Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 2, jul./out., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.2.r01
ISSN: 2318-4620
RESENHA
Nas ruínas do neoliberalismo:
a ascensão da política antidemocrática no ocidente
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia, 2019. |
Amanda Maia
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
amandabmaia@gmail.com
A vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos foi um divisor de águas para o mundo. A partir deste acontecimento, cientistas políticos se debruçaram para explicar o que parecia inexplicável: como a nação mais poderosa do mundo elegeu um candidato com opiniões explicitamente antidemocráticas? Concomitante ao êxito de Trump, movimentos de extrema direita que já vinham crescendo no mundo ganharam mais fôlego e acenderam um alerta em estudiosos e especialistas. O resultado é uma vasta literatura política que busca analisar as crises, colapsos ou “morte” da democracia.
O aclamado “Como as democracias morrem”, dos americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018), analisa a deterioração da democracia em vários países da Europa e da América Latina e, obviamente, o cenário americano. Os autores demonstram que o enfraquecimento das democracias no cenário atual ocorre de maneira gradual, por vias institucionais, quando líderes demagogos se elegem com iniciativas anti-establishment e discursos populistas, prometendo uma nova ordem política. O livro percorre todo o tempo por via institucional, não cabendo destaque ao movimento popular. Dessa forma, a estratégia de enfrentamento para defender a democracia proposta pelos cientistas políticos é a formação de uma frente ampla, preterindo as diferenças políticas para superar a crise democrática.
O professor de política e economia, Adam Przeworski, também contribuiu com uma análise da conjuntura atual no seu mais recente livro, lançado no Brasil em 2020, “Crises da democracia”. Assim como os americanos Levitsky e Ziblatt (2018), Przeworski (2020) alerta para a deterioração invisível das instituições e normas democráticas por meio de mecanismos legais. Para entender o que acontece no presente, o autor procura no passado casos em que houve ou não rupturas democráticas visualizando a situação econômica, cultural e política. Em um panorama geral, o autor não enxerga o risco de enfraquecimento da democracia na maioria dos países, mas não encontra soluções para acabar com a insatisfação geral com a democracia, visto que não se trata apenas de uma crise política: ela é econômica e social.
Na esteira das análises da corrosão da democracia, a cientista política e professora da Universidade da Califórnia, Wendy Brown, lança em 2019 o livro “In the Ruins of Neoliberalism: The Rise of Antidemocratic Politics in the West” (“Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente”), traduzido para português e publicado no Brasil também no mesmo ano. Nesta obra, focando no cenário americano, a autora analisa essa ascensão de movimentos de extrema direita de difícil nomenclatura, como ela mesmo reconhece, visto que esses fenômenos possuem uma estranha fórmula que unifica elementos neoliberais, tais como favorecimento ao capital financeiro internacional, liberdade individual e demonização ao Estado, com valores opostos a estes como nacionalismo, imposição da moralidade tradicional e demanda por soluções estatais. (BROWN, 2019, p. 10).
O texto de Brown parte da perspectiva de que o pensamento neoliberal abriu espaço para essas forças antidemocráticas atuais e isto é examinado numa leitura profunda de intelectuais neoliberais, principalmente Friedrich Hayek, mas a autora também apresenta a teoria de Milton Friedman e dos ordoliberais, escola alemã que defendia uma nova ordem econômica. A proposta consegue capturar uma moral tradicional conservadora desses pensadores na sua defesa de ampliação do espaço do mercado sobre o social. Ainda na introdução, Brown nos entrega que o neoliberalismo hayekiano é um projeto político-moral que objetiva manter o status quo, afastando tudo que se refere ao bem-estar social (BROWN, 2019, p. 23).
O livro está organizado em cinco capítulos mais a introdução. Os dois primeiros capítulos percorrem o projeto neoliberal desde o pós-guerra mostrando como suas ideias corroem a sociedade e a política. O terceiro capítulo reforça como a moral tradicional é um elemento importante para o neoliberalismo e não pode ser tratado como algo externo à sua agenda. O quarto capítulo destaca como elementos defendidos pelos neoliberais, principalmente a liberdade, vêm sendo operacionalizados na Suprema Corte americana, exemplificando dois casos. No último capítulo a autora analisa o perfil majoritário dos seguidores desse movimento de extrema direita explorando conceitos como o niilismo, a dessublimação e o ressentimento.
