Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 2, jul./out., 2022
DOI: 10.36517/rcs.2022.2.a01
ISSN: 2318-4620
EcoSol Feminista Riveramento e
Covid-19:
redistribuição, reconhecimento e transnacionalidade
Letícia Núñez
Almeida
Universidad de la República del Uruguay, Uruguai
leticia.nunez@cur.edu.uy
Agnes Félix
Gonçalves
Laboratório de Estudos e Pesquisas
Internacionais e de Fronteiras, Brasil
agnesfgoncalves@gmail.com
As sociedades latino-americanas possuem os maiores índices de desigualdade de gênero do mundo, e, dentre elas, o Brasil ocupa a nonagésima posição do total de 144 países avaliados pelo Relatório Global de Desigualdades de Gênero de 2017. As mulheres brasileiras são subjugadas em diversos níveis da sociedade — destaca-se aqui que as mulheres negras e de classes sociais mais baixas são as que mais sofrem com essas desigualdades (WORLD ECONOMIC FORUM, 2017). Essa paisagem foi radicalmente agravada a partir de março de 2020, pela crise econômica e social que se instalou no país em razão da ausência de políticas públicas adequadas para abordar a chegada do vírus Covid-19 ao Brasil.1 As principais ações de prevenção e controle do contágio do vírus partem desde então dos governos estaduais e municipais:, são os decretos de “quarentena” e isolamento, os quais regulam o funcionamento do comércio e dos serviços públicos e privados, a circulação de pessoas nas ruas e estabelecimentos, o uso contínuo de máscaras, etc. As instituições de ensino foram (e estão) fechadas, e evidenciou-se rapidamente um abismo entre os que possuem condições econômicas para trabalhar e estudar em suas residências, e os que não as têm.
Nesse contexto, as desigualdades e violências de gênero estão fortalecidas por uma série de razões, entre elas: a) o desemprego em todas as camadas sociais e profissões; b) a impossibilidade de trabalhos informais como serviços de limpeza, estética, vendedoras ambulantes de produtos e alimentos; e c) a dupla/tripla jornada de trabalho em razão do fechamento das escolas e de outros serviços (COSTA, 2020b).
Como explica Macêdo (2020):
No entanto, vale lembrar, aqui, que a responsabilidade pelo trabalho doméstico formal ou não, ainda é, no Brasil, exclusivamente destinada às mulheres, representando uma desigualdade entre os gêneros masculino e feminino. Esse trabalho é marcado por dor, opressão e adoecimento, principalmente diante da naturalização da posição subalterna que a mulher ocupa na sociedade e na hierarquia da estrutura familiar tradicional, que a leva à exaustão diante dos cuidados requisitados por todos os membros da família (MACÊDO, 2020, p. 188).
Com a paralisação das atividades produtivas, alguns movimentos feministas buscaram alternativas para lutar contra o isolamento econômico e contra as violências que já eram vivenciadas antes do advento da pandemia, como as disparidades salariais, as violências domésticas, violências sexuais, violência política, entre outras. É o caso do Grupo de Economia Solidária Feminista Riveramento, um coletivo internacional que já existia antes de março de 2020 e ampliou-se significativamente como rede — virtual e concreta — de fortalecimento das trocas econômicas, políticas e de auxílio às mulheres que vivem nas cidades de Santana do Livramento (Brasil) e Rivera (Uruguay).2
Para compreender esse processo de criação de novos espaços feministas em um momento de excepcionalidade, propõe-se analisar a experiência deste Grupo a partir das discussões em torno dos conceitos de “redistribuição e de reconhecimento”, formulados por Nancy Fraser (2006), e da ideia de “feminismo sem fronteiras”, proposta por Marlise Matos (2010).
Para tanto, a metodologia utilizada possui três eixos principais, sendo eles: a pesquisa bibliográfica, a etnografia virtual e a análise de conteúdo. A primeira auxiliou na construção da fundamentação teórica do objeto de estudo (LIMA, MIOTO, 2007), no caso, a economia solidária, os movimentos sociais no recorte geográfico investigado e as teorias e conceitos feministas. Já para analisar o corpus da pesquisa, constituído pelo material empírico, utilizou-se uma confluência entre a etnografia virtual e a análise de conteúdo.
A etnografia virtual tem como objetivo compreender as práticas sociais que acontecem no meio virtual, através de interações pela Internet (MERCADO, 2012), método profícuo tendo em vista que a pesquisa empírica se deu quase que exclusivamente em plataformas virtuais como Facebook e grupos do aplicativo de troca de mensagem Whatsapp. Salvo algumas práticas etnográficas, em visitas à sede do grupo para trocar produtos e participar de compras coletivas, a investigação se valeu das ferramentas virtuais para a inserção no ambiente pesquisado, neste caso um grupo específico de mulheres que praticam a economia solidária nas cidades fronteiriças Santana do Livramento (BR) e Rivera (UY). Para analisar as trocas de mensagens nestes dois ambientes distintos, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo, pois a mesma dispõe de “uma dimensão descritiva que visa dar conta do que nos foi narrado e uma dimensão interpretativa que decorre das interrogações do analista face a um objeto de estudo” (GUERRA, 2008, p. 62). Assim, as técnicas escolhidas são as que mais se adequavam não só à construção do objeto de análise, mas também ao momento de crise sanitária vivenciado no período de estudo.
O novo coronavírus produz impactos profundos na saúde pública e no mercado de trabalho brasileiro com a paralisação das atividades produtivas, os trabalhadores informais perderam o sustento e as empresas demitiram os empregados com carteira assinada (COSTA, 2020b). Com isso, é de se esperar um crescimento na taxa de informalidade da economia brasileira, a qual atualmente está em torno de 40,8%. Ademais, com a queda no emprego e o aumento da inadimplência, cancelamento dos planos de saúde tenderão a sobrecarregar o já deficiente SUS, entre outros serviços públicos (COSTA, 2020b). É nos municípios onde as políticas de isolamento e de controle de bens e serviços são implementadas, e, portanto, onde o impacto da crise econômica pode ser observado na vida cotidiana, assim como os movimentos sociais, na busca por auxiliar ou diminuir o sofrimento e o desamparo material das pessoas nesse momento.
