Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 2, jul./out., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.2.a04
ISSN: 2318-4620

 

 

Mulheres negras que narram a luta pela liberdade individual e/ou coletiva:
uma leitura das obras Quarto de Despejo, da brasileira Carolina Maria de Jesus, e Diário de um exílio sem regresso, da angolana Deolinda Rodrigues

 

Eni Alves Rodrigues OrcID
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as, Brasil
enialro@gmail.com

 

A liberdade nunca é alcançada sem sofrimento e sacrifício. Ela só é conquistada com trabalho persistente e incansável de pessoas dedicadas.

Martin Luther King.

(RODRIGUES, 2018, p. 32).

Neste artigo, pretende-se analisar o relato de duas mulheres negras que se apropriaram da escrita para narrar suas histórias, narrando ao mesmo tempo a história da nação de cada uma delas. Ao fazer a análise das obras das autoras, Carolina Maria de Jesus e Deolinda Rodrigues, a primeira, brasileira e a segunda, angolana, podemos perceber que ambas, mulheres subalternizadas, adotam o gênero textual “diário” para relatar suas histórias, contando assim a história não oficial do país delas. Nesse sentido, em Quarto de despejo: diário de uma favelada, primeira edição em 1960, Carolina Maria de Jesus apresenta uma escrita de si que é também um relato de luta diária dos pobres, negros e mulheres no Brasil pela existência e subsistência. Na obra de Deolinda Rodrigues, Diário de um exílio sem regresso, escrito na década de 1970 e publicado apenas em 2003, acompanhamos o relato da luta pela independência da nação angolana feito por uma mulher negra. É intuito deste artigo mostrar os distanciamentos e aproximações das estratégias narrativas destas duas mulheres negras bem como o olhar feminino que elas têm da nação de cada uma delas.

Nos diários que analisamos, vimos que a narrativa das duas histórias se passa em meados da década de 1950 e 60. Enquanto, no Brasil, havia o vislumbre do desenvolvimento econômico, com o projeto “50 anos em 5”, do presidente Juscelino Kubitscheck; em Angola, Deolinda Rodrigues e os angolanos buscavam a independência de seu país, que no momento era colônia de Portugal. Nesses diários, a literatura de testemunho, que poderia ser apenas a escrita individual, vai além, é o relato do cotidiano da história dos países das autoras, da condição de mulher negra vivida por elas, pois, segundo Margarida Ribeiro e Roberto Vecchi (2012), “a memória poética tem possíveis elos em comum com a construção de uma memória cultural e, sobretudo, pública, considerando a tensão que marca a relação entre memória e poesia.” (RIBEIRO; VECCHI, 2012, p. 29).

O viés poético e literário das memórias desses diários é notável e não cabe a este artigo a discussão sobre se o texto de ambas é ou não literatura, dado já extensas reflexões sobre este assunto, como podemos citar:

O diário é o registro de presentes sucessivos, aberto para um futuro indeterminado e fatalmente limitado pela morte. Desde o começo, ele programa sua releitura. Talvez não seja lido de fato, mas poderia sê-lo. É um sinal de radar que enviamos ao futuro e que sentimos misteriosamente voltar para nós. Sem essa presença do futuro, não escreveríamos. O diário não dá acesso à contingência de um fim absoluto, mas à transcendência de uma ou várias releituras futuras. Não o imaginamos terminado, mas o vemos antes relido (por nós) ou lido (por outro). (LEJEUNE, 2008, p. 272).

O diário é considerado um gênero memorialístico biográfico e que tem muitas justificativas para ser produzido. Philippe Lejeune (2008) enumera três motivações na escrita de um diário para a vida do autor: aquele seria um horizonte de expectativa de vida; o ponto de vista de sua relação com a finalidade da vida; ou ainda o fim da vida como uma realidade possível. Sendo assim, podemos pensar que Quarto de despejo traz em si muitas características da primeira motivação enumerada por Philippe Lejeune (2008), pois o diário de Carolina Maria de Jesus apresenta uma escrita infinita, que traz a esperança do dia seguinte e almeja releituras posteriores a serem feitas pela própria autora ou para ser publicado e lido por outra pessoa.

O diário de um exílio sem regresso parece estar na terceira motivação especificada por Philippe Lejeune (2008) para os diários, pois, segundo o teórico, nessa dimensão, o diário seria aquele que se mantém quando se está à beira da morte, para suportar a própria condição ou como um instrumento de luta, ou seja, a morte ronda o autor desta dimensão de diário.

Nesse sentido, a contribuição do subgênero diário para a estética literária do gênero memorialístico é um fato já consagrado. As duas autoras contribuem muito com a história da Literatura de seus países e com a história das escritoras mulheres, principalmente as negras. As mulheres, em um passado não muito distante, não possuíam lugar de escrita na Literatura e, muitas vezes, as suas palavras escritas só podiam vir à tona de forma velada no mundo machista que vivenciavam. Frequentemente, as mulheres que optaram pela manutenção de um diário, o fizeram pela falta de opção por outros gêneros literários, já que não estavam autorizadas a produzir outro tipo de escrita e adotaram esta forma literária em razão das circunstâncias em que viviam.