O ponto de partida para entender como opera a tática neoliberal de destruição é compreender que a base da democracia é a igualdade política. E no mundo capitalista em que vivemos, só podemos garantir, mesmo que minimamente, essa igualdade com o Estado assumindo o papel de reduzir as desigualdades econômicas e sociais. Também, as sociedades democráticas resultam na construção do espaço social em que as diferenças e as distâncias entre os cidadãos são reunidas e debatidas em busca de um interesse coletivo. É sob esses pilares que o neoliberalismo canaliza suas forças de destruição. Na leitura de Dardot e Laval (2019), o neoliberalismo é uma racionalidade política dominante utilizada pelos governos que impõem a lógica do capital na economia, na sociedade e até mesmo no Estado, desdobrando-se em formas subjetivas e em normas de existências. O Estado neoliberal, de acordo com Harvey (2005), tem correspondência direta com a redução do bem-estar social na medida que fortalece a ideia de direitos individuais e livre mercado, transformando responsabilidades coletivas, e do próprio Estado, em responsabilidades pessoais. Como observa a autora, o ataque neoliberal ao social é primordial para “gerar uma cultura antidemocrática desde baixo, ao mesmo tempo em que constrói e legitima formas antidemocráticas de poder estatal desde cima” (BROWN, 2019, p. 39).
O grande salto para a análise do neoliberalismo que o livro proporciona é um da construção dessa corrente a partir dos seus principais autores, dando atenção especial para Friedrich Hayek devido a sua forte rejeição à noção de social. Para tal perspectiva teórica, a preocupação com o social é vista como símbolo de controle e tirania. O principal argumento é que a busca por igualdade restringe a liberdade. Esta liberdade só pode ser garantida quando amparada pelo mercado e pela moral, que são as bases para o desenvolvimento civilizacional. Sua visão aproxima os sistemas morais tradicionais aos mercados ao determinar o sentido de justiça nas regras e não no resultado. Essas afirmações pressupõem que o mercado e a moral produzem uma dinâmica espontânea que se adequa ao longo do tempo sem a interferência intencional humana ou a imposição do Estado do que é justo. A justiça opera na universalização das regras e não nas correções das injustiças. O modelo neoliberal coloca o indivíduo num espaço em que a habilidade e a sorte vão determinar o seu lugar e no final haverá vencedores e fracassados e essa desigualdade é essencial para o desenvolvimento civilizacional.
É possível, assim, destacar como a sociedade começa a ser desmantelada. Seja negando sua existência, seja privatizando ou simplesmente eliminando tudo o que se refere ao Estado de bem-estar social, seja combatendo a ideia de igualdade ou capitalizando o indivíduo, suas posses e seu tempo em fonte de renda (BROWN, 2019, p. 50). Nesse contexto, a interpretação de Brown identifica o elo entre a pauta neoliberal e a ira ao social e o que leva a todos os ataques que esta vem sofrendo. Esta é a contribuição essencial que Brown nos proporciona, ao desvendar a lógica individualista e privada do projeto neoliberal que busca inverter direitos básicos em questões particulares, afastando o papel de mediação do Estado. A justiça social é um mal que precisa ser combatido e derrotado para que os interesses pessoais não sejam controlados ou impedidos pelo apelo à soberania popular que se encontra presente na democracia. Para que a liberdade individual reine sobre o desejo da maioria é preciso destruir do imaginário de todos a noção de coletivo e as aspirações do bem-estar social.