Uma alternativa de trabalho e renda para muitas pessoas, que não conseguem inserção no mercado formal de trabalho, é a Economia Solidária (doravante ES), que é entendida em um sentido amplo, como explica Costa (2020a), no qual os(as) trabalhadores(as) de um empreendimento econômico solidário, além de terem trabalho e renda, tornam-se proprietários(as) e, por conseguinte, donos(as) de seu capital, assumindo também o poder nas decisões. No entanto, a autora alerta que a ES envolve uma complexidade de fatores, e que, além dos aspectos econômicos, devem ser trabalhados também os aspectos inerentes à cooperação, como a solidariedade e a participação. Por esse ângulo, a ES é — como qualquer relação econômica — atravessada pelas relações de gênero. Mas, em geral, as abordagens da economia solidária compartilham da crença sobre o potencial de transformação social e de emancipação, oferecendo alternativas plurais ao capitalismo em oposição ao socialismo centralizado (HILLENKAMP et al., 2017).
Nessa perspectiva, encontra-se o Grupo Economia Solidária Feminista Riveramento (doravante EcoSol Riveramento), como espaço/rede de atividades econômicas, políticas e de auxílio colaborativo entre mulheres. Estas possuem o nível local como escala indispensável ao desenvolvimento das práticas solidárias, em um meio ambiente institucional dominado pelos princípios de mercado e comércio. Na continuação, apresenta-se uma descrição analítica desta experiência, tendo como norte (ou sul) o “valor do local como postura epistemológica”, para observação de cruzamentos entre os caminhos da economia solidária e do feminismo (HILLENKAMP et al., 2017, p. 44).
Bom dia companheiras! Se o capitalismo patriarcal e opressor não reconhece de forma digna o trabalho feminino, estamos aqui para, unidas, destrui-lo e criar uma outra economia possível. Boa sorte e boa luta para nós! (LOSS, 2020a).
A falta de circulação de dinheiro e oportunidades de trabalho, em razão das políticas de isolamento, fez com que o EcoSol Riveramento se redesenhasse a partir da ideia de trueque, que no português corresponde à de “escambo”. Trata-se da prática da permuta, da troca direta, das transações em que se entrega um bem ou se presta um serviço para receber outro bem ou serviço em forma de crédito, sem que um dos bens seja moeda. Nesse caso, o trueque é ainda mais amplo, pois abrange desde as trocas de conhecimento, visando ampliar e fortalecer uma resistência à opressão patriarcal, até o auxílio nos mais variados casos de urgência, que vão desde a violência doméstica até o conserto de eletrodomésticos queimados.
O grupo nasceu na fronteira formada pelos municípios de Santana do Livramento (Brasil) e Rivera (Uruguay) conhecida pelo apelido de “Fronteira da Paz”, muito criticado tanto por movimentos feministas de ambos países como por pesquisadores que buscam desconstruir a ideia romantizada de um lugar sem violência, onde os povos convivem como irmãos. São cidades-gêmeas, conurbadas, as quais somam um total de 160.000 (cento e sessenta mil) habitantes que transitam sem controle aduaneiro ou qualquer tipo de limite físico ou geográfico entre os dois países (COSTA, 2020a; ALMEIDA, 2016). Essa morfologia propicia que os movimentos sociais, neste caso tanto os grupos de ES quanto dos coletivos feministas, tenham a peculiaridade de ser binacionais, formados por cidadãos(ãs) de ambos os países, às vezes com dupla nacionalidade, que residem em um país e trabalham presencialmente ou virtualmente no outro, ou em ambos.4 Entre elas pode-se citar a Associação de Catadores Novo Horizonte,5 Coletivo Livra Elas, Colectiva Feminista de la Frontera, Fórum Permanente de Enfrentamento da Violência de Gênero e Casa de Economia Solidária, coordenada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MTST).
Pode-se dizer que a EcoSol Riveramento é formada por todas elas, tendo em vista que, em diferentes escalas, há participantes de todas essas organizações nos grupos das plataformas virtuais onde se desenvolvem as atividades cotidianas de trueques. Desde o início dos decretos de isolamento, em março de 2020, a presença nas redes se fortaleceram e intensificaram, a página do Facebook “Grupo de Economia Solidária Feminista — Riveramento”, criada em abril de 2020, possui 1.664 seguidores e se apresenta da seguinte forma:
Somos un grupo de mujeres que decidió reunirse para juntas buscar alternativas económicas, de desarrollo y sobrevivencia.
Llegamos aquí cada una por su camino, con su propia historia. Pero con algo que nos une: somos mujeres, y sólo por eso tuvimos en algún momento de nuestras vidas, planes y proyectos obstruidos o interrumpidos por el régimen machista y patriarcal que vivimos. Abandonamos estudios, profesión, proyectos o rehusamos propuestas de trabajo por necesitar cuidar a los hijos, por la voluntad de otras personas o por no soportar una doble o triple jornada.
En este momento decidimos que cuando nos unimos somos más fuertes para hacer caer esos obstáculos, y más creativas para encontrar soluciones. Y de regalo todavía descubrimos que podemos amarnos cada vez más a nosotras mismas, y amarnos a todas nosotras. Porque nosotras somos en las otras.
Sororidad es la palabra que estamos aprendiendo y ejercitando a cada día de nuestras vidas.
Producimos y comercializamos mercancías, alimentos, vestimenta, arte, salud, cuidados, servicios y conocimientos. Atendemos a nuestras necesidades de consumo buscando primero entre nuestras compañeras, antes de recurrir a los grandes comercios. Usamos dinero en este intercambio, pero preferimos trabajar con el sistema de trueque, eliminando el vil metal, ya tan escaso en la clase trabajadora.
