Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 1, mar./jun., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.1.d02
ISSN: 2318-4620
Babalaze das hienas e a memória coletiva moçambicana:
a oralidade, a ancestralidade e a escrita poética como narrativa da guerra civil
Gustavo de Azevedo Porto
Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal;
Secretaria de Estado de Educação de Goiás, Brasil
gustavosina@gmail.com
Adeir Ferreira Alves
Universidade de Brasília, Brasil
adeir.liceu@gmail.com
Podemos inferir de Silvério (2013a) que a palavra incorporada na oralidade das sociedades negras tradicionais da África tem uma dimensão muito ampla, por isso deduzimos o cuidar como destaque quando se trata de narrativas orais, de ancestralidade, de tradições e de memória coletiva. O primeiro cuidado é com a memória coletiva do grupo, que também se apresenta nos cuidados com os outros, com o meio ambiente e com as tradições e os saberes. As narrativas orais africanas falam desde frugalidades, epopeias, saberes, iniciações até grandes eventos históricos, conforme Hampâté Bâ (2010, p. 173) “[...] a tradição, pois confere a Kuma, a Palavra, não só um poder criador, mas também a dupla função de conservar e destruir. Por essa razão a fala por excelência, é o grande agente ativo da magia africana”. A tessitura da palavra é uma característica que dialoga diretamente com a ancestralidade africana e não se resume apenas a um trabalho mecânico de verbalização.
É importante ressaltar que a tradição oral é muito forte na África e, provavelmente, essa tradição ficou destacada a ponto de ser um elemento para a formação de uma identidade africana na poesia de Craveirinha, que, mesmo escrita em português, faz um jogo de significados com palavras originárias da língua ronga, que herdou culturalmente de sua mãe. Essa atitude de Craveirinha, filho de pai português e mãe moçambicana, reforça o laço identitário do poeta com suas raízes moçambicanas, pois “[...] seus poemas se tecem fundamentalmente entre duas línguas, o português e o ronga, língua materna do poeta, que é intencionalmente usada para pôr em evidência a historicidade e a carga cultural da origem africana.” (LEITE, 2000, p. 4-5).
Além desse aspecto apontado por Leite, chamamos a atenção para uma ambiguidade possível quando Craveirinha utiliza as duas línguas em sua poesia. Por um lado, a ambiguidade prescinde da interposição da língua ronga com o português como uma espécie de interdição para impedir a dominação da língua colonial em terras africanas e, ao mesmo tempo, prescinde da reunião das diferentes línguas em que a escrita em português serve para comunicar aos não africanos o que precisa ser falado.
Quando a palavra cura? A todo momento, uma vez que ela, a palavra, reúne sentimentos, registros históricos, fatos, sentidos, temporalidade e memórias e constrói narrativas africanas. A palavra, seja ela falada ou escrita, produz horizontes de compreensão, afeto e sentimentos contrastantes — uma vez que a empatia evocada se expressa como importância dada ao evento narrado, ao conteúdo e à perspectiva política da narrativa (forma). É neste sentido que destacamos as narrativas de Craveirinha como um fenômeno que evoca as forças ancestrais africanas para depurar a memória coletiva, tratando-a, libertando das impressões da guerra, que além de genocida é também epistemicida. Ao cursar este horizonte de compreensão, nos colocamos numa perspectiva decolonial, que seguirá nesta leitura dialogando com a história.
Cada grupo africano tem uma dinâmica própria de narrar e de cultivar as suas tradições e de elaborar as dores sofridas, porém, destacamos na poesia do moçambicano José Craveirinha a reunião de vozes recolhidas pelas ruas e comunidades de Moçambique em respostas ao pavor da guerra civil. Através desse trabalho de diálogo com a população, Craveirinha traduz nas poesias não apenas um modo poético de enaltecimento da beleza — que a poesia costuma empregar —, mas sim severas denúncias e críticas ao colonialismo e a seus efeitos nocivos para Moçambique e, de certo modo, para o continente africano:
A poética de Craveirinha é carregada da influência da tradição oral, mesclado a rejeição e desvalorização de elementos da cultura do colonizador, dando a sua obra, um duplo sentido, de um lado sua escrita repudia as imposições trazidas pela Europa a troco do massacre que faziam em sua cultura e de outro reforça os vínculos identitários com a cultura africana quando valoriza os dialetos dando um sentido mais vivo a palavra falada. (KATRIB; SANTANA, 2013, p. 3).