No que se refere ao político, o neoliberalismo também minou esse campo. Isso ocorreu principalmente em favor da economia e do mercado, vendendo a ideia de que o Estado atrapalhava a sociedade. Essa situação foi reforçada principalmente nos governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher que aproveitaram para fazer “os cortes de impostos, o desmantelamento do Estado de bem-estar e o desacorrentamento do capital em relação a qualquer tipo de restrição, incluindo aquelas impostas pelo poder de barganha dos sindicatos” (BROWN, 2019, p. 71). O principal efeito, observa a autora, é essa onda antipolítica que, ao mesmo tempo que se assimila em alguns pontos com o discurso neoliberal diverge na glamourização de políticos e de uma pauta nacionalista.
Mais uma vez, Brown mergulha no ponto de vista de teóricos neoliberais, ampliando a sua leitura para Milton Friedman e para os ordoliberais buscando entender a aversão ao político. No pensamento de Friedman o poder econômico e o poder político se encontram em polos separados, apesar de reconhecer que o mercado precisa do Estado para ser viabilizado. Para o economista norte-americano, é o mercado que garante a liberdade e a diversidade e um governo robusto ameaçaria tudo isso. Ao longo da investigação sobre Hayek, a autora pode identificar no trabalho como ele defende a substituição do Estado social e da justiça social pela família e pela lei moral, respectivamente, como verdadeiros valores de uma sociedade livre. Em relação aos ordoliberais, estes não condenam o Estado, pregam, na verdade, um Estado forte e tecnocrata que trabalhe por uma economia competitiva e liberalizada (BROWN, 2019, p. 93).
Não há qualquer dúvida que a consolidação do neoliberalismo segue o caminho oposto da democracia. O projeto inicial “era uma ordem global de fluxo e acumulação de capital livres, nações organizadas pela moralidade tradicional e pelo mercado e de Estados orientados quase exclusivamente para esse projeto” (BROWN, 2019, p. 100). De fato, o sentimento antidemocrático vem sendo consolidado com o desprezo ao social e ao político cada vez mais crescente. Ao mesmo tempo, contudo, o neoliberalismo idealizado é o inverso do existente. O Estado que deveria ser rebaixado e ser apenas capacitado para dirigir a economia, foi instrumentalizado pelos interesses privados e a moralidade tradicional, que guiaria espontaneamente as populações, virou um grito de guerra esvaziado (BROWN, 2019, p. 102).
O outro movimento empreendido pelos neoliberais que a autora chama atenção é o fenômeno de fantasiar a nação como família e empresa privada. A maneira de concretizar essas configurações é construindo a noção de que o Estado-nação precisa fazer bons acordos ao mesmo tempo que necessita ser defendida por quem não pertence ao local. O sentimento de pertencimento passa pela nacionalidade, mas também por valores morais conservadores que exaltam o patriarcalismo, a tradição e a exclusão. Esse sentimento é bastante perceptível nos discursos de líderes populistas e nos seus slogans de campanhas presidenciais — Fazer a América grande de novo (EUA); A França para os franceses — ocasionando numa sociedade que não tolera o pluralismo e a igualdade de direitos.
Após apresentar os ideais neoliberais e seus desdobramentos, Brown rebate a formulação de mundo neoliberal de Hayek em três pontos. Primeiro, denuncia uma certa ingenuidade por parte do economista em acreditar que os valores tradicionais poderiam retornar à sociedade de maneira orgânica e espontânea após anos da social-democracia dominando o ambiente político. Segundo, a liberdade não se tornou um princípio ou desejo central e os conservadores a utilizam de modo seletivo baseado nos valores que eles acham importantes. Por fim, a moralidade tradicional é usada atualmente como discurso de ódio a tudo que se opõe ao conceito de branquitude, heterossexualidade e cristandade.
No capítulo 4 a autora apresenta os desdobramentos das discussões anteriores numa instituição democrática, a Suprema Corte. Ela mostra como a moralidade tradicional está contaminando a jurisprudência americana e como os réus estão usando a Primeira Emenda da Constituição americana reivindicando a liberdade de expressão. Brown utiliza dois casos como exemplo — um confeiteiro que se negou a fazer um bolo para um casal de homossexuais e o outro de centros de aconselhamento sobre gravidez que se recusaram a publicar informações exigidas por uma lei estadual. O que podemos ver nos resultados das decisões, favoráveis aos acusados em ambos os casos, é um malabarismo argumentativo e uma contradição para garantir a liberdade de expressão e religiosa; visto que, no primeiro caso, a personalidade jurídica é o ponto crucial da discussão; e no segundo caso, é a personalidade física dos funcionários do centro que entram em questão.
