Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 2, jul./out., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.2.d08
ISSN: 2318-4620

 

 

A pós-graduação em ciências sociais no Brasil:
entrevista com Jacob Carlos Lima

 

por Marcelo Pinheiro Cigales OrcID
Universidade de Brasília, Brasil
marcelo.cigales@unb.br

 

Jacob Carlos Lima é graduado em Sociologia Política pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Atualmente é professor titular no Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. Foi Coordenador da Área de Sociologia na CAPES entre 2011 e 2014; e Coordenador do Comitê de Assessoramento da área de Ciências Sociais-Sociologia entre 2019 e 2021. Atualmente é presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). Suas pesquisas voltam-se para a área de Sociologia do Trabalho; Sociologia Econômica e sobre a institucionalização da Sociologia no Brasil. Sobre esse tema destacam-se mais recentemente, os artigos que analisam as principais agências como CAPES, CNPq e ANPOCS na profissionalização da pós-graduação da Sociologia no país (LIMA, 2020; 2019; BARREIRA; CORTES; LIMA, 2018).

A entrevista foi realizada de maneira online no dia 17 de março de 2021 1as 14h e teve duração de 61 minutos. Foi gravada e transcrita posteriormente. Buscou-se, a partir desse encontro, discutir alguns dos aspectos dessa produção mais recente do autor sobre a pós-graduação. Trata-se, portanto, de um convite a todos(as) que buscam conhecer ou aprofundar aspectos da história da institucionalização e profissionalização da pós-graduação em Ciências Sociais-Sociologia no país.

Você poderia fazer um relato sobre sua trajetória profissional, destacando sua atuação no campo de pesquisa sobre as Ciências Sociais no Brasil?

Eu comecei a carreira na Universidade Federal da Paraíba em 1982. Naquela época existiam poucos profissionais com títulos pós-graduados e bastava então você ter graduação. Na época eu fazia o mestrado, prestei concurso para a UFPB, fui aprovado, defendi minha dissertação de mestrado em 1983 e saí para o doutorado em 1987. Defendi minha tese em 1992 e em 1994 assumi a coordenação do então Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFPB. Naquele momento eu tive uma experiência com a CAPES um pouco traumática, era a fase inicial da avaliação dos programas e seus parâmetros estavam sendo estabecidos. Enquanto coordenador, buscava seguir todas as sugestões que o Comitê de Avaliação tinha feito e o resultado disso foi o rebaixamento do programa que era B (naquele momento era adotado o critério de avaliação de A, B, C, D, E — só no final da década passou para nota numérica) para C. Eu obviamente fiquei muito indignado, embora concordasse com parte dos argumentos. Nós éramos um programa de Ciências Sociais, que efetivamente de Ciências Sociais tinha muito pouco, pois só tínhamos Sociólogos, um Cientista Político e um ou dois Antropólogos. Era comum na época, na ausência de titulados nas disciplinas da área, abrir mestrados em Ciências Sociais como forma de incluir a maioria dos professores dos departamentos de ciências sociais e assim ter uma pós-graduação. Propus ao colegiado a mudança para Programa de Sociologia, que foi aprovado, mas insuficiente para garantir a reversão do rebaixamento.

A partir dessa experiência eu comecei a discutir um pouco a questão da Sociologia nas Ciências Sociais brasileiras, e comecei a escrever uma coisa ou outra. Nesse período também, participei da organização de um curso de graduação em Ciências Sociais com área de concentração em Sociologia, considerando as questões inerentes ao corpo docente; o curso formaria graduados efetivamente em Sociologia. Funcionou assim por dois anos. A coordenação que se seguiu mudou o currículo e o transformou num curso de ciências sociais tal qual existia nas outras universidades, produto da reforma do ensino superior da ditadura militar em 1971.