O vocabulário de Craveirinha, embora transpareça num primeiro momento um caráter impactante que envolve o conteúdo e a forma, metaforiza a própria linguagem e recorre a uma metalinguagem que constrói um sistema particular pautado num olhar afrocentrado e decolonizado. A sua poesia mescla arte, política e ancestralidade africana. Com efeito, a impressão que temos da poesia de Craveirinha é de que o sentimento maior do poeta e de suas poesias corporifica-se no comportamento e na sonoridade das hienas, animal típico do continente africano, um aspecto horrendo do comportamento humano e do horror ao conteúdo da fala dos grupos e segmentos pelos quais o autor tem ojeriza.
Esse aspecto totêmico do vocabulário — que também concorre com outros símbolos e metáforas — é, em certa medida, uma catarse, que, em suas dimensões psicológica, política e linguística, sacia o sentimento e as impressões subjetivas do poeta como oposição manifestada aos horrores da guerra. Ao mesmo tempo, emprega na sua própria narrativa a reunião da oralidade e da africanidade no coletivo de vozes.
Assim como alguns povos indígenas brasileiros escolhem nomes repulsivos para seus filhos a fim de “[...] tornar a pessoa repugnante aos demônios” (FREYRE, 2006, p. 210), o coletivo de vozes nos poemas de Craveirinha se traveste também de vocabulário “terrível” para espantar da memória moçambicana os opressores e os ditos “fantasmas da colônia” — nas palavras de Haddock-Lobo (2020).
Tal qual remédio amargo e necessário, a palavra também é cura — à medida que atua como uma espécie de catarse — especialmente para depurar, em sentido psicológico, os nefandos registros dos recônditos da memória coletiva, como, por exemplo, para processar na psiquê a violência de estupro de crianças no campo de guerra. Pronunciar a insatisfação, os medos, os traumas e a violência não apenas atenua psicologicamente as dores, assim como não acentua juízos contra ninguém em específico, mas ajuda os narradores a ressignificarem as experiências para um processo de emancipação das cadeias de opressão que continuam a impactar, mesmo após a guerra. E a sagacidade poética de Craveirinha consegue articular a escrita com os princípios da oralidade africana como um saber emancipado que permite compreender o colonialismo e explicá-lo, que, para todos os efeitos, também faz da própria narrativa um modo autêntico de como censurá-lo.
O presente artigo analisa a poesia de José Craveirinha, na obra Babalaze das Hienas (2008) — sendo a primeira publicação em 1997 —, no contexto político pós-independência em Moçambique e a relação dessa obra com os episódios de violência ocorridos na Guerra Civil (1977-1992). José Craveirinha foi um dos mais famosos poetas moçambicanos, sendo o primeiro escritor africano laureado com o Prêmio Camões em 1991. Craveirinha participou do processo de independência de Moçambique denunciando a barbárie da lógica colonialista e pregando a insubmissão dos moçambicanos frente ao domínio português.
Conforme o filósofo camaronês Achille Mbembe, na obra África insubmissa (2005), a insubmissão é uma característica potente que a inteligência africana das sociedades negras tradicionais possui. As características multiformes da ancestralidade africana — presentes na oralidade, na territorialidade, nas tradições, nos saberes, nas epistemes e na lógica própria de composição da sociedade africana — lhe permitem ignorar as imposições do Estado colonialista, que se expressam pelo patriarcado, pela racionalidade monofocal, por assimetrias e, sobretudo, pela violência.
