Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 2, jul./out., 2022
DOI: 10.36517/rcs.2022.2.a02
ISSN: 2318-4620

 

 

A compensação dos serviços ambientais às comunidades rurais:
caso de 20% das taxas de exploração florestal e faunística de Moçambique

 

Andre Camanguira Nguiraze OrcID
Universidade Zambeze, Moçambique
acamaguira@yahoo.com.br

 

Introdução

Moçambique, nação localizada na Costa Oriental de África, possui uma área de 799.380 km², dos quais 13.000 km² são de águas interiores, que se estende entre os Rios Rovuma (paralelo 10º 27’ S) e Maputo (paralelo 26º 52’ S) e os meridianos 30º 12’ e 40º 51’ latitude Leste. A maior parte do território de Moçambique localiza-se numa zona intertropical, influenciado pelas monções do Oceano Índico e pela corrente quente do Canal de Moçambique. O clima, de uma maneira geral, é tropical e úmido, com uma estação seca que, no Centro-Norte, varia de quatro a seis meses, enquanto que no Sul, com clima tropical seco, se prolonga por seis a nove meses (INE, 2017).

O país apresenta uma diversidade biológica de 14 regiões ecológicas compostas por uma vasta diversidade de ecossistemas terrestres, marinhos, costeiros e aquáticos. É maioritariamente (586.009 km², 74,2%) coberto de áreas naturais, enquanto que as restantes áreas cobrem 61.831 km² (7,8%) modificadas e 141.918 km² (18%) mistas. As áreas modificadas estão estritamente associadas à concentração da população humana, sendo que a zona costeira da região Sul, o Corredor do Limpopo, o Corredor da Beira, as províncias de Zambézia e Nampula em geral mostram extensas áreas modificadas e são coincidentemente, as áreas com maior concentração populacional (MAPEAMENTO DE HABITATS DE MOÇAMBIQUE, 2015).

A consequente degradação dos ecossistemas irá resultar em perdas inestimáveis de bens e serviços importantes para a subsistência das comunidades locais, bem como para os diversos setores econômicos. De acordo com Global Forest (2005), o desmatamento intensivo e indiscriminado das florestas tropicais, além de diminuir o estoque madeireiro, tem causado perdas irreversíveis da biodiversidade. Desse desmatamento, cerca de 17,5 milhões de hectares foram transformados em pastagens e, segundo estimativas existentes, acredita-se que metade dessas áreas se encontra degradada ou em estado de degradação.

As florestas da África subsaariana estão desaparecendo a um ritmo quatro vezes maior do que a média mundial. No entanto, vários países africanos introduziram ou fizeram emendas em leis para fortalecer os direitos das comunidades sobre a terra, entre eles, Angola, Camarões, República Democrática de Congo, Gâmbia, Moçambique, Níger, Sudão e Tanzânia (RIGHTS AND RESOURCES INITIATIVE, 2009). No caso de Moçambique, foram criados os Conselhos Locais de Gestão dos Recursos, que visam assegurar a participação das comunidades locais na exploração dos recursos florestais e faunísticos e nos benefícios gerados pela sua utilização. Pelo que, para uma ótima implementação das políticas de proteção deste recurso, foram implementadas taxas pelo acesso à utilização dos mesmos.

Nesta senda, Rech discorre:

princípio do protetor-recebedor busca o pagamento por serviços ambientais, como uma forma mais eficaz de multiplicar agentes motivados a preservar a natureza, para que ela continue prestando serviços indispensáveis à preservação da biodiversidade e da própria dignidade humana (RECH, 2002, p. 184).

Portanto, o presente trabalho analisa os mecanismos de integração no “lugar” do homem designado por homo situs, o princípio do protetor-recebedor que visa estimular e não apenas impor obrigações na proteção, conservação, prática de agroflorestamento e ecoturismo, contribuindo no desenvolvimento local comunitário, o que evidenciaria uma mudança de paradigmas no país como Moçambique no enfoque socioambiental.

Em termos metodológicos, o primeiro passo, na definição das demandas, antes mesmo do encaminhamento das taxas de compensação dos serviços ambientais às comunidades, é a elaboração de uma agenda de trabalhos juntamente com todos os comitês de gestão dos recursos, autoridades tradicionais e outros participantes do processo. De acordo com Brasil e Gomes (2006), num primeiro encontro, deve haver: uma breve contextualização do trabalho de conservação e preservação dos recursos naturais — educação ambiental, a descrição da sequência e da metodologia de condução dos trabalhos de definição das demandas. Um roteiro sugerido para a definição propriamente dita das demandas, pode ser: Quem somos? O que temos? O que queremos?