Nessa militância pela Sociologia, outra coisa que me chamava a atenção enquanto professor da Universidade Federal da Paraíba, era o tratamento diferenciado recebido pelos docentes e pesquisadores da “periferia”. Por um lado, existiu na Capes percepções distintas dos presidentes se era o caso de apoiar programas periféricos ou concentrar na infra-estrutura de pesquisa na região sudeste. Venceu uma proposta mais democrática que resultou em convênios nacionais e internacionais para formação docente. Por outro lado, essas percepções eram replicadas pela própria comunidade das ciências sociais com relação aos programas e aos colegas de programas de pós-graduação “fora do eixo” São Paulo e Rio de Janeiro. Como paulistano, pela primeira vez senti o preconceito regional dentro da academia, num momento em que a área de Ciências Sociais se destacava e caminhava para a consolidando como área de pesquisa. E pior, numa área em que todos os preconceitos eram estudados e execrados, pelo menos teoricamente.

Retornando do pós doutorado em 2001, fui convidado a participar de uma reunião do comitê de avaliação da Capes pela então coordenadora de área, Prof.ª Maria Arminda N. Arruda, e em seguida, do comitê coordenado pelo prof. Reginaldo Prandi, em 2002, e pelo comitê coordenado pelo Prof. Sérgio Adorno em 2007. Também em 2004 passei a integrar o Comitê de Assessores do CNPq. Essa participação nos Comitês deixou claro as características de como a avaliação era feita, as dificuldades de homogeneização dos critérios, as resistências e, o aumento da qualidade da pós graduação, embora a comunidade sempre tenha criticado a tendência quantitativa da avaliação. Esse processo chamou minha atenção, considerando que as diversas áreas tinham grande autonomia nesses critérios e era a própria comunidade que os estabelecia.

Em 2010 fui convidado a assumir a coordenação da área de Sociologia. No momento em que você vira um coordenador de área passa a ter um conhecimento dos bastidores das agência, o que como participante de comitê não tem a mesma clareza: as relações entre os programas, como são as disputas entre deles e suas hierarquias informais. Na minha gestão fiz questão de incluir normas diferenciadas entre programas de Sociologia e de Ciências Sociais, destacando que esses últimos teriam que ter um diferencial. Até então esses programas funcionavam com as três áreas de concentração Antropologia, Política e Sociologia, sem ter a especificidade dos programas disciplinares. Com a proposta esses programas teriam que ser efetivamente interdisciplinares. A resistência foi grande, alguns se adaptaram e outros não. O problema que os diplomas são reconhecidos pela área de sociologia, mas nem sempre existe reciprocidade nas outras áreas.

Em 2004 me transferi para a Universidade Federal de São Carlos. Em seguida veio o Reuni e o então programa de Ciências Sociais se dividiu em três programas disciplinares e participei da organização do Programa de Sociologia, aproveitando minha experiência anterior na UFPB.

Entre 1994 e 2004 as coisas mudaram muito. No final da década de 1990 os programas de pós já eram compostos integralmente por doutores e cada vez maiores diferenciais foram incluídos na avaliação fortalecendo um certo “neo-liberalismo acadêmico”, presente nas exigências crescentes de publicação por um lado, e por outro uma forte homogeneização com relação ao tipo de formação pós-graduada em Sociologia mais igualitária dentro de todo o diferencial e todas as desigualdades presentes no país como um todo.

Como você avalia o papel da criação e institucionalização da ANPOCS para o desenvolvimento da pós-graduação no Brasil?

A criação da ANPOCS foi um marco no processo de organização da pós-graduação brasileira e das ciências sociais em particular. Lembrar que a Ditadura Militar, por um lado foi extremamente negativa em todos os aspectos da liberdade intelectual, mas uma preocupação dos militares de então era a busca de autonomia política e tecnológica, dentro da histórica vassalagem que mantinham (recuperada agora mais do que nunca) com os EUA. Isso fez com que investissem fortemente na construção de um sistema nacional de pós-graduação. Nesse movimento, a Sociologia e as Ciências Sociais acabaram, inadvertidamente talvez, se beneficiando, com uma expansão e crescimento da graduação e de pós-graduação ainda durante a ditadura. E aqui estou falando das instituições públicas. As instituições privadas também abriram muitos cursos de graduação nesse período, mas que não conseguiram se manter por muito tempo já que os cursos de ciências sociais sempre tiveram baixa procura, dada as perspectivas restritas do mercado de trabalho, com algumas exceções principalmente em algumas instituições confessionais.