Sabemos que essas duas obras têm uma escrita de si que narra a escrita da nação. A nação, conceito complexo, trabalhado por estudiosos das ciências sociais e da literatura. Atendo-se ao enfoque literário, temos as discussões de Antonio Candido (1999) que, ao refletir sobre a existência de uma literatura nacional, reflete que deve haver, para isso, três eixos: leitor, autor e um sistema imaginário próprio de nação (com mitologia, heroísmo, condições de efabulação etc.). Na literatura, esse projeto de escrita de nação encontra morada, pois os sujeitos querem narrar suas histórias de glória ou retirar o lugar de silenciamento de minorias dentro um país. Conceitos próximos como pátria, nação e país são distintos entre si e próximos para construção de identidade de um povo. A construção de identidade de um povo passa, necessariamente, pela língua e, portanto, pela escrita literária. Nesse sentido, vemos um projeto de nação que se constrói pelos fatos históricos de luta, seja pela independência de colônias, como no caso de Angola, seja pela luta contra as desigualdades, como no Brasil.

Outro fator relevante, a ideia de nação “é figurado por atributos femininos.” (FONSECA, 2000, p. 225). Nessas duas histórias aqui analisadas, podemos verificar a força de autoras ao contribuir para reflexões sobre a nação que está para “nascer” (Angola) e a que cria com desigualdade seus filhos (Brasil). Assim, tanto na literatura brasileira quanto nas literaturas africanas de língua portuguesa, principalmente na década de 1960, vemos uma literatura marcada pelo comprometimento ético para com a nação. Para isso, valem-se de metáforas para “figuração de terra, território, ao se relacionar com imagens ligadas à mãe, ao milagre da gestação e do nascimento recompõe a paisagem interior da identidade nacional.” (FONSECA, 2000, p. 225).

Ainda sobre o aspecto de nação, podemos refletir sobre o processo de escrita de nação pela ideia da guineense Moema Augel ao pensar sobre “os desafios do escombro”, para reconstruir uma história na qual os sujeitos subalternizados não têm voz nem vez, seja na história da nação seja em sua literatura. Quarto de Despejo, da brasileira Carolina Maria de Jesus, assim como Diário de um exílio sem regresso, da angolana Deolinda Rodrigues, “praticam um ato político e de autoafirmação, ao construírem, por exemplo, textualidades que tanto rasuram e desconstroem a visão colonial” (AUGEL, 2007, p. 45).

No diário da escritora brasileira, temos o relato diário de sua sobrevivência, de seus filhos e dos vizinhos da favela. No relato de sua vida, ela vai nos dizendo do cotidiano do país. A realidade marginal de uma mulher negra, pobre, mãe solteira, catadora de materiais recicláveis é aquilo com que nos deparamos na abertura de seu diário1:

Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.

Eu não tinha um tostão para comprar pão. Então eu lavei 3 litros e troquei com o Arnaldo. Êle ficou com os litros e deu-me pão. Fui receber o dinheiro do papel. Recebi 65 cruzeiros. Comprei 20 de carne. 1 quilo de toucinho e 1 quilo de açucar e seis cruzeiros de queijo. E o dinheiro acabou-se.

Passei o dia indisposta. Percebi que estava resfriada. A noite o peito doía-me Comecei tussir. Resolvi não sair a noite para catar papel. Procurei meu filho João José. Ele estava na rua Felisberto de Carvalho, perto do mercadinho. O ônibus atirou um garoto na calçada e a turba afluiu-se. Êle estava no nucleo. Dei-lhe uns tapas e em cinco minutos êle chegou em casa.

Ablui as crianças, aleitei-as e ablui-me e aleitei-me. Esperei até as 11 horas, um certo alguem. Êle não veio. Tomei um melhoral e deitei-me novamente. Quando despertei o astro rei deslisava no espaço. A minha filha Vera Eunice dizia: ─ vai buscar agua mamãe! (JESUS, 2000, p. 13).

Nesse primeiro relato, tomamos conhecimento das dificuldades de Carolina Maria de Jesus. Obstáculos é o que vemos também na leitura da primeira página que aparece no diário de Deolinda Rodrigues, quando esta nos conta que: “O Bigorna trouxe para casa o Belarmino que me fez perguntas. Parece aceitarem-me no movimento nacionalista, embora Sr. Benje e outros velhos estejam com receio por eu ser mulher.” (RODRIGUES, 2003, p. 27).

O processo de subalternização das duas mulheres não é algo a ser descoberto, elas já dizem dele no primeiro relato. Assim sabemos o que esperar nos diários: as privações de Carolina e as provações de Deolinda.