Como una de nuestras actividades de grupo, estamos construyendo esta página para divulgar nuestro trabajo. Te invitamos a acompañar nuestras publicaciones, conocer a cada una de nosotras y apoyar esta iniciativa6 (GRUPO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA FEMINISTA — RIVERAMENTO, 2020).7
O grupo do Facebook possui papel central para o relacionamento com a comunidade das duas cidades por meio de publicações diárias, onde:
a) são oferecidos os produtos e serviços das mulheres participantes, como: comidas prontas, viandas, doces, roupas, massagens, serviços de estética, atendimento psicológico, aulas de dança, de idiomas, produtos de beleza, pães, vídeos com receitas, etc.;
b) são anunciadas as compras coletivas semanais dos alimentos de cultivo orgânico, produzidos por mulheres em dois assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. As compras são feitas no Grupo de Whatsapp e entregues duas vezes por semana no Entreposto do EcoSol Riveramento, um espaço cedido na residência de uma das coordenadoras do grupo em Rivera, onde todas as participantes podem deixar seus produtos à venda, trueques, etc. Abaixo, a arte da publicação das compras coletivas e uma imagem de alguns produtos no Entreposto.
Figura 1 — Compras Coletivas de alimentos orgânicos do MST |
Fonte: GRUPO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA FEMINISTA — RIVERAMENTO, 2020. |
c) são apresentados debates e denúncias sobre temas ligados aos Direitos Humanos e Sociais das mulheres da fronteira e da América Latina como um todo. As cidades de Santana do Livramento e Rivera são reconhecidas regionalmente pelo elevado número de casos de violência contra mulheres, meninas e feminicídios (COSTA, 2020a). Algumas das centenas de fotos podem ser observadas abaixo.
Figura 2 — Campanha pelo fim da violência contra a mulher na fronteira |
Fonte: GRUPO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA FEMINISTA — RIVERAMENTO, 2020 |
d) são realizadas dezenas de lives sobre a temática da ES, dos movimentos e coletivos feministas, da violência contra as mulheres e crianças no Brasil e no Uruguay, sobre a prevenção do Covid-19, sobre o machismo, a homofobia e o racismo na “Fronteira da Paz”, entre outras;
e) e, ainda, são publicadas uma série de matérias semanais especiais sobre a história e militância de mulheres revolucionárias da América Latina, abaixo algumas delas.
Figura 3 — Mulheres Revolucionárias da América Latina |
Fonte: GRUPO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA FEMINISTA — RIVERAMENTO, 2020 |
A página do Facebook é a ponte dessas mulheres com a comunidade em geral; sua identidade visual e produção de conteúdo é administrada por uma comissão de comunicação que alimenta e promove a plataforma. Em tempos de distanciamento, a página é a vitrine sedutora que apresenta o cruzamento entre possibilidades econômicas, resistência feminista e solidariedade. As publicações com teor fraterno passam a mensagem de que “você não está sozinha”, “o que você produz tem valor”, e deixam evidente que por trás daquela página dinâmica e bem cuidada há uma rede que trabalha freneticamente nos bastidores. E é isso mesmo, a “cozinha” da EcoSol Riveramento é o grupo de Whatsapp, formado inicialmente por dez mulheres desde abril de 2020, e, com o início da cuarentena, aumentou para 126 (cento e vinte seis) mulheres brasileiras, uruguaias, cubanas, mexicanas e venezuelanas, que dialogam de forma intermitente realizando seus trueques.
Practicamos la Economía Solidaria con la perspectiva de la lucha feminista. Vemos la economía como un camino para la liberación de la opresión patriarcal. Nos juntamos para apoyarnos mutuamente. Somos un grupo grande y diverso y buscamos suplir nuestras necesidades de consumo aquí antes de invertir nuestro dinero en las grandes plataformas.
Cada vez que empiezo mi día pienso en las cosas que necesito. Y el primer lugar que voy a buscar es en ese grupo. De aquí sale casi toda mi alimentación, vestimenta, arte, terapias, y hasta asistencia jurídica (LOSS, 2020a).8
O grupo EcoSol Riveramento é o resultado de um processo de amadurecimento e de encontro de diversas experiências individuais em outros coletivos de ES, feministas, e do movimento social em geral. A inspiração múltipla teve sua materialização no momento em que — de um dia para o outro — as mulheres ficaram sem suas atividades econômicas e com uma sobrecarga de atividades domésticas e dívidas (MACÊDO, 2020). Participam do grupo agricultoras do MST, terapeutas, cozinheiras, empresárias, médicas, vendedoras, massagistas, advogadas, psicólogas, diaristas, empregadas domésticas, técnicas em enfermagem, doceiras, veterinárias, artesãs, artistas plásticas, educadoras, musicistas, estudantes, professoras, dançarinas e muitas que estão buscando nessa rede um novo ofício que lhes traga independência econômica.9
A troca de mensagens no grupo é eletrizante nessa rede transnacional, os trueques envolvem desde pedidos de auxílio de mulheres que estão sofrendo violência doméstica e precisam de assessoria jurídica até a troca de lingeries por sobremesas, ou roupas usadas por pães caseiros. Os trueques são processos que revelam um encadeamento de intervenções das mais diversas, um caso, como exemplo: uma mulher e os dois filhos cuidam e vivem com uma familiar que é violenta e precisam de um lugar para morar com urgência, mas não possuem fiador e nem dinheiro para pagar a caução de um aluguel. Prontamente, a rede se articula conseguindo um imóvel e pensando em dezenas de maneiras colaborativas para arrecadar a quantia necessária à mudança. Simultaneamente, outra mulher oferece serviços de limpeza e é encaminhada à casa da agressora, que, mesmo sendo violenta, precisa de cuidados em razão da sua idade e saúde debilitada.