Na pesquisa a ANPOCS se beneficiou de financiamento externo, principalmente da Fundação Ford, mas não apenas, que privilegiou entidades privadas não lucrativas como o CEBRAP, o IUPERJ e outros centros que se constituem de forma pioneira no que diz respeito aos parâmetros da cientificidade tendo a pós-graduação como referência, e que vai se constituir modernamente hoje o campo da Sociologia no Brasil, como estudado pro Miceli (1989; 1995). A ANPOCS torna-se referência nos encontros de pesquisa. Antes da ANPOCS nós tivemos basicamente dois Congressos da SBS: em 1954, em São Paulo; e outro em 1962, em Belo Horizonte; sendo que em 1964 ela se desorganiza com o governo militar e só retorna a partir de 1987 com o 3º congresso realizado em Brasília. Em 1953 foi organizada a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), mantendo uma regularidade em seus congressos, que não foram interrompidos durante a ditadura. A ANPOCS aglutinou a pesquisa nas Ciências Sociais a partir de 1977. Então, ela terminou tendo um papel fundamental, permitindo que, com a redemocratização, outras associações se organizassem ou reorganizassem contribuindo na formação de uma cultura acadêmica no país.

Considerando que a formação de sociólogos no Brasil ocorre em cursos de ciências sociais, com uma orientação mais interdisciplinar, como você percebe o papel da pós-graduação para a especialização e profissionalização da Sociologia?

Eu acho que nossa formação em Ciências Sociais suas especificidades decorrem da fragilidade da disciplinaridade da área que não é uma exclusividade brasileira, mas que destoa de países onde a carreira de Sociologia se consolidou já na década de 1920, assim como as carreiras de Ciência Política e a Antropologia. No Brasil, pioneiro na América Latina na formação em Ciências Sociais (1933), esta sempre foi percebida como sinônimo de Sociologia. Vai ser na pós-graduação que a formação em Sociologia assume concretude, assim como a Antropologia e a Ciência Politica.

Vale questionar se o que chamamos de Ciências Sociais stricto senso reflete o conjunto das Ciências Sociais. Se observarmos os cursos de graduação em Antropologia e Ciência Política, raramente contemplam a disciplina sociologia, o que não acontece, por exemplo, nas licenciaturas de Sociologia que, efetivamente não são de sociologia, mas de Ciências Sociais. Disciplinas como Economia, Educação, História, Geografia, são incluídas na generalidade da formação em Ciências Sociais mas não são consideradas enquanto tal. Tem um artigo muito interessante do Luis Aguiar Costa Pinto que escreveu junto com Edson Carneiro para a CAPES em 1955 (PINTO; CARNEIRO, 1955), no qual discute a formação das Ciências Sociais. Eles distinguiam a Antropologia da Sociologia, duas áreas tiveram trajetórias que foram se diferenciando cada vez, assim como da Ciência Política, propondo uma formação básica de Ciências Sociais que se desdobraria posteriormente em formações disciplinares. Algo similar com algumas experiências criadas após o Reuni nas novas universidades que foram criadas. Considero uma discussão relevante, inclusive como forma de tornar a formação em ciências sociais menos generalista e mais atraente para o estudante. Embora haja resistência, considero que esta decorre mais de preguiça intelectual do que de princípios, pois já passamos da hora de reformular nossa graduação.