Nas duas obras, temos a mediação na produção do texto: a coautoria (um editor). No caso da escritora brasileira, temos o jornalista Audálio Dantas, que afirma ter feito apenas correções sutis na gramática portuguesa da autora, mantendo as marcas de oralidade de Carolina Maria de Jesus. Ao longo dos muitos estudos sobre Quarto de despejo, sabemos que o editor foi além disso; ele fez diversos cortes e seleções no texto original de Carolina Maria de Jesus, portanto, o que temos no Diário, majoritariamente, é a Carolina que Audálio Dantas quis mostrar. Cortes estes justificados pelo coautor da seguinte maneira: “A repetição da rotina favelada por mais fiel que fosse, seria exaustiva. Por isso foram feitos cortes, selecionados os trechos mais significativos” (JESUS, 2000, p. 3). Podemos nos perguntar de que maneira ele julgou quais trechos seriam ou não “significativos” e, ainda, “significativos” para quê, para quem?

A mediação da obra Diário de um exílio sem regresso ocorre pela intervenção do irmão da autora: Roberto de Almeida. Ele, assim como Audálio Dantas, afirma que não houve cortes na reprodução do diário de Deolinda Rodrigues, mas podemos questionar as motivações do longo período transcorrido desde a data do acesso ao material deixado por ela, em 1974, até a data da publicação do livro, ocorrida em 2000. Essa espera para publicar leva a indagações sobre os motivos desta demora de publicação e quais seriam os impedimentos da divulgação de informação sobre a guerrilheira mais conhecida da luta pela independência de Angola. Margarida Paredes (2011) questionou os silêncios e não ditos no diário de Deolinda, interrogando se

eram resultado de uma moral e uma ética herdadas do puritanismo protestante ou consequência da censura do editor destinada a preservar a vida privada da família à qual ambos pertenciam, já que o editor Roberto de Almeida e Deolinda Rodrigues são irmãos. (PAREDES, 2011, p. 13).

Porém, após a apresentação do artigo, no qual a autora fazia tal questionamento, no IV Encontro Internacional de História de Angola em Luanda (set.-out. 2010), a autora recebeu um email de Roberto de Almeida, datado do dia 11 de outubro de 2010, em que ele afirmava: “Quanto à observação ‘insinuada’ de ter havido censura da minha parte no que se refere à vida sentimental de Deolinda, reitero a minha afirmação de que tal não aconteceu”. (PAREDES, 2011, p. 13). Não fica claro, por esta afirmação, se houve outros tipos de cortes na obra.

Podemos dizer que a mediação não reduz o mérito da obra nem o caráter biográfico destes diários, pois, a nosso ver, a escrita é sempre mediada, seja pela linguagem, que tem aspecto plurilinguístico (BAKHTIN, 1993), ou pelos próprios recursos narrativos memorialísticos, que são sempre subjetivos (FREUD, 1899) e afetivos (SCHOLLHAMMER, 2012).

Nos diários publicados, postumamente ou não, o editor ou o próprio autor do diário organiza a estrutura e a ordem do texto e seleciona os anexos, as fotografias... Enfim, compõe a obra final do relato pessoal visando a leitura de outrem. E, a partir daí, a vida íntima narrada pode ser vista por leitores que produzirão sentidos a partir das diversas interpretações que o texto suscitará.

Na leitura comparativa dos diários vemos muitos pontos que aproximam as duas narrativas. O primeiro deles é o fato de as duas autoras serem negras2 e usarem seus relatos pessoais e íntimos para narrar a luta pela liberdade. Carolina Maria de Jesus lutava pela liberdade de existir, de ser alguém. Ela foi a primeira mulher negra a deslanchar no mercado editorial brasileiro, porém, fazemos a ressalva de que esta abertura mercadológica à literatura afro-brasileira não se consolidou. Acrescentamos que, inicialmente, sua obra atraiu atenção pela busca do exótico: uma negra, com pouca escolaridade, catadora de papel e que escrevia. Contudo, a História confirmou a importância de Quarto de despejo para a Literatura afro-brasileira e para a denúncia social de um momento histórico de desenvolvimento econômico brasileiro, que contemplava apenas uma parcela da população: a elite branca. A escrita de si, que Carolina narra insistentemente, diariamente, repetidamente, nos conduz a uma catadora de palavras, que utilizava a oralidade ao lado de uma poética rebuscada para fazer uma narrativa ressentida do difícil cotidiano de uma mulher pobre e negra, mãe solteira que se permitia falar. (SPIVAK, 2010).

A luta pela liberdade em O diário de um exílio sem regresso é pela independência de Angola, pelo fim da longa e perversa colonização do país por Portugal. Deolinda Rodrigues começa seu diário narrando, nessa batalha, as duas lutas que enfrentará: a primeira, pela independência de seu país e, já a segunda, por sua condição de mulher dentro da sociedade, principalmente dentro do MPLA (Movimento pela Libertação de Angola). Ela teve que vencer várias provações para poder conquistar seu direito de pegar, literalmente, nas armas na guerra da independência. A singularidade de ter mulheres na guerra pode ser vista no seguinte excerto: “[...] a companheira disse-me para tirar as balizas da corda; finquei o pé: é roupa, tem de habituar-se a ver balizas, como se fossem as cuecas deles.” (RODRIGUES, 2003, p. 175).