Esse é o resumo de uma história que envolveu centenas de mensagens e se desdobrou em doação e venda de produtos, troca de informações jurídicas, imobiliárias, oportunidades de trabalho, documentação, burocracias e muita emoção. É impossível saber a quantas interações e novos trueques uma mensagem pode levar; para cada mulher que ofereceu ajuda surgiram pedidos de informações sobre os seus produtos e serviços e novos trueques; tudo entre pessoas que não se conhecem, já que a maioria nunca se viu pessoalmente.
A ideia de ES é entendida da forma mais ampla possível, os produtos e serviços são todos os que vierem das mãos (e dos celulares) das mulheres, o único limite é que cada uma pode publicar cinco fotos por dia na rede. O caráter econômico abafa o viés emancipatório da rede, suas coordenadoras buscam ter presente a importância e o significado de certos produtos, como é o caso do “Arroz Comuna Pachamama: sem veneno e sem patrão”, vendido no Entreposto da EcoSol Riveramento e produzido de forma orgânica e independente (abaixo a identidade visual).10
Figura 4 — Comuna Pachamama, alimentos orgânicos |
Fonte: Grupo no Facebook ECONOMIA SOLIDÁRIA FEMINISTA — RIVERAMENTO, 2019. |
Outro ponto de destaque do grupo é que oferece um canal de entrosamento fundamental para os imigrantes de outros países, como Cuba, México e Venezuela. Em outro trueque, alguém avisa que há um casal de cubanos, recém-chegados na fronteira, que necessita um imóvel para alugar sem fiador; em minutos surgem indicações de casas acessíveis. A mulher recém-vinda de Cuba é adicionada ao grupo, conta que é médica, mas enquanto não conseguir revalidar o seu diploma está sem renda; sabe fazer flans, mas não tem acessórios culinários. Assim, foi uma enxurrada de empréstimos e doações de formas de pudins, panelas de pressão e oferecimentos de dicas e ajuda; na mesma tarde, os flans cubanos já estavam sendo vendidos e suas fotos postadas pelas compradoras do grupo, como publicou uma das coordenadoras:
Creo profundamente en la fuerza en todos los sentidos de la mujer, con su o sus trabajos, con la creatividad que impulsa el crecimiento y fortaleza en momentos difíciles, siempre apoyándose y tratando de llevar hacer circular la economía familiar, compartir conocimiento, promover a las demás(...) todo es muy válido, aparte de los debates, conocimiento compartido, la solidaridad(...) (LOSS, 2020b).11
A lógica é a da sororidade, diz uma participante: “Hoje por ti, mañana por mi”.12 Porém, não se trata só de resolver as questões práticas do cotidiano, os trueques também envolvem o engajamento e a participação em movimentos de resistência política, como é o caso da convocatória para a Marcha 17, a ser realizada juntamente de um Paro General13 dos Sindicatos e Associação dos Docentes do Uruguai, contra cortes orçamentários para a educação e para a Lei Integral de Violência de Gênero. O trueque dessa informação vem entreverado com o oferecimentos de pães caseiros, da venda de reais (câmbio) e de pedido de roupas e livros para uma escola da zona rural, entretanto deixa clara a importância da Marcha 17 para as mulheres, como explica uma participante do grupo:
Amora, entra como delegada y así comunicas en este grupo la intención, ya que como sabemos, las mujeres son directamente afectadas cuando se disminuye la propuesta educativa(...). La prostitución, la trata, el abuso infantil, los embarazos(...) niños que no tienen donde estudiar, comedores que no sirven comida(...) Adolescentes que no pueden trasladarse a Mdeo [sic], las carreras que se pierden de traer(...) (GRUPO ECONOMIA SOLIDÁRIA FEMINISTA, 2020).
O grupo de Whatsapp da EcoSol Riveramento permite que informações e frentes de militância alcancem pessoas que dificilmente teriam contato com determinadas perspectivas feministas e de lutas contra um modelo patriarcal de opressão das mulheres. Ensina Castells (2009) que, para os movimentos sociais do século XXI, a Internet é mais do que um instrumento, ela é o meio de comunicação da chamada “Era da Informação” que tem na Internet um componente vital. Ainda mais em um momento excepcional de restrições da circulação de bens e serviços, as redes virtuais são essenciais à realização de ações contando com a diversidade de atores em diferentes escalas de participação. O grupo do Facebook contribui para a formação de uma rede de simpatizantes e apoio, que se manifestam virtualmente de diferentes formas e em diferentes espaços. Existe um impulso que transforma esse instrumento em um meio para uma participação efetiva nas práticas de economia solidária e nos trueques, como explicam Alcântara e D’Andrea:
Dessa forma, uma ação coletiva empreendida na internet deve levar em conta que vivemos em uma “sociedade em rede”, o que interfere diretamente nas estratégias de comunicação a serem adotadas. As adesões às causas em luta não são totalmente direcionadas e controladas por quem as promove. Elas podem partir de um núcleo central, mas podem atingir espaços e instâncias das mais diversas e imprevistas (ALCÂNTARA; D'ANDREA, 2014, p. 120).
No caso da EcoSol Riveramento, as suas duas principais plataformas de comunicação pela Internet apresentam discursos de construção de uma cultura política emancipatória e pluralista, alicerçada em uma lógica associativa baseada na diversidade, na medida em que os movimentos reconhecem suas semelhanças e respeitam suas diferenças, a fim de somar lutas. Concorda-se com Alcântara e D’Andrea (2014) quando concluem que:
Se, por um lado, esse encontro da diversidade dos movimentos representa também a possibilidade de fragilidade das lutas, devido a sua fragmentação e efemeridade, por outro lado representa um avanço no plano do reconhecimento intersujeitos e interorganizacional, criando um potencial de democratização no âmbito das relações sociais e políticas (ALCÂNTARA; D’ANDREA, 2014, p. 107).