O modelo de pós-graduação de Ciências Sociais, como disse anteriormente, respondeu a momento específico no qual não tinha formados nessas três áreas um número suficiente, geralmente a Sociologia tinha, mas as outras não. No momento em que você passa a ter esse número de pesquisadores formados a tendência tem sido a separação, pelo menos nas públicas consolidadas. O mesmo não acontece nas privadas por questões financeiras. Se tivermos por base os Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais, veremos o que determina a formação é a origem do orientador, por exemplo, se você é orientado por antropólogo, você terá uma formação maior em Antropologia e no geral se identifica como tal. Se observarmos a área Interdisciplinar da Capes existem quase uma centena de cursos que poderiam ser considerados Ciências Sociais, embora com pouca formação nas três disciplinas “stricto sensu”. Mas essa discussão é polêmica, e quando defendo a especificidade da Sociologia me chamam de sindicalista e/ou corporativista. O que não acontece com o antropólogo ou o economista que defendem a especificidade de sua formação e se identificam como profissionais dessas disciplinas. Quem se definir como cientista social, de forma majoritária é o Sociólogo. Então, nós sociólogos temos um problema de identidade não resolvida talvez por sermos acusados de um certo imperialismo dentro das Ciências Sociais, mas também pelo receio, dada o caráter crítico inerente a nossa disciplina, de questionar qualquer tipo de corporativismo, ou de fronteiras do conhecimento. Mas isso é outra discussão.

E essa característica das Ciências Sociais na graduação como corresponde a outras áreas para além da Sociologia. Você acha que isso também determina a entrada de outros perfis formados fora da área como os graduados em Direito e de outras áreas, você acha que isso tem alguma relação, e tendo isso em perspectiva, como você analisa o perfil do profissional pós-graduado na área hoje?

Para responder essa questão é necessário retomarmos a generalidade excessiva da graduação em Ciências Sociais que para mim ter que ser repensado. Por exemplo, não tem como você fazer um curso de graduação em Ciências Sociais e dar uma formação metodológica adequada que dê conta das três áreas. Eu conheci um tempo atrás uma experiência que achei muito interessante e que poderia ser aperfeiçoada. É a formação em Ciências Sociais da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Eles tem bacharelado em Humanidades que fornece um diploma depois de três anos (similar ao minor norte-americano) tendo continuidade com a formação por mais três anos em Sociologia, Antropologia, Letras, História. Acho que isso pode ser caminho juntando formação interdisciplinar e disciplinar.

É muito comum o aluno formado em Direito, em Comunicação, entre outras, que querem complementar sua formação em Ciências Sociais seja na graduação ou na pós. Isso pode ajudar no desenvolvimento da carreira. Aliás, a formação de Direito ganharia muito com esse bacharelado conjunto, com especialização posterior. Vários colegas que fazem a pós-graduação vindos de outras áreas terminam sendo excelentes sociólogos, acadêmicos, pesquisadores na área de Sociologia, pois tiveram mais tempo para se decidir sobre uma carreira no sentindo de aprofundar sua formação ou mudar de área. A formação graduada de forma geral, necessita de uma abordagem interdisciplinar no início, até para o aluno ter maturidade ao escolher sua formação profissional.

Já que essa mudança demandaria tempo e encontraria resistência nas disciplinas consolidadas, exigindo uma decisão política de reforma do ensino superior, poderíamos começar buscando reestruturar a graduação em Ciências Sociais para que a formação que propicie ao estudante maiores chances de inserção no mercado de trabalho. Mesmo que não vá competir, por exemplo, com um desenvolvedor de software, mas possibilita conhecer sua utilização na pesquisa, que domine técnicas e o instrumental digital para atuar em diferentes setores.

Interessante essa perspectiva mais histórica do processo de profissionalização da área, inclusive mais no início você falou do Sergio Miceli e aquela coleção “História das Ciências Sociais no Brasil” (1989; 1995) que também foi criticada, pois dá entender que essa história é muito centrada no eixo Rio-São Paulo, como se não houvesse outras regiões e característica em que a Sociologia esteve presente no país. Dado isso, como você avalia mais recentemente ou em perspectiva histórica o crescimento e a profissionalização da pós-graduação para além do eixo Rio-São Paulo?