Em seguida, após a sistematização das demandas, deve-se realizar encontros na comunidade, para efeito de apresentação dessa sistematização, ratificação das demandas ou retificação de algumas informações mal interpretadas. Nesse momento, precisa ser priorizada a lista de demandas obtidas, com registro de nomes das organizações das comunidades e definição de um cronograma de execução, avaliação e monitoria dessas atividades. (BRASIL; GOMES, 2006).

O pensamento integrado, inter-relacionado, contextualizado e global deve substituir o pensar e fazer fragmentado, efetivados pelo Poder Público e por Organização Não- Governamental — ONG’s. Pois, é preciso adotar os procedimentos técnico-metodológicos a operar uma dialógica, de forma a desenvolver as habilidades, convivência e competências nas comunidades locais. E depois aferir, como alvo de avaliação, a forma como os projetos se desenvolveram resultantes das compensações dos recursos disponíveis na comunidade pelos agentes externos. A eficiência dos métodos e procedimentos empregados, as transformações sociais e impactos gerados pelas atividades, o retorno da ação no distrito, como um todo.

Tratando-se de um trabalho científico-pedagógico, assume-se como indispensável a investigação de conceitos teóricos, e é essencial a realização da revisão da literatura existente sobre os conceitos relacionados à problemática em estudo. Deste modo, os conceitos que merecem ser esclarecidos são dois: o de “comunidade versus homo situs”, e a “injunção do desenvolvimento comunitário”. Os dois serão aplicados à realidade política moçambicana contemporânea. Desta forma, abordam-se os termos com o intuito de situar e de obter justificação para as afirmações e ainda para orientar os leitores, delimitando o âmbito conceptual.

Ao longo deste texto pretende-se refletir sobre:

  1. Aplicação do princípio protetor-recebedor como mecanismo para a materialização da justiça econômica;

  2. Comunidade versus homo situs;

  3. A injunção do “desenvolvimento comunitário”;

  4. A última parte, correspondente a demandas versus compensação da comunidade local.

Aplicação do princípio protetor-recebedor como mecanismo para a materialização da justiça econômica

Neste tópico, rastreia a trajetória de uma pesquisa que debruça sobre o princípio protetor-recebedor que surgiu como um marco inovador no ordenamento jurídico moçambicano,1 uma nova abordagem sobre a gestão ambiental, buscando a interdependência entre a economia e a ecologia, um assunto atinente a todos e que incentiva a participação de toda comunidade. Pelo exposto, ainda persistem os desafios, no concernente, a boa governação na gestão socioambiental e dos recursos naturais, entendido por Serra (2012b) como o sistema de liderança assenta num modelo institucional responsável e responsivo, que integra os cidadãos no processo de tomada de decisões nas questões de gestão dos recursos naturais locais que assegure e privilegie a implementação plena de um quadro jurídico-legal, à equidade na partilha dos benefícios decorrentes do uso de tais recursos.

Este princípio se encontra previsto nos diversos instrumentos de proteção ambiental, notadamente: na lei de floresta e fauna e no seu respectivo regulamento. A sua aplicação é fundamentada, sobretudo, na necessidade de estimular a participação efetiva das comunidades locais na proteção ao meio ambiente, com a criação de uma consciência ecológica pautada nas diretrizes sustentáveis, permeando as condutas ambientalmente sustentáveis e protetoras como mecanismo de incentivo ou compensação financeira às comunidades locais pelo fato de praticarem atos que beneficiam o meio ambiente.

De acordo com Mauricio Andrés Ribeiro,

O princípio protetor-recebedor incentiva economicamente quem protege uma área, deixando de utilizar seus recursos, estimulando assim a preservação. Sua aplicação serve para implementar a justiça econômica, valorizando os serviços ambientais prestados generosamente por uma população ou sociedade, e remunerando economicamente essa prestação de serviços porque, se tem valor econômico, é justo que se receba por ela. A prática desse princípio estimula a preservação e incentiva economicamente quem protege uma área, ao deixar de utilizar os recursos de que poderia dispor (RIBEIRO, 2009, p. 125).