Deolinda acreditava que a mulher poderia estar presente em todos os lugares da luta pela libertação de Angola: nos bastidores, nas comissões e no front. E, se estavam no front, porque suas roupas não poderiam ser vistas no varal?

Nesse sentido, podemos dizer que essas duas autoras, privadas de seus direitos, trazem a literatura aliada ao ressentimento, uma escrita ressentida, no sentido de re-sentir, dar novo sentido ao experenciado. Adotamos aqui a interpretação de Friedrich Nietzsche3 para o ressentimento, interpretado por um viés subjetivo e social, ou seja, o indivíduo adquire potência para agir e reagir, seja na vida pessoal ou social. Nos diários de Deolinda Rodrigues e Carolina Maria de Jesus, podemos dizer que elas adotam o segundo tipo: o social, ou seja, o ressentimento entendido como um resultado do impedimento da ação, um ressentimento que designa uma vontade de poder operante. Nietzsche fala de uma vontade de poder que se manifesta no direito, na política, na religião, na moral, e isto como um meio de opor-se aos impedimentos, tanto em termos individuais quanto coletivos.

Inscritas em sociedades com muitas desigualdades, Carolina e Deolinda se lançam na busca de seus direitos, reivindicando aquilo que lhes é negado:

No ressentimento, o mal está sempre no outro. O ressentido é a vítima que foi prejudicada, abusada ou deixada para trás, o que a autoriza a vingar-se ou a reivindicar, em silêncio acusador, o reconhecimento que lhe foi recusado. (KEHL, 2004, p. 136).

Apesar de se sentirem oprimidas, estas duas autoras se inscrevem em uma batalha diária por seus sonhos, se investem de potência através da luta pela escrita, apesar de subalternizadas socialmente, lutam pelo seu lugar de direito e não pelo lugar de outrem, ou seja, re-sentem o sentimento de subalternização a elas destinadas. Carolina acreditava no poder de sua escrita como algo essencial para a vida. Ela sentia que seus livros mereciam um espaço na sua moradia simples e assim se esforçou para construir uma “biblioteca” em seu barracão para abrigar os livros e cadernos que possuía. O valor dado à escrita e à leitura começou cedo, pois ela lia tudo que tinha acesso desde tenra idade:

Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a Historia do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da pátria. Então eu dizia para a minha mãe:

— Porque a senhora não faz eu virar homem?

Ela dizia:

— Se você passar por debaixo do arco-íris você vira homem.
Quando o arco-iris surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-iris estava sempre distanciando. Igual os políticos distantes do povo. Eu cançava e sentava. Depois começava a chorar. Mas o povo não deve cançar. Não deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo. Eu voltava e dizia para a mamãe:

— O arco-iris foge de mim. (JESUS, 2000, p. 48, grifo nosso).

Assim como a brasileira Carolina percebia a exclusão social, a angolana Deolinda sabia da necessidade da independência de seu país. Carolina Maria de Jesus lutava por igualdade e contra a má distribuição de renda, enquanto que Deolinda Rodrigues sabia que a colonização tinha que acabar, mas não acabaria sem luta. Os anseios destas duas guerreiras podem ser notados nos trechos a seguir:

[...] queremos paz com direitos, com soberania e com dignidade! Queremos paz sem renunciar à ser revolucionários, sem renunciar a revolução. [...] Filhos da puta dos portugas! Como coexistir com estes cachorros enquanto não estivermos livres. (RODRIGUES, 2003, p. 113-116).

... Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro. Quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paiz dos políticos açambarcadores. (JESUS, 2000, p. 35).

Nas batalhas da guerra pela libertação de Angola, Deolinda seguia lutando e narrando sua luta contra o inimigo colonizador. Já pelas ruas de São Paulo, a maior inimiga da Carolina Maria de Jesus era fome, que ela enfrentava com trabalho árduo. Nessa luta cotidiana, ela, assim como Deolinda Rodrigues, sentia-se parte de um sistema perverso de aprisionamento dos pobres a lugares difíceis de sair e de sobressair.

[...] As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapete de veludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. (JESUS, 2000, p. 33, grifo nosso).

Podemos perceber, nos recursos estéticos adotados nos diários que analisamos, a literatura testemunhal, na qual um momento histórico de um indivíduo é narrado pelo autor, mas vai além, apropriando-se também de fatos ocorridos no país em que o autor vive.

No Diário de um exílio sem regresso, ao contar sobre a luta coletiva, a autora nos conta muito de si, de seu dia a dia, de sua vivência na “família” metodista e na “família” MPLA. Mas a história de vida da mulher Deolinda também vem à tona:

Na Igreja Metodista o estudo e a escrita eram encarados como um potencial transformador da vida e as mulheres eram encorajadas a estudar. Deolinda trocou o sonho pessoal pelo envolvimento no sonho colectivo do nacionalismo angolano. Pela seriedade com que se dedicou à causa nacionalista, pela consistência do seu exemplo que a levou à morte, a representação que a nação faz de Deolinda é a de uma heroína feminina. (PAREDES, 2011, p. 15).