Eu avalio de uma forma extremamente positiva, pois hoje temos profissionais graduados e pós-graduados no país inteiro com muita qualidade. Temos núcleos de pesquisa bastante fortes em algumas temáticas ligados em redes nacionais e internacionais, e mesmo sem a concentração existente no eixo Rio-São Paulo, permite compreender questões sociais a partir da particularidades regionais e recortes territoriais. Lembrar que o Rio de Janeiro sozinho tem oito Programas de Pós-graduação em Sociologia ou Ciências Sociais, fora os de Antropologia, Ciência Política etc. Então, temos um conjunto de profissionais muito grande no Rio e São Paulo que exportam seus profissionais para o país inteiro e isso sempre aconteceu, desde que a Pós-graduação começou a se institucionalizar. E isso foi muito positivo, pois ajudou a criar um habitus acadêmico onde não existia. Mais uma vez, a CAPES e o CNPq foram fundamentais nesse processo, tornando a pesquisa e as publicações visíveis, como forma de devolver para a sociedade o que está sendo está produzindo em todo o país. Temos um projeto na SBS chamado de SBS Memória, no qual buscamos recuperar documentos da institucionalização da Sociologia no país, mais também a de perfis de sociólogos(as) que participaram da institucionalização do ensino e da pesquisa no país que tem revelado histórias desconhecidas acrescentando informações à história da Sociologia no Brasil.

Não é um projeto in memóriam, mas um projeto de memória com personagens que foram e que são parte dessa história. Nós temos uma história oficial, mas não temos ainda uma história de trajetórias, que permita entender os detalhes de como o campo foi construído, por exemplo, no Paraná, na Bahia, no Ceará, no Rio Grande do Sul, enfim, em todas regiões do país. A história oficial centra-se em São Paulo, e em menor escala no Rio de Janeiro, locais onde a produção tem sido estudada intensivamente, e mesmo assim, ainda se perdem algumas histórias. Então, pretendemos conhecer as diversas expressões do conhecimento e da institucionalização da Sociologia. Não desconsidero a importância de Rio-São Paulo, onde começa efetivamente a Sociologia brasileira, mas tivemos histórias e contribuições diferenciadas no país como um todo. Por exemplo, tivemos em 1962 um curso de pós-graduação em Ciências Sociais na Bahia que a Ditadura Militar fechou; tivemos também na década de 1960, em Piracicaba, um curso de Sociologia Rural fechado no início dos anos 1980; e outros que tiveram curta duração nos quais as experiências foram um pouco perdidas; e que vale a pena recuperar. Na graduação, a Escola de Sociologia e Política (criada em 1933), e o curso de Ciências Sociais da USP (1934) criaram dois modelos que permaneceram separados até o final da década de 1960, com propostas distintas. Com exceção do curso da Escola de Sociologia e Política de São Paulo foram todos fechados ou incorporados aos cursos de Ciências Sociais. A ideia original do curso de Ciências Sociais da USP era formar professores para o ensino médio; o da Escola de Sociologia e Política era a formação para profissionais e técnicos para atender as demandas do Estado. No artigo “A sociologia fora do eixo” juntamente com as colegas Soraya Cortes e Irlys Barreira, buscamos recuperar especificidades regionais (BARREIRA; CORTES; LIMA, 2018). O Rio Grande do Sul tem uma história muito específica, tentamos entender porque o pessoal lá foi fazer doutorado na Alemanha, por exemplo, a Fundação Volkswagen dando bolsas para estudos no exterior, assim como a Igreja Luterana. No Nordeste, a constituição nos anos 1980 de uma rede que incorporou os programas de Sociologia e Ciências Sociais e que organizou 12 congressos regionais de Ciências Sociais entre 1985 e 2012.

Lembrar que aquelas bolsas de formação pra professores no Nordeste e pra outras partes do país, o PICD, contou com apoio da Unicamp e resistência inicial da USP, que era contrária a proposta. Passaram 50 anos da formalização da pós-graduação enquanto sistema nacional. Esse processo foi ambivalente, refletindo a complexidade da área, o diferencial, as estruturas de poder, as assimetrias.