O maior objetivo da aplicação deste princípio jurídico é a busca constante pela justiça econômica e social, tendo em conta o trabalho generoso e voluntário que as comunidades locais prestam na preservação do meio ambiente. Atualmente, existem em Moçambique muitas comunidades locais que prestam serviços de preservação e conservação ambientais sem nenhuma contrapartida, beneficiando em grande medida os exploradores dos recursos florestais e faunísticos que se aproveitam dos recursos, sem, no entanto, criar condições para a sua preservação ou contrapartidas para as comunidades.

Entretanto, é através de políticas de proteção, conservação e incentivos à utilização racional dos recursos ambientais que se poderá preservar o meio ambiente para as gerações futuras. A Lei do Ambiente configura-se atualmente como uma espécie de Lei-quadro, fixando os pilares do regime de proteção jurídico-legal do ambiente. Segundo o respectivo artigo 2, esta Lei “tem como objeto a definição das bases legais para uma utilização e gestão corretas do ambiente e seus componentes, com vista à materialização de um sistema de desenvolvimento sustentável no país”2 (SERRA et al, 2012a).

Num contexto nacional de crescente desigualdade econômica e deficiente distribuição de renda, no qual ocorre a apropriação de recursos naturais de forma desenfreada, a compensação como incentivo financeiro na busca pela conservação do meio ambiente faz valer a justiça ambiental e econômica. Isso ocorre na medida, em que a comunidade exerce um papel fundamental na conservação do meio ambiente. Por isso, ela merece um incentivo como forma de pagamento pelo trabalho que presta na preservação e conservação deste recurso. Esta compensação econômica financeira pode servir para dinamizar o desenvolvimento ecologicamente equilibrado dentro da comunidade, como o reflorestamento das áreas desmatadas ou na supressão das necessidades coletivas da comunidade.

Neste contexto, foi criada a Lei 10/99, de 7 de julho, do Regulamento da Lei de Floresta e Fauna Bravia que estabelece os princípios e normas sobre a proteção, conservação e utilização sustentáveis, o regime de compensação financeira dos serviços ambientais prestados pelas comunidades que residem nas zonas de exploração.3 Segundo o Regulamento da LFFB, “20% de qualquer taxa de exploração florestal ou faunística destina-se ao benefício das comunidades locais da área onde foram extraídos os recursos, nos termos do n. 1 do artigo 105 do Decreto n. 12/2002, de 6 de junho que regulamenta a Lei de Floresta e Fauna Bravia.” (MOCAMBIQUE, 2002).

No entanto, para uma comunidade receber a compensação, ela deve estar representada por um Comitê de Gestão de Recursos Naturais, que deve estar registado na Administração Distrital responsável pela área onde o comitê foi criado,4 contando maioritariamente com o apoio de muitas Organizações Não-Governamentais (ONG’s) que atuam nas áreas dos recursos naturais e com a promoção do associativismo. Para Advogados (2007), o Governo do Distrito de Gorongosa procedeu no dia 06 de junho 2021 à consignação de 88.623,95 Meticais (na razão de $1,00 USD = 61, 23 Meticais) a favor da comunidade de Nhangúo, representada pela Associação Ngaiwanwe Nhangúo, liderada pelo Comitê de Gestão de Recursos Naturais local.

As comunidades locais são incentivadas a praticar o reflorestamento para a recuperação das áreas degradadas, de modo a favorecer a recuperação da biodiversidade, a captura de carbono e a regulação hídrica, contribuindo para a conectividade de áreas protegidas, os chamados corredores ecológicos. No entender de Born e Talocchi (2002), em muitos aspectos pode se comparar a um programa de compensação por serviços ambientais que podem ser de transferências diretas de recursos financeiros, preferências para obtenção de serviços públicos. Para efeito, a comunidade depois de ter os recursos é obrigada pelo poder público a escolher a construção de infraestruturas públicas como escola e centro de saúde.

Para Advogados (2007), este instrumento de compensação dos serviços ambientais à comunidade que seria um estímulo para mudanças nas práticas de manejos, mostra-se débil porque não tem suporte técnico, nem capacitação institucional que estimule o homo situs a engajar na construção de identidades funcionais que permitam negociar as relações sociais com o poder público.

A Lei de Floresta e Fauna Bravia e seu Regulamento fornecem uma oportunidade interessante para ancorar as comunidades os 20%, enquanto entes coletivos, na mobilização das capacidades locais de inovação e saber fazer. Zaoual na teoria dos sítios sugere: “nada poderá acontecer se não for tomado em consideração o sítio dos atores. Esses sítios são compostos de mitos, de valores de sentido, estruturando, em profundidade, os organismos sociais que evoluem em um dado espaço físico” (ZAOUAL, 2006, p. 170).