Dessa maneira, é na poesia de Craveirinha que Moçambique assume o papel de mãe e forjadora de uma identidade nacional, imprescindível para a consolidação de uma independência política em relação a Portugal e da reafirmação dos valores culturais moçambicanos:
Maior dos poetas de Moçambique, como o clamam em suas terras, José Craveirinha é voz de protesto frente ao estado colonial, resultando-lhe poesia de força lírica imarcescível. Seus poemas fazem denúncia de um processo massacrante de imposição cultural, que levou o homem colonizado à proposta de redução absoluta de sua cultura ao status quo do colonizador. (BONIATTI, 2014, p. 61).
Os conflitos resultantes dessa relação de domínio contribuíram para que, no início do século XX, os movimentos de resistência — sobretudo cultural — moçambicanos se tornassem mais visíveis. Esses movimentos de oposição ao colonialismo perpetrado na África se desenvolveram na mesma via construída pela relação entre metrópole e colônia, pois foram criados e fortalecidos por atores que viviam em Luanda, Maputo e Lisboa. Em pouco tempo, esses movimentos passaram a criticar a lógica colonialista portuguesa, inclusive com o engajamento literário, fortemente influenciado pelo movimento pan-africano:
A oposição intelectual nas cidades, embora menos profundamente enraizada do que em Angola, tornou-se, contudo, um fórum importante para os discursos reformistas [...]. Durante esse período, um pequeno número de intelectuais moçambicanos que vivia em Portugal ajudou a formar organizações que estavam ligadas ao movimento pan-africano em geral. (SILVÉRIO, 2013b, p. 434).
Com a ascensão do regime Salazarista em Portugal, também denominado “Estado Novo” (1933-1974), a política colonial portuguesa tomou rumos mais rígidos, impondo aos colonos condições de domínio e exploração que chegariam aos limites da exaustão. Não por acaso, a queda do Salazarismo coincidiu com o ápice dos movimentos anticoloniais e a guerra de independência que se desenvolveu em Moçambique:
[...] a exploração colonial estava fundada sobre as mais simples práticas, entretanto as mais duras, relativas ao trabalho forçado, à taxação obrigatória da produção agrícola e à venda, para a África do Sul, de contratos de trabalhadores migrantes. O sistema administrativo era semelhante ao sistema francês. Autocrata e antidemocrata na metrópole, o “fascismo” português reforçava os métodos dirigistas em vigor nas colônias. (SILVÉRIO, 2013b, p. 467).
É nesse contexto de recrudescimento das relações de exploração que os principais movimentos de sentimento nacionalista em Moçambique partiram para o conflito armado em prol da independência, pois “a luta armada começou por volta de 1964” (SILVÉRIO, 2013b, p. 502). Além da insubmissão como resposta aos efeitos do colonialismo, o enfrentamento e a luta reforçam mais uma característica africana. A insubmissão não é sinônimo de passividade ou de inanição. Esta característica, que dialoga com resistência, é uma tática desenvolvida também nas afrodiásporas, sendo o quilombo uma das representações de luta antirracista mais antigas do Brasil colonizado.
A guerra civil em Moçambique não se inscreve tão e somente como um problema interno do país, mas sim como um conflito acionado por acontecimentos globais. Além das tensões decorrentes da relação colônia/metrópole, é importante destacar a disputa entre dois polos políticos, após a Segunda Guerra Mundial, que se materializou no terceiro mundo em inúmeros conflitos armados, sobretudo, nos processos de descolonização e nacionalismos tardios engendrados pelas duas maiores forças políticas no cenário da Guerra Fria: o bloco socialista, comandado pela extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas — URSS, e o bloco capitalista, sob domínio dos Estados Unidos da América — EUA.