Muito interessante porque de certa forma a CAPES e o CNPq elas estabelecem as regras do jogo pra produção científica na pós-graduação em busca desse “habitus” utilizando esse conceito do Bourdieu para compreendermos a constituição do campo da pós-graduação no Brasil também. Mas como você analisa esse perfil mais recente hoje, pois estamos sofrendo várias transformações recentemente nessas agências de fomento, incluindo a definição de áreas prioritárias e os novos critérios também para a distribuição de bolsas da CAPES. Como que isso impacta a pós-graduação em Ciências Sociais?

Nós temos que considerar que vivemos um retrocesso civilizatório no país desde 2016, acentuado a partir das eleições presidenciais de 2018. Até 2014 nós tivemos avanços no sentido da construção de uma comunidade científica, de uma ciência brasileira, com todos os senões que esse processo teve durante a sua formação. Criamos uma forte estrutura de pós-graduação que é referência na América Latina. Mais que isso, na área de Ciências Sociais somos uma das maiores comunidades reconhecidas mundialmente com forte presença nos fóruns internacionais. Tínhamos bolsas e financiamento para a pesquisa. Formamos uma geração que se beneficiou do processo democrático após o fim da Ditadura Militar e a partir dos governos Lula e Dilma, tivemos incentivos crescentes para a internacionalização. E partir de 2016 começamos a andar para trás: tudo começou a retroceder em nome de um neoliberalismo tacanho, que nossas elites políticas e econômicas adoram desde que o Estado só as beneficiem e mantenha seus privilégios.

Então esse retrocesso se materializa a partir do período Bolsonaro, com ataques sistemáticos a Sociologia e às universidades públicas afetando a procura por formação em Ciências Sociais. De fato, porquê você vai fazer um curso se não tem nenhuma perspectiva? Porquê continuar com a formação em Sociologia nesse quadro político-institucional? Esse retrocesso civilizatório não afeta somente as Ciências Sociais, mas o conhecimento científico, desqualificado-o e secundarizado-o como não prioritário num contexto mundial no qual o conhecimento torna-se a força produtiva por excelência.

Num momento em que a pandemia ceifou quase 300 mil vidas [em março de 2021], não temos nenhuma reação dos setores ditos “de bem”, nenhum grande escândalo na mídia corporativa que continua seletiva em suas informações. Temos uma espécie de naturalização da tragédia com a cumplicidade dos três poderes e das forças policiais e militares. Não falta material de pesquisa para Sociologia (embora sem financiamento), mas é um péssimo momento para nós enquanto cidadãos e membros da sociedade brasileira. Isso está colocando para nós muitos desafios, mas como vamos enfrentar esses desafios? Pesquisa sem financiamento é impossível, e além da redução de verbas temos cada vez mais a triagem ideológica presente da forma como foram estruturadas as áreas prioritárias, além do esvaziamento da Capes e do CNPq da instrumentalização do ensino básico, ao ensino médio, no que diz respeito a diluição do conteúdo das disciplinas, na tendência de você controlar conteúdo e na militarização das escolas. Tempos sombrios pela frente.

Esse momento também é agravado pela pandemia da Covid-19, e como que o senhor vê o impacto da pandemia na formação pós-graduanda em Ciências Sociais no Brasil. Quais os principais impactos dessa pandemia pra essa geração de professores, pesquisadores que estão trabalhando nesse momento com o ensino remoto, orientando pesquisas, mas também pra quem está se formando na área dentro desse cenário?