Não obstante, as comunidades não têm o real conhecimento do que significa e para que serve os 20% e de quem é a obrigação deste pagamento. Pois, muitas vezes quando os 20% são alocados à comunidade são realizadas obras que são da obrigação do Estado e que deveriam ser efetuadas por meio de concretização de políticas públicas, por exemplo: construção de escolas, hospitais, furos de água etc. Deste modo, os 20% devem ser aplicados para o fim a que o valor foi criado, e dos 80% que ficam a favor do Estado devem ser aplicados para a construção de equipamentos sociais na área onde foi extraído o recurso. Pois, em alguns casos, esta obrigação é atribuída aos exploradores madeireiros privados, fato que é questionável, pois não se percebe para onde é canalizado o valor do imposto pago (SERRA et al, 2012a).

E, na percepção de Nhacale (2020), as decisões são tomadas ao nível dos conselhos consultivos distritais, ou seja, o governo decide tudo; desde a gestão até a definição do que deve ser prioridade para a sua efetivação, tanto que, o problema assenta no cooptação dos órgãos locais, na gestão do fundo em detrimento dos donos que são as comunidades. Os recursos provenientes de pagamento de compensação dos serviços ambientais mostram que os legítimos donos do fundo são meros espectadores e cumpridores de reuniões que as autoridades distritais locais convocam quando o valor é canalizado e é investido preferencialmente para a obtenção de serviços públicos como a construção de escolas e centro de saúde, muito embora a lei seja clara ao consagrar que cabe à comunidade decidir o que fazer com o recurso.

Comunidade versus homo situ, o homem da situação

Neste tópico, abordaremos a questão que abre uma discussão para uma compreensão conceitual capaz de pensar o homem rural e o seu território, homo situs, homem da situação, que é portador de uma pluralidade de modo de coordenação (dadiva, solidariedade, reciprocidade, cooperação, socialização, aprendizagem reciproca etc.). Neste sentido, Zaoual (2006) enaltece: ele preenche a incompletude do mercado gerador de incerteza nos territórios africanos. A motivação de existência indenitária é uma ordem diferente da ordem da racionalidade padrão.

Para tanto, foram muitos os que se aventuraram em discutir comunidade. Um dos primeiros foi o filósofo alemão Ferdinand Tönnies (1944, 1963). Afora isso há, também, questões de ordem político-conceitual que precisam ser corajosamente enfrentadas: como indagam Duffy e Hutchinson (1997), o que é a “comunidade”, quem a constitui? “Comunidade”, em inglês como em português, é um conceito problemático, e o termo se presta admiravelmente a manipulações ideológicas.

Ferdinand Tönnies sugere que o que distinguia a comunidade antiga da (moderna) sociedade em ascensão (Gesellschaft) era um entendimento compartilhado por todos os seus membros. Não um consenso. Vejam bem: o consenso não é mais do que um acordo alcançado por pessoas com opiniões essencialmente diferentes, um produto de negociações e compromissos difíceis, de muita disputa e contrariedade, e murros ocasionais (TÖNNIES, 1963).

Para o mesmo autor, a comunidade é uma associação que se dá na linha de ser, isto é, por uma participação profunda dos membros no grupo, onde são colocadas em comum as relações primárias, como o próprio ser, a própria vida, o conhecimento mútuo, a amizade e os sentimentos. É neste âmbito que os membros colocam em comum algo de seu, algo do que possuem. Os seres humanos participam, pois, da comunidade não pelo que têm, mas pelo que são (TÖNNIES, 1944).

Para Bauman (2003) o entendimento ao estilo comunitário é casual (zuhanden, como diria Martin Heidegger), não precisa ser procurado, e muito menos construído: esse entendimento já “está lá”, completo e pronto para ser usado — de tal modo que nos entendemos “sem palavras” e nunca precisamos perguntar, com apreensão, “o que você quer dizer?”:

O tipo de entendimento em que a comunidade se baseia precede todos os acordos e desacordos. Tal entendimento não é uma linha de chegada, mas o ponto de partida de toda união. É um “sentimento recíproco e vinculante”: o entendimento que é característico de uma comunidade é tácito “por sua própria natureza”: Isso é assim porque o conteúdo do entendimento mútuo não pode ser expresso, determinado e compreendido... O acordo real não pode ser artificialmente produzido (BAUMAN, p. 16-17, 2003).