Nesse sentido, Nancy Fraser (2006) expõe que a demanda pelo reconhecimento tenderia a efetivar as demandas por igualdade, contra a exploração, e pela distribuição. Fraser salienta que:
[...] a “luta por reconhecimento” está rapidamente se tornando a forma paradigmática de conflito político no final do século XX. Demandas por “reconhecimento da diferença” dão combustível às lutas de grupos mobilizados sob as bandeiras da nacionalidade, etnicidade, “raça”, gênero e sexualidade. Nestes conflitos “pós-socialistas”, a identidade de grupo suplanta o interesse de classe como o meio principal de mobilização política (FRASER, 2006, p. 231).
Com estas lutas por reconhecimentos, segundo a autora, aconteceria um distanciamento, uma diferenciação entre a política cultural e a política social e econômica. Destarte, haveria uma tendência de hegemonização das pautas culturais sobre as econômicas.
Na experiência da EcoSol Riveramento, pelo contrário, observa-se que são as pautas econômicas cotidianas que aproximam as mulheres de um reconhecimento mais amplo das questões envolvendo desigualdade de gênero. E, sim, como prescrevia Fraser, a rede demonstra nos seus trueques a importância da luta pelo reconhecimento, vinculada ao que a autora entendeu como as lutas por distribuição. Desse modo, a autora argumenta que o fato de terem se esgotado as energias utópicas (socialistas), não implicaria a renúncia da luta por igualdades. Nas palavras da autora:
Ao invés de simplesmente endossar ou rejeitar o que é simplório na política da identidade, devíamos nos dar conta de que temos pela frente uma nova tarefa intelectual e prática: a de desenvolver uma teoria crítica do reconhecimento, que identifique e assuma a defesa somente daquelas versões da política cultural da diferença que possam ser combinadas coerentemente com a política social da igualdade (FRASER, 2006, p. 231).
Posto que a justiça exigiria esta relação entre redistribuição e reconhecimento, “pois é somente integrando reconhecimento e redistribuição que chegaremos a um quadro conceitual adequado às demandas de nossa era” (FRASER, 2006, p. 231-232).
Prosseguindo, a autora destaca três tipos de grupos: os que procuram acabar com as injustiças distributivas, se enquadrando nas políticas de redistribuição; as coletividades que lutam contra as injustiças de discriminação, necessitando, assim, de políticas de reconhecimento — a comunidade gay, por exemplo —; e, por último, os “tipos híbridos que combinam características da classe explorada com características da sexualidade desprezada. Essas coletividades são bivalentes” (FRASER, 2006, p. 233).
A luta de gênero e raça se enquadra nestas coletividades bivalentes — ou ambivalentes —, uma vez que precisam lutar contra as injustiças distributivas e contra as injustiças de discriminação, pois ambas são tanto lutas identitárias como materiais e econômicas.
No caso destas coletividades bivalentes, ocorre uma maior complexidade e neste sentido Nancy Fraser procura elaborar uma teoria do acoplamento das lutas. A luta feminista é considerada ambivalente, pois, por um lado, as mulheres querem terminar com as diferenças existentes entre homens e mulheres, acabando com as desigualdades econômicas, por exemplo. Assim, as mulheres buscam anular a coexistência enquanto grupo diferente, com particularidades. Destarte, existe um lado econômico nessa luta que é a distinção estrutural, que fundamenta o próprio capitalismo e a esfera da produção e da reprodução da vida, onde a esfera da reprodução da vida está ligada ao ambiente, ao trabalho tido como feminino, como o trabalho doméstico, por exemplo.
Por outro lado, possuindo uma “coletividade bivalente”, a busca pela justiça na questão de gênero não se enquadra somente na redistribuição econômica e política, como também no processo de valoração cultural, do reconhecimento. A ambivalência das questões de gênero possui problemáticas tanto de reconhecimento quanto de redistribuição, que se entrelaçam “para se reforçarem entre si dialeticamente, porque as normas culturais sexistas e androcêntricas estão institucionalizadas no Estado e na economia e a desvantagem econômica das mulheres restringe a”voz” das mulheres, impedindo a participação igualitária” (FRASER, 2006, p. 233-234) das mesmas, em todos os níveis da sociedade. Para a autora, existe uma distinção entre afirmação e transformação nas questões da redistribuição e do reconhecimento. Ela explica que os remédios afirmativos para a injustiça são os voltados para corrigir efeitos desiguais de arranjos sociais, sem abalar a estrutura subjacente que os engendra. E os remédios transformativos, em contraste, seriam os voltados para corrigir efeitos desiguais precisamente por meio da remodelação da estrutura gerativa subjacente (FRASER, 2006, p. 237).
Acredita-se que a experiência da EcoSol Riveramento é profícua para visualizar algumas das críticas que Nancy Fraser formula em sua obra, tendo em vista que os trueques incorporam as pautas da redistribuição e do reconhecimento por uma perspectiva transformadora e não simplesmente afirmativa. Sem avaliar os efeitos/resultados das ações desse grupo, entende-se que as iniciativas desenvolvidas coletivamente não são remédios entendidos pela a autora como “afirmativos para a injustiça”, voltados para corrigir efeitos desiguais de arranjos sociais sem abalar a estrutura subjacente que os engendra (FRASER, 2006, p. 237). O que aparece nos discursos das participantes é justamente a criação de novos canais de articulação subversiva, visando a desconstrução das estruturas de poder, a partir de um processo de constante redefinição das frentes de atuação, em um momento de exceção que é o de crise econômica atual.
Seguindo por esse caminho, para os debates feministas recentes, um novo momento estaria entrando em pauta nas últimas décadas: a construção da quarta onda feminista, que partiria de uma modalidade inédita para o feminismo global sendo exercida “do Sul para o Norte global” (MATOS, 2010, p. 67).