A peculiaridade da Guerra Fria era a de que, em termos objetivos, não existia o perigo iminente de guerra mundial. Mais que isso: apesar da retórica apocalíptica de ambos os lados, sobretudo do lado americano, os governos das duas superpotências aceitaram a distribuição global de forças no fim da Segunda Guerra Mundial [...]. O problema é que o fim dos impérios coloniais era previsível [...]. [...] foi nessa área que as duas superpotências continuaram a competir, por apoio e influência, durante toda a Guerra Fria, e por isso a maior zona de atrito entre elas, aquela onde o conflito armado era mais provável, e onde de fato irrompeu. (HOBSBAWM, 1995, p. 225).
Os movimentos de independência em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique foram marcados pela participação de intelectuais das mais diversas áreas. Agostinho Neto, primeiro presidente da Angola independente, era um desses intelectuais, que, como médico e poeta, tinha grande influência na África Austral e fez com que a literatura africana desse período fosse de grande valia para a formação cultural de angolanos e moçambicanos e para a sedimentação de um sentimento nacionalista. Em Moçambique, os conflitos de independência tiveram intensa participação de jornalistas e escritores tanto nas frentes de batalha como nas obras que realçaram a ideia de resistência, nacionalidade e negritude.
Assim como Craveirinha, outros autores moçambicanos, tais como Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa e Lilia Momplé se debruçaram sobre os impactos da guerra civil moçambicana no imaginário popular em suas obras literárias. Mia Couto, famoso escritor moçambicano, escreveu sobre essa relação entre a literatura moçambicana e os efeitos deste conflito:
O escritor moçambicano tem uma terrível responsabilidade: perante todo o horror da violência, da desumanização, ele foi testemunha de demônios que os preceitos morais contêm em circunstâncias normais. Ele foi sujeito de uma viagem irrepetível pelos obscuros e telúricos subsolos da humanidade. Onde outros perderam a humanidade ele deve ser um construtor da esperança. Se não for capaz disso, de pouco valeu essa visão do caos, esse Apocalipse que Moçambique viveu. (COUTO, 1998, p. 229).
A obra Babalaze das hienas traz, em sua poesia-resistência (BOSI, 2008), a barbárie que recaiu em Moçambique após sua independência em 1975. A divisão das forças políticas em Moçambique seguiu a bipolaridade que ditava a Guerra Fria e, durante as décadas de 1970, 80 e 90, os conflitos entre a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), que arrastaram Moçambique para uma obscura e sangrenta guerra civil. A obra analisada traz poemas sobre o impacto da violência do conflito civil na população moçambicana. Craveirinha faz questão de colocar essas pessoas como os protagonistas desse sofrimento, pois suas histórias, com toda a diversidade social, são a estrutura de cada poema de Babalaze das hienas:
Desfilam ao longo do livro as personagens mais diversas: trabalhadores comuns (caminhoneiros, parteiras, vendedoras de verduras, esportistas), pais e mães de família, crianças e adultos, filhas e filhos, avós e até um genérico padre português, muitos deles com nomes, sobrenomes e apelidos: Jossias, o ponta esquerda, Madjone Jone Justino, etc. (MOTA, 2015, p. 87).
Ressalta-se a importância do conflito civil no imaginário popular, pois influenciou José Craveirinha e sua geração de escritores em Moçambique a evidenciar os episódios deste conflito em Moçambique nas obras literárias. Com isso, talvez seja necessário indagar: como a poesia de Craveirinha, em Babalaze das hienas, participou da (re)construção de uma identidade moçambicana após a guerra civil?
Espera-se que esta discussão proporcione maior visibilidade à literatura africana, em especial a moçambicana, e ao esforço de autores moçambicanos, como José Craveirinha, de denunciar as ações perpetradas contra seu povo ao longo do processo de disputa política e ideológica que se seguiu à independência. É importante ressaltar que “Babalaze das hienas é um caso invulgar de uma obra poética explicitamente dedicada ao tema do conflito civil em Moçambique” (FALCONI, 2010, p. 120), já que, em suas obras anteriores, Craveirinha se preocupava com a exaltação dos valores culturais e nacionais moçambicanos.