Depreende-se que Bauman afere, “comunidade” como entendimento compartilhado do tipo “natural” e “tácito”, ela não pode sobreviver ao momento em que o entendimento se torna autoconsciente, estridente e vociferante; quando, para usar mais uma vez a terminologia de Heidegger, o entendimento passa do estado de zuhanden para o de vorhanden e se torna objeto de contemplação e exame.

Para tanto, o surgimento da questão dos territórios de pertencimento aparece como decorrência lógica. Em sua argumentação sobre sítios, Hassan Zaoual enfantiza: “a aproximação da perspectiva dos atores, dos territórios e da sua racionalidade situada. Considera uma evolução rumo a uma epistemologia muito mais realista que a dos grandes postulados uniformes do pensamento”dominante” em economia. A conjetura do homo situs dá disso uma perfeita ilustração” (ZAOUAL, 2006, p. 105).

Para efeito, a comunidade é o ‘nervo central’ para a sustentabilidade da construção de alternativas de desenvolvimento dos territórios, capaz de gerar sinergias criativas localizadas no envolvimento do homo situs. Pois, a questão territorial vai além da posse do espaço geográfico porque é uma questão indenitária onde essas comunidades têm como uma de suas características  o modo de vida em coletividade, desta forma, unido por interesses semelhantes, às vezes com origens comuns e em um território comum, decorrentes destes laços do pertencimento e de suas interações mediada neste espaço. Santos comenta:

A partir do espaço geográfico, cria-se uma solidariedade orgânica, o conjunto sendo formado pela existência comum dos agentes exercendo-se sobre um território comum. A sobrevivência do conjunto, não importa que os diversos agentes tenham interesses diferentes, depende desse exercício da solidariedade indispensável ao trabalho e que gera a visibilidade do interesse comum. (SANTOS, 2000, p. 109-110).

Nesse contexto, o pensamento dos sítios associa os mundos simbólicos e morais dos homens às suas práticas cotidianas. Como refere Zaoual (2006), são relações, geralmente, ocultas que a noção de homo situs redescobre: o homem concreto em seu espaço vivido, isto é, em seu sítio simbólico, é o homem do local.

Acredita-se que a legitimidade e o reconhecimento dos territórios do homo situs é uma maneira de repensar os “lugares”, que nesse trabalho designar-se-á por situs, em sua especificidade, levando-se em conta os sistemas de representação dos atores para o desenvolvimento local. Não há dúvidas que o instrumento de compensação de serviços ambientais, consagrado na Lei da Floresta e Fauna, poderia impulsionar e galvanizar as habilidades e valores comunitários para o desenvolvimento local. E implementado mediante a cobrança de uma taxa sobre a prática de ecoturismo, agro florestamento, conservação e proteção de ecossistemas e biodiversidade vitais. O que evidencia uma mudança de cultura e paradigma em relação ao enfoque socioambiental.

A injunção do “desenvolvimento comunitário”

Neste tópico, discutiremos a ausência de diálogo entre a comunidade, homem da situação e os agentes externos de desenvolvimento condiciona, que vão desde a injunção para que os membros da comunidade assumam um projeto previamente montado até processos mais sutis de produção consentimento da comunidade em torno dos modelos de projetos previamente montadas.

De acordo com Silva (1964), o desenvolvimento da/para comunidade parte das necessidades sentidas pela população e sobre elas constrói o plano de ação contando, desde o começo, com a iniciativa, a responsabilidade e liberdade de escolha por partes dos interessados. A mesma tese é corroborada por Nguiraze (2013, p. 54), a novidade do processo de descentralização, em Moçambique, deve ser entendida como lutas culturais sobre o significado das noções recebidas de “cidadania”, “direitos humanos”, “fórum” e “conselhos consultivos”. Para efeito, a mudança de perspectiva quanto à definição do que é ou não aspiração de uma comunidade num território envolve uma complexidade de processo que só pode ser efetivada plenamente por próprio homo situs.

Paradoxalmente, a prevalência dessa situação de criação de redes clientelistas locais pelo Poder Público, pode ser entendida, segundo Souza (2006) como a degeneração do esquema participativo que torna-se, antes de mais nada, um instrumento de domesticação do homo situs por parte das forças politicas à frente do aparelho de Estado, com o proposito de eliminar focos de oposição e estabelecer redes informais de suporte eleitoral. A mesma tese é corroborada por Anjos & Leitão (2009), em situações em que os atores sociais dispõem de recursos desiguais para a apresentação de suas propostas, o diálogo tende quase sempre a ser distorcido.