Marlise Matos (2010), utilizando como aporte teórico principalmente Nancy Fraser e Chandra Mohanty, apresenta a construção de uma quarta onda do movimento feminista que, diferentemente das anteriores, teria se iniciado no Brasil e na América Latina. A autora defende o reconhecimento de um movimento feminista transnacional, a partir das ideias da reflexão dos “feminismos do Terceiro Mundo/Sul” (MOHANTY, 2015) que surgem para questionar e contestar “o foco exclusivo de feministas brancas estadunidenses no gênero como base para a obtenção de direitos iguais”, com base na existência de uma nova corrente de luta mais ampla, que abarcasse as relações de gênero, raça e classe social, “levando em conta a posição geopolítica dos países em jogo” (PISCITELLI, 2014, p. 87).
Explica Mohanty (2015) que, para concepção de uma teoria política dos feminismos do Terceiro Mundo/Sul, seria necessário “se voltar a dois projetos simultâneos: a crítica interna dos feminismos hegemônicos ‘ocidentais’ e a formulação de preocupações e estratégias feministas autônomas, fundamentadas geograficamente, historicamente e culturalmente” (MOHANTY, 2015, p. 1).
Desde sua formulação, os feminismos de Terceiro Mundo têm se portado como uma crítica aos discursos das feministas Ocidentais, que eram propagados por meio das ideias do feminismo internacional (PISCITELLI, 2014).
Destaca também Nascimento que “tanto o feminismo de primeira onda como o de segunda onda, assim como outros tantos movimentos sociais, eram nacionalmente orientados” (NASCIMENTO, 2005, p. 80).
Nas palavras de Matos, ao explicar a intenção original de Mohanty:
[...] de afirmar a importância de dimensões locais e localizadas que estaria definindo a categoria do ‘universal’, inclusive e também para a categoria do feminismo. Sua contribuição teria sido a de chamar a atenção para esta forma enviesada de universalização com vistas a recuperar, contudo, a possibilidade da construção de uma solidariedade básica, feminista, transversalizadora de fronteiras e não-colonizadora, em que seriam as diferenças compartilhadas entre distintas perspectivas do feminismo do Terceiro e do Primeiro Mundo as responsáveis por solidificar tal base solidária (MATOS, 2010, p. 76).
Deste feminismo do Terceiro Mundo/Sul, então, são feitas as primeiras formulações do feminismo transnacional. Piscitelli (2014, p. 87) destaca que a proposta deste feminismo é a de “teorizar a alteridade em leituras que possibilitem compreender como as histórias das desigualdades foram estruturando valores, desejos e necessidades em mulheres de diferentes grupos e classes no mundo”.
Assim sendo, em suas primeiras formulações, o feminismo transnacional se opunha à ideia dos feminismos globais/internacionais, uma vez que contestava a ideia de uma irmandade feminina global, diferente da ideia de feminismos transnacionais que, segundo Piscitelli (2014), se caracterizam da seguinte forma:
1) pensam sobre diferenças entre mulheres em diversos espaços geográficos no mundo;
2) analisam conjuntos de relações desiguais dentro de grupos de pessoas;
3) colocam o termo “internacional” sob escrutínio, levando em contra os processos econômicos, políticos e ideológicos nos quais se ancoram a racialização e o capitalismo (PISCITELLI, 2014, p. 87).
Tais características operam como categorias de análise para investigar se alguns “movimentos” feministas possuem caráter internacional ou transnacional. No presente estudo de caso, a EcoSol Riveramento apresenta a internacionalidade no nome, como um coletivo binacional por atuar em uma zona de fronteira e ser formada por mulheres brasileiras e uruguaias nas redes virtuais e concretas. Entretanto, acredita-se que pode ser compreendida como transnacional, haja vista que:
a) formula e publica conteúdos sobre diferentes mulheres em diversos espaços geográficos no mundo, e reproduzem esse conhecimento como trueques nos seus espaços de troca;
b) valoriza o respeito às diferenças e cria mecanismos de acolhimento às situações onde há relações desiguais dentro dos grupos, como é o caso das comissões de saúde e de assessoria jurídica e psicológica que estão atentas às demandas específicas de mulheres em situação emergencial de saúde e/ou violência;
c) e leva em conta nas suas redes os processos econômicos, políticos e ideológicos nos quais se ancoram a racialização e o capitalismo, especialmente em relação às lutas dos trabalhadores(as) agrários(as), à violência contra mulher, ao racismo contra negras, imigrantes e pobres nos municípios de Rivera, etc. Em um mesmo período de 30 minutos pode-se encontrar — no mesmo fluxo web — uma mulher cubana que perdeu seu emprego como vendedora e busca changas (bicos), mulheres discutindo sobre a invisibilidade da história das mulheres negras massacradas na Revolução Farroupilha, esta comemorada com uma semana de festejos pelos gaúchos; e, ainda, a venda de comida venezuelana e de cremes para massagem feitos com cannabis.
Do ponto de vista teórico, a principal proposta apresentada por Mohanty e defendida por Matos (2010, p. 78) seria o da elaboração de um feminismo sem fronteiras, que teria como ponto de partida os corpos e as vidas das mulheres e meninas do Terceiro Mundo/Sul. Ainda, conforme Matos (2010, p. 78), “a construção coletiva de um projeto feminista localizado e contextualizado em sua forma anticapitalista, anti-imperialista, que valorize as formas cotidianas de resistência coletiva das mulheres ao redor do mundo”. Matos (2010) apresenta os principais pontos da teoria de Mohanty, evidenciando a perspectiva do feminismo sem fronteiras ou feminismo transnacional, para destacar que, na América Latina e no Brasil, uma quarta onda feminista já teria se formado e estaria em curso. Para tanto, a autora elenca alguns pontos principais para validar sua percepção, são eles:
1) institucionalização das demandas das mulheres e do feminismo, por intermédio da entrada (parcial) delas no âmbito do Poder Executivo e Legislativo destes países; 2) da criação de órgãos executivos de gestão de políticas públicas especialmente no âmbito federal (mas também, no Brasil, de amplitude estadual e municipal); 3) da consolidação no processo de institucionalização das ONGs e das redes feministas e, em especial, sob influência e capacidade de articulação e financiamento do feminismo transnacional e da agenda internacional de instituições globais e regionais referidas aos direitos das mulheres; 4) uma nova moldura teórica (frame) para a atuação do feminismo: trans ou pós-nacional, em que são identificadas uma luta por radicalização anticapitalista e uma luta radicalizada pelo encontro de feminismos e outros movimentos sociais, no âmbito das articulações globais de países na moldura Sul-Sul (MATOS, 2010, p. 80).