O poder da luta armada nessa narração da guerra de Angola é permeado pela necessidade da escrita, da leitura. Deolinda era estudiosa, conhecia idiomas e sabia que a Educação é uma arma poderosa assim como a escrita. Embora Carolina também soubesse do poder do conhecimento, ela não possuía formação acadêmica. Podemos confirmar essas impressões, nos seguintes trechos:

... Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar meu carater. (JESUS, 2000, p. 13).

[...] Enquanto o Movimento, a nossa luta precisar de mim, ou melhor puder aproveitar-me, não vou insistir mais nessa questão dos estudos. [...] Se mais tarde, depois da volta doutros quadros houver oportunidade e a minha vez chegar para realizar o meu sonho de servir ANGOLA LIVRE como médica, é com alegria que irei então continuar os meus estudos. Mas até lá fico a prestar trabalho onde a luta EXIGIR. Bem, deixa-me ir ajudar na louça e no jantar. (RODRIGUES, p. 70-71, destaques da autora).

A primeira grande diferença dessas duas autoras reside nesse ponto da formação acadêmica, talvez apenas um detalhe, já que ambas descrevem o cotidiano da luta dos negros pela igualdade de direitos, pela libertação, seja ela de fato (Angola) ou da opressão econômica e racial (Brasil). Apesar dessa distância de formação acadêmica, (Deolinda quase se formou em Sociologia e Medicina, dominava o idioma inglês e o kimbundo, enquanto que Carolina não tinha um diploma sequer) ambas têm estratégias textuais que denotam um cotidiano árduo, porém cheio de sonhos e linguagem poética, como podemos ver nos seguintes trechos:

Eu gosto das dificuldades, destas aventurinhas que fazem a pessoa transpirar de repente, pensar, dar voltas ao miolo! Sem momentos destes, a vida torna-se insípida e o indivíduo parado de mente! A vida é uma luta: ou o indivíduo aceita o desafio e avança ou lamenta-se durante toda a existência e não faz nada. Eu aceito o desafio! (RODRIGUES, 2003, p. 101).

Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente perde o sono começa pensar nas miserias que nos rodeia. […] Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. […] É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela (JESUS, 2000, p. 52).

Seguindo o percurso por uma narrativa que dá condições de existência às mulheres negras massacradas pelo cotidiano difícil, a escrita destas duas mulheres abre espaço para uma esfera de busca de outras possibilidades de vida. O cotidiano de luta é narrado de forma a mostrar os contrastes vivenciados pelas autoras e a convivência delas com a alegria de pequenas conquistas e com as asperezas de uma sociedade capitalista e machista.

A linguagem de Carolina Maria de Jesus é, ao mesmo tempo, um retrato da realidade dura de uma favela e um texto permeado por rebuscado lirismo. São trechos requintados, mostrando seu conhecimento literário, pois ela era uma leitora voraz. O contraste da linguagem mostra o contraste de sua vida: era rica de palavras, gosto clássico e andava feito mendiga. Assim, catando as melhores palavras, ela buscava conforto na leitura e na escrita:

Passei o resto da tarde escrevendo. As quatro e meia o senhor Heitor ligou a luz. Dei banho nas crianças e preparei para sair. Fui catar papel, mas estava indisposta. Vim embora porque o frio era demais. Quando cheguei em cada era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem. (JESUS, 2000, p. 22).

Deolinda Rodrigues buscava, na escrita, a expurgação dos seus sentimentos, não se sentia bem com a censura a suas cartas e bilhetes e considerava a sua escrita pouco elaborada, como podemos observar:

Afinal a malta censora sabe de toda parvoíce que escrevo? Mamãe, que vergonha! Enfim, sou humana, que hei de fazer? Seria melhor mandar só coisas em vez de escrever para evitar rumores e encrencas. É tão chato e desanimador levar uma vida desviada, forçada a seguir certo rumo, mas não há outro caminho. (RODRIGUES, 2003, p. 108).

Deolinda e Carolina viviam com a certeza dos sacrifícios exigidos por suas escolhas, já que mulheres acima de 25 anos de idade, na década de 60, deveriam estar casadas e serem donas de casa. Mas elas seguiram seus sonhos, abdicaram de adotar os padrões da sociedade e optaram por lutar até o fim. Carolina queria ter independência financeira e ser uma escritora reconhecida. Deolinda escolheu ser uma guerrilheira para ver Angola livre. O sacrifício diário marcava o cotidiano delas e a autoescrita funcionava como o processo de construção de uma narrativa sobre si e sobre as condições de vida das duas autoras.

Nessa busca pela subjetividade, vemos uma narrativa fragmentada, entrecortada. Carolina e Deolinda mudaram diversas vezes seus endereços, conviveram de perto com deslocamentos sociais e, consequentemente viveram não pertencimento ao lócus social. Podemos perceber essa sensação no excerto a seguir:

O sujeito dividido e desarticulado, interrogando-se o seu lugar, espelhando a fragmentação e desorientação (ou as reorientações) da sociedade fim de século, é característico da pós modernidade, da qual as identidades cambiantes e transitórias são decorrências. A biografia individual escapa muitas vezes da linearidade, atestando uma sequencia, até talvez desconexa, de papeis, tarefas, trabalhos lutas internas e externas pela sobrevivência. (AUGEL, 2007, p. 236).