O conceito de desenvolvimento desde o início, que tornou como referência, para sua formulação e conteúdo, a experiência histórica dos países europeus considerados desenvolvidos aos países periféricos, no âmbito das chamadas sociedades industriais, entende-se como boas práticas. É neste contexto, que o mediador de políticas de desenvolvimento (Agente do Estado ou de ONG’s) quase sempre dispõe, mais do que o homo situs, de capital simbólico e autoridade para a imposição de sua visão de desenvolvimento. Na percepção de Zaoual (2006), tal mecanismo das referências já formuladas, inibe as capacidades de regeneração dos meios locais, o que impede sua experiência de aprendizagem. Assim, tudo acontece como se as transferências de conhecimentos, materializados ou não, entretivessem a ignorância, por mimetismo.

Mas aqui entra um pormenor importante. Saber o que fazer no espaço reproduzido, o que evidência uma mudança de cultura e paradigma em relação ao enfoque socioambiental. No entender de Spink (1993), só faz sentido se você tem noção das modalidades de conhecimento prático orientadas para a comunicação e para a compreensão do contexto social, material e ideativo em que vivemos. Deste modo, De Souza assevera que “o importante é não permitir que as diferenças de natureza entre o ‘saber local’ dos cidadãos leigos e o saber técnicos — científicos venham a nutrir hierarquias e um discurso hierárquico” (DE SOUZA, 2001, p. 171).

Portanto, subentende-se que a participação da comunidade se efetua mediante a expectativa de uma taxa institucionalizada sobre a prática de ecoturismo, agroflorestamento, conservação e proteção de ecossistemas e biodiversidade vitais, quando a instituição e seus agentes se colocam diante do demandante como objeto de satisfação: “eu sou a resposta à necessidade gerada por tua carência” (PEREIRA, 2008, p. 150). Portanto, “não existem carentes, o que existe é uma subjetividade de sujeitos carentes” (PEREIRA, 2008, p. 150). O discurso dos agentes públicos estatais cuida de prover o pobre e, transmitir através de propagandas subliminares, que o Estado é bom, que os cidadãos são iguais frente à lei e que o Estado assegurará a satisfação das necessidades básicas de todo cidadão e a realização de seus desejos.

Economicamente, baseia-se na suposição de que existe mercado de compensação dos serviços de ambientais que pode beneficiar a comunidade. Mas, Laraña enaltece: “o que as pessoas demandam de forma coletiva é o direito de realizar sua própria identidade: a possibilidade de dispor da sua criatividade pessoal, sua vida afetiva e sua existência biológica” (LARAÑA, 1994, p. 17).

Demandas versus compensação da comunidade local

Nesta unidade, estaremos orientados a discussão do grande desafio das comunidades em acreditar o propalado desenvolvimento sustentável para conciliar o princípio do protetor- recebedor, o que para Furlan (2010) está relacionado ao princípio da participação na medida em que, ao estimular um comportamento social útil incentiva-se uma maior participação das comunidades locais.

De acordo com Serra et al (2012b), entendido como o sistema de liderança assenta num modelo institucional responsável e responsivo, que integre os cidadãos no processo de tomada de decisões nas questões das florestas, que assegure a precaução de impactos suscetíveis de causar danos ambientais e sociais, que privilegie a feitura e correspondente implementação plena de um quadro jurídico-legal bom, adequado, justo e eficaz, dirigido a garantir a gestão sustentável dos recursos florestais, e o acesso à justiça e à equidade na partilha dos benefícios decorrentes do uso de tais recursos.

Na definição das demandas das comunidades locais, na gestão de recursos, deve-se realizar uma abordagem sistêmica, pois existem interdependências entre as demandas pensadas que estariam relacionadas com a melhoria da qualidade de vida. A base conceitual dessa forma de abordagem metodológica foi apresentada por Morin (1989), ao descrever os conceitos de “sistema”, “interação”, “organização de sistemas” e “ação holistas”. Não obstante, diferentemente das abordagens que são planejadas e definidas pelos órgãos de Autoridade distrital, que Maricato (199, p. 121) designou “as ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias”.