Assim, Matos apresenta estes pontos para evidenciar que o período pós-neoliberal, que Fraser aborda como sendo o momento para uma quarta onda, já estaria acontecendo na América Latina e no Brasil desde os anos 2000, podendo ser identificados e investigados pelas Ciências Sociais, atualmente, como uma nova onda, tendo em vista a situação sanitária e política que o Brasil está vivenciando, com o maior número de mortes da história e um governo militarizado e misógino (MATOS, 2010, p. 83).
A experiência do EcoSol Riveramento apresenta uma proposta de luta que extrapola a disputa puramente identitária, possuindo diversas frentes de atuação, como: a militância política, as redes de apoio entre mulheres e a economia solidária. O que move essas mulheres é a crença nas mudanças sociais, dialogando constantemente entre as ambivalências sugeridas por Fraser (1997; 2002). Acredita-se que a união das lutas por redistribuições às lutas por reconhecimento é parte dos desafios enfrentados pelos movimentos feministas, os quais se reinventam constantemente nesse processo histórico em construção, que cada vez exige mais das mulheres.
O estudo de caso aqui apresentado buscou investigar em que medida a experiência de um grupo local possui pautas por reconhecimento e redistribuição. A busca por reconhecimento que, como defende Fraser (1997; 2002), assume com frequência a forma de chamar a atenção para a presumida especificidade de algum grupo, ao mesmo tempo tende a promover a sua diferenciação. Lutas de redistribuição, em contraste, buscam com frequência abolir os arranjos econômicos que embasam a especificidade do grupo (um exemplo seriam as demandas feministas para abolir a divisão do trabalho segundo o gênero).
A partir dos dados apresentados, defende-se que a EcoSol Riveramento busca promover a “desdiferenciação” do grupo. Teoricamente, a política do reconhecimento e a política da redistribuição parecem ter objetivos contraditórios, enquanto a primeira tende a promover a diferenciação do grupo, a segunda tende a desestabilizá-la. É o que a autora apresenta como “dilema da redistribuição-reconhecimento”, uma vez que para mudar essa complexa realidade seriam necessários dois tipos distintos de soluções: “os dois remédios pendem para direções opostas, porém, e não é fácil persegui-las ao mesmo tempo. Enquanto a lógica da redistribuição é acabar com esse negócio de gênero, a lógica do reconhecimento é valorizar a especificidade de gênero” (FRASER, 2006, p. 235).
Assim sendo, com os “remédios” transformadores propostos por Fraser, nos quais ela explicita o seu objetivo de transformação da sociedade e não somente de medidas progressistas, o que ela visa alcançar com sua obra — e assim tentar influenciar os movimentos sociais — é um horizonte socialista. Com forte base de desconstrução, ela busca entrelaçar as lutas políticas e econômicas com as lutas culturais, para que, assim, estas categorias estejam juntas para a mudança radical da sociedade.
Nesse caminho, entende-se que os movimentos sociais locais são um espaço fértil para compreender essa complexidade, que envolve também a temática da internacionalização do feminismo. Se no âmbito nacional/global pode-se identificar exemplos emblemáticos, como as grandes e influentes organizações não governamentais e a Marcha Mundial das Mulheres, que se originou nos anos 2000, é nos coletivos locais onde diferentes frentes se organizam. Este é o caso das relações econômico-feministas da EcoSol Riveramento, a qual possui qualidades que Matos (2010) classifica como de um feminismo transacional, uma vez que possui peculiaridades de um:
(...) movimento atento às intersecções entre nacionalidade, raça, gênero, sexualidade e exploração econômica numa escala mundial, em decorrência principalmente do surgimento do capitalismo global; um movimento autointitulado altermundialista, por sua luta de cunho internacional contra o neoliberalismo e pela busca por maior justiça social (MATOS, 2010, p. 81).
Nessa perspectiva, compreende-se que investigar a morfologia dos movimentos feministas no âmbito local é um caminho profícuo para redesenhar estratégias da emancipação efetiva entre os gêneros, e pensar políticas públicas eficientes para combater o racismo, a xenofobia, a homofobia, o sexismo e a cultura visceral e indigente da ignorância.
Assim, entende-se que a EcoSol Feminista Riveramento teve papel crucial em um momento em que ainda não existia a vacina para o novo coronavírus, e foi imperativo reinventar outros modos de resistência contra o distanciamento e a crise econômica, pois, como defende Coltro (2020), é vital que a luta contra o capital adira às pautas do movimento feminista, indígena, LGBTTQ, pois, “tem que inverter essa ordem, não é o feminismo que tem que aderir à luta de classe, a luta de classe é que tem que aderir as pautas feministas”. A revolução, de fato, será feminista ou não será!!!14
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Segundo dados oficiais do Ministério da Saúde, até o dia 2 de março de 2021 foram contabilizadas mais de 250.000 (duzentas e cinquenta mil) mortes e mais de 10.000.00 (dez milhões) de infectados (BRASIL, 2020).↩︎
O nome faz uma alusão às duas cidades misturadas, contrariando a ideia da fronteira como limite, separação.↩︎
Tradução: “Se nos falta dinheiro, fazemos escambos!” (tradução das autoras).↩︎
Sempre tendo em conta que cruzar a fronteira significa atravessar uma rua — são mais de 100 (cem) km de fronteira seca.↩︎
Recomenda-se a leitura do artigo “Mulheres catadoras de materiais recicláveis de Santana do Livramento/RS: trajetórias de luta em busca da emancipação social”, das colegas Cassiane Costa e Nadia Scariot.↩︎
Somos um grupo de mulheres que decidiu se reunir para juntas buscar alternativas econômicas, de desenvolvimento e sobrevivência. Chegamos aqui cada uma pelo seu caminho, com sua própria história. mas com algo que nos une: somos mulheres, e só por isso tivemos em algum momento de nossas vidas, planos e projetos obstruídos ou interrompidos pelo regime machista e patriarcal em que vivemos.