É, eu estou vendo isso como uma precarização geral do trabalho, o que já vinha ocorrendo em grande medida e que agora agudizou-se. A pandemia acentuou esse processo. Se tivermos por base os professores do ensino médio, podemos ver que o ensino médio privado está enxugando seu quadro, aproveitando a excepcionalidade do momento e as tecnologias digitais. É possível o mesmo professor juntar várias turmas online. Tenho alunos e ex-alunos que são professores no ensino médio e estão perdendo emprego, perdendo número de aulas, trabalhando muito mais. Os colegas que lecionam em universidades privadas, também. Estamos trabalhando muito mais, e ameaçados em nossa atuação em sala de aula, pela falta de verbas, falta de concursos, enfim, uma precarização da vida como um todo. Um lado positivo, talvez, seja o maior domínio das tecnologias informacionais que também têm seus aspectos positivos na organização e realização da pesquisa e nas formas de ensinar. O isolamento social é muito ruim no sentido da aprendizagem, das redes, da troca e da produção de conhecimento. Por mais que a virtualidade possibilite contatos, fazer até disciplinas em universidades de todo o país e mesmo do exterior, perdemos a riqueza da interação social com os alunos e colegas que é fundamental, ainda mais numa disciplina como a nossa, além de afetar a saúde física e mental. Mas não temos outra saída. Não há governo, não há planejamento de saúde pública ou qualquer outra política voltada ao bem estar da população. Outro problemas grave é o desemprego dos nossos mestres e doutores, que no momento estão sem perspectivas. Como falar para alguém: “invista na área, se empolgue, se entusiasme”, quando você mesmo não acredita nisso. Mas a sociedade é dinâmica e a mudança sempre vem. Apenas espero que seja para melhor.

Neste ano de 2021 o Fórum de Sociologia da Associação Internacional de Sociologia ocorreu no Brasil e teve a participação da SBS, inclusive a sua participação enquanto presidente desta entidade. Como você avalia a participação da SBS nesse evento e também da comunidade de pesquisadores(as) brasileiros(as) no evento?

A participação dos brasileiros no evento foi extremamente significativa, e tem sido assim em todos os congressos da International Sociological Association (ISA) nestes últimos anos. A comunidade sociológica brasileira atingiu alto nível de internacionalização. Foi muito importante que tenhamos conseguido trazer o Fórum da ISA pra cá. Pena que tenha sido virtual. Por quê? Porque o virtual não pode ser muito demorado, pois ninguém aguenta muito tempo, exigindo que as atividades sejam rápidas. Com isso, as discussões acabam ficando muito limitadas, pois a sala tinha que ser esvaziada, tinha que entregar a sala para outra sessão, enquanto que, no presencial, isso é mais flexível. Nós vamos fazer agora o Congresso da SBS virtualmente em Belém, e com esse mesmo problema: nós já estávamos curtindo de ir para Belém, pois nos congressos é um momento de expor as pesquisas, fazer as redes, encontrar colegas, amigos e alunos, e também um momento de trocar experiências culturais. Por exemplo, estar todo mundo em Belém, ou estar em qualquer outro lugar juntos é uma troca muito mais rica.

Voltando ao Fórum da ISA, avalio que no geral foi muito bem e o desafio agora é fazer com que as pessoas também participem da SBS em Belém. Vamos esperar que as vacinas cheguem e que possamos retornar às nossas discussões presenciais. A pandemia possibilitou um largo momento de reflexão e que junto com o vírus representado pelo retrocesso político-institucional nos obriga a repensar a nossa formação, a nossa atuação, e a nossas possibilidades.

Quais as perspectivas de realização do Congresso Brasileiro de Sociologia deste ano?

Até o começo deste ano nós tínhamos deixado uma porta aberta para a realização do evento de forma presencial, mas ainda em janeiro nós fomos comunicados pela Reitoria da Universidade Federal do Pará (UFPA) que mesmo que houvesse vacina imediatamente, até julho dificilmente a Universidade poderia receber grandes eventos. Então, nós desistimos e passamos para o virtual. Em 2020 a SBS comemorou seus 70 anos e 83 anos se considerarmos a criação da Sociedade Paulista de Sociologia. Então, a nossa proposta é fazer uma comemoração dentro do possível desses 70 anos. Nós somos a Sociedade de Sociologia mais antiga da América Latina e a mais consolidada. Então, a ideia é fazer uma comemoração para marcar essa data representativa da institucionalização da Sociologia brasileira.