A abordagem, em contextualização metodológica, na gestão dos recursos, reveste de meio imprescindível de subsistência das comunidades, deve-se adotar como estratégia a identificação de expectativa dos indivíduos relacionadas com a ampliação das suas escolhas para o desenvolvimento local, por meio de um processo cognitivo em acordo com as experiências histórico-culturais e as influências externas de carácter social, político e econômico.

De acordo com Brasil e Gomes (2006), deve-se considerar também o processo de composição das externalidades, pois nas comunidades, essa variável tem sido um importante componente nas tentativas de geração de trabalho e renda. E, na percepção de Nhacale (2020), a forma como é canalizado o fundo de compensação de serviços ambientais sugere a ideia de que seja proveniente do Orçamento do Estado, porque os métodos para a sua utilização obedecem à lei de procurement, logo se trata de um fundo destinado à comunidade que é gerido por outrem.

No entanto, convém salientar a opinião em torno de uma comunidade beneficiada das taxas de compensação de serviços ambientais, a título de exemplo manifestado pelo Presidente do comitê de Gestão de Recurso de Comunidade Tiphedzeni Kumala Ucherengue de Gorongosa Timóteo Mirione, de 54 anos:

Com o dinheiro a organização vai comprar uma indústria moageira para ajudar a comunidade a deixar de percorrer longas distâncias como sete quilómetros para moer os seus cereais e a construção de centro de saúde. […], vamos comprar igualmente bicicletas para os agentes polivalentes elementares da Saúde visando facilitar as deslocações para prestação de assistência. Vamos mandar colocar uma fonte de abastecimento de água, porque temos problemas sérios de água no tempo de seca. (Timóteo Mirione, 23 jun./ 2015).

Pode se aferir, que os itens de indústria de moagem, à semelhança das escolas e postos de saúde, tornam-se um recurso comunitário. Estes benefícios são improváveis que tenham impacto abrangente sobre os demais membros da comunidade local. De acordo com Tenner e Baleira (2009), a realidade é que todas essas categorias são extremamente difíceis de quantificar em termos do seu impacto sobre o melhoramento nos indicadores sociais do homo situs e, por tanto, para gerar novas opções de modos de vida.

O “impacto” tem que, em todos os casos, ser visto em duas vertentes. Por um lado, será que os recursos e a infraestrutura transferida para a comunidade são capazes de aumentar os rendimentos ou oferecer escolhas de meios de vida reais? E, por outro, será que os recursos disponibilizados como compensação de retorno, são uma troca justa pelos recursos naturais conservados e protegidos?

Para a construção do mapa de demandas, é importante considerar o processo participativo, de acordo com os parceiros anunciados em Thiollent (1989), a observação unilateral deve ser substituída, em muitas ocasiões, por questionamento coletivo, por uma intercomunicação ou diálogo acerca das necessidades das comunidades para melhorar a qualidade de vida. A observação unilateral dos agentes externos à comunidade, desconhece a economia de reciprocidade interna à comunidade e pode fazer com que as políticas públicas gerem mais problemas do que soluções. Na verdade, no território, segundo Anjos e Leitão (2009) o resultado final de institucionalização dessas linhas arbitrárias, é que a comunidade se vê, hoje, dividida e fragmentada pelos efeitos de desconfianças e dos ressentimentos gerados pela execução daquela política.

Para Fulan (2010), é necessário estimular e não apenas impor obrigações, a fim de que as questões ambientais aconteçam. Não há dúvidas de que instrumentos de compensação econômica estimulam a preservação, e eles devem ser utilizados pelo Poder Público. Contudo, há situações em que não se trata apenas de estímulo à ação voluntária, mas da necessidade de reconhecer e incentivar que sejam firmadas obrigações civis para que efetivamente se possa cobrar o cumprimento.

Em síntese, a comunidade assume o papel de sujeito do processo, propõe ações, oferece contraponto, enfim estabelece uma parceria concreta, afastando o que Brasil e Gomes (2006, p. 46) designaram de “fantasma do assistencialismo”. Para efeito, caminha-se para um pacto efetivo entre as comunidades e os agentes externos, evitando os benefícios ínfimos que acabam conduzindo os membros da comunidade a cortar e negociar com os furtivos.

Considerações finais

Pode-se depreender que um olhar holístico e integrado da comunidade e não num prisma meramente legal, faz necessário, que os especialistas encontrem uma forma de acesso às comunidades locais, a fim de superarem a desconfiança e a postura defensiva do homo situs — contra as inovações, motivando-os para o desenvolvimento local. Pois é, a observação ensina que a mão comunitária da organização africana não está deixando a mão invisível do mercado.