Abandonamos estudos, profissão, projetos e recusamos propostas de trabalho por ter que cuidar dos filhos, pela vontade de outras pessoas ou por não suportar uma dupla ou tripla jornada. Nesse momento decidimos que quando nos unimos somos mais fortes para derrubar esses obstáculos, e mais criativas para encontrar soluções. E de presente ainda descubrimos que podemos nos amar cada vez mais a nós mesmas, e amar a todas nós. Porque nós estamos em cada uma. Sororidade é a palavra que estamos aprendendo e exercitando a cada dia em nossas vidas. Produzimos e comercializamos mercadorias, alimentos, vestimenta, arte, saúde, cuidados, serviços e conhecimentos. Atendemos às nossas necessidades de consumo buscando primeiro entre nossas companheiras, antes de recorrer aos grandes comércios. Usamos dinheiro nesse intercâmbio, mas preferimos trabalhar com o sistema de trueque, eliminando o vil metal, tão escasso para a classe trabalhadora. Como uma das nossas atividades de grupo, estamos construindo esta página para divulgar nosso trabalho. Te convidamos a acompanhar nossas publicações, conhecer a cada uma de nós e apoiar esta iniciativa (Tradução das autoras).↩︎
Mesmo não sendo objeto deste trabalho, é interessante observar que o nome do grupo está em português e a apresentação em espanhol, o que revela a essência binacional na divisão de tarefas entre brasileiras e uruguaias e o uso indiscriminado dos dois idiomas, e, em muito momentos, do portuñol, especialmente nas mensagens do grupo de Whatsapp.↩︎
Praticamos a Economia Solidária com a perspectiva da luta feminista. Vemos a economia como um caminho para a libertação da opressão patriarcal. Nós nos juntamos para apoiarnos mutuamente. Somos um grupo grande e diversificado e buscamos atender às necessidades dos nossos consumidores aqui, antes de investir nosso dinheiro nas grandes plataformas.
Sempre que começo o dia, penso nas coisas de que preciso. E o primeiro lugar que vou olhar é nesse grupo. Daqui vem quase toda a minha comida, roupas, arte, terapias e até mesmo assistência jurídica (Tradução das autoras).↩︎
Pretende-se, futuramente, investigar quem são essas mulheres e o impacto que essa rede teve em suas vidas pós- quarentena.↩︎
Disponível em: m.facebook.com. Acesso em: 3 abr. 2020.↩︎
Acredito profundamente na força em todos os sentidos da mulher, com o seu trabalho, com a criatividade que impulsiona o crescimento e a força nos momentos difíceis, sempre apoiando-se mutuamente e procurando fazer circular a economia familiar, compartilhar conhecimento, promover as mulheres. ( ...) tudo é muito válido, além dos debates, do conhecimento compartilhado, da solidariedade (...) (Tradução das autoras).↩︎
. A autora da mensagem prefere não ser identificada (GRUPO ECONOMIA SOLIDÁRIA FEMINISTA, 2020).↩︎
Greve geral.↩︎
Coltro (2020, p. 94).↩︎
Resumo:
No presente trabalho busca-se analisar, a
partir da “teoria da redistribuição e do reconhecimento”, da
norte-americana Nancy Fraser, e do conceito de “feminismo sem
fronteiras”, da brasileira Marlise Matos, os movimentos do grupo
internacional de feministas Economia Solidária Feminista Riveramento, o
qual desenvolve suas atividades nas cidades gêmeas de Santana do
Livramento (RS, Brasil) e Rivera (Uruguay) no período marcado pela
Covid-19. Para tanto, realizou-se uma pesquisa empírica qualitativa por
meio de entrevistas em profundidade, prática etnográfica virtual e
análise de conteúdo de materiais publicados em redes sociais. Dessa
forma, o trabalho está dividido em três partes: Introdução e
metodologia; Análise da Economia Solidária Feminista Riveramento, à luz
dos conceitos de “redistribuição e reconhecimento”, de Nancy Fraser, e
de “feminismo sem fronteiras”, de Marlise Matos; e as Considerações
finais.
Palavras-chave:
Economia Solidária Feminista
Riveramento, redistribuição e reconhecimento, feminismo sem
fronteiras.
Abstract:
The present work aims to analyze —
based on the Noth-American author Nancy Fraser’s theory of
redistribution and recognition and the notion of “feminism without
borders” by the Brazilian Marlise Matos — the “movements” of the
international feminist group Riveramento Feminist Solidarity Economy,
which operates in the border towns of Santana do Livramento (RS, Brazil)
and Rivera (Uruguay) in the period marked by Covid-19. In order to
achieve that, qualitative empirical research was carried out through
in-depth interviews, virtual ethnographic practice and content analysis
of the material published on social media. Therefore, the work is
divided into three sections: Introduction and methodology; Analysis of
Riveramento Feminist Solidarity Economy, under the light of
“redistribution and recognition” concepts, by Nancy Fraser, and
“feminism without borders”, by Marlise Matos; and Final
considerations.
Keywords:
Riveramento Feminist Solidarity
Economy, redistribution and recognition, borderless feminism.
Recebido para publicação em 25/01/2021
Aceito em 20/04/2021
ACESSO ABERTO
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