Às vezes, o cansaço nas batalhas, pela sobrevivência ou pela subjetividade desanimava de tal modo que as autoras abdicavam até de escrever seus diários. No diário de Deolinda Rodrigues, há dias que esta escreve apenas uma frase: “As flores que a corrente levou Flores n’água” (RODRIGUES, 2003, p. 55). E Carolina passava vários dias sem escrever: “Eu parei de escrever o Diario porque fique desiludida. E por falta de tempo.” (JESUS, 2000, p. 141). No ano de 1959, Carolina Maria de Jesus fica de 23 de fevereiro até 29 de abril sem escrever. As duas sentem um cansaço da luta pela libertação e, às vezes, os muitos obstáculos nos combates cotidianos silenciam tanto que até a vontade de escrever desaparece.

As dificuldades de sobrevivência, muitas vezes presentes nos diários, seja pela violência do entorno, seja pelas condições sociais ou econômicas, como a fome, marcam a história de vida narrada nos diários. A autora brasileira convivia com dureza da vida de favelada e sofria por causa da fome, como afirma em seu diário ao dizer: “Eu não ia comer porque o pão era pouco. Será que é só eu que levo esta vida? O que posso esperar do futuro?” (JESUS, 2000, p. 29). Deolinda Rodrigues passava necessidades e sentia fome por causa da vida de guerrilheira que escolheu: “a fome é quase total entre os guerrilheiros! Que vontade de desaparecer da circulação.” (RODRIGUES, 2003, p. 84).

A narrativa do dia a dia, por muitas vezes repetida e enfadonha, denuncia o quão era rotineira a fome para Carolina Maria de Jesus e a falta de esperança para Deolinda Rodrigues. Assim, no diário da primeira, deparamos com a repetição da palavra “fome”. A fome está tão presente que esta passa a ser uma “personagem” da narrativa, conforme afirma o editor de Quarto de despejo, Audálio Dantas, no prefácio do livro:

a fome aparece no texto com uma frequência irritante. Personagem trágica, inarredável. Tão grande e tão marcante que adquire cor na narrativa tragicamente poética de Carolina (JESUS, 2000, p. 3).

Se Carolina convivia diariamente com a companhia da fome, Deolinda relata, em seu Diário de um exílio sem regresso, a falta de perspectiva por tantos percalços na vida. Isto pode ser visto pelo uso da palavra “chatice”, que aparece já no quinto dia que ela escreve no diário, e assim vai repetindo por mais de vinte vezes ao longo da escrita dele. O uso exagerado desta expressão popular, que é usada para designar aquilo é desagradável de se conviver, nos mostra que Deolinda Rodrigues não queria desanimar, mas algumas situações eram tão avassaladoras que ela se sentia chateada, sem forças para reagir. Esse silenciamento diante os obstáculos na luta pela libertação de Angola, na situação desesperadora de uma guerrilheira angolana ou ainda na vida dentro “família” MPLA pode ser exemplificada nas situações a seguir:

Vai ser lindo viver bem no estrangeiro enquanto nossa gente vegeta sob uma PIDE4 destas. Que fatalidade! Não sei quanto tempo vai durar tudo isto. Mais valia não ter nascido, chatice! (RODRIGUES, 2003, p. 35).

chatices na política. Temos muitos chefes no MPLA. Enfim, tudo isto dá chatice. (RODRIGUES, 2003, p. 43).

O que me interessa mesmo é só avançar a luta d’Angola. O resto não tem importância e não devo ligar a tudo. Basta de chatices. (RODRIGUES, 2003, p. 62, grifo nosso).

Essas repetições, nos dois diários analisados neste artigo, podem ser vistas como marcas da própria dificuldade de dar sentido ao que foi vivido, mas talvez possam também demonstrar a posse das experiências vivenciadas, por meio da escrita. Podemos dizer que “O eu responde ao traumático com vistas a dominar a força destrutiva do trauma, e é nesse sentido que o eu pode utilizar-se da repetição (conceito freudiano) com o propósito de religamento à vida.” (ANTONELLO; GONDAR. 2013, p. 184). No caso destas duas mulheres, elas ressentiram as dificuldades e lutaram para se libertarem dos processos de subjugo nos quais eram obrigadas a conviver cotidianamente.

Na tentativa de se libertar do processo subalternização da mulher, principalmente da mulher negra na sociedade no caso da brasileira Carolina Maria de Jesus, as duas autoras buscam resistir, inclusive não desistindo da vida, mesmo com tantas situações adversas. A enunciação delas como sujeito a cada dia, mesmo pensando que a vida não valeria mais ser vivida, pode ser verificada quando estas afirmam que:

Que chatice! Que vergonha! Que traição a nossa pra com os que sofrem lá dentro! Não será melhor suicidar-me? (RODRIGUES, 2003, p. 44).

Dura é o pão que nos comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado. (JESUS, 2000, p. 37).