O caráter emancipador da narrativa acerca da violência como um elemento histórico da memória cultural e coletiva em Moçambique é o foco central da nossa abordagem porque, para todos os efeitos, a violência apresentada nas obras literárias moçambicanas se tornou mais frequente no período dos conflitos de independência e foi mantida no período pós-independência — quando os grupos locais passaram a intensificar a disputa pelo poder político. Seria essa permanência da narrativa da violência no cotidiano e na memória dos moçambicanos a ausência de poder? (ARENDT, 1994). Ou seria a recorrência desses episódios de violência na literatura de Moçambique o resultado do poder de uma voz coletiva materializada na palavra?
A cultura do povo moçambicano expressada pela oralidade é verbalizada na poesia de José Craveirinha, que narra essas experiências com sua habilidade poética, ressaltando a dor do povo moçambicano em meio ao caos que se instalara com a guerra civil:
Um dos traços mais representantes da poesia de Craveirinha — a narratividade —, encontra-se também em Babalaze das hienas, onde, como em Karingana ua Karingana, há a presença de um poeta-narrador. Só que em Babalaze, o poeta-griot não conta mais as antigas lendas da terra, porém, os tristes casos que assolam o país destruído pelas guerrilhas iniciadas após a independência de Moçambique. Em linguagem disfórica, irônica, alegórica, neobarroca, narra o pânico instalado na cidade de Maputo, enfocando, principalmente, as classes sociais desfavorecidas, as mais atingidas pela violência. (SECCO, 2003, p. 233).
As poesias de Babalaze das hienas certamente são vozes da sociedade moçambicana, em especial da população desassistida que percorre as ruas das cidades em busca de socorro diante do cenário de tragédia instalado em Moçambique. Essas vozes, parte da memória coletiva, chegaram a Craveirinha das mais diversas formas, inclusive pelo contato direto entre o poeta e as pessoas diretamente afetadas pela guerra civil:
São histórias que o poeta ouve e registra, não importa se nas folhas de um bloco, se nas folhas da memória. Diz Mia Couto, na prosa repassada dos ecos “variáveis” vozes e falas que é a dos seus contos e crônicas, para significar que José Craveirinha, enquanto ouve, com paciente disponibilidade, as histórias dos que o procuram, não perde a sua condição de poeta. (MARTINHO, 2008, p. 3).
Craveirinha utiliza a dolorosa temática da guerra no conjunto de poemas que compõe Babalaze das Hienas, expondo a violência na sua face mais crua. Esses poemas retratam situações corriqueiras no contexto de um conflito civil como a invasão de aldeias no interior, depredação de escolas e hospitais, saques etc.:
Em Babalaze das Hienas, Craveirinha continua sua proposta lúcida de desmascarar as injustiças e opressões também ocorridas nos longos anos da guerra de desestabilização travada entre a FRELIMO e a RENAMO. Os poemas deste livro alertam, criticamente, para a morte que ameaça os moçambicanos, a quem, ironicamente, o eu-lírico chama moçambiquicidas. (SECCO, 2003, p. 232).
Os “moçambiquicidas”, que, na visão de Craveirinha, são os moçambicanos abandonados ao azar do conflito civil em Moçambique, reaparecem nos outros poemas de Babalaze das Hienas como figuras que abrigam todo o sofrimento coletivo que abateu o povo moçambicano. O poema Gente a trouxe-mouxe detalha os problemas relacionados aos deslocamentos forçados, à fome e às mutilações causadas pelas minas:
Gente a trouxe-mouxe
Gente a trouxe-mouxe da má sorte
calcorreia a pátria asilando-se onde
não cheire a bafo
de bazucadas.
Gente que gastronomiza
desapetitosos bifes de cascas
guisados de raízes ao natural
e sobremesas de capim seco.
Gente dessendentando martírios
Nos charcos
Se chover.
Ou a pé descalço dançando.
A castiça folia.
Das minas.
(CRAVEIRINHA, 2008, p. 7).