O último capítulo dedica-se a entender o perfil majoritário de quem apoia os movimentos de extrema direita. A leitura da autora é pensando principalmente no identitarismo branco e masculino. Influenciada por Nietzsche, ela defende como o niilismo se intensificou na nossa era devido à monetização pelo neoliberalismo de tudo ao redor do indivíduo (BROWN, 2019, p. 200). O niilismo, na sua interpretação, não se trata de um esvaziamento de valores, mas de ações que ridicularizam estes. O ressentimento também é catalisado pelos que se sentem desamparados por valores produzidos pela democracia e também por políticas afirmativas. Ao confrontar esse novo mundo com um passado mítico, esses homens tendem a vociferar discursos de ódio sem culpa e justificando-os como liberdade de expressão.
Outro ponto importante é como esses valores tradicionais são instrumentalizados de modo vazio apenas como uma imposição de superioridade. Esse caso fica claro quando se confronta a postura de Donald Trump em sua vida e todas as suas polêmicas envolvidas e a adoção por parte dos conservadores como o seu líder. O que acontece é a minimização da moralidade, principalmente por parte dos evangélicos, nesses casos devido ao presidente ecoar valores que são considerados superiores. Por fim, Brown especula duas possibilidades do que pode acontecer quando o ressentimento surge da perda da posição de privilégio. A primeira possibilidade é que o rancor e a raiva continuam o que são, ou seja, não se desenvolvem em novos valores. A segunda possibilidade é que valores são criados e são afirmados em direitos tradicionais que negariam a igualdade.
A cientista política Wendy Brown encerra seu livro sem arriscar uma projeção futura ou pelo menos trazer possíveis maneiras de enfrentar essa situação. Este posicionamento cauteloso da autora é justificável visto que ainda estamos diagnosticando esse momento que mistura tantos elementos divergentes. Contudo, o livro destaca duas atitudes que precisam ser reavaliadas por quem procura saídas para enfrentar essa onda antidemocrática. A primeira aparece ainda na introdução quando a autora aponta que forças de esquerda e contrárias à extrema direita apostam na autodestruição do movimento. Apesar de reconhecer que o movimento é novo e não há táticas para combatê-lo, esperar pelo seu desaparecimento não parece uma boa escolha visto que eles conseguem reinventar a sua narrativa constantemente.
A segunda atitude que deve ser evitada é, talvez, o resultado do livro. É comum a divisão do projeto econômico neoliberal da moral tradicional, como se ambas andassem separadas. Ou acreditar que as pautas morais são cortinas de fumaça para implementação de projetos neoliberais. O livro explorou as raízes do neoliberalismo e conseguiu demonstrar com clareza que a moral tradicional já estava inserida no projeto inicial. Na verdade, o conservadorismo é parte complementar deste pacto e de extrema importância para manter o status quo dos grupos dominantes e nos conformar com as desigualdades. Logo, o neoliberalismo sempre atacou os valores democráticos. De modo geral, “Nas ruínas do neoliberalismo” é uma leitura essencial para entender a conjuntura atual.
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.
DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. Anatomia do novo neoliberalismo. Revista IHU on-line, São Leopoldo, 25 jul 2019. Disponível em: www.ihu.unisinos.br. Acesso em: 14 fev. 2021.
HARVEY, David. O Neoliberalismo: História e Implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
PRZEWORSKI, Adam. Crises da democracia. Tradução: Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
Resumo:
Resenha de: BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.
Palavras-chave:
Neoliberalismo; democracia; moralidade.
Abstract:
Book review from: BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.
Keywords:
Neoliberalism; democracy; morality.
Recebido para publicação em 22/12/2020
Aceito em 22/02/2021