Os cinco anos vividos e narrados por Carolina Maria de Jesus, depois editados por Audálio Dantas, em Quarto de despejo marcam a literatura brasileira e mundial trazendo a perspectiva de dentro da favela, o subalternizado falando de si, trazendo para o mundo das Letras, a oralidade e a realidade da fome, tão presentes em favelas, locais de despejo de seres refugados (BAUMAN, 2005). Carolina buscava para si a libertação da condição de refugo social, almejava atingir este objetivo sendo uma escritora. Mas era consciente dos obstáculos vindos da situação política, social e econômica do país, ela reconhecia as fraquezas do Brasil: “No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco morre um dia.” (JESUS, 2000, p. 35).

Enfraquecida diante da realidade penosa, Carolina se reconhece como um “ser da margem” no sentido literal e simbólico:

... Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado marginais. Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituiram os corvos. (JESUS, 2000, p. 48, grifo nosso).

Carolina tem consciência de que o desenvolvimento econômico, quase sempre contempla poucos, deixando muitos sem condição digna, como podemos ver quando ela descreve a cidade de São Paulo. “[...]... Eu classifico São Paulo assim: o Palacio, é sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.” (JESUS, 2000, p. 28).

Na sua escrita, ela fala muito dos habitantes desse “lixão” 5 de seres humanos que é a favela, mas se referindo a outros, depois passa incluir a si mesma, reconhecendo-se como favelada: “Devo incluir-me, porque eu também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo.” (JESUS, 2000, p. 33).

A condição de favelada de Carolina pôde ser superada com a publicação de seu diário, mas, apesar de Quarto de despejo ter alcançado uma grande vendagem no Brasil e ter sido traduzido para vários idiomas, Carolina não conseguiu manter-se como destaque no mercado editorial brasileiro, também não alcançou, em vida, o cânone literário. Anos mais tarde, a contribuição literária da sua escrita ecoa de forma sempre atual e pujante no Brasil e no mundo, seja na Literatura ou nos movimentos sociais, negro, de gênero e outros.

Também Deolinda Rodrigues não conseguiu ver Angola independente como queria, mas se tornou uma heroína para o povo angolano. Embora não tenha vivido para ver Angola livre, deixou sua trajetória no diário e pôde narrar a luta pela independência angolana de dentro do MPLA, mostrando as agruras da guerra vivenciadas pelos guerrilheiros, mas, principalmente, narrando as singularidades de uma mulher guerrilheira. A personalidade e a estratégia narrativa de Deolinda Rodrigues se entrelaçam em seu diário, como descreve seu irmão, Roberto de Almeida, o editor do livro:

Talvez não agradem ao leitor as referências e a observações críticas feitas a respeito de alguns personagens, mas Deolinda era assim mesmo — um doce e compreensiva, mas também cáustica e dura, quando necessário, no contexto da época. Em algumas passagens deste depoimento, notam-se interrupções por certo, determinadas pelos imprevistos da vida no “maquis”. O próprio diário termina de repente, como voz que se afoga na garganta em plena ação, como ave atingida em pleno voo. (RODRIGUES, 2003, p. 23).

A importância da voz de Deolinda Rodrigues, com seu diário, para as mulheres e para a história angolana é reforçada no prefácio à segunda edição de Diário de um exílio sem regresso, feita por Cornélio Caley:

[...] com este diário, Deolinda deixa claramente o campo de simples heroína do MPLA para, definitivamente, se juntar ao campo dos heróis da pátria angolana. Sem este diário, Deolinda continuaria anônima ou militante desconhecida da mitologia do MPLA. (RODRIGUES, 2018, p. 26).

Essa importância da encenação narrativa para a subjetividade e para a memória dos africanos pode ser percebida quando Achile Mbembe afirma que:

Só as práticas dispares, e frequentemente intesectantes, através das quais os africanos encenam a sua conduta e a sua vida, podem explicar a espessura de que é feito o presente africano. (MBEMBE, 2000, p. 31).

As duas mulheres negras inscritas e autodescritas nesses diários encenam a luta diária que havia, e ainda há, pela liberdade individual e coletiva no mundo. Em lados opostos do Atlântico, essas duas autoras negras levantam a voz do povo negro e das mulheres e buscam se “livrarem” do sofrimento diário em espaços de refugo humano. E Deolinda vai questionar, em seu diário, incessantemente até a última página, se a luta teria sido em vão: “[...] Quando nos livramos de tudo isso mamãe? Tudo parecia já tão bem e de repente, bumba: Kamuna!” (RODRIGUES, 2003, p. 112). Esse livramento, em forma de livro, pode ter uma contribuição dos leitores, críticos ou não, que interpretam e perpetuam a voz dos despejados das condições dignas de vida, pois, segundo Carolina Maria de Jesus,

A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro. (JESUS, 2000, p. 147).

Esta conexão entre vida e escrita talvez leve a sociedade a ressentir a “chatice” da subalternização dos povos e produza “fome” de igualdade nas narrativas escritas e no mundo em geral. A importância da escrita nas lutas pela libertação é assim descrita por Maria Rita Kehl quando afirma que “A escrita funciona como cura do ressentimento porque fornece a possibilidade de reconsiderar o que sempre tivera como certo e inquestionavel”. (KEHL, 2004, p. 184).