O drama moçambicano convertido em poesia se alimenta do imaginário popular e descreve as experiências mais cruéis sob a ótica de quem viveu toda sorte de violência física ou simbólica. O estupro se torna objeto poético na obra de Craveirinha no poema Núpcias de Guerra:
Núpcias de Guerra
Sogro à força no lóbolo da guerra
Levado ao longo dos infernos
cômoda sumaúma nupcial
do mato.
Deitada na ultra-mórbida cama-pai
menininha noiva de onze anos
— Ô tatanô!!! — ao primeiro — ... Ô tatanô!!!
— Ô tatanô — ao segundo — Ô tatanô!!!
Ao terceiro sua laringe infantil estertorou
e ao sexto satanás a noiva da guerra
nem pressentiu o alçar de suas asas [...]
Em festa de guerra assim
pai-colchão daquelas desamorosas núpcias
reviverá perpétuo fofo-colchão
fofo-colchão
da menininha desnoivada
desnoivada
desnoivada aos gritos no capim.
morimbundos na mesma corbelha
macabros da mesma boda
pai e filha enchem este “pôster”
da mais lúgubre táctica militar
do código “Núpcias de Guerra”.
(CRAVEIRINHA, 2008, p. 8).
Os aspectos da bipolarização política moçambicana também aparecem nos poemas de Craveirinha, que fez parte dos quadros da FRELIMO. Na poesia de Craveirinha, aparece o sentimento de repulsa pelos guerrilheiros da RENAMO que fizeram parte da violenta história do conflito civil moçambicano. No poema intitulado Gula, os quizumbas ou hienas retratados por Craveirinha são os guerrilheiros do grupo rival ao seu no conflito civil moçambicano. Craveirinha destaca nesse poema a utilização das catanas (facões) e machados contra a população civil pelos guerrilheiros da RENAMO, reforçando a ideia de crueldade e barbárie como característica deste grupo. Seria possível atribuir a intenção do autor em satanizar seus rivais na memória popular?
Gula
Uivam
as suas maldições
as insidiosas hienas
própria sanha.
Rituais
de tão escabrosa gulodice
que até nos esfomeados
aldeões da tragédia
a gula dos quizumbas
se baba nas beiças
das catanas,
dos machados.
(CRAVEIRINHA, 2008, p. 12).
Os atos de barbárie ocorridos durante a guerra civil em Moçambique atingiram diretamente a população civil e marcaram o imaginário coletivo. José Craveirinha, assim como outros escritores moçambicanos, utilizou essa experiência coletiva em suas obras literárias, dentre as quais destaca-se Babalaze das hienas.
Quando se fala em guerra civil, o nosso imaginário nos induz ao pensamento de que o conflito se encerre no âmbito doméstico de um país, como no caso de Moçambique. Porém, a barbárie e o caos narrados na literatura de Craveirinha vão além dos típicos conflitos de grupos étnicos do continente africano, pois fala de um evento genocida, a saber, o colonialismo que dividiu, saqueou, escravizou e aterrorizou a África.
Entre conflitos de interesses de diferentes segmentos étnicos, partidários, políticos, militares, religiosos instalados pelo colonialismo nos países da África, Moçambique também vergou. No entanto, assim como as narrativas orais expressadas, a sobrevivência e a superação são um cuidado homeopático que faz a sua catarse na memória coletiva, seja através dos cultos religiosos, dos estudos, da economia, da arte poética ou por outras formas de ressignificação.
Craveirinha retrata a memória coletiva africana nos permitindo inferir que se constitui como um centro de tratamento humano. Ampliando esta perspectiva em que a ancestralidade e a oralidade africana atuam, Alves (2019), ao tratar sobre um quilombo goiano, fala da capacidade da ancestralidade africana no tratamento de dores profundas. “Analisando a trajetória do povo negro, na África e no mundo, acreditamos que, após as batalhas mais sangrentas, é preciso parar um pouco [...] para ativar as memórias extemporâneas, envoltas na lonjura, e acender os lampejos de consciência”. (p. 141). E o autor fala também que:
Quando nos sentamos para conversar, lembramos dos grandes feitos históricos dos nossos povos. Nossa história foi sufocada e, por vezes, silenciada nos púlpitos do poder. Porém, nas nossas memórias, nas nossas almas e nos nossos corpos estão registradas a nossa própria história. (ALVES, 2019, p. 141).