A qualidade de debate aumentaria se o homo situs, as autoridades comunitárias tradicionais, investidores e os órgãos do Poder Público, ser capaz de reconhecer a validade dos diferentes códigos culturais que orientam as trocas, evitando a destruição dos sítios, das territorialidades e das regras que preservam os laços sociais.

A promoção do processo de desenvolvimento, a partir dos recursos endógenos, e as oportunidades de participação são possibilitadas à proporção que as responsabilidades de gestão e organização do novo espaço social são atribuídas aos sujeitos. As assembleias e reuniões passam a fazer parte da rotina da vida coletiva e, nesses espaços, o silêncio e a vergonha de se expor começam a ser desfeitos, enquanto o exercício da fala e do poder de argumentação é valorizado, para a decisão dos destinos de suas vidas, o que contribuí para a reelaboração da interpretação do mundo, gerando comportamentos e condutas novas. Portanto, segundo Rech (2012) não estamos tratando da compensação dos serviços ambientais prestados pela natureza, mas da necessidade de valorização da ação humana, buscando assegurar que a natureza continue prestando serviços ambientais.

Enfim, os fundos de compensação criados têm uma natureza apenas compensatória para ações voluntárias, de altruísmo ou idealismo de poucos, e plasmado pela política exclusiva do Estado, o que não resolve o universo do home situs e da necessidade de desenvolvimento das suas habilidades e para pôr em prática o desenvolvimento local.

Referências

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  1. Consagrado na Constituição moçambicana de 2004. No qual define os objetivos do Estado Moçambicano na construção de ordem econômica que proporcione aos cidadãos uma vida digna, busca pela justiça social e o respeito ao meio ambiente.↩︎

  2. Vejam-se o artigo 117 e o n.º 2 do artigo 90, prevendo obrigações gerais e específicas do Estado no capítulo do ambiente.↩︎

  3. Neste sentido, vide: o n. 5 do artigo 35 da Lei n. 10/99, de 7 de julho, (Lei de Floresta e Fauna Bravia).↩︎

  4. Vide: o Diploma Ministerial n. 93/2005 de 4 de Maio. Disponível em: www.biofund.org.mz. Acessado em: 26/12/2020.↩︎

Resumo:
Este texto tem por finalidade analisar a natureza da compensação dos serviços ambientais às comunidades rurais, no concernente, aos 20% das taxas, ao abrigo da legislação florestal e faunística para o desenvolvimento local. Os fundos são destinados às comunidades residentes nas áreas onde se localizam os recursos naturais. Para isso, a reflexão da terminologia da teoria dos sítios, o homo sistus, o homem da situação, na perspectiva de inovações conceptuais capazes de pensar as relações entre crenças e as práticas territoriais na promoção do desenvolvimento das comunidades rurais moçambicanas. Em termos epistemológicos, ele mescla o individualismo metodológico e o holismo. Em termos metodológicos, procedeu-se à revisão bibliográfica sobre abordagem sitiológica e documentos sobre a legislação da fauna e flora do país. O estudo constatou que o desafio de canalização desses fundos para a promoção de desenvolvimento local consiste na constituição de um paradigma plural que seja capaz de produzir conceitos apropriados de participação comunitária com caráter híbrido.

Palavras-chave:
Comunidade; Desenvolvimento local; Exploração Florestal e Faunística; Taxas.

 

Abstract:
This article aims to analyze the nature of the compensation of environmental services to rural communities, with regard to 20% of the fees, under forestry and wildlife legislation for local development. The funds are intended for communities residing in areas where natural resources are located. For this, the reflection of the terminology of the theory of sites, the homo sistus, the man of the situation, in the perspective of conceptual innovations capable of thinking about the relationships between beliefs and territorial practices in promoting the development of rural Mozambican communities. In epistemological terms, he blends methodological individualism and holism. In methodological terms, a bibliographical review was carried out on the site approach and documents on the legislation of the country’s fauna and flora. The study found that the challenge of channeling these funds to the promotion of local development is the constitution of a plural paradigm that is capable of producing appropriate concepts of community participation with a hybrid character.

Keywords:
Community; Local development; Wildlife and forestry exploration; Fees.

 

Recebido para publicação em 20/04/2021
Aceito em 12/07/2021

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