria “tempo da política”, ver artigo dele “Política e tempo: nota exploratória” In: Peirano, Marisa (org.) O Dito e o Feito. Ensaios de Antropologia dos Rituais. Rio de Janeiro, Relume Dumará: Núcleo de Antropologia da Política, 2001.

  16. O trabalho de Irlys Barreira acompanhando a “Caravana da Cidadania” do então candidato Lula, quando esta passou pelo sertão do Ceará, bem como outras pesquisas etnográficas pioneiras da autora sobre política foram publicados no livro “Chuva de papéis. Rituais e símbolos de campanhas eleitorais no Brasil” (São Paulo, Relume Dumará, 1998).

Resumo:
Trata-se de uma entrevista com Moacir Palmeira, a partir de duas conversas gravadas, a primeira em agosto de 2018, e a segunda em julho de 2019. O texto aqui apresentado é uma edição combinada dos dois momentos distintos, antes e depois do incêndio que destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em setembro de 2018, local em que Palmeira trabalhou durante 40 anos. Se no primeiro momento, havia a preocupação com o contexto político, e os cortes de verbas para as agências de financiamento à ciência já eram dramáticos, na segunda entrevista algumas perdas descritas por Moacir são irreparáveis. Foram consumidos no fogo do incêndio 50 anos de arquivos de pesquisas etnográficas iniciadas desde que ele ingressou como professor no Museu.

Palavras-chave:
Pesquisa; política; eleições; trabalhadores do campo; Museu Nacional.

 

Abstract:
This is an interview with Moacir Palmeira, based on two recorded conversations, the first in August 2018, and the second in July 2019. The text presented here is a combined edition of the two distinct moments, before and after the fire which destroyed the National Museum in Rio de Janeiro in September 2018, where Palmeira worked for 40 years. If, at first, there was concern about the political context, and the cuts in funding for science funding agencies were already dramatic, in the second interview some losses described by Moacir are irreparable. Fifty years of ethnographic research archives started since he joined the Museum as a professor were consumed in the fire of the fire.

Keywords:
Research; politics; elections; field workers; National Museum

 

Recebido para publicação em 17/10/2020
Aceito em 17/10/2020