O autoritarismo ganha cada vez mais espaço, e mais uma vez nossa atuação se reveste de um caráter de resistência. Então, fazer esse Congresso é uma manifestação de resistência às ameaças enfrentadas pela sociedade brasileira e o conhecimento científico. Apos o interregno democrático que vivemos de 1985 a 2016, mais uma vez corremos o risco do retrocesso como sempre ocorreu em nossa frágil república.

Perfeito. Professor, muito obrigado pela disponibilidade e o aceite em participar da entrevista.

Referências

BARREIRA, Irlys Alencar Firmo; CORTES, Soraya V.; LIMA, Jacob Carlos. A sociologia fora do eixo: diversidades regionais e campo da pós-graduação no Brasil. Revista Brasileira de Sociologia, v. 6, p. 76-101, 2018.

LIMA, Jacob Carlos. A CAPES e a avaliação da pós-graduação: Considerações a partir das ciências sociais. Novos Debates — Fórum de Debates em Antropologia, v. 6, p. 01-10, 2020.

LIMA, Jacob. A reconfiguração da Sociologia no Brasil: expansão institucional e mobilidade docente. Intersecões — Revista de Estudos Interdisciplinares, v. 21, p. 7-48, 2019.

MICELI, Sergio (Org.) História das Ciências Sociais no Brasil, volume 01. São Paulo: Vértice/IDESP/FINEP, 1989.

MICELI, Sergio (Org.) História das Ciências Sociais no Brasil, volume 02. São Paulo: Editora Sumaré, 1995.

PINTO, Luiz Aguiar da Costa; CARNEIRO, Edison. As ciências sociais no Brasil. Rio de Janeiro: CAPES (Série Estudos e Ensaios, nº 6), 1955.

Resumo:
Trata-se de uma entrevista com o professor Jacob Carlos Lima, professor titular da Universidade Federal de São Carlos, presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) no período de 2019-2021. Na entrevista abordam-se alguns aspectos da institucionalização e profissionalização das Ciências Sociais brasileiras, com ênfase nas características dos Programas de Pós-graduação em Sociologia, assim como das agências de fomento a pesquisa como CAPES e CNPq e das associações profissionais como ANPOCS e SBS. Além disso, ressaltam-se aspectos dos efeitos da política-institucional no financiamento da pós-graduação da área de Ciências Sociais,  das consequências da crise político-sanitária da Covid-19 no país e de uma avaliação sobre a participação da comunidade científica da SBS no Fórum de Sociologia da International Sociological Association (ISA) e da realização do 20º Congresso Brasileiro de Sociologia no ano de 2021, ambos eventos inéditos, em seu formato online.

Palavras-chave:
Pós-graduação em ciências sociais; sociologia; ANPOCS; CAPES; CNPq.

 

Abstract:
This is an interview with Jacob Carlos Lima, professor at the Federal University of São Carlos, president of the Brazilian Society of Sociology (SBS) in the period 2019-2021. In the interview, some aspects of the institutionalization and professionalization of Brazilian Social Sciences are addressed, with an emphasis on the characteristics of the Postgraduate Programs in Sociology, as well as the research funding agencies such as CAPES and CNPq and professional associations such as ANPOCS and SBS. In addition, aspects of the effects of institutional policy on the financing of postgraduate studies in the Social Sciences area, the consequences of the political-sanitary crisis of Covid-19 in the country and an assessment of the participation of the scientific community of SBS are highlighted at the Sociology Forum of the International Sociological Association (ISA) and the holding of the 20th Brazilian Congress of Sociology in the year 2021, both unprecedented events, in its online format.

Keywords:
Post-graduation in Social Sciences; sociology; ANPOCS; CAPES; CNPq.

 

Recebido para publicação em 23/03/2021
Aceito em 28/04/2021