A escrita de José Craveirinha potencializa essas experiências com sua habilidade poética. No entanto, como falado anteriormente, sua obra não expressa apenas e somente os retratos da violência da guerra civil em Moçambique, mas traz consigo um caráter emancipador do colonialismo. Nos seus poemas, os sujeitos desumanizados são retratos de toda barbárie que assolou a população moçambicana, o que dá à obra uma forma de poesia-denúncia que critica a situação de abandono das pessoas mais vulneráveis de Moçambique, exatamente as mais atingidas pela violência sectária dos grupos politicamente polarizados .
Parafraseando Makota Valdina (ADUNEB, 2019) quando ela fala que não somos descendentes de escravos e sim descendentes de pessoas escravizadas, as memórias evocadas por Craveirinha, portanto, não são essencialmente sobre a guerra civil, mas sobre pessoas submetidas a situações desumanas. Mesmo quando estas pessoas são referenciadas em situações em que sua humanidade é violada, a denúncia do fato permite também à memória coletiva sepultar os mortos com honra e tratar os feridos com respeito:
Eles foram lá
Vovó
amanhã não precisa
ir ao hospital.
Ontem eles foram lá
deram maningue tiros
partiram tudo, tudo
mataram doentes
mutilaram o senhor enfermeiro
e violaram a senhora parteira.
Outros doentes privilegiados
foram carregar na cabeça
farinha, açúcar e arroz
da cooperativa.
…
Foram.
(CRAVEIRINHA, 2008, p. 16).
ADUNEB. Seção sindical dos docentes da Universidade do Estado da Bahia. Makota Valdina, presente! 2019. Disponível em: www.aduneb.com.br. Acesso em: 28 out. 2020.
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Resumo:
Este artigo traz uma reflexão sobre a poesia do escritor moçambicano José Craveirinha, na obra Babalaze das hienas (2008). Nessa reflexão, analisamos o lugar da oralidade e da africanidade na poesia de Craveirinha, que evoca a memória coletiva do seu país, duramente afetado pela guerra civil. O sentimento nacional e o africanismo evocados na poética de Craveirinha não apenas expõem as dores e os horrores que assolaram o seu povo, mas também apontam caminhos de emancipação identitária, política e cultural das opressões colonialistas. Por estas razões é que a escrita de Craveirinha é, em certa medida, um tratamento africano para preservação de sua cultura. Para tal análise, será considerado o poder da oralidade africana na construção desse processo catártico, uma vez que o poeta tem como fonte de inspiração para sua escrita as memórias e as vozes da população atingida pela guerra.
Palavras-chave:
Craveirinha; Babalaze das hienas; poesia; memórias de guerra.
Abstract:
This article brings a reflection on the poetry of mozambican writer José Craveirinha, in Babalaze das hienas (2008). In this reflection we analyze the place of orality and Africanity in Craveirinha’s poetry, that evokes the collective memory of his country, hard hit by civil war. The national feeling and Africanism evoked in Craveirinha’s poetics not only expose the pains and horrors that have plagued his people, but they also point to ways of identity, political and cultural emancipation of colonialist oppressions. For these reasons is that Craveirinha’s writing is, to some extent, an African treatment for the preservation of its culture. For this analysis, the power of African orality in the construction of this cathartic process will be considered, once the poet has as a source of inspiration for his writing the memories and voices of the population affected by war.
Keywords:
Craveirinha; Babalaze das hienas; poetry; war memories.
Recebido para publicação em 31/10/2020
Aceito em 09/12/2020