Enfim, vimos, nas narrativas de Quarto de despejo, da brasileira Carolina Maria de Jesus, e no Diário de um exílio sem regresso, da angolana Deolinda Rodrigues, a luta diária pela liberdade individual e/ou coletiva. Vimos também, a importância da escrita de si, especificamente a literária, em que mulheres e negros necessitam publicar e publicizar suas histórias, mostrando que os silenciamentos podem ser superados e que os subalternizados têm direito a voz, seja na palavra escrita ou oral, e, além disso, precisam ser ouvidos e lidos.

Referências

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AUGEL, Moema Parente. O desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na literatura da Guiné-Bissau. Rio de janeiro: Garamond, 2007.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo: UNESP, 1993.

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Trad. Carlos Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

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FONSECA, M. N. S. O corpo feminino da nação. Scripta, v. 4, n. 6, p. 225-236, 2000. Disponível em: periodicos.pucminas.br. Acesso em: jan. 2021.

FREUD, Sigmund. “Lembranças encobridoras”. In. Obras completas. v. 3. 1899. p. 285-304. Disponível em centropsicanalise.com.br. Acesso em: mar. 2018.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2000.

KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. Maria Inês Coimbra Guedes e Jovita Maria Gerheim Noronha. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

MBEMBE, Achile. Formas africanas da escrita de si. 2000. Disponível em: www.academia.edu. Acesso em: mar. 2018.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Disponível em: neppec.fe.ufg.br. Acesso em: ago. 2017.

PAREDES, Margarida. Deolinda Rodrigues, da família metodista à família MPLA, o papel da cultura na política. Cadernos de Estudos Africanos, v. 20, p. 11-26, 2011. Disponível em: journals.openedition.org. Acesso em: mar. 2018.

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RODRIGUES, Deolinda. Diário de um exílio sem regresso. Luanda: Nzila, 2003.

_____. Diário de um exílio sem regresso. 2 ed. rev. ampl. Luanda: Mayamba, 2018.

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SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.


  1. Em todas as citações de Quarto de despejo foi mantida grafia fiel à de Carolina Maria de Jesus em seu diário, portanto não são erros de ortografia ou de digitação.↩︎

  2. Apesar do racismo contra negros ter semelhanças no mundo todo, fazemos a ressalva das condições diferentes de ser negro no Brasil e em Angola, já que, no Brasil, há um preconceito contra negros e em Angola-colônia havia mais o preconceito contra os angolanos, além de haver racismo também.↩︎

  3. Friedrich Nietzsche. Genealogia da Moral. (Disponível em: neppec.fe.ufg.br. Acesso em: ago. 2017).↩︎

  4. Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) foi a polícia política portuguesa entre 1945 e 1969, responsável pela repressão em Portugal e nas colônias africanas.↩︎

  5. Expressão brasileira para designar os aterros onde se deposita o lixo das cidades sem o devido tratamento.↩︎

Resumo:
Nesse artigo pretende-se analisar o relato de duas mulheres negras que se apropriaram da escrita para narrar suas histórias, narrando ao mesmo tempo a história da nação de cada uma delas. As autoras, Carolina Maria de Jesus e Deolinda Rodrigues, a primeira brasileira e a segunda angolana, escrevem suas histórias em diários. Investigamos, literariamente, como, em Quarto de despejo: diário de uma favelada, primeira edição em 1960, Carolina Maria de Jesus apresenta uma escrita de si que é também um relato de luta diária dos pobres, negros e mulheres no Brasil pela existência e subsistência. Na obra de Deolinda Rodrigues, Diário de um exílio sem regresso, acompanhamos o relato da luta pela independência da nação angolana feita por uma mulher negra. Nesse artigo comparativo, pretende-se mostrar os distanciamentos e aproximações das estratégias narrativas destas duas mulheres negras.

Palavras-chave:
Literaturas africanas de língua portuguesa; literatura angolana; literatura afrobrasileira; literatura – diários.

 

Abstract:
This article intends to analyze the account of two black women who appropriated writing to narrate their stories, while narrating the history of the nation of each one of them. The authors, Carolina Maria de Jesus and Deolinda Rodrigues, the first Brazilian and the second Angolan, write their stories in diaries. We investigate, literarily, how, in Quarto de despejo: diário de uma favelada, first edition in 1960, Carolina Maria de Jesus presents a writing of herself that is also an account of the daily struggle of the poor, blacks and women in Brazil for existence and subsistence . In the book of Deolinda Rodrigues, Diário de um exilio sem regresso, we follow the story of the struggle for independence for the Angolan nation by a black woman. In this comparative article, we intend to show the distances and approximations of the narrative strategies of these two black women.

Keywords:
Portuguese language African literature; Angolan literature; Afro-Brazilian literature; literature – journals.

 

Recebido para publicação em 02/11/2020
Aceito em 01/02/2021